RESUMO
Os recentes recursos de integração são dificultados pela inconsistência das políticas macroeconômicas. Neste artigo, é discutido um exercício de soberania compartilhada. Uma ênfase especial é dada à taxa de câmbio. A ideia é alcançar estabilidade macroeconômica.
PALAVRAS-CHAVE:
Soberania; América Latina; estabilidade macroeconômica
ABSTRACT
The recent integration affords are being hampered by the inconsistency of macroeconomic policies. In this paper an exercise of shared sovereignty is discussed. A special emphasis is given to exchange rate. The idea is to achieve macroeconomic stability.
KEYWORDS:
Sovereignty; Latin America; macroeconomic stability
I. INTRODUÇÃO
Na vasta e recente literatura sobre o Sistema Monetário Europeu (SME), um dos textos mais influentes é o de Francesco Giavazzi e Marco Pagano (1988GIAVAZZI F. e PAGANO M. (1988) “The Advantage of Tying One’s Hands”, European Economic Review, junho de 1988.), com o sugestivo título de The Advantage of Tying One’s Hands. Desenvolve-se a partir da verificação de que o SME impõe aos seus membros severa disciplina no manejo das respectivas políticas macroeconômicas. Assim, em países com tendência crônica à inflação, a adesão ao sistema confere, dentre outros benefícios, maior credibilidade às autoridades econômicas nacionais, que passam a dispor de condições para implementar programas de estabilização e um custo social mais baixo que na hipótese alternativa de se manterem independentes.
Interessante notar que Giavazzi e Pagano explicam o sucesso do SME a partir de um aspecto que, segundo as previsões de dez anos atrás, seria provável motivo de fracasso desse empreendimento: a conduta dos governos nacionais.
Quando, em 1978, o chanceler Helmut Schmidt e o presidente Giscard d’Estaing lideraram as negociações para estabelecer na Europa uma “área de estabilidade monetária”, muitos analistas foram céticos. Por duas razões principais: primeira, por que seria impraticável harmonizar políticas cambiais entre economias com estruturas tão díspares como, por exemplo, as da Alemanha, Itália e Grécia, cujos governos estariam obrigados a seguir prioridades bem diferenciadas; segunda, porque os compromissos assumidos seriam rígidos demais e não sobreviveriam a eventuais mudanças no perfil ideológico dos governos. A História mostrou que ambas as previsões estavam erradas. O SME tornou-se o mecanismo mais eficaz já inventado no capitalismo para estabilizar taxas de câmbio e, nos anos 80, Helmut Kohl e François Mitterrand não só ratificaram os propósitos de seus antecessores, como foram além, criando o projeto Europa 92.
O dilema “integração versus soberania” é assunto frequente nos estudos sobre blocos econômicos. A formação de mercados ampliados gera benefícios econômicos inequívocos, mas implica que os governos estejam dispostos a pagar o ônus político inerente à perda de soberania na administração rotineira da economia doméstica. Segundo Giavazzi e Pagano, no entanto, quando se trata de países com finanças públicas descontroladas, esse ônus não existe. O presente artigo discute a aderência dessa tese à situação atual da América Latina e examina o papel que teria a economia brasileira na eventual transformação da região numa área de estabilidade monetária. Assim, a seção 2 concentra-se nos vínculos entre as políticas cambial e comercial, procurando estacar alguns aspectos da experiência europeia que podem ser úteis aos projetos latino-americanos de integração. A seção 3 analisa as metas do projeto MERCOSUL - Mercado Comum do Sul, e avalia as perspectivas da tríade “crescimento-integração-estabilidade monetária” na região. Por fim, a seção 4 resume as principais conclusões do texto.
II. AS LIÇÕES DA EXPERIÊNCIA EUROPEIA
Os últimos trinta anos de história econômica europeia constituíram um laboratório diversificado de experiências em matéria de política comercial. Além de dois processos distintos e interligados de formação de blocos, o da CEE (Comunidade Econômica Europeia) e o da AELC (Associação Europeia de Livre Comércio)1 1 A ALEC, fundada em 1960, é formada por países da Europa Ocidental que não participam formalmente da CEE: Áustria, Finlândia, Noruega, Suécia e Suíça. No entanto, os vínculos desses países com a CEE são, de fato, bastante estreitos. Cada um deles mantém um tratado bilateral de livre comércio com a Comunidade e procura seguir, ainda que de forma independente, as diretrizes macroeconômicas acordadas entre os membros da CEE. , os países europeus empreenderam um amplo esforço de harmonização de políticas cambiais, cujos frutos mais notáveis foram o SME e o debate atual sobre a unificação dos bancos centrais da região.
