RESUMO
Embora a participação da dívida em francos franceses no total da dívida brasileira fosse de apenas 6% em 1930, a análise interessa pela forte concentração de ingressos pouco antes da Primeira Guerra Mundial, pela concentração do endividamento em empréstimos de alto risco aos estados e municípios e ao fato de que a França foi o único país credor a retornar ao ouro com uma paridade quebrada. O processo de endividamento progressivo do Brasil em francos é descrito e o desempenho dos empréstimos em diferentes moedas é avaliado em relação a alternativas como a compra de títulos do governo.
PALAVRAS-CHAVE:
História econômica do Brasil; dívida externa; empréstimos internacionais.
ABSTRACT
Although the share of the debt in French francs in total Brazilian debt was of only 6% in 1930, the analysis is of interest due to the marked concentration of inflows just before World War I, to the concentration of indebtedness in high risk loans to states and municipalities and to the fact that France was the only creditor country to return to gold with a broken parity. The process of Brazilian progressive indebtedness in francs is described and the performance of loans in different currencies is evaluated in relation to alternatives such as the purchase of government bonds.
KEYWORDS:
Economic history of Brazil; external debt; international lending
1. INTRODUÇÃO
Este artigo é parte de um programa de pesquisas mais abrangente sobre o endividamento externo brasileiro de 1889 a 1930 e sobre a liquidação dessa dívida a partir dos anos 30. Embora o endividamento externo em francos franceses correspondesse a menos de 6% do estoque total da dívida pública externa brasileira em 1930 (v. Tabela 1), a análise desse processo de endividamento tem particular interesse em vista da grande concentração da entrada de capitais em período relativamente curto antes de 1914, da sua concentração em empréstimos de alto risco e de ser a França o único credor brasileiro cuja moeda teve a sua paridade legal em relação ao ouro alterada permanentemente na volta ao padrão ouro (gold exchange standard), inicialmente de jure a partir de dezembro de 1926 e de facto a partir de junho de 1928. Ao chamado franco Poincaré ou franco de quatro sous correspondia conteúdo de ouro metálico equivalente a 20% do relativo ao franco de pré-guerra.
Além desta introdução, este artigo está dividido em mais cinco seções, destas, sendo as três primeiras definidas com base na cronologia do processo de endividamento. Na seção 2 trata-se do período anterior a 1914, incluindo o endividamento ainda no século passado e a maciça entrada de recursos no período 1905-1912. A seção 3 inclui a análise do processo de aumento da dívida que resultou da transferência de dívidas para a União e do ritmo extremamente moroso do pagamento de amortizações. Na quarta seção são descritas as formas de ajuste do serviço da dívida pública externa em francos à capacidade de pagamento do país, num quadro de renegociações sucessivas de todos os empréstimos públicos brasileiros a partir de 1931. Os empréstimos em francos, embora incluídos nas negociações do funding loan de 1931 e do esquema Aranha de 1934, não se beneficiaram, em vista da ocupação da França em 1940, nem do esquema Sousa Costa do mesmo ano, nem do acordo permanente negociado em 1943.1 1 V. Abreu (1977), passim.
Na quinta seção é discutido o desempenho agregado dos empréstimos externos ao Brasil, bem como desenvolvida análise comparativa do desempenho de empréstimos externos denominados em libras e em dólares norte-americanos e de aplicações alternativas em títulos governamentais britânicos.
Na seção final discute-se especificamente o desempenho dos empréstimos franceses em contraste com as condições contratuais e cenários contrafactuais diversos.
Em contraste com os empréstimos contraídos em libras esterlinas e dólares norte-americanos, as informações disponíveis sobre os empréstimos franceses são bastante limitadas, em particular no que diz respeito a serviço e a cotações anuais. Além disso há indicações de que, pelo menos no que diz respeito a empréstimos estaduais e municipais, é difícil separar com precisão tranches em francos de tranches em outras moedas europeias. Como esses empréstimos estaduais e municipais foram objeto, a partir do período da Primeira Guerra Mundial, de sucessivas consolidações que incluíam indistintamente empréstimos em francos e em outras moedas, algumas das informações relevantes devem ser estimadas. Neste artigo, portanto, os cálculos relativos à rentabilidade são limitados às operações federais, para as quais a informação é de melhor qualidade. Outra fonte de distorções é o fato de que são considerados investimento francês os empréstimos denominados em francos, embora cidadãos de outros países fossem detentores de títulos denominados em francos.2 2 Além disso, cidadãos franceses eram detentores de títulos denominados em outras moedas.
