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Liquidez dos haveres financeiros e zeragem automática do mercado

The liquidity of financial assets and “zeragem automática” of the market

RESUMO

Este artigo enfatiza a pertinência dos conceitos de moeda indexada, bem como de liquidez excessiva de ativos financeiros, para a análise de programas de estabilização no Brasil. O autor critica a análise de A. C. Pastore, que enfatiza os problemas associados à chamada “zeragem automática” (financiamento automático das posições overnight das instituições financeiras pelo Banco Central do Brasil ao longo dos anos 80). Argumenta-se aqui que a “fuga” de investidores de certos ativos financeiros deve ser entendida como aumentos no número de transações, e não apenas como uma maior demanda por moeda, uma vez que os fundos retirados retornam aos bancos de uma só vez e os saques podem ser realizados. mesmo quando indesejados pelo Banco Central. Este artigo insiste nas dificuldades trazidas pela combinação de uma quantia alta de quase-dinheiro com pressões fiscais e cambiais que são fortemente expansionistas, incluindo pressões decorrentes do serviço da dívida pública, e sugere que tais dificuldades podem ter levado o Banco Central a fornecer financiamento automático, conforme mencionado.

PALAVRAS-CHAVE:
Inflação; banco central; estabilização

ABSTRACT

This article stresses the pertinence of the concepts of indexed money, as well as of excessive liquidity of financial assets, for the analysis of stabilization programs in Brazil. The author criticizes the analysis of A. C. Pastore, who stresses the problems associated to the so-called “zeragem automática” (the automatic financing of financial institutions’ overnight positions by the Brazilian Central Bank throughout the eighties). It is argued here that the “run” of investors away from certain financial assets should be understood as increases in the number of transactions rather than merely as a larger demand for currency, since the funds withdrawn return to the banks at once and withdrawals can be made even when undesired by the Central Bank. This article insists on the difficulties brought by combinations of a high amount of quasi-money with fiscal and exchange pressures that are strongly expansionary, including pressures arising from the servicing of the public debt, and suggests that such difficulties may have led the Central Bank to provide automatic financing as mentioned.

KEYWORDS:
Inflation; central bank; stabilization

1. INTRODUÇÃO

Em artigo publicado logo após a reforma monetária de março de 19901 1 PASTORE, Affonso Celso. “A Reforma Monetária do Plano Collor”. In: Clovis de Faro, (org.), Plano Collor: avaliações e perspectivas, Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos Editora Ltda., 1990. , o professor Affonso Celso Pastore critica a utilização dos conceitos de moeda indexada e de liquidez excessiva2 2 O grau de liquidez dos haveres financeiros é a possibilidade que têm seus detentores de convertê-los em moeda (Ml) da forma mais rápida e com menor custo. Nos últimos anos da década passada, a maior parte desses haveres passou a ter liquidez praticamente imediata e sem custos. dos haveres financeiros nas discussões sobre a aceleração inflacionária do final do governo Sarney e na fundamentação do bloqueio da liquidez adotado na referida reforma monetária. Podem se levantar objeções significativas à argumentação de Pastore, voltada para reduzir o peso destas questões em favor de uma crítica centrada na chamada zeragem automática do mercado, procedimento operacional adotado regularmente pelo Banco Central do Brasil ao longo da década passada.

Argumentando que apenas o Ml tradicional tem poder liberatório, Pastore desconsidera que a conversão da moeda indexada em MI pode se dar de forma automática e instantânea, à revelia de decisões do Banco Central, especialmente nas condições em que vinha operando o sistema bancário no final da década passada. O tratamento dado à questão da “fuga” dos aplicadores é parcial, sempre identificada com aumento da propensão do público a reter moeda manual. Não são consideradas as dificuldades enfrentadas pelo BC para controlar a base monetária num quadro de conjunção entre elevado volume de quase-moeda (overnight) e fortes pressões expansionistas de natureza cambial e fiscal, inclusive para atender ao serviço do próprio estoque de dívida pública.

2. LIQUIDEZ DOS HAVERES FINANCEIROS E POLÍTICAS DE ESTABILIZAÇÃO

Uma caracterização mais precisa dos problemas aqui envolvidos pode começar com a discussão da tese que relaciona a liquidez dos haveres financeiros e o fracasso dos choques anti-inflacionários de 1986-89: Essa tese argumenta que a possibilidade de alterar rapidamente seus portfólios permitia aos agentes econômicos reações rápidas e intensas às políticas de estabilização de preços, capazes de inviabilizá-las com maior ou menor rapidez. Tendo o direito de monetizar suas aplicações financeiras a qualquer momento, com perdas nulas ou desprezíveis, os agentes podiam provocar uma elevação abrupta da demanda por bens de consumo ou por ativos reais e de risco3 3 Neste trabalho se consideram ativos reais aqueles bens que possam representar reserva de valor: imóveis, estoques de produtos acabados ou de matérias-primas ou bens intermediários (desde que acumulados intencionalmente), bens de consumo duráveis (especialmente automóveis), linhas telefônicas, objetos de arte. Ativos de risco incluem ações, ouro, moedas estrangeiras, posições especulativas em mercados futuros e, em alguma medida, compra de outras empresas. , buscando proteger-se contra um possível fracasso do plano ou evitando as taxas de juros nominais sensivelmente mais baixas que se seguiam à queda brusca da inflação. No mercado de câmbio, a liquidez dos exportadores lhes deixava espaço para retardar o fechamento dos negócios, ao mesmo tempo que a demanda em expansão por ativos dolariza-os (moeda estrangeira no paralelo e ouro) provocava a contínua alta de suas cotações, tudo convergindo para forçar a desvalorização da moeda nacional.