Pelo menos três lições podem ser extraídas dessa experiência, quanto à interdependência política cambial e das metas de comércio exterior: importância da paridade cambial para o sucesso de qualquer projeto de integração econômica; possibilidade de a estabilidade cambial ser alcançada por diferentes graus de comprometimento entre os países: e maior facilidade, do ponto de vista de cada país, em sustentar a taxa real de câmbio quando esta tarefa é compartida com outros parceiros comerciais.
Primeira lição: a estabilidade cambial
Quando as taxas reais de câmbio de um conjunto de países são mantidas estáveis - e existem indicadores confiáveis de que a situação será duradoura - minimiza-se a principal fonte de incerteza para as transações internacionais, que é o risco cambial. Diante de mercados externos mais transparentes, os fluxos comerciais tendem a se tornar mais regulares, em virtude do crescimento do número de contratos com prazos mais longos para o suprimento rotineiro de bens e serviços.
Nesse contexto, se esses países resolverem iniciar um programa de integração, as concessões tarifárias que forem negociadas terão um significado econômico bastante preciso e, portanto, servirão de instrumento efetivo para a promoção comercial. Além disso, será factível avaliar os custos e benefícios dos diferentes formatos que o programa de integração poderá assumir. Para optar entre uma união aduaneira ou um tratado de livre comércio, por exemplo, bastará comparar as vantagens e limitações de estabelecer uma tarifa externa comum para terceiros países, com os respectivos prós e contras de permanecer com políticas comerciais independentes, mas amparadas por uma legislação de origem e procedência das mercadorias transacionadas na região. Numa situação de instabilidade cambial, esses cálculos são impraticáveis, já que a própria noção de tarifa externa comum perde sentido.
Assim, a estabilidade cambial é requisito básico para o encaminhamento de todas as demais providências necessárias à constituição de um espaço econômico unificado. Um dos exemplos mais convincentes neste sentido foi o do papel exercido pelo SME na evolução da CEE durante a década passada. De fato, só após seis anos de prática com as novas regras cambiais, os governos sentiram-se em condições de lançar, em 1986, o projeto Europa 92, que concluirá o longo percurso iniciado em 1958 com o Tratado de Roma, ao eliminar inteiramente as restrições ao movimento de cidadãos, mercadorias e capitais dentro da região, a partir de 1º de janeiro de 1993.
Os gráficos de 1 a 6 mostram quão despreparada está a América Latina para iniciar qualquer esforço nessa direção. Eles descrevem a evolução trimestral das taxas reais de câmbio do cruzeiro em relação às moedas de um conjunto expressivo de países vizinhos nos últimos vinte anos. Os três primeiros gráficos referem-se às economias que, junto com o Brasil, participam do projeto MERCOSUL (Argentina, Uruguai e Paraguai); os demais, a outras três economias importantes da região: Chile, Venezuela e México.
A exceção do surpreendente caso da Venezuela - país com o qual o Brasil manteve, entre 1971 e 1979, de forma não coordenada, um padrão de estabilidade cambial similar ao do SME (v. gráfico 5) - e do Uruguai - onde também se observa razoável estabilidade entre 1975 e 1979 (gráfico 2) -, as demais evidências revelam não só desequilíbrios de caráter errático, como intervalos de oscilação bastante heterogêneos. Por exemplo, de 1971 a 1973, o cruzeiro estava se desvalorizando em relação ao austral (então peso argentino) e ao peso chileno, ao mesmo tempo em que se valorizava em relação ao peso uruguaio e se mantinha relativamente ao par com as demais moedas. Já no primeiro trimestre de 1975, ele estava valorizado em relação ao austral, desvalorizado em relação ao guarani e relativamente ao par com as demais moedas. De fato, em qualquer subperíodo desses vinte anos, serão encontradas assimetrias desse tipo. Além disso, em alguns países, as diferenças entre os valores máximos e mínimos de suas taxas de câmbio em relação ao cruzeiro foram, no período analisado, da ordem de 100 a 120 pontos percentuais, como nos casos do México e do Uruguai; em outros, como Argentina e Chile, de 180 a 200; e em outros, como Paraguai, de 300.2 2 V. eixo da ordenada dos respectivos gráficos. Note-se que o gráfico 1 não registra as cotações do austral durante a hiperinflação argentina de 1989/90.