2. A ERA DOS EMPRÉSTIMOS VOLUNTÁRIOS, 1888-1912
Antes de 1900 há registro de apenas algumas operações financeiras em benefício de estados brasileiros - Bahia, Espírito Santo e Minas Gerais -, totalizando cerca de 102,5 milhões de francos de valor nominal, correspondentes a um valor líquido agregado de 82,5 milhões3 3 Antes de 1914, para o período relevante para este artigo, a taxa cambial fixa do franco francês em relação à libra era de aproximadamente 25,2 francos/libra, Depois de dezembro de 1926 a taxa cambial foi estabilizada, mantendo-se em torno de 126 francos/libra. (v. Tabela 2). Até 1908 o governo federal endividou-se exclusivamente em Londres, sendo que desde 1855 apenas por intermédio de N.M. Rothschilds. Em 1905 o total em circulação de empréstimos públicos em francos franceses correspondia a cerca de 6% do estoque de títulos públicos denominados em libras (v. Tabela 1). Há indícios, entretanto, da existência de outros empréstimos estaduais e/ou municipais no Segundo Império, além do relativo à Bahia, de 1888. Lévy (1897LÉVY, Raphaêl-Georges, “La Fortune Mobiliêre de la France”. Revue des Deux Mondes, CXL, 15 Mars 1897, pp. 415-45. ) comenta que os empréstimos brasileiros, durante longo tempo classificados na categoria designada no argot financier como de tout repos, ou seja, acima de qualquer suspeita, foram afetados pela deterioração da situação econômica brasileira na década de 1890, tendo a cotação de determinados empréstimos, que anteriormente havia alcançado o par, caído recentemente a 65%.
Entre 1905 e 1912 houve maciça entrada de capitais franceses: a dívida pública externa denominada em francos cresceu mais de sete vezes entre 1905 e 1913, enquanto a dívida denominada em libras cresceu pouco mais de 50% (v. Tabela 1). As emissões federais nesse período somaram 300 milhões de francos, gerando liquidamente 276,7 milhões (v. Tabela 3). A participação de empréstimos federais em francos nas emissões federais brasileiras totais entre 1908 e 1912 foi da ordem de 40%, refletindo o significativo, mas efêmero envolvimento da praça de Paris com empréstimos federais brasileiros. As emissões estaduais e municipais entre 1905 e 1914 somaram cerca de 560 milhões de francos, correspondendo a uma proporção também de 40% do endividamento externo total dos estados e municípios brasileiros. Nos anos cruciais entre 1909 e 1911, cerca de 60% dos empréstimos estaduais e municipais brasileiros foram lançados em francos, com um desconto médio de cerca de 20%4 4 É conhecida a grande vulnerabilidade da praça de Paris, no período, a manipulações de interessados na colocação de títulos de baixa qualidade através de corrupção em ampla escala dos principais jornalistas financeiros. V. Raffalovich (l931). .
Também do ponto de vista da participação na oferta total de capitais franceses os empréstimos franceses ao Brasil foram especialmente significativos no período 1909-1911; no ano de pico, em 1910, os empréstimos ao Brasil corresponderam a mais de 13% das exportações totais de capitais franceses (v. Tabela 4).5 5 Essa tendência é semelhante à que caracterizou as emissões totais de empréstimos latino-americanos em francos franceses. Mauro (1977) menciona que as emissões latino-americanas em 1910-1913 representavam 45,1% das emissões totais francesas, comparadas a 27% em 1905-1909 e 4,8% em 1898-1904.