Ausente da formulação inicial do plano Cruzado4 4 V. descrição das principais medidas dos planos em Carvalho, op. cit., seção 2. , essa avaliação começou a ganhar força com as evidências de que o crescimento muito rápido do consumo e da demanda por ativos reais e de risco favorecia o retorno das pressões sobre os preços, como já se evidenciava nos primeiros meses após o choque. O plano Bresser procurou manter juros reais elevados logo de início e preservou as regras de indexação, com o objetivo declarado de evitar o mesmo problema. Com o fracasso também do plano Verão, que levou a estratégia de juros reais elevados a níveis bem mais drásticos, generalizou-se a desconfiança (ou a convicção) de que o novo governo (a ser eleito no final do ano) teria de fazer “alguma coisa” para bloquear ou restringir a liquidez dos haveres financeiros, mais especificamente dos títulos federais em poder do público.

A experiência dos choques indicava que os agentes econômicos, diante da queda brusca da inflação, não apenas aumentavam sua demanda por moeda não-remunerada (o tradicional Ml), em detrimento da demanda por aplicações financeiras remuneradas, como tendiam a fazê-lo para atender a uma maior demanda por consumo ou por ativos reais e de risco. A simples “troca” de aplicações remuneradas por Ml não seria problema, em si mesma. Poderia estar sinalizando o aumento da confiança do público na moeda, com a recuperação de suas funções típicas (meio de pagamento, meio de conta e reserva de valor), além de permitir ao governo resgatar parte de sua dívida em títulos, trocando-a por passivo monetário do Banco Central (aumento de emissão de base monetária). Problema era o direcionamento dessa maior demanda por Ml para decisões de gasto, numa escala tal que acabaria reforçando ou facilitando as pressões inflacionárias.

As hipóteses apresentadas para explicar tal comportamento dos agentes econômicos, como veremos a seguir, estão fortemente ligadas aos efeitos que a redução brusca dos juros nominais provoca sobre as expectativas dos agentes econômicos. Para estes a taxa de juros real teria importância menor, ou desprezível, por uma série de motivos: ou porque seu cálculo seria de fato irrelevante, por falta de percepção técnica do problema; ou porque seria um cálculo impossível, diante da dificuldade de mensurar a taxa de inflação de cada agente (referente aos itens de consumo ou de reserva de valor desejados, ou referente aos preços relativos de seu âmbito de atividades produtivas); ou ainda porque a taxa de juros real calculada sobre os índices de inflação disponíveis nada asseguraria sobre os juros reais correntes, diante da convicção de que a inflação estaria provavelmente subindo sempre, o que só apareceria nos índices de preços num segundo momento; ou simplesmente porque a queda acentuada dos juros nominais reduziria muito o custo de oportunidade para quem tivesse algum interesse em assumir posições especulativas ou em atender a desejos de consumo.

Observada essa consideração mais geral, podem então se destacar pelo menos quatro hipóteses para explicar o comportamento dos agentes econômicos que está em discussão. Vale observar que não são hipóteses excludentes, podendo-se considerar como quase certa a justaposição dos movimentos e motivações que cada uma delas procura destacar.

A primeira é a da ilusão monetária: especialmente no caso de congelamento de preços, a queda abrupta dos juros nominais levaria o público à conclusão de que “caderneta e over não rendem mais nada”, sendo preferível atender a demandas de consumo reprimidas. A taxa de juros real não teria então importância maior, posto que para os agentes econômicos em geral este seria um cálculo impossível (por falta de percepção técnica) ou incerto (diante da dificuldade de medir “sua” taxa de inflação, referente a seus itens de consumo desejados).

A segunda trabalha com a ideia de que as expectativas e/ou os riscos de volta da inflação levariam sempre a ver com desconfiança as taxas de juros correntes. Se prefixadas, porque não conseguiriam embutir a “verdadeira” inflação que estaria por ocorrer; se pós-fixadas, porque o indexador não estaria refletindo a “verdadeira” inflação corrente, mas sim aquela do período de coleta de preços do índice adotado. Daí resultaria a quase impossibilidade de se definir um taxa de juros adequada. Com juros prefixados, taxas baixas estimulariam a desconfiança e a queda na demanda por aplicações financeiras; taxas muito altas dariam reforço a avaliações de que o próprio Banco Central estaria reconhecendo a possibilidade de um salto da inflação. Com juros pós-fixados, haveria a “fuga” dos aplicadores diante de juros tidos como insuficientes, ou o aumento na desconfiança quanto ao indexador se o BC passasse a aceitar taxas muito altas para os juros pagos além do indexador. Em qualquer das hipóteses, estariam dados os estímulos para o aumento da preferência pelo consumo ou pelo posicionamento em ativos reais e de risco.

A terceira linha de argumentação parte da ideia de que as aplicações financeiras remuneradas, especialmente as indexadas, funcionariam como uma espécie de hedge contra a variância dos preços relativos, que costuma ser tão mais alta quanto maior a taxa de inflação. Com a queda da inflação5 5 Argumento levantado por Mário Henrique Simonsen, em “Aspectos do plano Collor”. In: Clóvis de Faro, op. cit., págs. 113-128. , esse hedge se tornaria desnecessário, liberando recursos que eventualmente se poderiam destinar a estoques ou outros ativos reais ou de risco.

A quarta hipótese enfatiza que a simples existência de um elevado estoque de haveres financeiros com liquidez praticamente total levaria os detentores de ativos reais e de risco a elevar seus preços, antes mesmo de qualquer aumento efetivo da demanda por eles. Convencidos de que haveria demanda crescente por tais ativos, a elevação preventiva dos seus preços acabaria reforçando o crescimento da demanda, inclusive por conta de redução dos juros nominais, agora muito pequenos diante de qualquer alta nos mercados especulativos e de risco. Seria o caso, por exemplo, da espetacular elevação dos preços das ações no primeiro pregão das bolsas depois de implantado o plano Cruzado.