Essa instabilidade decorre, em grande medida, das disparidades dos processos inflacionários da região nessas duas décadas. Conforme a tabela 1, cada um dos sete casos que estamos considerando corresponde a uma trajetória particular quanto à evolução dos níveis de preços. A Argentina, que convive com taxas anuais de inflação superiores a três dígitos desde 1975, alcançou o patamar hiperinflacionário em 1989/90. O Brasil, embora seguindo uma rota similar, conseguiu manter a inflação em dois dígitos durante toda a década de 70. Já o Chile experimentou caminho inverso: partindo de um patamar de três dígitos entre 1973 e 1976, apresenta, desde 1977, tendência declinante, apesar de alguns momentos de reversão, como em 83/85 e em 1990. O México, que só veio a conhecer inflação de três dígitos nos anos 80, teve um bom desempenho para os padrões regionais na década anterior, quando os índices estiveram sempre abaixo de 30%. Nos outros três casos, Paraguai, Uruguai e Venezuela, os processos foram menos intensos, mas tão heterogêneos entre si quanto os anteriores.
Outra fonte geradora de instabilidade cambial consiste na diversificação dos controles cambiais que os governos latino-americanos vêm utilizando nos últimos quarenta anos para lidar com os desequilíbrios no balanço de pagamentos. A sofisticação dos instrumentos e a nitidez da política cambial dependem, em cada país, do poder exercido pelos segmentos interessados na sobrevalorização da moeda local, vis-à-vis o poder daqueles que se beneficiam com a paridade ou a desvalorização. O primeiro grupo compõe-se, basicamente, dos agentes vinculados à atividade importadora, cujo lucro no mercado doméstico é função crescente da sobrevalorização cambial. Este grupo costuma ter como aliadas as autoridades governamentais que, a despeito da magnitude do coeficiente de importações da economia, estão frequentemente dispostas a atrasar o realinhamento cambial em troca de resultados artificiais no combate à inflação. Por outro lado, o poder do grupo adversário depende do tamanho relativo do setor composto pelos exportadores e os produtores de bens competitivos com as importações.
Dado que em cada país esse jogo de interesses adquire um feitio particular, o resultado natural é a geração de políticas cambiais divergentes na região. Isso não impede, contudo, o advento de coincidências felizes, como a que ocorreu entre o Brasil e a Venezuela nos anos 70. Por um lado, as reduzidas taxas de inflação da Venezuela naquela década, aliadas à importância estratégica das exportações de petróleo naquela economia, sustentaram a paridade do bolívar em relação às principais moedas conversíveis. Por outro lado, apesar das pressões inflacionárias crescentes na economia brasileira, o compromisso do governo com sua política de promoção de exportações implicava uma política cambial voltada à preservação da paridade do cruzeiro, que foi mantida até o surgimento do segundo choque do petróleo em 1979.
Esse exemplo de convergência involuntária de políticas é útil para esclarecer um ponto importante: a estabilidade cambial é condição necessária, mas não suficiente para promover a integração econômica. Conforme o gráfico 7, as transações com a Venezuela representaram, de 1970 a 1990, uma parcela diminuta do comércio exterior brasileiro, algo da ordem de 0,8 a 3,6% do total da pauta. Além disso, essas transações passaram por uma fase de aparente expansão cíclica entre 1979 e 1984, justamente logo após o término do período de estabilidade cambial. Mas, como se sabe, isso foi apenas um reflexo passageiro do segundo choque do petróleo, que não resultou em qualquer aprofundamento dos vínculos entre as duas economias.
Segunda lição: a variedade de opções
Embora a paridade cambial entre Brasil e Venezuela seja um fato raro no contexto da história recente da América Latina, existem diversos exemplos de países que mantiveram paridades estáveis por longos períodos, sem a preocupação de coordenar suas políticas econômicas com parceiros comerciais. O caso mais conhecido foi o do padrão-ouro que, durante mais de três décadas - de 1876 a 1913 - assegurou um regime de paridades fixas entre as principais economias industrializadas da época. Segundo Massimo Russo e Giuseppe Tullio (1988RUSSO M. e TULLIO G. (1988) “Monetary Policy Coordination within the European Monetary System: is there a Rule?” In Giavazzi e outros (eds.).), o sucesso desse regime resultou de três fatores: a) a subordinação das políticas monetárias de todos os governos ao compromisso de manter o lastro-ouro de suas moedas, o que implicava o funcionamento pleno do mecanismo de ajuste automático do balanço de pagamentos; b) a ausência de restrições relevantes ao comércio internacional e ao movimento de capitais; e) uma conjuntura de preços em declínio até 1896, e levemente ascendente entre a virada do século e a primeira guerra mundial, mas a taxas anuais nunca superiores a 1%.
