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Economia e retórica: o capítulo brasileiro

Economics and rhetoric: the Brazilian chapter

Resumo

Considering the rise of the discussion about the rhetoric of economics at the beginning of the 1980's, the paper aims to show: 1) the relation between the origin of this issue in the academic field and the ascension of the so labeled "neoliberalism" as a doctrine and a collection of capitalist practices perceived at the same time; and 2) the consequences produced by this idea, overseas born, when it meets a peripherical reality like the Brazilian one. In the first case, we are going to show the importance of Hayek's reflections about the inadequateness of neoclassical discourse to the aim of ideologically legitimate the market society. In the second we are going to point out that, taking the consequences of the rhetoric project in Brazil, it can be seeing as an additional chapter of "the ideas out of its place" that comes marking the Brazilian history of the ideas.

rhetoric; economics; Hayek; neoliberalism; peripherical capitalism


rhetoric; economics; Hayek; neoliberalism; peripherical capitalism

ARTIGO

Economia e retórica: o capítulo brasileiro

Economics and rhetoric: the Brazilian chapter

Leda Maria Paulani

Professora do Departamento de Economia da FEA/USP. E-mail: paulani@uol.com.br

ABSTRACT

Considering the rise of the discussion about the rhetoric of economics at the beginning of the 1980's, the paper aims to show: 1) the relation between the origin of this issue in the academic field and the ascension of the so labeled "neoliberalism" as a doctrine and a collection of capitalist practices perceived at the same time; and 2) the consequences produced by this idea, overseas born, when it meets a peripherical reality like the Brazilian one. In the first case, we are going to show the importance of Hayek's reflections about the inadequateness of neoclassical discourse to the aim of ideologically legitimate the market society. In the second we are going to point out that, taking the consequences of the rhetoric project in Brazil, it can be seeing as an additional chapter of "the ideas out of its place" that comes marking the Brazilian history of the ideas.

Key-words: rhetoric; economics; Hayek; neoliberalism; peripherical capitalism.

JEL Classification: A11; A12; B41.

A despeito de não ter sido o primeiro a lidar com essas questões — há um texto de Willie Henderson, sobre a metáfora na economia, publicado em 1982 (Backhouse, 1998:419) —, a discussão sobre retórica e ciência econômica popularizou-se de vez com o artigo de D. McCloskey, The Rethoric of Economics, publicado no Journal of Economic Literature, em 1983. As frases bombásticas de McCloskey (1983:508) — "a ciência econômica é literatura", "a forma de argumentação dos economistas não é muito distinta do método empregado por Cícero e Homero em seus discursos e novelas", "a metáfora não é um substituto às vezes utilizado para o significado, ela é o próprio significado" — tiveram um impacto enorme na cidadela dos economistas, ainda que não tenham tido nenhum impacto no andamento corrente de seu ofício acadêmico, a não ser, como era de se esperar, a criação de mais um nicho especializado de discussão. Uma pergunta que fica no ar é: por que esse assunto aterrizou na ciência econômica no início dos anos 80? O objetivo do presente texto é mostrar: 1) a relação que existe entre o surgimento dessa discussão nos meios acadêmicos de economia e a ascensão do assim chamado "neoliberalismo" enquanto doutrina e a coleção de práticas capitalistas verificada na mesma época; e 2) os desdobramentos que produz esse tipo de idéia, nascida além-mar, ao encontrar uma realidade econômica periférica como a brasileira. No primeiro caso mostraremos a importância das considerações de Hayek sobre a inadequabilidade do discurso de corte neoclássico para o objetivo de legitimar ideologicamente a sociedade de mercado. No segundo caso indicaremos que, analisados os desdobramentos do projeto retórico no Brasil, ele pode ser considerado como mais um capítulo das idéias fora do lugar, que vêm marcando a história do ideário brasileiro.

NEOLIBERALISMO, PÓS-MODERNISMO E RETÓRICA NA ECONOMIA

Como se sabe, do ponto de vista de seu conteúdo, o assim chamado neoliberalismo não constitui propriamente uma teoria, conformando tão-somente um conjunto de regras de condução da política econômica prescritas para que o mercado, tendo seu lugar de direito usurpado pelo Estado ao longo dos "30 anos dourados", seja nele recolocado. Seu feitio é, portanto, essencialmente prescritivo. Mas por que tem ele esse perfil? Para responder essa questão é preciso recuperar brevemente a história dessa doutrina.

Depois da desastrosa experiência da crise de 29, vai ganhando força uma prática intervencionista do Estado que encontra sua matriz teórica na Teoria Geral do Emprego do Juro e do Dinheiro, que Keynes publica em 1936. Cria-se, com isso, uma espécie de consenso a respeito da necessidade de uma certa regulação externa ao próprio sistema, que soma, à perda de espaço social já experimentada concretamente pelo liberalismo, um adversário teórico à altura da ortodoxia neoclássica.