Em qualquer das hipóteses, parte-se de que a reação dos agentes econômicos estaria assegurada (ou seria induzida) pela possibilidade de saque imediato das aplicações, transformando-as em moeda e podendo assim efetivar decisões de gasto, em consumo ou em ativos reais e de risco. O problema não seria, portanto, o tamanho do estoque de haveres financeiros, nem a participação crescente dos títulos públicos nesse estoque, mas sim o tamanho do estoque de haveres com liquidez imediata ou quase total. O temor da “fuga”6 6 Usualmente se entende por “fuga” dos aplicadores a retirada de recursos até então aplicados no sistema financeiro (algo como desintermediação financeira), É uma conceituação incorreta, posto que esse dinheiro acaba voltando ao sistema bancário, mesmo tendo realizado maior volume de transações. A questão será discutida mais adiante. desses haveres (sua transformação em moeda e gasto) levou à imobilização das políticas monetária e cambial, ao mesmo tempo que se tornava impossível romper a rígida indexação dos haveres financeiros e dos contratos em geral.

Isso porque, para impedir a “fuga”, não restaria ao Banco Central outra conduta que não a de oferecer juros reais significativos aos aplicadores, evitando ao mesmo tempo oscilações dos juros nominais e reais para não estimular movimentos especulativos. Daí teria resultado a imobilização da política monetária, voltada para estabilizar os juros, ficando o controle da moeda como objetivo secundário. Para fazê-lo, porém, o Banco Central deveria atuar diretamente com os juros dos títulos públicos federais, não apenas devido à sua elevada participação no total de haveres financeiros, mas também porque à elevada liquidez dos agentes econômicos correspondia um nível reduzido de demanda por crédito junto aos bancos7 7 Sobre a redução da demanda por crédito na primeira metade da década de 1980, v. Almeida, Júlio S. G, org. “Evolução e impasses do crédito”. São Paulo: Iesp/Fundap, Relatório de Pesquisa nº 4, 1987. , insuficiente para assegurar a elevação dos juros apenas pela aplicação de outros instrumentos de política monetária8 8 Argumenta-se aqui que, diante da menor dependência das empresas em relação ao crédito bancário, medidas tendentes a limitar a capacidade de empréstimo dos bancos teriam efeitos bastante reduzidos em termos de elevação das taxas de juros, o que restringia de forma significativa o alcance das medidas de política monetária. (restrições ao crédito, empréstimos de liquidez, recolhimentos compulsórios). Assim, a política de juros altos era paga fundamentalmente pelo Tesouro, o que penalizava as contas públicas, sugerindo sempre que o Banco Central em algum momento teria de recuar para não onerá-las em demasia.

Na administração dos juros, o BC era levado a indexar as taxas diárias do overnight às expectativas de inflação correntes, expressas com maior ou menor fidelidade no indexador diário oficial (BTN ou OTN fiscais) ou na taxa de câmbio. Essa indexação do overnight, embora informal, buscava definir patamares previsíveis e relativamente constantes para os juros reais, o que foi conseguido em vários momentos9 9 Carvalho, op. cit., tabela 1. . A partir do juro definido pela autoridade monetária, formavam-se então as demais taxas de aplicação e de empréstimo. Também os movimentos no mercado de câmbio se orientavam por uma comparação permanente entre a desvalorização diária da moeda no câmbio oficial e os juros pagos no overnight pelo Banco Central.

A indexação atingira assim praticamente seu limite, ficando muito difícil desmontá-la no caso de um plano de estabilização. Se este incluísse o congelamento de preços, a supressão das regras de indexação levaria a que o BC tivesse de operar apenas com juros prefixados, difíceis de definir e de defender pelas razões expostas. No caso de um plano com redução gradual da inflação, seria indispensável prefixar os rendimentos das aplicações financeiras segundo um índice qualquer, para evitar que a indexação a posteriori pela inflação real quebrasse as metas; mas essa prefixação, caso desagradasse o consenso dos aplicadores, poderia ser inviabilizada pela monetização acelerada que pressionaria os preços.

Chegou-se então à tese da impossibilidade de estabilizar os preços e desindexar a economia sem antes bloquear ou, ao menos, reduzir a liquidez das aplicações financeiras. Sem isso, não haveria taxa de juros capaz de manter a estabilidade dos mercados. Quanto mais alta fosse, mais contribuiria para expandir a massa de aplicações de alta liquidez, que assumiam plenamente a condição de quase-moeda, ou moeda indexada, além do fato de que o juro alto impedia qualquer esforço de equilíbrio fiscal, pelo custo que implicava para o Tesouro. Tal diagnóstico embasou a reforma monetária do plano Collor I10 10 Para uma discussão dos fundamentos do plano Collor I, v. Carvalho, op. cit., págs. 10-14. .

3. A ATUAÇÃO DO BANCO CENTRAL E A ZERAGEM AUTOMÁTICA

Vejamos agora as possíveis relações entre formas de atuação privilegiadas pelo Banco Central do Brasil até o início de 1990 e os efeitos da liquidez dos haveres financeiros sobre a inflação.

Desde o plano Cruzado até as vésperas do plano Collor, a atuação do BC centrou-se no controle da taxa de juros, deixando a oferta monetária como variável de ajuste ou, pelo menos, como variável subordinada. Em praticamente todo o período, tratou-se de manter juros reais relativamente constantes e previsíveis no overnight, evitando ao mesmo tempo que fossem muito bruscas as mudanças nas taxas nominais diárias, necessárias para ajustar o rendimento real projetado às mudanças nas expectativas de inflação mensal, à medida que se aproximava o cálculo final do índice de preços.