Essas características tornam remoto o interesse pelo padrão-ouro no âmbito de uma análise sobre problemas latino-americanos atuais, a não ser quanto a um ponto que também se observa na experiência europeia dos últimos trinta anos: o de que a estabilidade cambial nem sempre decorre de concertação política entre governos. Para elaborar esse ponto, é necessário examinar as diferenças entre dois tipos de processos: a liberalização comercial e a unificação de mercados.
A rigor, um esforço de liberalização comercial se restringe à implementação de uma regra do GATT, conhecida como o princípio de “tratamento nacional”. Segundo Richard Lipsey e Murray Smith (1986LIPSEY R. e SMITH M. (1986) “An Introductory Overview”. In C. D. Howe. Instituto Policy Harmonizaton: The Effects of a Canadian/American Free Trade Area. Toronto.), “este princípio permite que os países tenham políticas domésticas amplamente divergentes. Sob uma obrigação de tratamento nacional, um país se compromete a assegurar que os produtores estrangeiros e domésticos estarão sujeitos às mesmas leis e regulamentos no seu mercado interno. Não há qualquer requerimento de que os produtores estrangeiros recebam, no exterior, o mesmo tratamento que lhes é conferido em seus mercados de origem”.
No entanto, a formação de uma área de livre comércio entre países com políticas domésticas divergentes pode criar desequilíbrios sistemáticos dentro da região, em virtude das diferenças que se estabelecem entre as condições de concorrência vigentes em cada mercado local. Por isso, uma das principais forças motoras dos projetos de unificação de mercados reside no desejo de eliminar tais diferenças. Dada a multiplicidade de fatores geradores de condições heterogêneas de concorrência (taxas de câmbio, compras governamentais, subsídios, regime tributário, legislação trabalhista, políticas de meio ambiente, direitos de propriedade intelectual etc.), o processo de correção é inevitavelmente lento, como bem ilustra o exemplo da CEE.
Assim, mesmo quando a estabilidade cambial preexiste ao advento de um bloco econômico, ela será objeto de negociações entre os governos envolvidos no empreendimento, devido a necessidade de garantir a transparência e a previsibilidade das estruturas de preços relativos no interior do bloco. Cabe notar, outrossim, que ao transformar em compromisso internacional algo que antes resultava de políticas independentes, os governos promovem dois eventos: 1º elevar a confiança dos agentes econômicos quanto à sobrevivência da estabilidade no longo prazo, o que facilita o avanço do processo de integração; 2º criar uma área de estabilidade potencialmente mais ampla que a circunscrita pelo bloco. Por exemplo, os países da AELC manejam suas políticas cambiais a partir dos parâmetros definidos pelo SME, embora sem participar formalmente do sistema (v. Horst Ungerer e outros, 1990UNGERER H., HAUVONEN J., LOPEZ-CLAROS A. e T. MAYER (1990) “The European Monetary System: Developments and Perspectives”, Fundo Monetário Internacional, Occasional Paper n.73, Washington.).
Para discutir as relações entre regimes cambiais e coordenação de políticas, Peter Kenen (1989KENEN P. (1989) Exchange Rates and Policy Coordination, University of Michigan Press.) propõe uma tipologia de três níveis de comprometimento entre os governos: a consulta, a colaboração e a coordenação. No primeiro nível, as transações entre os governos se resumem à troca de informações, sem qualquer compromisso quanto à sua aplicação. No segundo nível, os governos tomam medidas em função de objetivos consensuais, mas que não implicam restrições sobre suas políticas nacionais. No terceiro nível, os governos se obrigam a alterar suas políticas a fim de subordiná-las a certas metas supranacionais. Segundo Kenen, “na história monetária internacional, tem havido muita consulta e alguma dose de colaboração, mas poucos exemplos de efetiva coordenação” (p. 13).
