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Estratificação socioeconômica do consumo familiar de energia no Brasil

Socioeconomic stratification of household energy consumption in Brazil

RESUMO

Em meio às discussões da política energética, raramente a demanda é levada em consideração. Este artigo discute números referentes ao consumo doméstico de energia e visa contribuir para a formulação de políticas que entendam os diferentes efeitos e o que significa o acesso à energia para a população.

PALAVRAS-CHAVE:
Energia; eletricidade; desigualdade

ABSTRACT

On the midst of discussions of the energetic policy, seldom demand is taken into consideration. This paper discusses figures regarding the household consumption of energy and aims to contribute to the formulation of policies that understand the different effects and what does access to energy mean to the population.

KEYWORDS:
Energy; electricity; inequality

A questão da energia quase sempre é tratada através de uma abordagem estreita, que privilegia o ângulo da oferta e deixa na penumbra a discussão da demanda. A preocupação fundamental gira em torno das quantidades de energia que serão possíveis de obter, a um determinado custo, num certo horizonte de tempo. É jogando com essas opções da oferta que se imagina equacionar a crise energética e, assim, atender a uma demanda que é admitida como se fosse a expressão fiel das necessidades da coletividade.

Entretanto, essa conexão entre demanda de energia e necessidades sociais não é explicitada com suficiente clareza. E nem o poderia ser, no quadro da abordagem convencional da questão energética. Pois a demanda não é encarada aí como um problema a discutir, mas como um dado a desvendar através de modelos de previsão que recorrem a métodos estatísticos ou econométricos. É como se a demanda futura fosse o desdobramento necessário de uma tendência já existente desde agora: o futuro estaria contido no presente e no passado, sem que os autores sociais pudessem alterar o curso predeterminado dos acontecimentos.1 1 Schumacher, E. F., O negócio é ser pequeno, Rio de janeiro, Zahar, 1977, p. 198; Sachs, lgnacy, “Futuro”, Enciclopédia, Turim, Einaudi, 1978, pp. 519-522.

Essa concepção leva a que a política energética seja encarada, basicamente, como uma política de suprimento e a sua discussão acabe se restringindo a um confronto entre projetos técnicos de oferta. Podem variar as formas energéticas ou as tecnologias preconizadas; o que não vária é a proposta de se intensificar cada vez mais a produção de energia, numa interminável fuga para a frente, que não resolve os problemas, mas apenas os transfere para as próximas gerações. Ora, é exatamente aí, quando se deixa de considerar as possibilidades de uma modulação da demanda, que se perde a pista mais promissora para a busca de soluções sustentáveis para a questão da energia. Mais do que isso, perde-se a oportunidade para uma discussão aprofundada a respeito das articulações entre a questão da energia e a questão do desenvolvimento.

Ao se focalizar o problema energético pelo lado da demanda, é preciso ter presente que esta depende de condições históricas concretas. O nível e a composição da demanda de energia numa sociedade são condicionados pelo modelo de desenvolvimento vigente, que traz consigo uma certa estrutura de classes e um certo perfil de distribuição da renda. Por isso mesmo, considerar a possibilidade de uma reorientação da demanda de energia é abrir caminho para a discussão de transformações sociais que conduzam a um projeto alternativo de sociedade. É, aliás, no cenário da discussão dos projetos de sociedade que a formulação das opções de política energética encontra o seu lugar mais adequado.

Num projeto de desenvolvimento socialmente aceitável, o ponto de partida para se discutir a demanda energética deve ser a tentativa de identificar qual é a energia requerida para que possam ser satisfeitas as necessidades humanas básicas de todos os cidadãos. Essas necessidades, porém, não se prestam a uma definição apriorística. Por isso, o melhor caminho para fazer avançar a discussão parece estar em examinar como se dá efetivamente o consumo energético e quais são as necessidades e aspirações que estão sendo atendidas pela energia disponível. Em outras palavras, trata-se de indagar para quem se destina a energia, e para que usos finais ela está servindo.