Procurou-se justificar essa política com a necessidade de oferecer remuneração real atraente aos detentores de poupanças, de forma a evitar sua “fuga”. Para isso o BC teria que atuar diretamente sobre os juros, já que estes, por si mesmos, tenderiam a cair, por pelo menos duas razões: primeiro, não havia demanda de crédito do público que justificasse um esforço dos bancos para atrair os recursos disponíveis oferecendo-lhes juros altos; segundo, a persistência das pressões expansionistas sobre a oferta monetária, a partir dos problemas de caixa do Tesouro e da necessidade de adquirir dólares dos exportadores para atender ao serviço da dívida externa, tornava ineficaz o exercício da política monetária centrada no controle da moeda.

A prática de concentrar os esforços do BC na administração dos juros já vinha de muito antes do cruzado. Uma das razões para a criação das LBCs em 1986 foi justamente facilitar essa atuação, marcada por algumas dificuldades sérias em meados do ano anterior, por conta da orientação de elevar as taxas de juros do overnight. A ameaça de prejuízos desencadeou muitas pressões das instituições financeiras que carregavam as antigas ORTNs, problema que voltou a se manifestar quando os gestores do cruzado concluíram pela conveniência de aumentar os juros do over, em abril/maio de 1986.

Mas apenas a existência das LBCs não seria suficiente para garantir o objetivo de estabilidade dos juros. Para tanto o BC utilizou regularmente a chamada zeragem automática do mercado, prática suspensa apenas a partir de maio de 1990. Essa forma de atuação do BC consiste em assegurar às instituições financeiras que carregam títulos federais os recursos necessários para financiar diariamente suas posições (zerá-las, no jargão do meio financeiro), caso não consigam captá-los no mercado. Fornecendo esses recursos a taxas praticamente idênticas à média do dia, o BC elimina o risco de prejuízos no carregamento dos papéis. Mesmo se tratando de LBC/LFT, cujo rendimento equivale à média do over diário, o risco de perdas continua existindo para o carregador, caso este não consiga financiar sua posição ao longo do dia e se veja obrigado a tomar recursos no mercado no final da tarde, na última hora, a um custo superior à média ou numa linha de redesconto do próprio BC, com taxas também elevadas.

Na prática, a zeragem automática permitia que o BC atuasse quase sempre sobre vendido, colocando uma massa de títulos no mercado superior à média das disponibilidades diárias de recursos para financiá-los. As instituições aceitavam a política porque teriam acesso ao financiamento do BC, caso não o conseguissem no mercado. Para o BC, a vantagem era poder fixar com mais tranquilidade a taxa de juros diária desejada. Anunciando pela manhã o nível em que estaria operando com as LFTs, ficava definido o piso dos juros. Se o volume de reservas disponíveis fosse insuficiente, ele compraria os títulos que sobrassem, como se fosse um aplicador de overnight; se as reservas fossem excessivas, faria a operação inversa. Essa atuação do BC ocorreu de forma praticamente contínua, mas não há dados confiáveis sobre os volumes assim operados a cada dia.

Com essa prática, o BC sancionou a tendência de migração dos aplicadores para o mercado diário, estimulando as instituições a ampliar sem limites suas carteiras de títulos públicos e privados financiados diariamente em mercado. Para os aplicadores, a liquidez imediata do overnight deixava de ter qualquer preço, qualquer risco de juros. Na prática, bancos e corretoras fechavam as aplicações na base de determinado percentual da taxa diária referencial (média) das LFTs, a ser anunciada pelo BC por volta do meio-dia ou do início da tarde, o que preservava seu spread e deixava o aplicador livre de qualquer surpresa.

Com os juros definidos pelo BC e as instituições pagando aos clientes percentuais dessa taxa, a concorrência entre elas se tornava cada vez mais dura, com a tendência de elevação contínua do percentual oferecido. Muitos bancos costumavam pagar 100% da taxa diária, limitando seus ganhos ao deságio obtido na compra dos títulos junto ao BC (o qual não chegou a ultrapassar de muito a faixa de 1% ao ano, no final de 1989). Para gerar uma massa de lucros que compensasse o ganho menor em cada operação, o caminho era aumentar o volume financiado diariamente. Todo o conjunto do mecanismo apontava, portanto, para a concentração dos aplicadores e das instituições nos negócios de curtíssimo prazo.

Quanto ao nível dos juros reais, durante a maior parte do período prevaleceu a orientação de oferecer ao aplicador rendimentos levemente superiores à inflação oficial depois de descontado o IR. Havia a preocupação de que os juros reais não fossem tão altos a ponto de estimular os aplicadores individuais a sacar das cadernetas de poupança. Claro que da orientação se excluem os períodos de ajuste pós-choque nos planos Bresser e Verão, quando as cadernetas tiveram seus rendimentos alinhados com as LFTs. Porém, mesmo nesses períodos, se manteve o princípio de evitar oscilações bruscas nas taxas diárias nominais, bem como uma certa previsibilidade na definição dos juros reais - no caso, a expectativa de “devolução” do rendimento negativo produzido pelo ajuste dos juros e da correção monetária ao vetor dos preços no momento do choque. No segundo semestre de 1989, com a inflação em alta acelerada e receios crescentes de mudanças bruscas nos títulos federais, o BC aumentou o deságio inicial e passou a praticar juros reais bem mais altos, provavelmente para compensar a defasagem de tempo entre a inflação apurada e a inflação corrente.

