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Aceleração inflacionária, instabilidade financeira e endividamento interno e externo* * Agradeço aos comentários de Francisco Anuatti Neto, Luiz Fernando Eleutério Lopes, Márcio lssao Nakane e Reynaldo Fernandes, que evitaram muitos equívocos e contribuíram com sugestões. Desnecessário dizer, a responsabilidade pelos erros remanescentes cabe integralmente ao autor.

Inflationary acceleration, financial instability and internal and external indebtedness

RESUMO

Fornecemos aqui um modelo que tenta explicar como o circuito financeiro no Brasil se tornou um excelente local de valorização da riqueza. Isso mostra que seu caráter especial se deve a um arranjo institucional peculiar que permite ao setor público - o principal agente financeiro - operar com spread negativo. Portanto, choques inflacionários podem produzir movimentos muito fortes da carteira do setor privado, entre títulos indexados e não indexados, o que pode aprofundar o spread negativo. Esta é a razão pela qual o circuito financeiro é uma fonte de avaliação da riqueza, uma vez que esse spread negativo é apropriado pelos especuladores financeiros.

PALAVRAS-CHAVE:
Dívida pública; crédito; inflação

ABSTRACT

We provide here a model that attempts to explain how the financial circuit in Brazil became an outstanding locus of wealth valuation. It shows that its special character is due to a peculiar institutional arrangement that allows the public sector - the main financial agent - to operate with negative spread. Then, inflationary shocks can produce very strong movements of private sector portfolio, between indexed and non-indexed bonds, which can deepen the negative spread. This is the reason why the financial circuit is a source of wealth valuation, since this negative spread is appropriated by the financial speculators.

KEYWORDS:
Public debt; credit; inflation

I.

A especulação financeira no Brasil tem chamado a atenção de vários economistas. O giro da dívida pública tem sido identificado com esse movimento especulativo, batizado com o inspirado e pouco sugestivo nome de “ciranda financeira” como se - à semelhança da serpente mitológica Ourobouros - não tivesse começo ou fim. É, contudo, raro encontrar algum texto que explique analiticamente de forma detalhada como se gera tal especulação e como o circuito financeiro se torna um locus privilegiado de valorização da riqueza. De maneira geral, a maioria das análises a esse respeito se limita a deblaterar contra a especulação financeira, acusando-a de aceleradora da inflação a indutora do endividamento externo sem, no entanto, explicitar os nexos causais entre esses fenômenos. Uma exceção à regra pode se encontrar em alguns textos de Adroaldo Moura da Silva, em particular seu Intermediação financeira no Brasil. O objetivo desta nota é tentar formalizar o conteúdo de algumas observações desse autor acerca do processo especulativo em torno da dívida pública (aqui entendida em seu sentido mais lato, não apenas como os títulos da dívida pública, mas igualmente os depósitos na caderneta de poupança e na resolução 432).

O modelo está baseado na hipótese de que o Estado (o principal agente financeiro no país) opera com spread negativo, isto é, capta recursos pagando taxas reais de juros e os repassa a taxas negativas de juros através do complexo de créditos seletivos operado pelas autoridades monetárias e pelos empréstimos do BNH e BNDES. Além disso, supomos que o sistema de intermediação financeira seja marcado pela convivência de três subsistemas de contratos: (i) o subsistema de contratos reais (pós-fixados), cuja unidade de conta é a UPC; (ii) o subsistema de contratos nominais (pre-fixados), denominados em moeda de curso forçado; e (iii) o subsistema de contratos cambiais, denominados em moeda estrangeira, geralmente o dólar norte-americano. Esta forma de organização institucional gera impactos bastante específicos sobre o modo de funcionamento do aparelho de intermediação financeira. Deixando de lado, por enquanto, algumas das características particulares do subsistema de contratos cambiais, podemos agregá-lo, em virtude de suas semelhanças, ao subsistema de contratos reais, o que caracterizaria um sistema financeiro dual.