No Brasil, o Balanço Energético Nacional, publicado anualmente pelo Ministério das Minas e Energia, contribui muito para elucidar esse tipo de questão. O que aparece ali é um balanço de estilo contábil, em que o consumo de cada forma de energia é discriminado pelos vários setores econômicos. Faltam, porém, informações sobre a repartição social do fluxo energético; e essa omissão é particularmente grave quando se sabe que a população brasileira se caracteriza por uma forte desigualdade nas condições de existência das diferentes classes e camadas sociais.

O dados apresentados em seguida resultam de uma pesquisa realizada com a preocupação de ajudar a preencher essa lacuna. Sobretudo nos dias atuais, quando a questão energética é apresentada como uma grande questão nacional, são necessárias pesquisas que tragam à tona o que a energia de fato representa para os diferentes segmentos sociais que estão presentes no cenário brasileiro.

O CONSUMO FAMILIAR

Tomou-se como campo de observação o consumo familiar de energia, que engloba os consumos energéticos realizados nas residências e mais os que se dão no transporte de passageiros (excetuadas as locomoções a serviço). Não se entrou, portanto, na análise da energia que é despendida na produção e distribuição de bens e serviços e acaba sendo, de algum modo, destinada também ao consumo de pessoas físicas; pois quem faz uso desses bens e serviços está necessariamente consumindo seus respectivos conteúdos energéticos. Na impossibilidade prática de uma análise que abrangesse todos os consumos energéticos, tanto os diretos como os indiretos, optou-se pela parcela do consumo familiar, que é onde melhor se pode observar a relação entre os usos de energia e os estilos de vida. 2 2 Uma análise panorâmica do consumo brasileiro de energia, incluindo também a parcela consumida sob a forma indireta, pode ser encontrada em Vanin, V., Graça, G:M. G. e Goldemberg, J., “Padrões de consumo de energia - Brasil 1970”, Ciência e Cultura (33-4), São Paulo, abril de 1981, pp. 477-486.

Como fonte básica, recorreu-se aos dados do ENDEF (Estudo Nacional da Despesa Familiar), levantados pelo IBGE em 1974-1975.3 3 IBGE, Estudo Nacional da Despesa Familiar (vols. 1 a 4), Rio de janeiro, 1978. Mediante um reprocessamento de dados, foram colocados em destaque aqueles itens do orçamento doméstico que se referem ao consumo· de energia ou têm uma relação muito próxima com ele: eletricidade, gás, lenha, carvão, querosene, gasolina para veículo próprio, táxi e outros meios de transporte.4 4 IBGE, Estudo Nacional da Despesa Familiar: tabulações específicas sobre os itens de consumo energético, por solicitação do autor, Rio de Janeiro, 1982. Os dados disponíveis no IBGE não permitiram a desagregação entre o gás de botijão (GLP) e o gás de rua. Além disso, por problemas de representatividade estatística, foi necessário tratar conjuntamente o transporte de trem e o de barco. As despesas em cruzeiros realizadas com cada um desses itens foram em seguida transpostas no consumo correspondente em unidades físicas: quilowatts-hora, metros cúbicos de lenha, litros de gasolina, querosene etc.; quando possível, essa transposição se fez através dos preços tabelados, mas em alguns casos foi preciso recorrer a outras fontes. Finalmente, as unidades específicas de cada forma de energia foram traduzidas numa unidade comum - a quilocaloria (kcal) -, o que permitiu somar o consumo de gasolina com o de lenha, energia elétrica, etc.

Como resultado, chegou-se a um total de 128.545 bilhões de kcal por ano. Isso significa que a parcela do consumo familiar de energia representa cerca de um quarto do balanço energético brasileiro, tomando por base os dados oficiais da época. Em média, uma família consome 9,5 milhões de kcal anuais, sendo 61% na parcela da residência e 39% na dos transportes. Na composição desse consumo segundo as formas de energia, o petróleo entrou com 52%, a biomassa (lenha e carvão vegetal) com 42% e a energia elétrica com 6%.5 5 A proporção da energia elétrica teria alcançado um valor mais alto, caso a sua correspondência em quilocalorias tivesse sido calculada pelo critério do Balanço Energético Nacional (1 kWh = 2540 kcal); optou-se, porém, pelo critério alternativo (1 kWh = 860 kcal), que é mais universalmente aceito, além de se prestar melhor a uma análise pela ótica do consumo.