Vale observar que a atração do público pelas aplicações overnight e a forte concorrência entre os bancos para elevar o volume operado levaram à disseminação de formas de captação de curtíssimo prazo cada vez mais flexíveis. O crescimento dos fundos de curto prazo e a concorrência entre as instituições que os administravam acabaram transformando-os em aplicações overnight de fato, com boa parte dos bancos aceitando liberar os recursos no mesmo dia da solicitação, geralmente por meio de lançamento em conta no final do expediente (o que permitia a emissão imediata de cheques), ou até mesmo em dinheiro, mediante um simples visto do gerente da agência ou de algum funcionário encarregado. Da mesma forma, generalizaram-se as contas remuneradas, com muitos bancos adotando a sistemática de aplicação automática em over dos saldos que excedessem algum patamar (muitas vezes fixado cm níveis muito reduzidos, ao alcance de boa parte dos correntistas individuais), sem que o próprio titular da conta tivesse feito pedido expresso nesse sentido. A generalização desses mecanismos explica em boa parte a drástica redução do Ml ao longo de 1989.

4. AS CRÍTICAS ÀS POSIÇÕES DE PASTORE

No conhecido artigo de Pastore a que nos referimos, o autor defende a tese de que as pressões inflacionárias nessa situação seriam provenientes, não da existência de um elevado estoque de quase-moeda, ou moeda indexada, mas sim da política permissiva do Banco Central, que permitiria sua conversão automática e sem risco em Ml, em grande medida por conta da zeragem automática.

Afirma Pastore:

“Admitamos por um momento que tanto as expansões de moeda indexada quanto as da base monetária e do Ml tivessem o mesmo efeito gerador de inflação. Se isso fosse verdade, um déficit público seria tão inflacionário quer fosse financiado por dívida pública, quer por expansão de base monetária.(. .. ) O que ocorre, no entanto, é exatamente o contrário. Na medida em que o crescimento das expectativas de inflação induz a uma substituição contra a moeda não-indexada e a favor dos overnights, aumenta-se a proteção da riqueza contra o imposto inflacionário, evitando-se que ela seja gasta para defender seu poder aquisitivo real do imposto inflacionário. A existência dos overnights ou de quaisquer outros ativos financeiros indexados produz, nesse sentido, uma força anti-inflacionária. ( ... ) É somente com todas essas qualificações que podemos utilizar este impreciso conceito de moeda indexada, sem que com isto estejamos aceitando que sua expansão funcione, para efeito de produzir inflação, exatamente como uma expansão da base monetária e do Ml”.11 11 PASTORE, op. cit., págs. 160-162.

Aqui Pastore formula um falso problema e lhe dá uma solução parcial. A conceituação de moeda indexada não lhe atribui poder liberatório idêntico ao de Ml, nem supõe que sua expansão produza os mesmos efeitos que a emissão primária de moeda. A argumentação no trecho citado é correta em si mesma, mas não alcança o âmago da questão: a massa de moeda indexada pode ser convertida em Ml por iniciativa de seus titulares, sem que a autoridade monetária possa impedi-la. Quando isso ocorre, o efeito acaba sendo muito semelhante ao de uma emissão primária de moeda ou de uma elevação do multiplicador bancário. Além disso, a expansão do estoque de moeda indexada é função principalmente das taxas de juros nominais, que são fortemente condicionadas pelas expectativas de inflação, se são juros prefixados, ou pela inflação passada, se pós-fixados.

Sem fazer tal caracterização mais precisa do problema, Pastore argumenta que a conversão em Ml só se toma automática e livre de riscos de perdas para o aplicador devido ao mecanismo de zeragem automática, apontado então como representativo da posição frouxa do BC na condução da política monetária. Para ilustrar a afirmação, ele simula um exemplo:

“Suponhamos dois países idênticos, com a mesma população e com a mesma estrutura etária, com o mesmo PIB, os mesmos hábitos de consumo, a mesma taxa de investimento, o mesmo déficit público, que em ambos é financiado com o aumento da dívida pública. Em ambos ela é colocada junto às instituições financeiras, que a carregam no overnight. A única diferença é que no primeiro país a liquidez da dívida pública está garantida por compromissos de recompra por parte do Banco Central, enquanto no segundo, não. Em ambos os países os consumidores estão divididos em dois grupos homogêneos, com os indivíduos dentro de cada um dos grupos consumindo exatamente as mesmas quantidades dos mesmos produtos, mas os produtos são diferentes entre os grupos. Em cada um dos dois grupos existe um estoque de ativos, constituído por moeda, utilizada para realizar as transações, e por depósitos de overnight lastreados por títulos públicos, ativo no qual retém o estoque de suas riquezas.

Se no segundo país o primeiro grupo de consumidores perceber uma taxa de inflação superior àquela de que o Banco Central se utiliza para fixar a taxa de juros de overnight, poderá planejar elevar seu consumo acima de sua renda, reduzindo seu estoque de ativos financeiros. Como o Banco Central não pode recomprar os papéis, se o segundo grupo de consumidores perceber uma inflação inferior à utilizada pelo Banco Central, elevando a sua poupança, aumentará seus depósitos de overnight, comprando com moeda os ativos indexados do primeiro grupo, o que lhe permite elevar o consumo, mas que foi exatamente compensado pela queda do consumo dos componentes do segundo grupo. Caso os componentes do segundo grupo não desejarem elevar suas poupanças, a taxa real de juros terá que se elevar, conduzindo a algum crescimento das poupanças dos componentes do segundo grupo e a uma elevação do consumo, ainda que relativamente menor, dos membros do primeiro grupo. Em qualquer das duas alternativas, a demanda agregada ficou constante, nada se passando com a inflação. Mas se no primeiro país os dois grupos esperarem uma taxa de inflação superior à taxa nominal de juros, decidindo aumentar o consumo, ao sacarem os depósitos de overnight o Banco Central recomprará o excesso de títulos, aumentando a oferta de Ml e permitindo o crescimento da demanda agregada, gerando-se inflação.