3. O AJUSTE NOS ANOS 20 E A DERROTA BRASILEIRA NA CORTE DE HAIA: 1914-1930
Os problemas brasileiros com os credores franceses após 1914 antecipam a natureza dos problemas que seriam enfrentados com outros credores depois de 1930, quando foi interrompida a entrada de recursos oriundos das praças financeiras de Nova York e Londres. Como já mencionado, isso se deve, em parte, a muito maior concentração dos empréstimos franceses em empréstimos não federais, isto é, a estados e municípios, que naturalmente envolviam maior risco. Por outro lado, o intenso processo inflacionário ocorrido na França, que levou no pós-guerra a problemas de balanço de pagamentos e à substancial desvalorização do franco em relação ao dólar, praticamente eliminou a relevância da praça de Paris como origem de capitais de longo prazo. Como já mencionado, a estabilização de facto do franco só ocorreu em 1926, e de jure apenas em 1928.
Depois de 1914, todas as operações envolvendo dívidas públicas brasileiras em francos franceses, tanto no caso do governo central quanto no de estados e municípios, foram de refinanciamento ou de consolidação de serviço não pago relativo a empréstimos contraídos antes de 1913. Na esfera federal, os pagamentos relativos ao serviço dos empréstimos franceses foram incluídos no funding loan de 1914: os juros a vencer nos três anos seguintes foram refinanciados pela emissão de novos papéis denominados em libras e as amortizações foram proteladas por 13 anos. Os novos empréstimos em 1916 e 1922, registrados na Tabela 3, correspondem à transferência ao governo federal das obrigações da Estrada de Ferro de Goiás (15 milhões de francos em 1907 e 10 milhões em 1909) e da Estrada de Ferro Vitória-Minas (14,85 milhões de francos, remanescentes dos 15 milhões emitidos originalmente em 1910).6 6 Taxa de juros de 5% e tipos (desconto na emissão) de 90% em ambos os casos. Na esfera estadual foram negociados, na esteira do funding federal de 1914, fundings pelos estados da Bahia, do Amazonas, de Minas Gerais e do Paraná, entre 1915 e 1928, em alguns casos incluindo endividamento em diversas moedas.7 7 Alguns empréstimos externos brasileiros anteriores a 1930 foram lançados simultaneamente em várias praças financeiras na mesma moeda ou em tranches denominadas em diversas moedas, o que pode provocar dupla contagem. Dois empréstimos do estado de São Paulo estão nessa categoria; usualmente incluídos entre os empréstimos britânicos, certamente incluem partes emitidas em francos: Sorocabana Ituana, 95.597.500 francos, 5%, tipo 91,5, lançado em 1905, e Sorocabana, 50,4 milhões de francos, 5%, tipo 90, lançado em 1907.
Em 1925 o governo francês pleiteou que o serviço futuro dos empréstimos federais “em francos-ouro” bem como juros referentes a cupons vencidos e amortizações não prescritas fossem pagos em francos-ouro, isto é, em francos de 1914, equivalentes à vigésima parte de uma peça de 6,45161 gramas de ouro de título 900/1000. Devido à desvalorização do franco, inúmeros portadores de títulos franceses vinham recusando o pagamento do serviço pelos devedores brasileiros com base em francos correntes de curso forçado. Sendo impossível obter um acordo através de negociações bilaterais entre governos, decidiu-se, por meio de compromisso de 27.8.1927, ratificado por ambas as partes em 23.2.1928, levar a questão à Corte Internacional de Justiça, sediada em Haia, que funcionaria como Tribunal de Arbitramento. Esse acordo preliminar precedeu a volta formal da França ao gold exchange standard, que só ocorreria em junho de 1928.
