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Salários e política salarial

Wages and wage policy

RESUMO

A partir de dados alternativos, construímos um Índice Geral de Salários para a indústria de transformação, entre 1961 e 1984. Sua desagregação permitiu analisar a evolução dos salários reais e das remunerações reais das oito categorias profissionais. Verificamos que os rendimentos dependem, em primeiro lugar, da condução do ciclo econômico e, secundariamente, de fatores relacionados à estrutura organizacional empresarial, movimento sindical e política salarial do governo. O salário-mínimo oficial não parece determinar a taxa salarial; seu maior impacto diz respeito ao setor informal.

PALAVRAS-CHAVE:
Salários; política salarial; salário-mínimo

ABSTRACT

Using an alternative data, we built a General Wage Index for the industry of transformation, between 1961 and 1984. Its desagregation permited us to analyse the evolution of real salaries and real wages of the eight professional categories. We verified that the earnings depend, in the first place, on the conduct of the economic cycle, and secondarily, on the factors related to the business’ organizational structure, trade-union movement, and government’s wage policy. The official minimum wage doesn’t seem to determine the wages rate; its major impact concerns to the informal sector.

KEYWORDS:
Wages; wage policy; minimum wage

Este artigo se propõe a analisar a evolução real das diversas remunerações do trabalho, desde o início dos anos sessenta até o presente, juntamente com os fatores que os determinam. A primeira parte está dedicada à evolução real destas remunerações, e a segunda à política salarial.

Entendemos por SALÁRIO a remuneração da classe operária, aquela que nas relações de produção capitalista ocupa sempre posição subordinada e cujo trabalho, produtivo ou não, porém essencialmente manual, depende da capacidade física para executar operações simples, repetitivas, parcelizadas e que, em geral, não exigem decisões pessoais. ORDENADO é a remuneração dos quadros administrativos que compõem a burocracia empresarial, ou a remuneração dos agentes que integram a estrutura organizacional das empresas, aqueles que desempenham a coordenação administrativa; uma função que exige trabalho intelectual, produtivo ou não, e cujo desempenho implica posição de mando ou dominação nas relações de produção.

Classificamos a classe operária, de acordo com seu grau de especialização profissional, em: operários qualificados, semiqualificados e não-qualificados; e a burocracia empresarial, segundo a posição funcional de cada segmento na estrutura hierárquica das organizações.

Com relação as remunerações dos técnicos e trabalhadores dos escritórios, preferimos classificá-los dentro do conceito de salários, porque nas relações de produção não ocupam posições de dominação.

Os dados de nossa amostra foram obtidos da PRIL - Pesquisas em Relações Industriais Ltda, empresa tradicional na área de consultoria em relações industriais, na forma de séries históricas de “salários” nominais efetivamente pagos na Indústria de Transformação entre 1961 e 1984, e o Índice de Salário Real Médio - PRIL, construído a partir desta fonte alternativa de dados, não difere, em sua evolução, dos que utilizam as informações oficiais, (Gráfico 1), porém conta com a grande vantagem de poder ser amplamente desagregado, o que nos permitirá a análise individualizada do comportamento da remuneração de cada uma das oito categorias profissionais em que dividimos o espectro ocupacional.

GRÁFICO 1
Índice de salário médio real (Base 1973 - 1,00)

O uso do IGP (DI), um índice de preços mais abrangente, como deflator, em lugar de um índice de custo de vida, se deve .ao fato de as informações provirem de empresas localizadas em diferentes cidades ou regiões, apesar da preponderância das sediadas na Grande São Paulo.

A EVOLUÇÃO DO SALÁRIO REAL MÉDIO

Nos Quadros 2, 3 e 4 e no Gráfico 1 mostramos a evolução real das remunerações do trabalho, ao nível de máxima agregação, representadas pelos índices de salário real médio obtidos com os dados do FIBGE, ABDIB e PRIL. A tendência geral dos três índices é plenamente coincidente, e se ajusta a evolução do ciclo econômico. Assim, de 1963 a 1968, o salário real médio, incluindo todas as remunerações do trabalho, se mantém relativamente estável, em sintonia com o fraco desempenho da indústria de transformação, porém, os salários evoluíram abaixo da taxa de produtividade, o que, muito provavelmente, decorre da rigorosa política salarial da época.