Um sistema dessa espécie possui uma característica peculiar quanto ao modo de funcionamento, que advém do que poderíamos denominar “custo de transação”. Com efeito, num sistema (nominal) unificado, a proteção contra aceleração do processo inflacionário se dá mediante a troca de ativos financeiros por ativos físicos, o que envolve riscos de perdas de capital associados a modificações de preços relativos e, consequentemente, da taxa de retorno destes ativos.1 1 Cf. KEYNES, J. M. A teoria geral da empresa, dos juros e da moeda. São Paulo, Abril Cultural, 1983, cap. 17. Assim, a tentativa de fuga dos ativos financeiros para os ativos físicos quando da aceleração da inflação mantém associado um elevado custo de transação, visto que à aceleração inflacionária normalmente estão ligadas modificações importantes na estrutura de preços relativos (isto é, dispersão das taxas setoriais de “inflação”). Em contraste, num sistema dual é muito menos custoso tentar escapar à perda de capital provocada pela aceleração da inflação, evitando reter ativos denominados em moeda corrente em favor daqueles contratados em termos reais, que têm garantia de render a média das “inflações” setoriais, independentemente da sua dispersão.2 2 Há aqui, portanto, uma hipótese implícita de que os agentes são avessos a risco, preferindo garantir a média a apostar na variância, pelo menos para inflação relativamente elevada. “Desta forma, a velocidade de ajuste via transferência de fundos entre setores é maior num sistema dual do que num unificado”3 3 SILVA, A. M. Intermediação financeira no Brasil, São Paulo, IPE-USP, 1979, p.69. . É este fenômeno que compromete a estabilidade do sistema, conforme exporemos com mais detalhes no modelo. Paradoxalmente, a flexibilidade de preços e a velocidade do ajuste são os elementos instabilizadores do modo de operação do sistema financeiro que se encontram por trás do processo especulativo que teremos oportunidade de discutir mais à frente. Tal instabilidade é, pois, oriunda da “coexistência de contratos nas duas unidades de conta e [da] incerteza quanto à conversibilidade futura [entre as duas modalidades de contratos]”4 4 SILVA, A. M. “Evolução recente da economia brasileira”, Estudos Econômicos 9(3), p.35, nota 9, 1979. .

Ora, o funcionamento dessa estrutura gera uma situação complexa para a fixação da estrutura de taxa de juros na economia. Pelo lado da captação, a predominância de poupança financeira contratada em termos reais - com remuneração mínima real garantida dada pela caderneta de poupança (6% ao ano acima da correção monetária) - implica um piso mínimo de taxa de juros para a captação do sistema de contratos denominados em moeda corrente. Isso beneficia a captação oficial e estabelece um piso de taxa de juros que pode ser elevada em relação à eficiência marginal do capital, com efeitos adversos sobre o nível do investimento. Do lado da aplicação, a existência de um emaranhado de linhas de crédito seletivo, operado pelas autoridades monetárias, e as manipulações da correção monetária nas operações ativas do BNH e do BNDES abrem a possibilidade efetiva de surgimento do spread negativo. Isso define um sistema financeiro instável, sujeito às flutuações da taxa de inflação e que se toma mais complexo quando se admite a possibilidade de endividamento externo. Para ilustrar o processo, desenvolveremos aqui um modelo simples, que busca reproduzir de forma bastante estilizada as linhas gerais da instabilidade financeira.

II.

Vamos supor um sistema financeiro cuja riqueza Wn esteja alocada entre dois tipos de títulos: (a) um título pós-fixado com taxa de juros fixa (caderneta de poupança); e (b) um título prefixado (CDB). As taxas (instantâneas) de rentabilidade nominal desses títulos são, respectivamente, dadas por:

r p = i p + p (1)

r F = i F + z + p * (2)

onde i é a taxa real de juros, p representa a taxa efetiva de inflação, p* denota a taxa esperada de inflação e z representa um adicional de risco, tal que E(z) - 0, presente nos títulos prefixados, sem o qual a demanda por eles seria nula.