Não surpreendentemente, por decisão por maioria de nove votos a dois, de 12.7.1929, a Corte Internacional de Justiça decidiu em favor da França com relação ao serviço dos empréstimos federais de 5% de 1909, 4% de 1910 e 4% de 1911. Um dos votos que discordaram da sentença favorável à França foi o do ex-presidente Epitácio Pessoa, então juiz em Haia. O outro voto foi do juiz Bustamente, de Cuba. No mesmo dia foi considerada questão similar afetando diversos títulos sérvios, sendo também vitoriosa a tese francesa, contra os votos dos juízes Bustamante, Pessoa e Jovanovich, da Iugoslávia (estado sucessor da Sérvia).8 8 Decisão (Arrêt) nº 15 da 16ª sessão extraordinária publicada em Cour Internationale de Justice (1929), tradução em Pessoa (1960), pp. 34- 79. Não foram encontrados registros quanto à extensão dos benefícios da cláusula-ouro aos empréstimos assumidos pelo governo federal em 1916 e 1922, relativos às estradas de ferro de Goiás e Vitória- Minas. Os juros e amortizações devidos em decorrência da sentença, inicialmente calculados em 140,2 milhões de francos de 1928 (ditos Poincaré), foram pagos apenas em 1931, através da emissão de títulos no valor total de 147,4 milhões de francos, resgatáveis sem juros em 24 meses.
Em 1930, dos cerca de 300 milhões de francos correspondentes ao valor nominal dos empréstimos franceses federais lançados antes de 1913, apenas nove milhões de francos haviam sido amortizados, pois o pagamento de amortizações havia sido suspenso até 1927, em decorrência do grande funding federal de 1914. Sobre os empréstimos estaduais, a informação disponível é de qualidade muito pior, mas indica que os empréstimos de melhor desempenho, os de Pernambuco e Rio Grande do Norte, tipicamente tiveram não mais que 30% de seu valor nominal inicial resgatado.9 9 Embora o empréstimo baiano de 1888 tenha tido cerca de dois terços do seu valor nominal resgatado, o estado da Bahia foi obrigado a negociar nada menos que três fundings, sendo que o último, de 1928, apesar de denominado em libras, incluía toda a dívida externa estadual. Na maior parte dos casos as dificuldades em relação à manutenção do pagamento do serviço dos empréstimos estaduais geraram a necessidade de sucessivos empréstimos de consolidação, especialmente durante a Primeira Guerra Mundial.
4. O LONGO RESCALDO: 1930-1956
Em 1931, com o terceiro funding federal, negociado em decorrência do choque de balanço de pagamentos gerado pelo boom em Wall Street e depois pela Grande Depressão, adiou-se por três anos o pagamento de juros e amortizações da dívida externa federal denominada em todas as moedas. Ao serviço de juros dos empréstimos franceses correspondeu a emissão de bônus de consolidação de 20 anos ou de 40 anos, dependendo das garantias oferecidas nos contratos originais. Quase que contemporaneamente, como já dito, resolveu-se a questão do pagamento dos atrasados de Haia em 1931-1933. Por outro lado, foram interrompidos, a partir de 1930, quase que por completo, os pagamentos do serviço da dívida externa estadual e municipal denominada em francos.
Em 1934 o serviço da dívida externa foi retomado de acordo com a escala de pagamentos fixada no chamado esquema Aranha.10 10 V. Abreu (1975) para evidências quanto à inspiração britânica do formato da negociação de 1933-1934. Por esse arranjo, de duração limitada a quatro anos, a proporção dos pagamentos de juros e amortizações em relação aos contratos originais variava de 100%, para os fundings, a 0%, para os empréstimos municipais e estaduais de pior qualidade. O empréstimo francês de 1909 - 5% foi classificado na categoria III (35% a 50% dos juros, 0% de amortização), e os demais empréstimos franceses federais, na categoria IV (27,5% a 40% dos juros, 0% de amortização). Os empréstimos estaduais Maranhão 1910, Pernambuco 1910, Bahia 1888 e Bahia 1910, todos 5%, foram classificados na categoria VII (17,5% a 32,5% dos juros, 0% de amortização). Os demais empréstimos franceses, classificados na categoria VIII, tiveram o seu serviço suspenso.
Esse modesto serviço foi pago até novembro de 1937, sendo suspenso em seguida ao golpe de Estado que estabeleceu o Estado Novo. Com a retomada das negociações em 1939-1940, em seguida à visita de Aranha a Washington em março de 193911 11 V.Abreu (l975). , chegou a ser negociado um complexo acordo de pagamentos franco-brasileiro que incluía a liquidação da dívida externa federal denominada em francos e dos ativos da companhia Chemin de Fer São Paulo-Rio Grande pela soma total de 550 milhões de francos (cerca de US$ 12,5 milhões).12 12 Ministério da Fazenda (1957), pp. 49-52. Com a derrota da França e sua ocupação pelos alemães, entretanto, o serviço dos empréstimos franceses foi totalmente suspenso até 1946.