QUADRO 1
(referente aos Gráficos 2, 3 e 4) ÍNDICE DE SALÁRIOS E ORDENADOS REAIS POR CATEGORIAS PROFISSIONAIS (Base: 2.º semestre de 1961=1,00)
QUADRO 2
(referente ao Gráfico 5) ÍNDICE DE SALÁRIO MÉDIO REAL PRIL POR GRUPOS DE CATEGORIAS PROFISSIONAIS
QUADRO 3
(referente ao Gráfico 1) ÍNDICE DE SALÁRIO MÉDIO REAL DA ABDIB (Indústria de Base)
QUADRO 4
(referente ao Gráfico 1) ÍNDICE DE SALÁRIO MÉDIO REAL - FIBCE

Na fase da expansão do ciclo, de 1968 a 1974, os salários reais cresceram de forma significativa, sendo que a desaceleração do ritmo do crescimento econômico após 1974 não afetará esse desempenho. A primeira redução sensível do índice que agrega as remunerações ocorrerá no segundo semestre de 1979, motivado pelo súbito recrudescimento da inflação. Já a aparente recuperação que se segue em 1981 e 1982 corresponde, apenas, a um movimento de ajuste no mercado de trabalho, que passa a dispensar em massa a mão-de-obra menos qualificada e com salários menores, fazendo com que o salário médio dos que permanecem empregados se eleve (Tavares e Davi, 1982Tavares, Maria da Conceição e Mauricio D. Davi (orgs.), (1982) - Economia Política da Crise, Petrópolis, Vozes., p.83).

A profundidade da crise dos anos oitenta, especialmente grave na indústria, se reflete na queda dos índices de produção e emprego de 1981 até o início de 1984, e na concomitante redução de todos os índices reais de “salário”, sobretudo, ao longo de 1983, em função do plano de “austeridade” exigido nos acordos firmados em janeiro com o FMI. Resulta evidente que a remuneração do trabalho acompanha o desempenho da indústria, o que, embora perfeitamente previsível, dificulta a análise das possíveis influências de curto prazo de fatores de caráter institucional, como a política salarial e as pressões sindicais. A este nível de máxima agregação, também não são possíveis quaisquer informações sobre o comportamento de cada um dos vários segmentos que compõem o leque das remunerações do trabalho, o que apenas se tornará factível com a desagregação que propomos a seguir.

SALÁRIOS E ORDENADOS POR CATEGORIAS PROFISSIONAIS

A desagregação do Índice de Salário Real Médio - PRIL nos permitirá identificar a evolução da remuneração de cada categoria profissional, a participação de cada uma delas na tendência geral, juntamente com as causas que condicionam o comportamento destas remunerações.

Os dados do Quadro 1, reproduzidos nos Gráficos 2, 3 e 4, representam a evolução das remunerações reais das oito categorias profissionais que compõem nossa amostra. O Quadro 2 contém três índices agregados: o que engloba os salários dos trabalhadores, o dos técnicos e pessoal dos escritórios, e o relativo aos ordenados, todos os três representados no Gráfico 5, além do índice Geral de Salário Médio Real - PRIL, que está contido no Gráfico 1.

GRÁFICO 2
Índices de salários e ordenados reais (Base 1961 - 1,00)

GRÁFICO 3
Índice de salários Reais (Base 1961 - 1,00)

GRÁFICO 4
Índice de salários mensais (Base 1961 - 1,00)

GRÁFICO 5
Índice de salários e ordenados reais (Base 1961 - 1,00)

O Quadro 2 revela que da primeira desagregação, entre salários de operários, salários do pessoal técnico e dos escritórios, e ordenados em geral, já é possível perceber com grande nitidez a intensidade da abertura do leque das remunerações do trabalho, a partir do início da recuperação econômica em 1967-1968, proporcionada pelo fantástico crescimento dos ordenados à frente dos salários dos operários e dos segmentos da chamada “baixa burocracia”, e que perdurará até o advento da crise atual.

Para efeitos de análise dividiremos o período da amostra em quatro partes: do segundo semestre de 1961 até 1967, que corresponde à crise dos anos sessenta; de 1968 a 1974, a fase do milagre; de 1975 a 1979, o período de sustentação da taxa de crescimento histórica, e do segundo sementre de 1979 em diante, que é quando começa a perfilar-se a política de ajuste.