Além de ser um desses exemplos raros, a história da CEE mostra que a tipologia de Kenen pode ser consideravelmente ampliada, já que existem pelo menos quatro formas distintas de coordenação de políticas cambiais, que correspondem a uma hierarquia de obrigações crescentes entre governos. A primeira forma, a mais branda, consiste no estabelecimento de aparatos institucionais similares para regular os mercados de câmbio das economias envolvidas no projeto de integração. Isso evita, por exemplo, que num país vigore um regime de taxas múltiplas, em outro um câmbio flutuante, dentro de faixas controladas pelo Banco Central, num terceiro a economia esteja dolarizada etc., como tem sido usual na América Latina. A segunda forma de coordenação, um pouco mais rígida, implica o compromisso de que as paridades cambiais oscilem entre limites acordados, como no caso do regime da “serpente”, que antecedeu ao SME. A terceira forma baseia-se na atuação conjunta dos Bancos Centrais para sustentar a cotação de alguma moeda que esteja sofrendo pressões especulativas, e/ou para superar desequilíbrios de balanço de pagamentos entre as economias da região. Interessante notar que o Convênio de Créditos Recíprocos (CCR) da ALADI constitui um estágio embrionário desse tipo de coordenação, embora não tenha sido criado com esse propósito. Por fim, a quarta forma é a da unificação monetária, com o desaparecimento das moedas nacionais e a fundação de um Banco Central regional.
Terceira lição: as vantagens da soberania compartida
A tabela 2 mostra as taxas de crescimento do PIB per capita da América Latina e do Caribe nos anos 80. O quadro é bem conhecido: nenhum país da região conseguiu evitar taxas negativas nesse período, não obstante a diversidade das políticas macroeconômicas postas em prática. Argentina e Bolívia, por exemplo, sofreram crises de hiperinflação e retrocessos similares, embora a Bolívia tenha logrado estabilizar os preços. O México também foi bem-sucedido no combate à inflação, mas o seu desempenho ao longo da década não foi melhor que o do Brasil, que passou por vários planos fracassados de ajustamento.
Na segunda metade da década, apenas dois países alcançaram, aparentemente, uma trajetória de crescimento sustentado com alguma estabilidade de preços: Barbados e Chile. O Chile, entretanto, após um longo e penoso processo de ajuste, que implicou, dentre outros custos, a impressionante queda de 14,1% do PIB per capita em 1982, ainda convive com taxas anuais de inflação da ordem de 20 a 30%, que podem ser razoáveis para os padrões regionais, mas estão longe dos níveis aceitáveis hoje em dia no mundo desenvolvido.
Tais evidências têm promovido a crença de que os países latino-americanos só irão superar seus desequilíbrios macroeconômicos através de uma estagnação prolongada. A propósito da dramaticidade da experiência boliviana, Rudiger Dornbush (1990DORNBUSCH R. (1990) “Da Estabilização ao Crescimento”, Revista Brasileira de Economia, vol. 44, (3).) levantou uma indagação pertinente: “O governo boliviano pode ter vencido a guerra contra a inflação, mas perdeu a paz. O caso da Bolívia é muito importante, porque há consenso de que o país implementou todas aquelas reformas que deveriam ser realizadas, e as fez firmemente e já há muitos anos. O caso confirma a suspeita de que a estabilização pode não ser suficiente. Se é assim, o que mais precisa ser feito?” (p. 369).
A experiência europeia sugere que a resposta pode estar na noção de soberania compartida. Nos últimos quarenta anos, os governos latino-americanos foram submetidos a uma pauta crescentemente diversificada de demandas por recursos públicos. De um lado, as disparidades sociais da região geravam atribuições sobre-dimensionadas nas áreas clássicas de atuação do Estado (educação, saúde pública, seguridade social, serviços de infraestrutura). De outro, os esforços de industrialização acarretavam novo espectro de atribuições, que se ampliava a cada etapa do processo de crescimento, abrangendo a contínua reformulação dos subsídios a serem concedidos, a multiplicação das agências estatais nas áreas de fomento, a expansão do setor produtivo estatal etc. Assim, os governos encontravam-se diante de um desafio cada vez mais complexo, que era o de definir políticas econômicas consistentes para atender a tais demandas. A magnitude do fenômeno inflacionário de cada país tornou-se uma função inversa do grau de eficiência com que os seus sucessivos governos enfrentaram o desafio.