Após a derrota alemã o assunto foi retomado pelas autoridades francesas. Em 1946 foi negociado novo acordo de pagamentos, através do qual o governo brasileiro comprometeu-se a destinar US$ 19,32 milhões à liquidação da dívida externa brasileira em francos, à compra da Estrada de Ferro São Paulo-Rio Grande e à solução de reclamações relativas a empréstimos contraídos pela Estrada de Ferro do Norte do Brasil (1905-1907), pela Estrada de Ferro do Norte do Paraná (1907) e pela Estrada de Ferro do Norte de São Paulo (Araraquara, 1911).13 13 Acordo de Pagamentos de 8.3.1946 e complementares, Diário Oficial de 30 de abril de 1946, reproduzido em Ministério da Fazenda (1957), pp. l05-25. Esse acordo foi objeto de inúmeras prorrogações e revalorizações de saldos. Em tomada de contas realizada em 1950 verificou-se que, dos cerca de 2.297 milhões de francos inicialmente destinados ao fundo de liquidação, cerca de 1.603 milhões foram utilizados para resgatar títulos da dívida externa, além de 12,4 milhões para provisão relativa a títulos depositados em outras praças europeias, 4 milhões para provisão relativa a títulos frappés d’opposition (isto é, cupons chamados a pagamento antes de março de 1946), 41,5 milhões para comissões e despesas e 55,1 milhões para provisão relativa às estradas de ferro Norte do Brasil, Norte de São Paulo e Norte do Paraná, restando um saldo de 581,2 milhões de francos.14 14 Anexo 27 de Ministério da Fazenda (1957). Por novo acordo de pagamentos, de 14.7.1951, esse saldo foi revalorizado, com base na desvalorização do franco francês em relação ao dólar norte-americano, para 1.708 milhões de francos.15 15 Aplicou-se um coeficiente de 2,93854323. Deste saldo restavam em 1953 cerca de 1.411 milhões (já revalorizados), valor aproximadamente igual ao saldo mencionado no novo acordo de resgate franco-brasileiro de 1956. Por este último acordo, 424,5 milhões de francos foram reservados para resgate dos títulos restantes de empréstimos externos.16 16 V. Ministério da Fazenda (1957), pp. 21-7. Calculava-se, entretanto, que o resgate total desses empréstimos poderia envolver no máximo 658 milhões de francos.
5. A RENTABILIDADE DOS TÍTULOS EXTERNOS BRASILEIROS
Abreu (1985ABREU, M. de P. “A dívida pública externa do Brasil, 1824-1931”. Estudos Econômicos 15 (2), mai-ago., 1985. ) discutiu a remuneração dos empréstimos correspondentes ao primeiro ciclo de endividamento brasileiro, que se encerrou, do ponto de vista da entrada de recursos, em 1931. A taxa de retorno para toda a dívida externa contraída entre 1824 e 1931 - mas liquidada no início da década de 80 - foi de 6,6%, comparada à taxa de 3,4%, relativa ao cenário contrafactual, no qual os investidores aplicariam os mesmos montantes que aplicaram em títulos brasileiros em títulos da dívida pública britânica. Naturalmente, esse cálculo pode ser repetido para cada empréstimo, resultando em taxas de retomo muito altas para os empréstimos lançados no século XIX, que não foram afetados por grandes perturbações no pagamento do seu serviço e em muitos casos foram lançados com significativo deságio. Por outro lado, as taxas de retorno referentes aos empréstimos lançados no século XX são progressivamente mais baixas à medida que a data de lançamento se aproxima de 1930, em vista do impacto da Grande Depressão sobre o pagamento do serviço da dívida. As conclusões provisórias indicavam que até cerca de 1910 as taxas de retorno brasileiras dominavam as taxas contrafactuais, ocorrendo o contrário a partir de então.