Conforme se observa na Tabela 1, a maior parcelado consumo energético das famílias cabe à lenha, que representa 39,8% da energia final consumida. A gasolina para veículo próprio (29,9%) também ocupa uma posição de destaque. Além disso, o gás (10,8%), a energia elétrica (6,1%) e o óleo diesel para ônibus urbano (5,4%) aparecem em proporções significativas. Finalmente, há parcelas com peso muito pouco expressivo (carvão vegetal, querosene iluminante, táxi, ônibus de longa distância), ou mesmo insignificante (avião, trem, barco).

Tabela 1:
Energia final consumida pelas famílias, segundo as formas de consumo (1974-1975)

CONSUMO DE ENERGIA E ESTRATIFICAÇÃO ECONÔMICA

Níveis e composição do consumo energético

Para fazer aparecer a distribuição social do consumo familiar de energia, o reprocessamento dos dados classificou as unidades domiciliares segundo os seus níveis de despesa per capita. A classificação se fez com base na despesa global, que compreende, além dos gastos monetários do consumo, também os não-monetários, e ainda os impostos, as contribuições trabalhistas e previdenciárias, os investimentos e as amortizações de dívidas.6 6 IBGE, op. cit., 1978, vol. 2, p. 17. As famílias foram agrupadas em grupos dicíclicos: os 10% mais ricos, os 10% seguintes, e assim por diante, até chegar aos 10% mais pobres. No caso, ser considerado mais rico ou mais pobre significa estar localizado num patamar mais alto ou mais baixo de despesa global per capita.

Pode-se perceber, na Tabela 2, que o nível de consumo familiar de energia do primeiro estrato é marcadamente mais alto que o dos demais, sendo 2,8 vezes maior do que a média global. É, no entanto, nos estratos intermediários, e não nos mais pobres, que o consumo energético registra os seus níveis mais baixos. Do primeiro ao quarto estrato, o consumo de energia decresce com o nível econômico das famílias, mas daí em diante a situação se inverte; a tal ponto que os três últimos estratos apresentam consumos mais altos que o do terceiro grupo dicíclico.

Tabela 2:
Nível e composição do consumo familiar de energia (1974 - 1975)

Já na composição do consumo, quanto mais elevadas as posições na escala econômica, tanto maior a proporção representada pelo consumo residencial e menor a do consumo energético efetuado nos transportes. Assim, os quatro últimos estratos consomem energia quase unicamente na habitação.

Observa-se, portanto, que a diferenciação entre pobre e ricos transparece mais claramente na composição do consumo energético do que nos níveis desse consumo. O mesmo fenômeno se manifesta, e aliás com maior evidência, na Tabela 3, que se atém à parcela residencial do consumo familiar de energia. Mais uma vez os níveis de consumo vão decaindo desde o primeiro até o quarto estrato e a partir daí crescem incessantemente. Nota-se, porém, que os estratos mais pobres registram níveis de consumo significativamente mais altos que os demais.

Tabela 3:
Nivel e composição do consumo residencial de energia (1974 - 1975)

Esse fenômeno aparentemente paradoxal encontra sua explicação quando se passa a analisar a composição do consumo residencial de energia. São cinco as formas de energia que aí estão presentes: a lenha, a eletricidade, o gás, o carvão vegetal e o querosene. Os dois últimos participam em proporções bastante pequenas, qualquer que seja o estrato socioeconômico considerado. Entretanto, as proporções da eletricidade, do gás e da lenha variam bastante com o nível de despesas das famílias. A tendência é muito clara: à medida que se passa dos estratos mais ricos para os mais pobres, vão decrescendo, em termos percentuais, a parcela do gás e, sobretudo, a da energia elétrica, enquanto a da lenha se expande cada vez mais. Essa tendência vai encontrar sua expressão mais acabada nos dois últimos estratos, que têm praticamente todo o seu consumo residencial de energia sob a forma de lenha.