Não foi o fato de a liquidez ser por um dia que provocou esta inflação, mesmo porque ela também era por um dia no segundo país, onde a inflação não ocorreu. O que produziu a diferença foram os compromissos de recompra do Banco Central, no primeiro país, o que permitiu transformar os depósitos de overnight em um fluxo adicional de moeda com poder liberatório. É nisto que repousa o efeito inflacionário dos depósitos de overnight, e não no fato de a liquidez ser por um dia. Os overnights não são moeda indexada porque podem ser convertidos em MI, porque, se fossem convertidos em MI sendo comprados por algum agente privado, estaria apenas ocorrendo uma mudança de proprietários de moeda não indexada e de moeda indexada. Eles adquirem esse poder inflacionário quando o Banco Central garante esta conversão automática em moeda com poder liberatório, reduzindo a zero o preço de sua liquidez”.12 12 Ibidem, págs. 162-163.

A adequação do exemplo à realidade fica prejudicada por algumas restrições importantes. A primeira delas é que os depósitos overnight são contratos de juros e prazos fixos entre o aplicador e o banco, e este não pode se recusar a reconvertê-los em Ml no dia seguinte, haja ou não novos aplicadores dispostos a financiar a posição daqueles que se retiram. Caso o dinheiro sacado não retorne aos bancos pelas mãos de novos aplicadores, os bancos deverão elevar os juros oferecidos para aplicações em overnight até o ponto de atrair recursos suficientes para financiar suas carteiras de títulos. Essa alta estará sendo produzida pelos bancos, e não pelo BC. Na medida em que ela persista e ultrapasse a taxa de juros pela qual os bancos adquiriram os títulos que lastreiam as aplicações do público, os bancos estarão realizando prejuízos. Restaria ao BC sancionar a alta nos próximos leilões de títulos públicos, sob o risco de que os bancos passem a comprar menos títulos. Em tal hipótese, haveria aumento de M1 e queda da taxa de juros, em face da menor pressão dos bancos pela captação de recursos para financiar suas carteiras, agora mais reduzidas. Essa queda dos juros, porém, sancionaria também o movimento de resgate de aplicações, reduzindo então a proteção que os depósitos de overnight oferecem contra a expectativa de inflação crescente, o que estimularia a “fuga” tanto da moeda não-indexada, quanto da indexada (que agora já não acompanha adequadamente a expectativa de inflação do público).

A conversão de moeda indexada (overnight) em Ml se dá sem que o BC possa impedi-la formalmente. Se isso ocorrer de forma acentuada, com aumento de demanda do público por retenção de moeda manual fora do sistema bancário, este não poderá financiar suas carteiras a não ser que eleve os juros até o ponto de incorrer em prejuízos. Se o BC não sancionar a alta dos juros, os bancos reduzirão suas carteiras, para reduzir os juros pagos aos aplicadores, consolidando a maior demanda do público por moeda manual. Se sancioná-la, estará acelerando o crescimento do estoque de quase-moeda e dos gastos do Tesouro com a dívida pública. Todo o processo terá se dado, portanto, à revelia do BC, havendo ou não compromissos de recompra deste com os bancos ou qualquer mecanismo semelhante à zeragem automática. Uma outra solução seria supor que a maior retenção de moeda manual estaria ativando gastos, o que levaria ao aumento da demanda de crédito e das decisões de produzir dos capitalistas, permitindo aos bancos substituir captação overnight com lastro em títulos públicos por captação em títulos próprios para financiar a expansão de seu próprio ativo. Ainda dessa forma, o processo estaria se dando, portanto, à revelia do BC, cabendo a este sancioná-lo ou não.

A segunda restrição é o tratamento parcial conferido aos efeitos dos saques dos recursos do overnight pelos aplicadores. Não é correto supor que tais saques levem à redução do total nominal de recursos à disposição do sistema bancário para financiar suas posições de títulos públicos, posto que o dinheiro sacado do over retorna ao sistema bancário, na forma de depósitos à vista ou de depósitos em overnight por parte dos vendedores dos bens reais ou ativos de risco. A afirmação é tanto mais verdadeira quando aplicada à situação de inflação cronicamente elevada, vivida pelo Brasil nos últimos anos.

O saque dos recursos para a realização de transações nos mercados reais e de risco pode ocorrer sem que se altere o total de aplicações do conjunto de agentes econômicos em overnight, aplicações que financiam a maior parte dos títulos públicos fora do BC e boa parte dos CDBs emitidos pelos bancos13 13 Além do overnight com lastro em títulos públicos, usualmente conhecido como aplicações Selic (sigla do Sistema Especial de Liquidação e Custódia, em que essas transações são registradas e liquidadas entre os bancos e entre estes e o Banco Central), existe também o overnight com lastro em títulos privados, conhecido como mercado ADM (sigla proveniente de “cheque administrativo”, instrumento usado para pagamentos entre bancos). Através do over ADM os bancos levantam recursos de curtíssimo prazo para financiar suas carteiras de empréstimos de prazo mais longo ou de prazo idêntico ao da captação. , porque os vendedores de posições em bens reais ou de risco procurarão aplicar imediatamente no overnight a moeda recebida pela venda, de forma a evitar a perda do juro diário que ameniza ou supera a corrosão inflacionária.

Vale a pena ilustrar melhor como isso ocorre. Chamemos de A um aplicador em overnight no banco B1; e chamemos de V alguém que vende bens reais (um comerciante, por exemplo, mas poderia ser também um doleiro) e é cliente do banco B2. Num dia qualquer, A resolve comprar um carro. Pede ao gerente de sua agência de B1, pela manhã, que não reaplique seu dinheiro e vai sacá-lo no caixa em seguida. Com a moeda manual, paga a V pelo automóvel. Este imediatamente deposita o dinheiro em sua conta em B2 e pede a seu gerente que aplique o dinheiro no over ou num fundo para ganhar juros naquele mesmo dia. Com esse movimento, diminuíram os recursos à disposição de B1 para financiar sua posição de títulos públicos, mas B2 teve um aumento correspondente. Na somatória do mercado, o total de recursos para bancar as carteiras de títulos federais não se alterou, havendo apenas uma possível necessidade de ajuste de posições entre B1 e B2, o que se faria nas negociações interbancárias.