Da crise dos anos sessenta à fase do milagre

De 1961 a 1967, salários e ordenados parecem sofrer da mesma forma os efeitos adversos de baixa performance da economia e as agruras da política salarial restritiva.

De 1968 em diante, quando se inverte o ciclo recessivo, os ordenados passam a crescer muito à frente dos salários, o que poderia sugerir a ideia de que as remunerações da administração superior estão estreitamente vinculadas ao comportamento da Taxa de Lucro (Bacha, 1973Bacha, Edmar. (1973) - “Hierarquia e Remuneração Gerencial”, in Ricardo Tolipan e A.C. Tinelli (orgs.), A Controvérsia sobre Distribuição de Renda e Desenvolvimento, Rio de Janeiro, Zahar.), ou que os grupos de direção, supervisão e controle passam a assumir progressivamente o papel de classe dominante (Bresser-Pereira, 1981Bresser-Pereira, Luiz Carlos. (1981) - A Sociedade Estatal e a Tecnoburocracia, São Paulo, Brasiliense., p. 81). Em ambos os casos os ordenados representam a participação dos quadros superiores da burocracia empresarial no excedente gerado.

Neste mesmo período o crescimento dos salários dos técnicos e trabalhadores dos escritórios também superou o salário real do conjunto dos trabalhadores diretos, logo, no período do auge econômico, todas as remunerações do trabalho cresceram significativamente em termos reais, porém os maiores benefícios foram apropriados, sem dúvida alguma, pelos segmentos superiores da hierarquia organizacional, o que constitui uma prova cabal da materialização do processo de concentração da renda.

Como explicação do fenômeno podemos aventar algumas hipóteses: 1) na fase de expansão dos negócios e grande otimismo, é razoável esperar que as empresas desejem remunerar mais generosamente seus corpos de direção, gerência e chefias, tanto para estimulá-los como para garantir sua disponibilidade; 2) a forte expansão da produção e sua consequente modernização passaram a pressionar a demanda por administradores de todos os níveis. Constatamos, nas pesquisas da PRIL, a ampliação do número de novos cargos e funções com a separação de atribuições que até então estavam concentradas na mesma pessoa, pois a especialização que acompanha a evolução tecnológica, no auge do ciclo, traz novas exigências por trabalho altamente qualificado, o que pode justificar a forte elevação dos ordenados; 3) simultaneamente, o padrão de acumulação, voltado para a elitização do consumo de bens industriais, dependia diretamente da política de concentração de renda, que também foi habilmente implementada pela via fiscal e creditícia (Furtado, 1973Furtado, Celso. (1973) - Análise do Modelo Brasileiro, Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira., p. 39).

Nesse mesmo período, entre 1968 e 1974, os salários dos técnicos e trabalhadores dos escritórios ·e os salários dos operários em geral também aumentaram, apropriando parte dos ganhos de produtividade decorrentes da expansão econômica, contudo, a uma taxa bem inferior à dos ordenados. A perda relativa dos salários, especialmente os inferiores, frente às demais remunerações do trabalho, deve estar relacionada com o caráter restritivo da política salarial, e com a violenta opressão sobre o movimento sindical independente. Fatores que podem explicar por que, num período de tal expansão da produção e do emprego, os salários reais, em conjunto, experimentaram um crescimento tão modesto.

A desaceleração do ciclo entre 1975 e 1980

Os resultados de 1975 já refletem a fase de “sustentação” do nível de atividade econômica, quando o objetivo imediato consistirá em manter o ritmo histórico de crescimento do produto.