Esses contrastes nos perfis de consumo refletem as diferenças existentes quanto aos tipos de equipamentos domésticos. Como se sabe a presença do fogão a lenha é bastante comum entre famílias pobres, especialmente no proletariado rural. É um fogão de eficiência reconhecidamente baixa, que canaliza para a cocção de alimentos apenas uma pequena proporção do total de calorias queimadas; ou seja, há um grande dispêndio de energia final, para um pequeno aproveitamento de energia útil. É por cozinharem a lenha que os estratos inferiores acabam ostentando um consumo proporcionalmente alto de energia final; em energia útil, porém, o seu consumo permanece baixo.7 7 Para uma análise da energia útil consumida em residências de diferentes níveis econômicos, ver Arouca, Maurício C., Análise da demanda de energia no setor residencial no Brasil (Tese de Mestrado), Rio de Janeiro, COPPE/UFRJ, 1982. E, de qualquer modo, trata-se de uma energia despendida quase que exclusivamente para comer.

Mais uma vez, a distância entre ricos e pobres se manifesta na composição do consumo energético. Mais especificamente, o que se nota é uma diversidade nos usos finais a que se destina o consumo energético e também um acesso diferenciado aos equipamentos mais eficientes na utilização de energia. Trata-se de distinções que têm a ver, no fundo, com as desigualdades existentes nas condições de habitação.

Já na parcela dos transportes, há uma flagrante associação entre o nível econômico das famílias e o respectivo consumo de energia, como se pode notar a Tabela 4. Basta dizer que o consumo energético do primeiro estrato é 376 vezes maior que o do último. Essa desigualdade se deve basicamente ao caráter elitista da utilização do automóvel na sociedade brasileira. Entre os estratos mais ricos, quase todo o consumo energético nos transportes é efetuado de automóvel. No outro extremo, entre os estratos mais pobre, a utilização do transporte motorizado se faz predominantemente através dos veículos coletivos de superfície (ônibus, trem, barco).

Tabela 4:
Nivel e composição do consumo de energia no transporte de pessoas fisicas (1974 - 1975)

Quando, porém, se comparam as quantidades de energia consumidas em cada grupo, percebe-se que até mesmo nos transportes coletivos os maiores consumos tendem a ficar com os estratos superiores. O que se pode concluir é que a utilização do transporte motorizado, em geral, está bastante associada ao nível econômico das famílias. Até certo ponto, isso se deve a que as camadas mais pobres reúnem uma grande proporção da habitantes do meio rural ou de pequenas cidades do interior, que não contam, senão muito precariamente, com serviços regulares de transporte coletivo. Mas também não se deve esquecer que é muito comum, mesmo nas áreas metropolitanas, que as pessoas mais pobres caminhem longas distâncias para economizarem a condução.

Assim, as diferenças nos níveis e nas composições do consumo de energia, apontadas na Tabela 4, revelam uma acentuada desigualdade social no acesso aos meios de transporte. Trata-se, em última análise, de um forte desnível nos graus de liberdade para dispor do tempo/espaço, o que constitui mais uma faceta da disparidade nas condições de vida da sociedade brasileira.

Repartição do consumo de cada forma de energia

Os contrastes existentes nos padrões de consumo se refletem na repartição social de energia consumida. Em relação ao conjunto que engloba todas as formas de energia, a Tabela 5 mostra que o primeiro estrato responde sozinho por 29% do consumo energético; mas no restante da população o tamanho das fatias não difere muito de um estrato para outro nem guarda correspondência com as posições ocupadas na escala econômica. Reproduz-se aqui, sob outra forma, o que já havia sido observado anteriormente (Tabela 2).