Na maioria dos programas de estabilização implementados na região, a coerência entre as diversas atribuições do governo foi obtida pelo simples abandono de metas definidas anteriormente, estabelecendo-se uma espécie de ditadura das políticas monetária e fiscal sobre as demais, cuja consequência prática foi o virtual sucateamento do Estado latino-americano nos anos 80. Dado que o desafio permanece latente e não foram criados mecanismos que assegurem condutas governamentais consistentes, nada garante que a inflação não retorne com o advento de novas oportunidades de crescimento econômico.
Cabe notar que a consistência das políticas econômicas não resulta de métodos esotéricos, indisponíveis a países pobres, mas de dois atributos bem prosaicos da conduta governamental: transparência de procedimentos e estabilidade de critérios decisórios. Neste ponto reside o papel da soberania compartida. Quando um governo resolve aderir a um projeto de integração, e inicia um esforço de harmonizar suas políticas com os demais parceiros no projeto, ele se obriga a um compromisso que frequentemente não cumpre dentro de seu país: a divulgação minuciosa do conteúdo das providências que toma rotineiramente. Daí origina-se um processo curioso. A principal dificuldade que o governo passa a enfrentar não é a de abrir mão de sua soberania, em prol das políticas usadas pelos parceiros, mas a de tornar compatíveis suas próprias políticas, a fim de que seja possível harmonizá-las com as dos parceiros.3 3 Para uma discussão mais detalhada desse ponto, v. Araújo Jr. (1991).
O ponto de partida do processo de harmonização é a política cambial, conforme vimos. Na literatura sobre o SME, há um amplo consenso de que o sucesso do empreendimento adveio, em grande medida, do fato de que se tornara mais fácil para cada membro do sistema sustentar a paridade de sua moeda, por dois motivos: a unificação dos regulamentos dos mercados cambiais e a intervenção coletiva para corrigir desequilíbrios nacionais. A exequibilidade de uma eventual implantação de um sistema desse tipo na América Latina será discutida a seguir.
O MERCOSUL E A INTEGRAÇÃO LATINO-AMERICANA
Em 26 de março deste ano, os presidentes Fernando Collor, Carlos Menen, Luís Lacalle e Andres Rodrigues assinaram o Tratado de Assunção, que pretende criar, até 31.12.94, um mercado comum entre o Brasil, a Argentina, o Uruguai e o Paraguai.
De acordo com o artigo 1 do Tratado, a conformação do MERCOSUL implica as seguintes metas: a) livre circulação de bens, serviços e fatores produtivos entre os países: b) estabelecimento de uma política comercial comum em relação a terceiros países; e) a coordenação das políticas “de comércio exterior, agrícola, industrial, fiscal, monetária, cambial e de capitais, de serviços, aduaneira, de transportes e comunicações e outras (sic) que sejam acordadas, a fim de assegurar condições adequadas de concorrência entre os Estados-Partes” (p.3); d) o compromisso de harmonizar as legislações nacionais nas áreas pertinentes.
Essas metas significam a ratificação e o encurtamento de prazos de uma série de acordos firmados entre esses governos nos últimos anos. Em julho de 1986, os presidentes Raul Alfonsin e José Sarney assinaram um conjunto de protocolos bilaterais, no sentido de iniciar um programa de integração entre Argentina e Brasil, mas sem fixar prazos e compromissos de harmonizar políticas. Esses protocolos foram complementados por negociações bilaterais de ambos os governos com o do Uruguai, que resultaram na ampliação do CAUCE - Convênio Argentino-Uruguaio de Cooperação Econômica, e do PEC - Programa de Expansão Comercial, entre Brasil e Uruguai. Em novembro de 1988, quando a maioria dos protocolos ainda se encontrava nos estágios iniciais de operação, os governos do Brasil e da Argentina resolveram consolidá-los num Tratado, cujos objetivos eram similares aos de Assunção, a não ser quanto ao prazo de implantação, que era de dez anos.
Em junho de 1990, os presidentes Collor e Menen assinaram a Ata de Buenos Aires, que ratificou os termos do Tratado de 1988 e antecipou seu prazo para dezembro de 1994. Assim, as inovações introduzidas com o Tratado de Assunção consistiram nas adesões do Paraguai e do Uruguai e na especificação dos instrumentos a serem usados na implementação do MERCOSUL.