A taxa de inflação esperada p*, que governa o rendimento nominal dos títulos denominados em moeda corrente, é definida como a média das expectativas individuais de inflação p*j, que supomos se distribuírem como uma normal com média p* e variância s2

p * = 1 n j p j * (3)

p j * ~ N p * , s 2 (4)

Supõe-se que o desvio-padrão da inflação esperada, s, seja uma função crescente da aceleração da inflação, ou seja, a dispersão das expectativas quanto à inflação futura aumenta quando a inflação corrente se acelera, na forma:

s = f d p / d t , f ' > 0 (5)

Supomos igualmente que a taxa real de juros esteja institucionalmente fixada pela taxa de remuneração real do título pós-fixado.5 5 Tal hipótese é mais forte do que seria necessário para descrever o processo de instabilidade financeira, mas tem a vantagem de simplificar enormemente o modelo. A rigor, segundo Silva, deveríamos supor alternativamente que o mecanismo de ajuste da taxa nominal de juros seja suficientemente lento, de forma que o processo que estamos descrevendo possa ocorrer. Em suas palavras: “É importante ter em mente que ao momento em que sobe a taxa de inflação não há nenhum mecanismo automático que identifique a taxa de juros nominal que permita manter a constância do preço relativo entre os dois setores [contratos nominais e reais]. A dispersão das expectativas convergirá ou não para uma taxa de juros que reflita a média das expectativas e eventualmente para uma taxa de conversibilidade de equilíbrio através de operações efetivas no mercado nominal. Ou seja, não há nenhum leiloeiro que ‘faça o preço’, ele surge de um processo de tentativas e erros que podem envolver perdas e ganhos de capital.” SILVA, Intermediação financeira no Brasil, op.cit., p.72 (grifos no original).

i F = i p = i (6)

Nesse caso, a percepção individual da taxa de juros real do título prefixado é dada por:

i F j = i + p * - p * j (7)

Logo, a esperança e a variância dessas taxas individuais de juros são expressas respectivamente por:

E i F j = i (8)

V a r i F j = s 2 (9)

ou seja, a taxa real de juros individualmente percebida do título prefixado distribui-se de acordo com uma normal com média i e variância s2 (caso, obviamente, as covariâncias duas a duas sejam nulas).

i F j N i , s 2 (10)

Podemos supor que a demanda por títulos prefixados seja uma função crescente da remuneração real e decrescente do risco inflacionário, ao qual associaremos s.

q F D = h i , s = h i , f d p / d t ; h 1 > 0 , h 2 < 0 q F D = H i , d p / d t , H 1 > 0 ; H 2 < 0 (11)

ou seja, a demanda por títulos prefixados está negativamente associada à aceleração da inflação. Graficamente, v. Figura 1.

Figura 1

Quanto à oferta de títulos prefixados (ou demanda por crédito concedido a taxas de juros denominadas em moeda corrente), supõe-se que seja função decrescente da taxa real de juros e crescente do risco inflacionário. A suposição de função crescente se deve a que os tomadores tendem a fugir dos créditos pós-fixados (devido ao risco de insolvência) e buscam crédito prefixado à medida que a inflação se acelera. Além disso, ao menos no curto prazo, à aceleração inflacionária está associada redução nos salários reais e consequente elevação nas margens de lucro para o conjunto das empresas. Isso deve induzir a um fortalecimento de suas expectativas quanto à sua futura capacidade de pagamento desses créditos prefixados. A rigor, tal hipótese seria desnecessária para os resultados finais do modelo, bastando que a demanda por crédito nominal fosse, ou independente da aceleração da taxa de inflação, ou mesmo negativamente afetada, desde que fosse menos sensível à aceleração da inflação que a demanda por títulos prefixados.6 6 Isso será explicado em detalhes na próxima nota. Matematicamente:

q F S = g i , s = g i , f d p / d t , g 1 < 0 ; g 2 > 0 q F S = G i , d p / d t ; G 1 < 0 , G 2 > 0 (12)