Uma primeira aproximação do cálculo das taxas de retorno de títulos brasileiros em libras esterlinas e em dólares foi apresentada por Abreu (1985ABREU, M. de P. “A dívida pública externa do Brasil, 1824-1931”. Estudos Econômicos 15 (2), mai-ago., 1985. ), e é repetida na Tabela 5. Nesse cálculo, à falta de informações precisas sobre cotações em fim de período e condições de resgate, bem como sobre serviço pós-1931, foram adotadas algumas simplificações. Em particular foi suposto que todos os resgates do principal até 1931 foram feitos ao par, e que o valor residual dos empréstimos em 1931 era igual ao valor nominal multiplicado pela menor cotação. A primeira suposição, sobre resgates ao par, conduz à superestimação das taxas de retomo calculadas, enquanto a segunda subestima as taxas de retorno, especialmente dos empréstimos lançados no final da década de 20, cujas cotações foram particularmente atingidas durante a Grande Depressão. As distorções provocadas por essas simplificações são relativamente mais importantes para empréstimos mais próximos a 1930, tendo em vista a brusca queda das cotações de empréstimos brasileiros na Grande Depressão e depois dela, bem como o fato de que para muitos empréstimos mais antigos os resgates foram frequentemente ao par ou próximo ao par.
Mais recentemente, esses cálculos de taxas de retorno foram refeitos para alguns empréstimos selecionados levando em consideração cotações médias (entre valores extremos mínimos e máximos) e o serviço efetivo até 1947.17 17 V. Ribemboim (1993). A Tabela 6 sumaria esses novos resultados, que, em linhas gerais, confirmam os comentários anteriores, em particular quanto à queda das taxas de retomo dos empréstimos à medida que sua data de lançamento se aproxima de 1929. Essa redução resulta na ampliação da diferença entre a taxa de retorno contratual e a taxa de retorno efetiva aproximada pela hipótese da amortização pela cotação média. Pelas mesmas razões, a diferença entre as taxas de retorno efetivas e as taxas de retorno de aplicações alternativas “sem risco”, que é positiva até 1910, torna-se crescentemente negativa.
Importantes contribuições recentes à literatura sobre endividamento externo, ao concentrarem a análise nos empréstimos em dólares, lançados exclusivamente nos anos 20, chegam à conclusão de que as taxas de retorno relativas a esses empréstimos para países latino-americanos, entre eles o Brasil, são muito inferiores às taxas de retorno obtidas por empréstimos referentes a países em outros continentes.18 18 V., por exemplo, Eichengreen & Portes (1989) e Jorgensen & Sachs (1989). Embora essa conclusão tenha interesse, não é muito esclarecedora no quadro de uma avaliação de longo prazo do processo de endividamento, pois não pode ser generalizada. Se a análise desses autores incorporasse títulos em libras, o mau resultado referente aos anos 20 contrastaria com os resultados alcançados pelos detentores de títulos brasileiros lançados até o início do século, caracterizados por taxas de retomo superiores às relativas às aplicações em risco.
6. A RENTABILIDADE DOS TÍTULOS BRASILEIROS EM FRANCOS
Para os empréstimos franceses computou-se a taxa de retorno referente apenas aos empréstimos federais, com base nos valores transformados em dólares norte-americanos, dada a já comentada limitação da base de dados referentes às dívidas estadual e municipal e a substancial flutuação da paridade do franco em relação ao dólar.19 19 Não cabem preocupações especiais quanto a critérios para tratamento dos resgates, dado seu limitado montante. A taxa de retomo contratual era tipicamente por volta de 5% (empréstimo de 1908/1909). O valor obtido (-0,74% ao ano) reflete tanto o fato de que os empréstimos federais em franco só foram lançados a partir de 1908, quanto a indexação imperfeita do serviço em relação ao dólar. Além disso, a situação particular da França durante a Segunda Guerra Mundial afetou de forma desfavorável o pagamento de serviço em francos em comparação aos pagamentos relativos a empréstimos em outras moedas.20 20 Taxas cambiais de Wolfe (1951) e Dulles (1929).