Tabela 5:
Distribuição do consumo familiar de energia (1974 - 1975)

Mas a análise do consumo desagregado por tipos de energia é particularmente instrutiva. Verifica-se então que os 10% mais ricos absorvem 49% do consumo dos derivados de petróleo e 36% do consumo de energia elétrica. Tomando-se em conjunto os dois primeiros estratos têm-se 20% da população consumindo 69% do petróleo e 57% da energia elétrica. Em contrapartida, os 30% mais pobres consomem 60% da biomassa (lenha e carvão vegetal), mas apenas 4% do petróleo e 2% da eletricidade.

Os contrastes entre os extremos são, portanto, muito acentuados. Por exemplo, o consumo de petróleo de uma família do primeiro estrato corresponde, em média, à 2,23 toneladas anuais, o que dá um barril e cada 21 dias. Para consumir esse mesmo barril, uma família situada entre os 10% mais pobres vai levar 4 anos, 8 meses e 13 dias.

O que se configura é uma certa distinção entre as “energias dos ricos” - a eletricidade e o petróleo - e as “energias dos pobres” - as derivadas da biomassa. É claro que se trata de uma distinção grosso modo, que só faz sentido quando se focaliza o Brasil como um todo. Pois andar de ônibus ou de trem suburbano, usar gás de cozinha ou ter luz elétrica em casa não devem, a rigor, ser considerados privilégios de ricos; isso faz parte do cotidiano de muitos habitantes de favelas, cortiços e loteamentos periféricos. No atual contexto brasileiro, porém, até mesmo esses “confortos” bastante prosaicos estão fora do alcance de uma grande parcela da população.

No que se refere ao petróleo, os derivados que têm o consumo mais concentrado entre os grupos de maior poder aquisitivo são o querosene de aviação e a gasolina. Basta dizer que apenas 10% da população é responsável pelo consumo de 68% da gasolina e 89% do querosene de aviação. Já o gás da cozinha e o óleo diesel são combustíveis usados tipicamente no meio urbano; por isso, o fato de seu consumo ser mais intenso entre os estratos superiores (Tabelas 3 e 4) tem algo a ver com a tendência de os níveis de despesas serem, em geral, mais altos nas famílias urbanas do que nas rurais. Finalmente, o querosene iluminante é o único derivado de petróleo que é, sem sombra de dúvida, mais consumido pelos pobres do que pelos ricos; mas ele pesa pouco no total do consumo familiar de petróleo: apenas 4%, contra 61% da gasolina.

Também no perfil do consumo de energia elétrica existe uma certa conotação urbana, à semelhança do que foi observado a respeito do gás de cozinha e do óleo diesel queimado nos transportes coletivos. De fato, a disponibilidade dos serviços residenciais de energia elétrica depende, em parte, das possibilidades de atendimento pelas concessionárias, que são maiores quando se trata de aglomerações mais densas. Assim, a proporção de domicílios eletrificados cresce consideravelmente com o grau de urbanização, ao qual frequentemente se associam níveis mais altos de despesas familiares. Mas na própria população que está ligada à rede elétrica, a quantidade média de quilowatts-hora consumidos varia muito de um domicílio para outro. E essa variação é muito influenciada pelas diferenças existentes no poder aquisitivo, que dão margem a uma grande disparidade nas condições de habitação: famílias de maior renda tendem a ocupar residências mais espaçosas - requeren­do, portanto, maior iluminação - e a dispor de equipamento eletrodoméstico mais numeroso e sofisticado.

Em suma, as energias que trazem consigo o acesso aos padrões de conforto proporcionados - e, até certo ponto, exigidos - pela moderna sociedade urbano-industrial têm o seu consumo concentrado nas camadas superiores. Em contrapartida, se as camadas subalternas desempenham algum papel de destaque, é no uso da lenha, carvão vegetal e querosene, ou seja, aquelas formas de energia que têm o seu consumo acrescido justamente nas situações em que é maior o desconforto nas condições de vida.