Neste período, os salários crescem de forma mais intensa1 1 De 1975 a 1983 ocorre uma alteração na composição da amostra de remunerações, que passa a refletir-se basicamente, embora não de forma exclusiva, ao setor metalúrgico, mecânico, elétrico e de material de transporte, sendo que até então incluía empresas de outros setores da indústria de transformação. Dado que estes setores estão entre os mais dinâmicos, cabe a possibilidade de que a amostra tenha incorporado remunerações mais elevadas. Contudo, os testes que realizamos neste ano de 1975 com as empresas do setor químico, farmacêutico, de papel, celulose e alimentos, que saíram da amostra para compor relatórios em separado, não revelaram diferenças significativas da tendência geral. Da mesma forma, os índices de salário real com dados da FIBGE e ABDIB também refletem o mesmo comportamento altista. , enquanto a evolução real dos ordenados se torna mais moderada. As tendências relativas entre eles se invertem, embora todas as remunerações reais do trabalho continuem expandindo-se até o segundo semestre de 1979, em sintonia com o desempenho favorável da economia, pois a crise aberta somente se concretizará em 1981.

Entre as causas que parecem motivar esta alteração de tendências podemos apontar: uma nova postura adotada pelo governo após as eleições de novembro de 1974, em favor da liberalização do controle sobre as relações de trabalho; as alterações na fórmula dos reajustes salariais primeiro, e seu progressivo desuso posterior; e sobretudo, o ressurgimento do movimento sindical, especialmente marcante nos setores industriais modernos, resultante da nova correlação de forças politicas que caracteriza o processo de “abertura”.

O novo clima que paira no mundo do trabalho se reflete nos dissídios coletivos dos grandes sindicatos paulistas, já no decorrer de 1975, porém será entre o inicio de 1978 e a primeira metade de 1979 que a efervescência do novo movimento sindical, solidamente organizado nos grandes centros industriais, poderá ser responsabilizado pelos consideráveis aumentos reais de salários da época.

O resultado mais significativo da greve de fevereiro de 1978 foi o protocolo de 27 de julho, estabelecendo reajustes diferenciados por níveis salariais, que posteriormente inspirará a Lei n. 6.708, de outubro do ano seguinte, junto com a mais ampla e efetiva participação das partes envolvidas na discussão das questões trabalhistas. Estes acordos caracterizam uma mudança institucional liberalizante e o consequente abandono da politica salarial, de modo que no primeiro semestre de 1979· importantes contratos coletivos de trabalho, influenciados pela força dos sindicatos, registraram taxas de reajuste bem acima da inflação, especialmente para as faixas de remunerações inferiores. Por exemplo: em 1º. de abril desse ano, os metalúrgicos do ABCD (SP) obtiveram 63% de reajuste para os salários de até dez salários-mínimos, para uma inflação de 46,7%.

A Lei n. 6.708, suas modificações, e a crise dos anos oitenta

O ano de 1980 foi o último de crescimento industrial e, a partir daí, os salários, como as demais rendas, deveriam iniciar o descenso, o que se toma manifesto em 1982. Em 1981, a escalada do desemprego na base da pirâmide ocupacional provocou a curiosa ilusão de elevação dos índices de salário real médio.

Em 30 de outubro de 1979, o Congresso aprovou a Lei n. 6.708, que continha as diretrizes básicas da nova política salarial. Embora seu objetivo declarado fosse o de recuperar o valor real médio dos salários erodidos pela inflação, o que os nossos dados mostram, e os levantamentos de outras fontes confirmam, é que já no final de 1979, e ao longo do ano seguinte, todas as remunerações do trabalho sofreram uma violenta redução real devido à fantástica elevação dos preços, e apesar dos benefícios que a nova lei salarial trazia, especialmente às categorias inferiores.

A queda sem precedentes de todas as remunerações reais do trabalho, no segundo semestre de 1979, não encontra qualquer justificativa no comportamento dos fatores de mercado, pois, apesar do clima de desconfiança empresarial que já apontava, o desempenho global da economia se manteve em torno da média do período. O fenômeno deverá ser atribuído à aceleração inflacionária, independente da nova política salarial, pois a deflagração da escalada dos preços a precede de três a quatro meses. De todos os modos, a inflação anulou os benefícios da lei sobre os salários, e no caso dos ordenados, ambos colaboraram para a deterioração.

O aumento de 22% de 1º. de novembro de 1979, concedido por lei a todos os empregados cujo reajuste tivesse ocorrido há mais de seis meses, foi insuficiente para manter o valor real das remunerações do trabalho, pois a inflação dispara a partir de setembro, quando chegou a 7,7% ao mês, sendo que neste mesmo período atingiu 32,5%. Logo, a política salarial foi incapaz de repor o valor real das rendas do trabalho.