Caso a operação fosse liquidada em cheque, como ocorre em negócios com valores elevados, o desfecho seria semelhante para o que nos interessa. Avisado o gerente de B1, este lança o dinheiro na conta corrente de A, que em seguida paga a V com um cheque, depositado por este em B2. No fim do dia, B1 aumentou sua posição de depósitos à vista de clientes, com a qual financia sua carteira de títulos públicos no BC. O banco B2 tem também um acréscimo em depósitos à vista, mas bloqueado até a compensação do cheque no dia seguinte. No dia do depósito, porém, aplica o cheque entregue por V no mercado overnight ADM, com o que garante a V remuneração e financia a sua posição de títulos no dia seguinte, quando o dinheiro do cheque estará disponível. Feita a compensação no dia seguinte, B1 abate o valor do cheque da conta corrente de A, retroativamente para o dia anterior, com o que B1 não acusa aumento em sua posição de depósitos à vista, embora tenha usado os recursos para financiar sua posição de títulos. O acréscimo de depósitos à vista no dia do negócio aparece na posição de B2, mas este só pode financiar sua posição de títulos no dia seguinte (dia de compensação do cheque), pelo mecanismo do ADM.

Nas duas modalidades ocorre aquilo que assinalamos: uma aplicação remunerada (overnight) foi monetizada; a moeda (M1) resultante foi gasta, pressionando um mercado real e possivelmente seu nível de preços; mas daí não resultou redução nominal do montante de recursos aplicados pelo público em overnight ou fundos, recursos portanto disponíveis ao sistema bancário para financiamento de sua posição de títulos.

Há aqui pelo menos dois supostos que se devem destacar. O primeiro deles é que o público (indivíduos e empresas) procura reduzir ao mínimo a retenção de Ml se há inflação elevada. Pode-se afirmar que, nesse caso, só haverá vendedores de bens reais ou de risco se for possível remunerar a moeda recebida com juros que possam compensar a inevitável alta dos preços dos bens reais ou de risco que eles precisarão adquirir em seguida para refazer suas posições, seja o vendedor um comerciante, um doleiro, um especulador ou apenas alguém que resolveu se desfazer de bens reais ou de reservas em dólares ou ações por alguma necessidade imediata ou para alterar seu portfólio.

Dentro desta lógica, todos os compradores procurarão manter seus recursos aplicados até o momento de realizar a transação, e todos os vendedores correrão de imediato a aplicar o dinheiro recebido.

Pode-se acreditar que o efeito seja tanto mais intenso quanto maior a inflação e a expectativa de seu crescimento. Mas, num quadro de inflação em queda brusca, o mesmo efeito poderia ser produzido por uma política de juros nominais elevados o bastante para se contrapor à tendência de aumento da propensão do público a reter moeda manual.

O segundo suposto é que, pelos procedimentos operacionais adotados, no final do dia cada banco lança o total de moeda proveniente de depósitos à vista para financiar junto ao BC sua posição de títulos públicos que tenha ficado eventualmente a descoberto (por conta de resgates de aplicações overnight dos clientes, por exemplo). Pela excepcional rentabilidade proporcionada por esse mecanismo aos depósitos à vista numa conjuntura de inflação elevada14 14 Trata-se de uma das fontes dos chamados lucros inflacionários dos bancos, resultantes da aplicação de recursos pelos quais não pagam juros mas que propiciam rendimento financeiro equivalente a toda a taxa nominal praticada, a qual inclui a estimativa de inflação corrente no mercado. , os bancos procuraram intensificar ao máximo todas as formas de atração de clientes.

Com a apropriação diária dos juros nas aplicações overnight e nos fundos, o crescimento do estoque de quase-moeda disponível para o público é função da taxa de juros nominal média do overnight. Caso se mantenham constantes a propensão do público a reter moeda manual fora do sistema bancário e também a proporção do estoque de moeda indexada que o público tende a monetizar para liquidar transações, a oferta de base monetária deverá crescer na mesma proporção que a quase-moeda (permanecendo constantes os demais fatores de expansão/contração da base), a menos que o BC aceite uma forte elevação da taxa de juros.

As estatísticas divulgadas pelo BC sobre os haveres financeiros, portanto, diante dos supostos indicados, não são capazes de refletir de forma adequada a monetização das aplicações overnight, especialmente em situações de inflação elevada. Em momentos assim, a redução na demanda por aplicações overnight por parte de alguns agentes significa provavelmente aumento na demanda por consumo e ativos reais e de risco, mas isso não afetará a oferta nominal de recursos para financiar os títulos que lastreiam o over, pois a este voltará a moeda recebida por quem vendeu ativos reais e de risco para atender à demanda dos agentes que preferiram sair de suas posições em over.

Esses vendedores retomarão muito provavelmente à posição compradora nos mercados reais e de risco, para refazer suas posições, encontrando outros vendedores que ocuparão seu lugar entre os aplicadores em overnight. A sucessão de movimentos desse tipo estará provocando aumento do volume de transações e exercendo pressões sobre os preços, com a correspondente elevação dos juros nominais e do valor nominal do estoque de títulos que lastreiam as aplicações no over.