À primeira vista, portanto, esses governos estariam ávidos por auferir os benefícios da soberania compartida. Entretanto, o exame do contexto em que as decisões foram tomadas não confirma a impressão inicial. Dados os distintos perfis governamentais desses países e a intensidade dos atuais desequilíbrios macroeconômicos no Brasil e na Argentina, é impraticável cumprir, em quatro anos, a tarefa de harmonizar completamente as políticas econômicas, conforme pretendido. Na Europa, sem crises de inflação e dívida externa, esse processo levou mais de três décadas. Além disso, logo após a assinatura do Tratado, o governo da Argentina anunciou a decisão de dolarizar formalmente sua economia e os demais governos se comportaram como se a medida não tivesse qualquer consequência sobre as metas do projeto de integração!
A fim de evitar que o MERCOSUL se torne mais um exemplo da longa lista de fracassos latino-americanos, seria conveniente, enquanto há tempo, reduzir transitoriamente seu escopo para um Tratado de Livre Comércio e estabelecer prazos mais sensatos para a formação do mercado comum. Para tanto, bastaria usar alguns instrumentos já existentes no Tratado de Assunção (programa de liberalização comercial, regime de origem, cláusulas de salvaguarda e critérios para solução de controvérsias) e criar um mecanismo para assegurar ao menos uma paridade restrita entre as moedas da região enquanto não for possível iniciar a harmonização efetiva das políticas cambiais.
O referido mecanismo implicaria o seguinte:
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A implementação do acordo já firmado entre Brasil e Argentina, segundo o qual as transações regionais seriam contabilizadas em Gaúchos, cujo valor é igual a um DES (Direito Especial de FMI).
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Cada governo se comprometeria a manter a paridade do poder de compra de sua moeda em relação ao Gaúcho. Na prática, isso provavelmente geraria um câmbio dual, ou múltiplo, dependendo das políticas em vigor no país.
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Cada governo procuraria ajustar suas políticas nacionais ao compromisso de paridade em relação ao Gaúcho, a fim de evitar a geração de desequilíbrios sistemáticos dentro da região.
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A emissão de Gaúchos seria feita por um comitê formado pelos quatro Bancos Centrais, também com a função de administrar os desequilíbrios no balanço de pagamentos intrarregionais. Considerando-se os tamanhos heterogêneos das economias envolvidas, seria recomendável estabelecer critérios para dividir os custos de ajustamento entre credores e devedores, mas dentro de limites restritos, a fim de não criar nova fonte de inflação, conforme advertiu Daniel Cohen (1989COHEN D. (1989) “The Costs and Benefits of a European Currency”. In De Cecco e Giovanini (eds.).).
A instituição de taxas de câmbio duais visando à estabilidade monetária não é uma ideia original. Ao analisar o desempenho do SME, Tammaso Padoa-Schioppa (1988PADOA-SCHIOPPA T. (1988) “The European Monetary System: a Long Term View”. In Giavazzi e outros (eds.).) mostrou que o sistema poderia evoluir em direção a um “quarteto inconsistente” de políticas, formado por: a) livre comércio; b) mobilidade completa de capitais; c) taxas fixas de câmbio; d) autonomia nacional para conduzir a política monetária. Para contornar esse risco, Dornbusch (1988DORNBUSCH R. (1988) “The European Monetary System, the Dollar and the Yen”. In Giavazzi e outros (eds.).) sugeriu que o SME deveria operar com duas taxas de câmbio, uma para transações correntes e outra para o movimento de capitais.
O regime cambial aqui sugerido poderia, a médio prazo, dar continuidade a dois processos interligados. De um lado, no âmbito do MERCOSUL, à medida que a cessão de soberania resultasse em economias mais estáveis, o regime passaria gradualmente para o estágio da harmonização global das políticas cambiais e, em seguida, das demais políticas. De outro lado, uma vez comprovada a eficácia da versão inicial do regime, os demais países da América Latina seriam estimulados a participar dela, criando-se, entre o MERCOSUL e o resto da região, uma interação similar à que hoje ocorre entre a CEE e a AELC.