Figura 2

Admitindo partir de uma situação inicial de inflação estável (e relativamente baixa) dp/dt = 0, na qual a demanda e oferta de títulos prefixados estejam em equilíbrio, podemos examinar o efeito de uma aceleração inflacionária (dp/dt > 0) sobre o equilíbrio do sistema e sua peculiar forma de ajuste. Graficamente:

Figura 3

Quando a inflação se acelera, temos como resultado um excesso de oferta de títulos (ou excesso de demanda por crédito) no subsistema de contratos nominais (qs F - qb F > 0), ou seja, há uma crise de liquidez neste subsistema.7 7 Observe-se que a existência desta crise de liquidez independe da hipótese quanto à oferta de títulos prefixados ser função crescente do risco inflacionário. Caso fosse independente desse risco, teríamos: ou seja, (qSF - qDF) > 0, como em nossa hipótese original. Caso a demanda por crédito prefixado fosse negativamente associada ao risco inflacionário (devido ao risco de insolvência), mas de forma menos sensível que a demanda por títulos prefixados, o resultado seria: ou seja, qSF - qDF, o mesmo resultado anterior. Cabe agora examinar como se dá o ajuste a este desequilíbrio nos quadros de sistema de intermediação financeira como o que descrevemos acima.

Como já vimos, o total de riqueza financeira Wn se reparte entre títulos pre-fixados e pós-fixados.

W n = q F D + q P D = q F S + q P S (13)

Dada a característica específica do sistema financeiro dual quanto à velocidade de ajuste dos fluxos de fundos entre os subsistemas real e nominal, podemos supor que a aceleração da inflação não promove transferência de riqueza financeira para ativos físicos, mas apenas de um setor para outro. Supomos, pois, que a riqueza financeira é fixa wn = Wn8 8 Estamos isolando por meio desta hipótese o mercado de ativos financeiros dos demais mercados, o que configura nosso modelo como de equilíbrio parcial. Obviamente todas as ressalvas que se aplicam aos modelos de equilíbrio parcial cabem aqui. , de forma que

q F S - q F D = q P D - q P S (14)

isto é, ao excesso de oferta de títulos no subsistema nominal corresponde um excesso de demanda por títulos no subsistema denominado em UPC. Tal excesso de demanda deveria provocar uma elevação no preço desses títulos e, consequentemente, uma queda em suas taxas de remuneração real, reconduzindo o sistema ao equilíbrio. Isso, contudo, não ocorre em face das especificidades institucionais do aparelho de intermediação financeira.

Quando afirmamos que a taxa de juros do título pós-fixado (caderneta de poupança) é institucionalmente dada, estamos na verdade afirmando que “a instituição emissora de débitos em termos reais não tem nenhum poder nem sobre o total dos débitos contratados, nem sobre o custo ao qual este débito é contratado”9 9 SILVA. Intermediação financeira no Brasil, op.cit., p.73. Ou, ainda, cf. Silva, A. M., “Evolução recente da economia brasileira”, op.cit., p.36, nota [42]. Se as instituições pudessem limitar os depósitos na caderneta de poupança, haveria ágio e consequente queda da taxa de juros. Como não há, no entanto, forma de impedir tais depósitos - no volume que se quer e à taxa de 6% ao ano acima da correção monetária -, dado o arcabouço jurídico-institucional do sistema, o ajuste se dá por quantidades10 10 Por esse motivo, Silva faz um paralelo entre esse processo de ajuste e o imputado a Keynes por Leijonhufvd. Cf. SILVA. Intermediação financeira no Brasil, op.cit., p.75. , convivendo o excesso de fundos no subsistema real com a crise de liquidez no subsistema de contratos nominais.11 11 Este processo de ajuste ilustra bem alguns dos motivos pelos quais as instituições financeiras privadas recusam-se a assumir débitos reais. SILVA. Intermediação financeira no Brasil, op.cit., p.75.