CONSUMO DE ENERGIA E ESTRUTURA SOCIAL

O reprocessamento dos dados do ENDEF também permitiu reagrupar a população de um outro modo, em função da estrutura de classes e camadas sociais, o que proporcionou um outro ângulo para a análise da distribuição da energia na sociedade brasileira. O reagrupamento se fez com base nas categorias socioprofissionais utilizadas no ENDEF, tendo-se também presentes, em alguns casos, os níveis de despesa familiar. Nessa reclassificação, houve uma duplo corte, separando as categorias urbanas das rurais, e fazendo uma distinção entre burguesia, camada média e proletariado.8 8 Os procedimentos adotados para a caracterização da estrutura de classes e camadas sociais estão descritos em Bôa Nova, A. C., Energia e classes sociais no Brasil, São Paulo, Loyola, 1985.

Na Tabela 6, encontra-se uma comparação dos níveis de consumo energético das diferentes classes e camadas sociais, levando em consideração as formas de energia: derivados de petróleo, energia elétrica ou biomassa. Mais uma vez, o caráter desigual da distribuição social da energia se manifesta com muita nitidez.

Tabela 6:
Nivel de consumo de cada forma de energia. segundo as classes e camadas sociais (1974 - 1975)

Observam-se dois contrastes: um deles está entre as categorias urbanas e as rurais e o outro entre a burguesia, a camada média e o proletariado. O consumo total de energia final tende-a ser maior nas categorias rurais do que nas urbanas, o que se deve ao uso generalizado da lenha entre a camada média e o proletariado rurais. Em contrapartida, as categorias urbanas se caracterizam por um consumo maior de derivados de petróleo e energia elétrica.

No caso da burguesia agrária, nota-se um padrão de consumo que se assemelha muito ao da burguesia urbana e difere muito dos apresentados pelas outras categorias rurais. Em outras palavras, o que predomina aí é o padrão burguês, e não o padrão rural. Mas o consumo bastante alto de derivados de petróleo que se observa na burguesia agrária, superando significativamente a burguesia urbana, deve ser encarado com reservas. Possivelmente, terá havido dificuldades, no levantamento de campo, para estabelecer uma distinção entre a gasolina gasta em trajetos pessoais e a consumida em viagens a serviço do estabelecimento agropecuário.

Tanto no contexto urbano como no rural, percebem-se degraus muito nítidos separando a burguesia da camada média e esta do proletariado. E à medida que se desce das camadas superiores para as subalternas, diminui substancialmente o nível de consumo das energias típicas da sociedade moderna - derivados de petróleo e eletricidade - enquanto aumenta o consumo de biomassa. Tem-se, assim, uma confirmação do panorama de desigualdade anteriormente descrito, e visto agora à luz de um outro foco.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A análise dos dados do consumo energético das famílias mostra que a parcela que realmente significa alguma coisa para o conforto das pessoas está, em sua maior parte, colocada a serviço de uma pequena minoria. E se isso ocorre com o consumo energético familiar, é de se supor que contrastes ainda maiores existam ao nível da energia gasta na produção e circulação de mercadorias. Foi essa, aliás, a constatação de Vanin, Graça e Goldemberg, quando fizeram o confronto dos consumos energéticos diretos e indiretos de diferentes grupos de renda.9 9 Vanin, Graça e Goldemberg, op. cit., pp. 482 e 485.

Não se trata apenas de um reflexo da diversidade nos padrões de conforto, associados aos desníveis no poder aquisitivo. Mais do que isso, trata-se do acesso desigual a recursos que são erigidos como prioridades nacionais, tanto que a nação inteira é mobilizada, de um modo direto ou indireto, para a sua obtenção. Pois a necessidade de assegurar o suprimento de petróleo e expandir o parque gerador de eletricidade tem sido invocada como pretexto para reclamar incessantes sacrifícios da população: arrocho salarial, aumento de impostos, restrições nos benefícios previdenciários, cortes nos investimentos em educação, saúde, promoção social etc.