Esses dois processos permitiriam que a economia brasileira finalmente cumprisse a contento seu papel como fonte de sustentação das oportunidade de crescimento na América Latina. Os gráficos 8 a 10 e a tabela 3 fornecem alguns dados interessantes a respeito. Segundo estimativas da CEPAL, o PIB brasileiro correspondeu, em 1989, a 37,5% do total latino-americano.4 4 V. CEPAL, Anuario Estadistico de America Latina y el Caribe, Edicion 1990, p. 183. Como indica o gráfico 8, no entanto, apesar do protecionismo brasileiro, da instabilidade cambial, e de outros componentes da crise dos anos 80, o intercâmbio do país com a região sempre se manteve, ao longo da década, entre 40% e 50% do comércio intrarregional. Mas, conforme registra o gráfico 9, nos últimos vinte anos a importância da região tem sido modesta para o Brasil, representando uma parcela que tem oscilado entre 10% e 17% da pauta de comércio exterior do país. Se a política de abertura da economia que o governo brasileiro vem implementando desde o ano passado vier a ser complementada por um regime de taxas de câmbio estáveis, o quadro descrito nos gráficos 8 e 9 será profundamente alterado. Devido à sua dimensão relativa, a economia brasileira exerce, através de suas importações, um forte impacto sobre as transações globais da região. Conforme mostra o gráfico 10, de 1970 a 1990 o desempenho exportador da economia brasileira na América Latina tem sido uma função direta do comportamento de suas importações. De fato, nesses vinte anos, só em duas oportunidades, em 1975, após o primeiro choque do petróleo, e em 1988/89, quando o cruzeiro estava sobrevalorizado na região (v. gráficos 1 a 6), as importações cresceram sem provocar uma expansão correspondente nas exportações. Outro aspecto importante a ser notado é a diversificação desse comércio, como indica a tabela 3. Durante os anos 80, 40% a 50% das transações foram realizadas com as economias do MERCOSUL, cerca de 25% com Chile e México e, com os demais países da região, uma parcela que oscilou entre 27,2%o e 33,7%.
IV. CONCLUSÃO
Na retórica oficial das décadas de 60 e 70, a integração aparecia como um instrumento fundamental para o crescimento econômico da América Latina. Seu papel seria o de harmonizar no âmbito regional as políticas nacionais de substituição de importações. Por isso, os mecanismos implementados nessa época visavam, essencialmente, a transferir para as economias da área fluxos comerciais realizados com o resto do mundo. No entanto, a instabilidade cambial e o protecionismo indiscriminado, que acompanharam a maioria dos processos de industrialização desses países, anularam os esforços integracionistas.
Nos anos 80, a integração passou a ser vista como um complemento das políticas de abertura dessas economias. Seu papel seria o de facilitar as mudanças estruturais necessárias para elevar os níveis de competitividade do parque industrial latino-americano. Mas, ao invés de resultar de estratégias de transformação produtiva com horizontes de longo prazo, as políticas de abertura que foram efetivamente implementadas estiveram subordinadas a metas conjunturais de programas de estabilização. Embora esse processo ainda esteja em curso em diversos países da região, ele não gerou, até o momento, propostas consistentes de integração.
Na abordagem adotada neste trabalho, através do exercício de uma soberania compartida, os governos se obrigam a reduzir o grau de autofagia de suas políticas nacionais. Dessa maneira, o processo de integração passa a oferecer as condições de estabilidade macroeconômica necessárias ao desenvolvimento de estruturas industriais aptas a enfrentar os padrões internacionais de concorrência e progresso técnico. Resta, apenas, saber se as lideranças políticas de região estariam dispostas a criar os mecanismos institucionais que conformariam este estilo de conduta governamental na América Latina.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
- ARAÚJO JR. J. T. (1991) “Integração Econômica e Harmonização de Políticas na América do Norte e no Cone Sul”. Revista da Economia Política, vol. 11, n 2.
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A ALEC, fundada em 1960, é formada por países da Europa Ocidental que não participam formalmente da CEE: Áustria, Finlândia, Noruega, Suécia e Suíça. No entanto, os vínculos desses países com a CEE são, de fato, bastante estreitos. Cada um deles mantém um tratado bilateral de livre comércio com a Comunidade e procura seguir, ainda que de forma independente, as diretrizes macroeconômicas acordadas entre os membros da CEE.
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V. eixo da ordenada dos respectivos gráficos. Note-se que o gráfico 1 não registra as cotações do austral durante a hiperinflação argentina de 1989/90.
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Para uma discussão mais detalhada desse ponto, v. Araújo Jr. (1991ARAÚJO JR. J. T. (1991) “Integração Econômica e Harmonização de Políticas na América do Norte e no Cone Sul”. Revista da Economia Política, vol. 11, n 2.).
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V. CEPAL, Anuario Estadistico de America Latina y el Caribe, Edicion 1990, p. 183.
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Agradeço o auxílio de Paula Nazareth na elaboração dos dados aqui apresentados.
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JEL Classification: E6.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
29 Maio 2023 -
Data do Fascículo
Jan-Mar 1992