Tal situação não ocorre, contudo, num vazio institucional. A crise de liquidez no subsistema nominal obriga à expansão do crédito subsidiado das Autoridades Monetárias (MAM), bem como dos repasses do BNH e BNDES (MBN), de forma a “salvar” esse subsistema, enquanto o excesso de fundos no subsistema real é captado pelas agências oficiais (B). Logo:

q F S - q F D = d M A M + d M B N + M A M 0 + M B N 0 (15)

q P D - q P S = d B + B 0 (16)

O Estado passa, portanto, a desempenhar o papel de intermediário financeiro final entre os subsistemas, o que se expressa (como veremos) num duplo fenômeno: o crescimento da dívida pública junto aos bancos (por enquanto expressa por dB) e do endividamento bancário junto ao Bacen e agências oficiais. Como, no entanto, a captação do Estado se dá a taxas positivas de juros e sua aplicação é feita a taxas negativas, temos este agente operando com spread negativo, conforme destacávamos anteriormente.

Admitamos agora a possibilidade de entrada de recursos externos para o setor privado (inclusive estatais) CSP, a existência de um título público (OTN, BTN ou mesmo LFT), denotado por L, cuja taxa de juros é igual à do título pós-fixado, e a possibilidade de “aplicação” (isto é, pagamento antecipado das dívidas designadas em dólar) na resolução 432 K432.12 12 Uma vez que admitimos fluxo internacional de capitais, nossa hipótese de taxa de juros institucionalmente fixada toma-se ainda menos forte. Ao invés de considerarmos a taxa doméstica de juros como fixa, apenas consideramos que ela não pode ser inferior à taxa internacional de juros.

Se há possibilidade de endividamento externo, parte dos recursos necessários para manter a solvabilidade do subsistema nominal pode provir dessas fontes. Logo, a equação (15) pode ser transformada em:

q F S - q F D = d M A M + d M B N + E d C S P + M A M 0 + M B N 0 + E C S P (15’)

onde E é a taxa nominal de câmbio e dCsP é o fluxo de endividamento externo no período. Também a equação (16) se modifica com a entrada dos depósitos na resolução 432:

q P D - q P S = d B + d L + d K 432 + B 0 + L 0 + K 432 0 (16’)

Examinemos, então, o impacto do funcionamento deste sistema sobre as contas de expansão monetária. Pela identidade (simplificada) do Balanço de Pagamentos, sabemos que:

d R = X - Q - r * C + r * R + d C (17)

onde

R = reservas internacionais

X= exportações de bens e serviços não-fatores

Q = importações de bens e serviços não-fatores

r* = taxa nominal de juros externa

C = dívida externa bruta

Dessa maneira, o impacto do setor externo sobre as contas de expansão monetária S seria então dado por:

S = E X - Q - r * C + r * R + d C (18)

Contudo, no Brasil, parte das operações com o setor externo é conduzida diretamente pelas autoridades monetárias e não afeta o estoque de moeda. Por exemplo, um empréstimo externo tomado pelo Bacen implica necessariamente um aumento em seus ativos (no caso, reservas internacionais), mas também de seu passivo não-monetário, de sorte que não há emissão de base (dH = 0). Da mesma forma, os juros sobre tais empréstimos são pagos sem envolver recolhimento em moeda nacional, já que o devedor é o próprio Bacen. Para determinar o impacto do setor externo sobre a base monetária, é necessário descontar da variação das reservas as operações conduzidas pelo Bacen13 13 Note-se que aqui os movimentos de saque e depósito na resolução 432 não estão sendo considerados como operações do setor externo, sendo introduzidas apenas mais adiante. (endividamento externo dCAM e pagamento de juros externos r*CAM).

d R = X - Q - r * C A M - r * C S P + r * R + d C A M + d C S P (17)

S = E d R + r * C A M ' - d C A M , onde C A M ' = C A M - R (19)

ou S = E X - Q - r * C S P + d C S P (19’)