No segundo semestre de 1980, os ordenados continuam sofrendo perdas reais, em torno de 7%, enquanto os salários das várias categorias de operários, dos técnicos e pessoal dos escritórios aumentam, o que bem pode estar relacionado com a aplicação da nova política salarial, junto com a estabilização, a nível muito elevado, certamente, da taxa de variação dos preços, o que teria permitido que os efeitos da primeira se tornassem mais atuantes.

Já os dois levantamentos salariais efetuados em 1981 apresentam resultados surpreendentes para um ano de séria crise econômica. A elevação de todos os índices de salários e ordenados em termos reais merece algumas explicações: 1) a inversão da tendência inflacionária que atinge o auge entre fevereiro e março, 2) os reajustes maiores para as remunerações menores, de acordo com a nova lei salarial, cujos efeitos aparecem com maior nitidez no levantamento do segundo semestre, quando a inflação era declinante, e 3) como fator mais importante, a intensificação da rotatividade da mão-de-obra qualificada, resultante da ampliação do desemprego industrial, que entre abril e outubro atingiu 13% em São Paulo, segundo dados oficiais, embora, na realidade, computando o subemprego, seu montante deva ser bem mais elevado.

A partir do segundo semestre de 1982 e até o último levantamento, no primeiro semestre de 1984, a tendência é uma só: a fantástica queda do poder real de salários e ordenados, com maior intensidade do segundo semestre de 1983 em diante, quando ao aprofundamento da crise econômica se juntam os efeitos depressivos dos últimos decretos da política salarial, e a retomada, mais uma vez, da elevação dos preços. Neste ano a política econômica se propõe, como objetivo explícito, a redução de todas as remunerações do trabalho, o que seria implantado de forma direta, através de vários decretos-lei, e indiretamente, por meios tão eficientes como a inflação fora de controle e· o desemprego aberto. Tanto é assim que, apesar do progressivo abandono do Decreto-Lei n. 2.065, as rendas reais de trabalho continuaram em pronunciado declínio, como reflexo imediato da redução do nível de atividade econômica, que deriva do ajuste imposto pelo FMI desde o início de 1983.

A POLÍTICA SALARIAL

A política salarial representa a intervenção do Estado sobre os reajustes dos salários, por ocasião dos contratos coletivos de trabalho, além da fixação do salário-mínimo legal.

O significado mais evidente dessa intervenção se materializou, no passado, no variado conjunto de fórmulas2 2 Para uma análise detalhada das fórmulas, vide Macedo (1980). que regulavam os reajustes salariais desde o Decreto n. 54.018, de julho de 1964, até o presente, e pela qual o Estado corporativo (Macedo, 1980Macedo, Roberto. (1980) - “Salário-Mínimo e Taxa de Salários no Brasil - Comentário”, in Pesquisa e Planejamento Econômico, 10(3), dezembro.) pretendia arbitrar com suposta racionalidade as relações entre capital e trabalho.

Os resultados de nossa pesquisa, assim como os das fontes “oficiais”, provam que a evolução das remunerações do trabalho foi muito diferente daquela que teria resultado da rigorosa aplicação das fórmulas, pois estas continham erros de avaliação do resíduo inflacionário, da taxa de produtividade, e na metodologia de recomposição do salário real médio do período precedente. Sua perfeita observância teria resultado em reajustes nominais de salários inferiores à evolução dos preços.

A redução de praticamente todos os tipos de remuneração entre 1964 e 1966 pode ser explicada pelo efeito conjunto da lei salarial e, sobretudo, da crise econômica. Já a evolução ascendente de salários e ordenados reais, à exceção do salário-mínimo, que reflete fielmente os princípios de tal política, desde 1967-1968 até 1979, contraria seus propósitos, o que nos leva a crer que a política salarial se não é desprezível, também não é decisiva. Acreditamos que ela não atua nem sempre nem para todos os segmentos sociais, com a mesma intensidade, seja por decisão de seus autores ou pela força com que os fatores de mercado e os organizacionais condicionam as diversas remunerações do trabalho.