A decisão de Haia quanto à cláusula-ouro aumentou significativamente a taxa de retorno agregada dos empréstimos federais. Foram examinados dois cenários contrafactuais. No primeiro cenário considerou-se a possibilidade de a decisão de Haia não ter tido qualquer efeito sobre os acordos franco-brasileiros posteriores a 1946. A taxa de retorno agregada no caso de a decisão de Haia ter sido favorável ao Brasil teria sido de -2,33%. No segundo cenário considerou-se que a decisão de Haia teve seu impacto transmitido a todos os acordos posteriores a 1946. Nesse caso, a taxa de retorno dos empréstimos franceses, se a decisão tivesse sido favorável ao Brasil, teria sido reduzida para -2,98%.
Embora a diplomacia econômica francesa tivesse demonstrado grande engenhosidade na tentativa de defesa do valor real do serviço dos empréstimos franceses, tal tentativa não foi coroada de sucesso, pois os investidores franceses acumularam perdas significativas. Entretanto, a avaliação do retrospecto da dívida federal brasileira em francos deve ser realizada, não em termos absolutos, mas em comparação a aplicações financeiras alternativas disponíveis. O cômputo da taxa de retomo relativo a um exercício contrafactual, baseado em aplicações alternativas em títulos públicos (rentes) de 3%, indica taxas de retomo bem inferiores à obtida para empréstimos federais brasileiros em francos. Mesmo sem o contrafactual até 1948, o que seria razoável dadas as circunstâncias efetivas do resgate da dívida federal brasileira em francos, a taxa de retorno21 21 Calculada com base em valores convertidos em dólares norte-americanos. de aplicações alternativas em rentes nas datas de emissão dos diferentes empréstimos federais brasileiros com resgate integral em 1937 seria de -3,08%. Assim, embora seja correto afirmar que os investidores franceses em títulos federais brasileiros sofreram grandes perdas, é certo também que pior negócio teriam feito se tivessem optado pela compra de títulos do governo francês. Isso seria verdade mesmo se a decisão de Haia tivesse sido desfavorável à França.
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V. Abreu (1977), passim.
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Além disso, cidadãos franceses eram detentores de títulos denominados em outras moedas.
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Antes de 1914, para o período relevante para este artigo, a taxa cambial fixa do franco francês em relação à libra era de aproximadamente 25,2 francos/libra, Depois de dezembro de 1926 a taxa cambial foi estabilizada, mantendo-se em torno de 126 francos/libra.
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É conhecida a grande vulnerabilidade da praça de Paris, no período, a manipulações de interessados na colocação de títulos de baixa qualidade através de corrupção em ampla escala dos principais jornalistas financeiros. V. Raffalovich (l931).
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Essa tendência é semelhante à que caracterizou as emissões totais de empréstimos latino-americanos em francos franceses. Mauro (1977)MAURO, F. Les investissements français en Amérique Latine des origines a 1973. Revue d’Histoire Economique et Saciale nº 55, 1977, pp. 234-62. menciona que as emissões latino-americanas em 1910-1913 representavam 45,1% das emissões totais francesas, comparadas a 27% em 1905-1909 e 4,8% em 1898-1904.
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Taxa de juros de 5% e tipos (desconto na emissão) de 90% em ambos os casos.
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Alguns empréstimos externos brasileiros anteriores a 1930 foram lançados simultaneamente em várias praças financeiras na mesma moeda ou em tranches denominadas em diversas moedas, o que pode provocar dupla contagem. Dois empréstimos do estado de São Paulo estão nessa categoria; usualmente incluídos entre os empréstimos britânicos, certamente incluem partes emitidas em francos: Sorocabana Ituana, 95.597.500 francos, 5%, tipo 91,5, lançado em 1905, e Sorocabana, 50,4 milhões de francos, 5%, tipo 90, lançado em 1907.