Nesse caso, o déficit de caixa do Bacen, idêntico à emissão de base dH e títulos dL, é dado por:

d H + d L = S + r p L + G - T + d M A M - d K 432 (20)

onde L = estoque de dívida pública

(G - T) = déficit primário (exceto juros)

d H + d L = E X - Q - r * C S P + r P L + G - T + d M A M + E d C S P - d K 432 (21)

Se supusermos equilíbrio nas transações correntes ((X-Q) - r·csr = 0) e equilíbrio orçamentário ((G - T) + rrL = 0), ainda assim podemos ter endividamento externo associado à dinâmica da instabilidade financeira expressa nas equações (15) e (15’). E mais, a tal endividamento externo - dada uma meta de expansão monetária dH - está associado um endividamento interno positivo, assim como estatização da dívida externa privada, dados por:

d L + d K 432 = q F S - q F D - d M B N - d H - M A M 0 + M B N 0 + E C S P 0 (22)

cuja origem é puramente financeira, motivada pela fragilidade institucional do aparelho de intermediação financeira em face da aceleração da inflação.

Como a contrapartida do endividamento interno14 14 Aqui entendida em seu sentido mais lato, como não só crescimento da dívida pública interna dlL, mas também as cadernetas de poupança (passivo do SFH) e os fundos de poupança compulsória (ausentes do modelo). (isto é, da captação do governo), realizado a juros positivos, são os créditos subsidiados do Bacen e repasses do BNH e BNDES, tudo se passa como se o Tesouro financiasse a aquisição de suas próprias obrigações financeiras com spread negativo15 15 Cf. SILVA, Intermediação financeira no Brasil, op.cit., p.94. , o que representa uma substancial transferência de recursos financeiros para os setores bem-posicionados junto ao sistema de crédito seletivo e repasses.

III.