O argumento que se usa é que a energia é imprescindível para o desenvolvimento, cujos benefícios se iriam estender a toda a sociedade; como se as estratégias de desenvolvimento não pudessem comportar vários perfis alternativos de consumo energético. Mas o que efetivamente se observa é uma política de energia centrada sobre a oferta, visando a sustentação de um determinado modelo de desenvolvimento, que se caracteriza por reproduzir e acentuar as desigualdades sociais. Nesse modelo, os rumos do desenvolvimento não são ditados pelas necessidades da coletividade, mas pela da acumulação do capital, que a ideologia dominante procura apresentar como necessidades nacionais.

Em termos estritos de suprimento, essa política energética vem sendo eficaz. Mesmo nas conjunturas mais críticas do mercado internacional de petróleo, o Brasil manteve a regularidade do abastecimento petrolífero; enquanto isso, a produção dos poços nacionais teve um aumento expressivo, e também houve a implantação do PROÁLCOOL e uma enorme expansão da capacidade de geração de eletricidade. Mas existe aí um custo imenso para a economia nacional, enquanto os benefícios sociais da utilização dessa energia permanecem muito restritos. De fato, o perfil da distribuição de renda é tão concentrado que uma parcela considerável da população tem muito poucas possibilidades de acesso à energia ofertada.

Para que os programas de expansão do suprimento energético possam começar a se tomar justificáveis socialmente, será necessária uma distribuição mais equitativa dos benefícios da energia na sociedade brasileira. E para que isso seja viável, é preciso que haja uma desconcentração de renda, que evidentemente só poderá ser obtida através da luta política.

  • 1
    Schumacher, E. F., O negócio é ser pequeno, Rio de janeiro, Zahar, 1977, p. 198; Sachs, lgnacy, “Futuro”, Enciclopédia, Turim, Einaudi, 1978, pp. 519-522.
  • 2
    Uma análise panorâmica do consumo brasileiro de energia, incluindo também a parcela consumida sob a forma indireta, pode ser encontrada em Vanin, V., Graça, G:M. G. e Goldemberg, J., “Padrões de consumo de energia - Brasil 1970”, Ciência e Cultura (33-4), São Paulo, abril de 1981, pp. 477-486.
  • 3
    IBGE, Estudo Nacional da Despesa Familiar (vols. 1 a 4), Rio de janeiro, 1978.
  • 4
    IBGE, Estudo Nacional da Despesa Familiar: tabulações específicas sobre os itens de consumo energético, por solicitação do autor, Rio de Janeiro, 1982. Os dados disponíveis no IBGE não permitiram a desagregação entre o gás de botijão (GLP) e o gás de rua. Além disso, por problemas de representatividade estatística, foi necessário tratar conjuntamente o transporte de trem e o de barco.
  • 5
    A proporção da energia elétrica teria alcançado um valor mais alto, caso a sua correspondência em quilocalorias tivesse sido calculada pelo critério do Balanço Energético Nacional (1 kWh = 2540 kcal); optou-se, porém, pelo critério alternativo (1 kWh = 860 kcal), que é mais universalmente aceito, além de se prestar melhor a uma análise pela ótica do consumo.
  • 6
    IBGE, op. cit., 1978, vol. 2, p. 17.
  • 7
    Para uma análise da energia útil consumida em residências de diferentes níveis econômicos, ver Arouca, Maurício C., Análise da demanda de energia no setor residencial no Brasil (Tese de Mestrado), Rio de Janeiro, COPPE/UFRJ, 1982.
  • 8
    Os procedimentos adotados para a caracterização da estrutura de classes e camadas sociais estão descritos em Bôa Nova, A. C., Energia e classes sociais no Brasil, São Paulo, Loyola, 1985.
  • 9
    Vanin, Graça e Goldemberg, op. cit., pp. 482 e 485.
  • JEL Classification: E94; L98.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 1986
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