A intervenção do Estado nas relações do trabalho volta a se fazer presente no segundo semestre de 1979, quando a crise já era iminente e a· legislação anterior havia sido superada pelos fatos, pois diversas categorias profissionais vinham obtendo reajustes salariais maiores e em prazos menores que os estipulados por lei.

É evidente que a semestralidade e o adicional de 10% sobre o INPC representavam um amplo benefício para as camadas inferiores da classe trabalhadora, porém, como a política salarial não é autônoma, estas vantagens tiveram vida efêmera. Os nobres propósitos da lei, como a reconstituição do valor real dos salários, a homogeneização da distribuição da renda do trabalho e a maior liberdade para a negociação do coeficiente de produtividade, abortaram frente às dificuldades econômicas crescentes que forçaram sua revisão, de modo que os decretos posteriores suprimiram as vantagens contidas no texto original.

AS LIMITAÇÕES DA POLÍTICA SALARIAL

A política salarial tem sido um dos componentes da política econômica global, com atuação mais marcante nos períodos de crise, e mais discreta nos de prosperidade. A exceção do breve interregno de vigência da Lei n. 6.708 em sua redação original não se tem pautado pela defesa dos salários das camadas sociais menos privilegiadas. Ao contrário, tem estado ao serviço de uma política macroeconômica de corte ortodoxo, onde o achatamento ou a simples contenção salarial foram amplamente utilizados na tentativa de reversão das expectativas inflacionárias que acompanharam tanto a crise dos anos sessenta como a atual.

Até 1979 a lei antiga fixava os pisos do reajuste, retirando suporte legal para qualquer reivindicação que os ultrapassasse. A nova, ao contrário, é mais restritiva na concepção, pois já fixa os tetos. Não obstante, o poder de uma ou de outra tem limitações que decorrem: dos erros de interpretação das crises, dos objetivos conflitantes, das dificuldades técnicas de sua aplicação e finalmente de sua não observância; o que prova que não se pode substituir, por decreto, o funcionamento das leis do mercado de trabalho, nem alterar às relações estruturais da distribuição da renda do trabalho.

Com relação à implementação, a política salarial apenas fixa o coeficiente de reajuste coletivo de uma dada categoria profissional, não determina os salários absolutos, que são estabelecidos na contratação; isto é, no mercado. Porém sempre cabe a possibilidade de burlar a lei, seja pela concessão de reajustes superiores, desde que possam ser repassados aos preços, ou desde que existam ganhos de produtividade suficientes, ou em sentido contrário, pelo abuso da legislação que permite a dispensa sem justa causa, facilitando a rotação de mão-de-obra.

Nos anos sessenta o diagnóstico oficial atribuía aos reajustes salariais uma parcela considerável de responsabilidade pela inflação, que o governo tentou reverter através de severo controle sobre as relações de trabalho. A inflação cedeu à custa da recessão.

A situação atual é profundamente diversa, embora o diagnóstico da inflação continue equivocado. Muitas são as causas da elevação dos preços no presente e, certamente, não será a pressão dos salários uma delas, pois não consta que a taxa de salários, definida como a remuneração dos trabalhadores não-qualificados dos setores plenamente capitalistas, esteja artificialmente elevada. O que a nova política salarial pretendia era redistribuir a renda do trabalho a favor das categorias inferiores, mantendo inalterada a massa dos salários e a distribuição funcional da renda, e desta forma atenuar as tensões sociais, pois era notório que as remunerações superiores, os ordenados, tinham crescido excepcionalmente na fase de prosperidade. Porém, com o agravamento da crise foram-se perdendo graus de liberdade na ação da política econômica, e, sob as pressões dos credores externos, foi articulada a desindexação em cima da lei salarial, invertendo seu sentido original.

Mais uma vez o diagnóstico equivocado da crise, ou a incapacidade política de coordenar objetivos conflitantes, limitou a execução da política salarial. Os objetivos da Lei n. 6.708 se tornaram conflitantes, pois num contexto de desemprego aberto e forte redução da atividade econômica, como poderia ser possível reduzir a inflação e atenuar os conflitos sociais, preservando o valor real dos salários? O aumento do salário real depende do acréscimo da produção, dos ganhos de produtividade, e não nos parece sensato imaginar que o Estado possa alterar o processo distributivo através da política salarial. A maior equidade social exigirá uma política de rendas muito mais abrangente, além de alterações na estrutura produtiva, que se tornarão mais viáveis, apenas, com a expansão econômica.