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Decisão (Arrêt) nº 15 da 16ª sessão extraordinária publicada em Cour Internationale de Justice (1929)COUR PERMANENTE DE JUSTICE INTERNATIONALE. Receuil des Arrêts. Ajfaire concernant le paiement de divers emprunts serbes émis en France. Affaire relative au paiement, en or, des emprunts fédéraux brésiliens émis en France. Série A, ns. 20/21, Leyde, A.W. Sitjhoff, 1929. , tradução em Pessoa (1960)PESSOA, E. “Côrte Permanente de Justiça Internacional (1923-1930)”. In Obras Completas, Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1960. , pp. 34- 79. Não foram encontrados registros quanto à extensão dos benefícios da cláusula-ouro aos empréstimos assumidos pelo governo federal em 1916 e 1922, relativos às estradas de ferro de Goiás e Vitória- Minas.
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Embora o empréstimo baiano de 1888 tenha tido cerca de dois terços do seu valor nominal resgatado, o estado da Bahia foi obrigado a negociar nada menos que três fundings, sendo que o último, de 1928, apesar de denominado em libras, incluía toda a dívida externa estadual.
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V. Abreu (1975)ABREU, M. de P. “A dívida pública externa do Brasil, 1931-1943”. Pesquisa e Planejamento Econômico 5 (1), junho, 1975. para evidências quanto à inspiração britânica do formato da negociação de 1933-1934.
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V.Abreu (l975)ABREU, M. de P. “A dívida pública externa do Brasil, 1931-1943”. Pesquisa e Planejamento Econômico 5 (1), junho, 1975. .
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Ministério da Fazenda (1957)BRASIL. Ministério da Fazenda. Secretaria do Conselho Técnico de Economia e Finanças. Finanças do Brasil. Compromissos brasileiros em francos. Vol. XX, Rio de Janeiro, 1957. , pp. 49-52.
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Acordo de Pagamentos de 8.3.1946 e complementares, Diário Oficial de 30 de abril de 1946, reproduzido em Ministério da Fazenda (1957)BRASIL. Ministério da Fazenda. Secretaria do Conselho Técnico de Economia e Finanças. Finanças do Brasil. Compromissos brasileiros em francos. Vol. XX, Rio de Janeiro, 1957. , pp. l05-25.
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Anexo 27 de Ministério da Fazenda (1957)BRASIL. Ministério da Fazenda. Secretaria do Conselho Técnico de Economia e Finanças. Finanças do Brasil. Compromissos brasileiros em francos. Vol. XX, Rio de Janeiro, 1957. .
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Aplicou-se um coeficiente de 2,93854323.
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V. Ministério da Fazenda (1957)BRASIL. Ministério da Fazenda. Secretaria do Conselho Técnico de Economia e Finanças. Finanças do Brasil. Compromissos brasileiros em francos. Vol. XX, Rio de Janeiro, 1957. , pp. 21-7. Calculava-se, entretanto, que o resgate total desses empréstimos poderia envolver no máximo 658 milhões de francos.
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V. Ribemboim (1993).
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V., por exemplo, Eichengreen & Portes (1989)EICHENGREEN, B. & PORTES, R. “After the deluge: default, negotiation, and readjustment during the interwar years”. In B. Eichengreen e P. H. Lindert (eds.). The International Debt Crisis in Historical Perspective, Cambridge (Mass.), MIT Press, 1989. e Jorgensen & Sachs (1989)JORGENSEN, E. & SACHS, J. Default and renegotiation of Latin-American foreign bonds in the interwar period. In B. Eichengreen e P. H. Lindert (eds.). The International Debt Crisis in Historical Perspective , Cambridge (Mass.), MIT Press , 1989. .
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Não cabem preocupações especiais quanto a critérios para tratamento dos resgates, dado seu limitado montante. A taxa de retomo contratual era tipicamente por volta de 5% (empréstimo de 1908/1909).
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Taxas cambiais de Wolfe (1951)WOLFE, M. The French Franc between the Wars. 1919-1939. Nova York, Columbia, 1951. e Dulles (1929)DULLES, E. L. The French Franc 1914-1928. The Facts and their lnterpretation. Nova York, Macmillan, 1929. .
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Calculada com base em valores convertidos em dólares norte-americanos.
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O autor agradece o apoio do CNPq, sob a forma de bolsa de pesquisa para o período 1993-1995.
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JEL Classification: N26; F34.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
29 Maio 2023 -
Data do Fascículo
Oct-Dec 1994