Numa visão bastante estilizada do processo, podemos dizer que tudo se passa como se o setor privado tomasse dinheiro a taxas subsidiadas do governo e se endividasse no exterior para aplicar na dívida pública governamental, isto é, títulos públicos e caderneta de poupança, apropriando-se do spread negativo, pago em última análise pelo próprio Estado. Dessa forma, o circuito financeiro se torna um locus privilegiado de valorização da riqueza, cuja contrapartida é uma deterioração acentuada das finanças públicas, já que o Tesouro é quem financia esta órbita privilegiada. Mesmo na ausência de entrada de recursos externos, é fácil ver que o esquema acima descrito ainda se mantém. Mostramos, dessa forma, como a má conformação institucional do aparelho de intermediação financeira, em particular diante de sua resposta à aceleração inflacionária, pode gerar o movimento especulativo apelidado de “ciranda financeira”. Ao contrário do que o termo indica, não se trata de um círculo fechado, mas tem suas origens nas disfunções do sistema financeiro.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • KEYNES, J.M. (1983) A teoria geral do emprego dos juros e da moeda. São Paulo, Abril Cultural.
  • SILVA, A.M. (1979) “Evolução recente da economia brasileira”, Estudos Econômicos, vol. 9, no. 3.
  • SILVA, A.M. (1979) Intermediação financeira no Brasil. São Paulo, IPE-USP.
  • 1
    Cf. KEYNESKEYNES, J.M. (1983) A teoria geral do emprego dos juros e da moeda. São Paulo, Abril Cultural., J. M. A teoria geral da empresa, dos juros e da moeda. São Paulo, Abril Cultural, 1983, cap. 17.
  • 2
    Há aqui, portanto, uma hipótese implícita de que os agentes são avessos a risco, preferindo garantir a média a apostar na variância, pelo menos para inflação relativamente elevada.
  • 3
    SILVASILVA, A.M. (1979) Intermediação financeira no Brasil. São Paulo, IPE-USP., A. M. Intermediação financeira no Brasil, São Paulo, IPE-USP, 1979, p.69.
  • 4
    SILVASILVA, A.M. (1979) “Evolução recente da economia brasileira”, Estudos Econômicos, vol. 9, no. 3., A. M. “Evolução recente da economia brasileira”, Estudos Econômicos 9(3), p.35, nota 9, 1979.
  • 5
    Tal hipótese é mais forte do que seria necessário para descrever o processo de instabilidade financeira, mas tem a vantagem de simplificar enormemente o modelo. A rigor, segundo Silva, deveríamos supor alternativamente que o mecanismo de ajuste da taxa nominal de juros seja suficientemente lento, de forma que o processo que estamos descrevendo possa ocorrer. Em suas palavras: “É importante ter em mente que ao momento em que sobe a taxa de inflação não há nenhum mecanismo automático que identifique a taxa de juros nominal que permita manter a constância do preço relativo entre os dois setores [contratos nominais e reais]. A dispersão das expectativas convergirá ou não para uma taxa de juros que reflita a média das expectativas e eventualmente para uma taxa de conversibilidade de equilíbrio através de operações efetivas no mercado nominal. Ou seja, não há nenhum leiloeiro que ‘faça o preço’, ele surge de um processo de tentativas e erros que podem envolver perdas e ganhos de capital.” SILVA, Intermediação financeira no Brasil, op.cit., p.72 (grifos no original).
  • 6
    Isso será explicado em detalhes na próxima nota.
  • 7
    Observe-se que a existência desta crise de liquidez independe da hipótese quanto à oferta de títulos prefixados ser função crescente do risco inflacionário. Caso fosse independente desse risco, teríamos:
    ou seja, (qSF - qDF) > 0, como em nossa hipótese original. Caso a demanda por crédito prefixado fosse negativamente associada ao risco inflacionário (devido ao risco de insolvência), mas de forma menos sensível que a demanda por títulos prefixados, o resultado seria:
    ou seja, qSF - qDF, o mesmo resultado anterior.
  • 8
    Estamos isolando por meio desta hipótese o mercado de ativos financeiros dos demais mercados, o que configura nosso modelo como de equilíbrio parcial. Obviamente todas as ressalvas que se aplicam aos modelos de equilíbrio parcial cabem aqui.
  • 9
    SILVA. Intermediação financeira no Brasil, op.cit., p.73. Ou, ainda, cf. Silva, A. M., “Evolução recente da economia brasileira”, op.cit., p.36, nota [42].
  • 10
    Por esse motivo, Silva faz um paralelo entre esse processo de ajuste e o imputado a Keynes por Leijonhufvd. Cf. SILVA. Intermediação financeira no Brasil, op.cit., p.75.
  • 11
    Este processo de ajuste ilustra bem alguns dos motivos pelos quais as instituições financeiras privadas recusam-se a assumir débitos reais. SILVA. Intermediação financeira no Brasil, op.cit., p.75.
  • 12
    Uma vez que admitimos fluxo internacional de capitais, nossa hipótese de taxa de juros institucionalmente fixada toma-se ainda menos forte. Ao invés de considerarmos a taxa doméstica de juros como fixa, apenas consideramos que ela não pode ser inferior à taxa internacional de juros.
  • 13
    Note-se que aqui os movimentos de saque e depósito na resolução 432 não estão sendo considerados como operações do setor externo, sendo introduzidas apenas mais adiante.
  • 14
    Aqui entendida em seu sentido mais lato, como não só crescimento da dívida pública interna dlL, mas também as cadernetas de poupança (passivo do SFH) e os fundos de poupança compulsória (ausentes do modelo).
  • 15
    Cf. SILVA, Intermediação financeira no Brasil, op.cit., p.94.
  • *
    Agradeço aos comentários de Francisco Anuatti Neto, Luiz Fernando Eleutério Lopes, Márcio lssao Nakane e Reynaldo Fernandes, que evitaram muitos equívocos e contribuíram com sugestões. Desnecessário dizer, a responsabilidade pelos erros remanescentes cabe integralmente ao autor.
  • 16
    JEL Classification: H63.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Jun 2023
  • Data do Fascículo
    Oct-Dec 1992
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