A inadequação da política salarial e o caráter conflitivo de seus objetivos só poderia levar ao exacerbamento das tensões sociais, e a sua desobediência nos setores econômicos capazes de repassar aos preços os custos adicionais da mão-de-obra. Desta forma, o cumprimento da lei fica restrito aos setores com menor poder econômico, justamente os menos produtivos, como que o propalado objetivo de promover a maior equidade na distribuição se converte em exatamente o contrário.

Admitindo que o padrão salarial tem caráter endógeno, pois deriva do padrão de acumulação, cabe reconhecer que qualquer política salarial enfrentará limitações, de modo que esta apenas se justificará em circunstâncias especiais e em relação a objetivos muito restritos, como por exemplo, a fixação do salário-mínimo.

O SALÁRIO MÍNIMO

O salário-mínimo reflete a política salarial, pois é justamente nas crises, quando esta política se torna mais restritiva, que perde valor real (Quadro 5, Gráfico 4). Definido exogenamente, a partir do critério de manutenção de uma padrão de vida decente para a parcela inferior da classe trabalhadora, está, no presente, desvinculado de sua finalidade, pois nem mesmo cobre o custo de subsistência.

QUADRO 5
(referente ao Gráfico 4) ÍNDICE DE SALÁRIO MÍNIMO REAL 1961 A 1984

O salário-mínimo não corresponde à taxa de salários, como se deduz das diferentes evoluções de ambos, nas últimas duas décadas (Quadro 6). Sua manutenção a um nível real, tão extremamente baixo, tem outros objetivos, como viabilizar o modelo atual de crescimento econômico, possibilitar a sobrevivência de amplos setores de baixíssima produtividade junto com outros de elevada eficiência, manter artificialmente achatados os preços relativos dos produtos primários, e permitir uma maior absorção de mão-de-obra no mercado informal de trabalho, atenuando as tensões sociais decorrentes do desemprego aberto.

QUADRO 6
RELAÇÃO ENTRE SALÁRIO NOMINAL DE OPERÁRIOS NÃO-QUALIFICADOS E SALÁRIO MÍNIMO

No Quadro 6, relacionamos o salário-mínimo nominal e a taxa de salários, que corresponde à remuneração média dos trabalhadores não-qualificados do setor moderno, que em nossa amostra inclui 23 cargos. Observamos que apenas no início dos anos sessenta ambos eram equivalentes, distanciando-se a seguir, como era de se esperar. Se o salário-mínimo reflete a política salarial, a taxa do salário, ao distanciar-se dele, confirma sua determinação endógena, evoluindo segundo a trajetória do ciclo econômico, embora não chegue a ser tão independente quanto as remunerações das categorias profissionais mais elevadas. Esta é uma decorrência da amplitude do “leque salarial”. Portanto, a política salarial não determina nem orienta a taxa de salários, talvez a influencie em algum grau variável e dificilmente quantificável.

CONCLUSÕES

Dos resultados de nossa pesquisa se deduz que a trajetória real das remunerações do trabalho segue a sequência do ciclo econômico, de modo que seu principal determinante é a produtividade do sistema. Definido este valor, a questão relevante passa a ser a barganha pelas participações relativas na renda crescente, ou a defesa das posições já conquistadas, durante as crises, e nesta disputa é que os fatores institucionais e as transformações organizacionais jogam sua participação.

Na fase de ascensão do ciclo, entre 1968 e 1974, e em menor escala, até 1979, a tendência para a ampliação do leque das remunerações está associada ao maior poder de barganha das camadas superiores da burocracia empresarial, que, no decorrer do rápido processo de modernização, teve oportunidade de ampliar suas atribuições e definir novos critérios de remuneração, junto com o caráter concentrador de renda do padrão de acumulação em vigor.