Apenas nesse sentido preciso é correta a utilização do termo “fuga”: aumento do volume de transações e da velocidade de circulação dos haveres financeiros (ou da moeda indexada, mais rigorosamente), mas sem que tais haveres ( ou moeda indexada) estejam “saindo” do sistema.15 15 Daqui se pode concluir que, num país com institucionalidade bancária semelhante à nossa, a “fuga” generalizada do over só ocorreria num caso de pânico generalizado sobre a saúde dos bancos, e seria o ato final de uma hiperinflação aguda. Esta pode se instalar e se desenvolver com o dinheiro voltando diariamente ao over, pelo menos enquanto houver vendedores de ativos reais e de risco dispostos a aceitar a moeda nacional, acreditando que poderão aplicá-la em seguida com juros overnight suficientes para compensar a inflação corrente, de forma a poder refazer suas posições num momento seguinte.

Por outro lado, se o BC não tem como controlar a emissão primária de moeda originada dos gastos do Tesouro e sobre o câmbio e não conta com uma demanda de crédito junto aos bancos que os leve a enxugar a oferta monetária crescente (ou se não deseja que o crédito cresça), não lhe resta outra alternativa que não a de ser o próprio tomador da moeda adicional, transformando-a em overnight através dos bancos. Para viabilizar esse objetivo, terá de atuar sobre as taxas de juros, o que poderá ser mais fácil se estiver sobrevendido e apoiado na zeragem automática dos mercados.

Para que tal não ocorresse, seria necessário controlar as fontes de pressão primária sobre a oferta ele moeda. Na área fiscal, isso incluiria certamente a redução dos juros pagos pela dívida pública (leia-se: pelos depósitos no overnight), recaindo-se no problema enfrentado pelo Cruzado e pelos demais planos de estabilização. A enorme massa de moeda indexada, numa situação assim, poderia pressionar fortemente os mercados de bens reais e de risco, inviabilizando a estabilidade pretendida, conforme discutido no início deste trabalho. Esse ponto crucial não aparece no artigo de Pastore, o que enfraquece bastante sua argumentação, ao lado das restrições apontadas na consistência dos exemplos e considerações propostos.

  • 1
    PASTORE, Affonso Celso. “A Reforma Monetária do Plano Collor”. In: Clovis de Faro, (org.), Plano Collor: avaliações e perspectivas, Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos Editora Ltda., 1990.
  • 2
    O grau de liquidez dos haveres financeiros é a possibilidade que têm seus detentores de convertê-los em moeda (Ml) da forma mais rápida e com menor custo. Nos últimos anos da década passada, a maior parte desses haveres passou a ter liquidez praticamente imediata e sem custos.
  • 3
    Neste trabalho se consideram ativos reais aqueles bens que possam representar reserva de valor: imóveis, estoques de produtos acabados ou de matérias-primas ou bens intermediários (desde que acumulados intencionalmente), bens de consumo duráveis (especialmente automóveis), linhas telefônicas, objetos de arte. Ativos de risco incluem ações, ouro, moedas estrangeiras, posições especulativas em mercados futuros e, em alguma medida, compra de outras empresas.
  • 4
    V. descrição das principais medidas dos planos em Carvalho, op. cit., seção 2.
  • 5
    Argumento levantado por Mário Henrique Simonsen, em “Aspectos do plano Collor”. In: Clóvis de Faro, op. cit., págs. 113-128.
  • 6
    Usualmente se entende por “fuga” dos aplicadores a retirada de recursos até então aplicados no sistema financeiro (algo como desintermediação financeira), É uma conceituação incorreta, posto que esse dinheiro acaba voltando ao sistema bancário, mesmo tendo realizado maior volume de transações. A questão será discutida mais adiante.
  • 7
    Sobre a redução da demanda por crédito na primeira metade da década de 1980, v. Almeida, Júlio S. G, org. “Evolução e impasses do crédito”. São Paulo: Iesp/Fundap, Relatório de Pesquisa nº 4, 1987.
  • 8
    Argumenta-se aqui que, diante da menor dependência das empresas em relação ao crédito bancário, medidas tendentes a limitar a capacidade de empréstimo dos bancos teriam efeitos bastante reduzidos em termos de elevação das taxas de juros, o que restringia de forma significativa o alcance das medidas de política monetária.
  • 9
    Carvalho, op. cit., tabela 1.
  • 10
    Para uma discussão dos fundamentos do plano Collor I, v. Carvalho, op. cit., págs. 10-14.
  • 11
    PASTORE, op. cit., págs. 160-162.
  • 12
    Ibidem, págs. 162-163.
  • 13
    Além do overnight com lastro em títulos públicos, usualmente conhecido como aplicações Selic (sigla do Sistema Especial de Liquidação e Custódia, em que essas transações são registradas e liquidadas entre os bancos e entre estes e o Banco Central), existe também o overnight com lastro em títulos privados, conhecido como mercado ADM (sigla proveniente de “cheque administrativo”, instrumento usado para pagamentos entre bancos). Através do over ADM os bancos levantam recursos de curtíssimo prazo para financiar suas carteiras de empréstimos de prazo mais longo ou de prazo idêntico ao da captação.
  • 14
    Trata-se de uma das fontes dos chamados lucros inflacionários dos bancos, resultantes da aplicação de recursos pelos quais não pagam juros mas que propiciam rendimento financeiro equivalente a toda a taxa nominal praticada, a qual inclui a estimativa de inflação corrente no mercado.
  • 15
    Daqui se pode concluir que, num país com institucionalidade bancária semelhante à nossa, a “fuga” generalizada do over só ocorreria num caso de pânico generalizado sobre a saúde dos bancos, e seria o ato final de uma hiperinflação aguda. Esta pode se instalar e se desenvolver com o dinheiro voltando diariamente ao over, pelo menos enquanto houver vendedores de ativos reais e de risco dispostos a aceitar a moeda nacional, acreditando que poderão aplicá-la em seguida com juros overnight suficientes para compensar a inflação corrente, de forma a poder refazer suas posições num momento seguinte.
  • 16
    JEL Classification: E31; E58.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 1993
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