Foi-nos possível medir a remuneração média de cada uma das categorias profissionais que compõem a amostra, e constatar a fantástica amplitude do ‘’leque salarial’’. Assim, os operários não-qualificados ganhavam, em maio de 1981, entre dois e três salários-mínimos, os semiqualificados em torno de quatro, e os qualificados, sete; os trabalhadores dos escritórios recebiam, em média, seis salários-mínimos, os técnicos, 11, os chefes, 21 e os gerentes, 29. Finalmente, as cinco modalidades de direção auferiam ao redor de 40 mínimos por mês, além dos fringe benefits, com que também é contemplada boa parte dos gerentes. É evidente a péssima distribuição da renda do trabalho, que de forma alguma poderá ser explicada por fatores exclusivamente técnicos.

A determinação das diversas remunerações do trabalho não é apenas uma questão salarial, no sentido tradicional do termo. Os ordenados fazem parte dela e se pautam por normas que derivam da natureza das organizações burocráticas que se desenvolvem no interior das empresas modernas, o que exige levar em consideração a teoria das organizações e a sociologia da burocracia, já que a empresa, como unidade básica do sistema, muda radicalmente sua estrutura organizacional.

Nossa análise evidencia, mais uma vez, que inequivocamente, a taxa de salários no Brasil é extremamente baixa, insuficiente para permitir o acesso da classe trabalhadora ao mercado de massas, e entre as causas do fenômeno, podemos aventar algumas de caráter estrutural, como a super oferta de mão-de-obra, o caráter dependente do modelo de desenvolvimento, a baixa produtividade dos setores ainda não modernizados e a amplitude do setor informal.

No plano conjuntural, a política salarial não decide a remuneração do trabalho, nem mesmo das categorias inferiores do setor plenamente capitalista, cuja determinação depende do padrão de acumulação. Ela é, apenas, um componente a mais da política econômica global, que se faz mais necessária nos períodos de crise, para, em princípio, proteger os segmentos mais vulneráveis da sociedade. No entanto, a experiência dos últimos vinte anos tem comprovado que essa política, notoriamente repressiva nas fases de crise aguda, contribuiu poderosamente para solapar o clima reivindicatório em que necessariamente se desenvolvem as relações de trabalho.

Finalmente, o rumo de todas as remunerações do trabalho na atual crise tanto confirma nossa tese, como comprova a ineficiência e o desvirtuamento da política salarial, pois os últimos levantamentos mostram que a perda de valor real das remunerações de todas as categorias profissionais é tão formidável que ameaça anular os benefícios acumulados no longo período de prosperidade.

Portanto, encaminhada uma alternativa para a crise atual, o problema da distribuição da renda exigirá soluções inovadoras e radicais por razões ao mesmo tempo econômicas e políticas. Porém, sem uma efetiva participação da classe trabalhadora nas decisões estratégicas, que definam o padrão de acumulação, não haverá garantia suficiente de que venha a ocorrer uma mais justa e equitativa distribuição da renda do trabalho.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • Furtado, Celso. (1973) - Análise do Modelo Brasileiro, Rio de Janeiro, Ed. Civilização Brasileira.
  • Macedo, Roberto. (1980) - “Salário-Mínimo e Taxa de Salários no Brasil - Comentário”, in Pesquisa e Planejamento Econômico, 10(3), dezembro.
  • Tavares, Maria da Conceição e Mauricio D. Davi (orgs.), (1982) - Economia Política da Crise, Petrópolis, Vozes.
  • 1
    De 1975 a 1983 ocorre uma alteração na composição da amostra de remunerações, que passa a refletir-se basicamente, embora não de forma exclusiva, ao setor metalúrgico, mecânico, elétrico e de material de transporte, sendo que até então incluía empresas de outros setores da indústria de transformação. Dado que estes setores estão entre os mais dinâmicos, cabe a possibilidade de que a amostra tenha incorporado remunerações mais elevadas. Contudo, os testes que realizamos neste ano de 1975 com as empresas do setor químico, farmacêutico, de papel, celulose e alimentos, que saíram da amostra para compor relatórios em separado, não revelaram diferenças significativas da tendência geral. Da mesma forma, os índices de salário real com dados da FIBGE e ABDIB também refletem o mesmo comportamento altista.
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    Para uma análise detalhada das fórmulas, vide Macedo (1980Macedo, Roberto. (1980) - “Salário-Mínimo e Taxa de Salários no Brasil - Comentário”, in Pesquisa e Planejamento Econômico, 10(3), dezembro.).
  • JEL Classification: J31; J38.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 1986
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