Na etapa que então se inicia, o mercado tem papel inegavelmente importante, mas não menos importantes são o Estado, o planejamento, as políticas públicas. Tudo se passou como se, depois de algumas grandes crises, e duas guerras mundiais, o Ocidente tivesse finalmente encontrado o ponto de equilíbrio entre os resultados da estreita bitola do mercado, de um lado, e a imperiosa (iluminista?) necessidade de rearranjá-los, de outro. As idéias implícitas no referido consenso encontraram seu habitat natural no estado do bem-estar social, no controle keynesiano da demanda efetiva e na regulação fordista do sistema1 1 No mundo subdesenvolvido, particularmente na América Latina, esse mesmo espírito, em contato com a realidade diferenciada que aí existia, tomou a forma do desenvolvimentismo. Apoiado fundamentalmente nas idéias cepalinas, o desenvolvimentismo percebia a necessidade de que o Estado, mais do que controlador de demanda efetiva, atuasse como alavanca dos investimentos necessários para que essas economias superassem o estágio atrasado em que se encontravam. Completando o conjunto de "realidades" que contribuíam para a manutenção desse espírito, em quase tudo contrário às máximas liberais, o então chamado "segundo mundo" também fazia sua parte, já que uma economia inteiramente planejada parecia forte o suficiente para desafiar e intimidar a maior economia capitalista do planeta. e o capitalismo deslanchou tranqüilo por três décadas, crescendo de modo sustentado em todo esse período. Nesse contexto, advogar a redução da presença do Estado ou insistir no caráter virtuoso do mercado era quase uma heresia. Os liberais estavam então completamente na defensiva.2 2 Uma das teses mais instigantes sobre o significado desse período foi elaborada por Francisco de Oliveira. Resumidamente se poderia denominá-la como a tese do "surgimento do antivalor". Para ele, ao longo dos anos dourados do capitalismo, o chamado Welfare State, oriundo das políticas keynesianas anticíclicas, constituiu-se no padrão de financiamento público da economia capitalista. Nesse novo padrão, o fundo público, funcionando numa esfera pública estruturada a partir de regras universais e pactadas, passa a ser o pressuposto do financiamento da acumulação de capital assim como o pressuposto do financiamento da reprodução da força de trabalho. Esse novo arranjo institucional teria operado "uma verdadeira revolução copernicana nos fundamentos da categoria do valor como nervo central tanto da reprodução do capital quanto da força de trabalho". Levado às últimas conseqüências, continua Francisco de Oliveira, "o padrão do financiamento público 'implodiu' o valor como único pressuposto da reprodução ampliada do capital, desfazendo-o parcialmente enquanto medida da atividade econômica e da sociabilidade em geral" (1998:27). O caráter "radical" da tese é indicação inequívoca da magnitude das mudanças operadas no funcionamento do sistema a partir do pós-guerra. A reviravolta que começa em meados dos 70, e que vai tirar os (neo)liberais da defensiva para colocá-los na posição oposta, funcionou então, para parafrasear Francisco de Oliveira, como uma espécie de "vingança do valor". A partir de então não só a atividade econômica volta a ser inteiramente dominada por seus imperativos, como também a sociabilidade vai ficando inteiramente submetida a suas exigências.

No entanto, é nesse ambiente, que, logo após o término da segunda guerra, nasce o neoliberalismo. Segundo Perry Anderson (1995), trata-se de uma reação teórica e política veemente contra o Estado intervencionista e de bem-estar, não apenas aquele em acelerada construção na Europa do pós-guerra, mas também aquele que implementara o New Deal americano. Hayek é o protagonista desse ataque apaixonado contra qualquer limitação dos mecanismos de mercado por parte do Estado, para ele uma ameaça letal não só à liberdade econômica como também à política. O Caminho da Servidão, que ele publicara em 1944, transforma-se numa espécie de bíblia da nova doutrina3 3 Segundo Anderson, no referido livro, o alvo imediato de Hayek era o Partido Trabalhista inglês, às vésperas da eleição geral de 1945 (que ele de fato venceria). Hayek é implacável e sentencia: "Apesar de suas boas intenções, a social-democracia moderada inglesa conduz ao mesmo desastre que o nazismo alemão — uma servidão moderna" (Hayek, apud Anderson, 1995:9). e Hayek torna-se, ao final dos anos 40, o centro de um grupo de intelectuais afinados com essas idéias.

Na certidão de nascimento do movimento, o ano de registro é 1947, ocasião em que Hayek convoca, para uma reunião em Mont Pèlerin (Suiça), aqueles que compartilhavam seu credo. Dentre os que acorreram ao chamado, encontravam-se Milton Friedman, Karl Popper, Lionel Robbins e Ludwig Von Mises. O propósito da Sociedade de Mont Pèlerin era "combater o keynesianismo e o solidarismo reinantes e preparar as bases para um novo capitalismo no futuro, um capitalismo duro e livre de regras" (Anderson, 1995:10). Para esses crentes nas inigualáveis virtudes do mercado, o igualitarismo promovido pelo estado do bem-estar destruía a liberdade dos cidadãos e a vitalidade da concorrência, da qual dependia a prosperidade de todos.

Não por acaso é Hayek o principal personagem desta recriação do liberalismo. Considerações como essas radicam numa concepção de individualismo marcadamente distinta daquela que embasava a teoria neoclássica. Em seus escritos de meados dos anos 30, Hayek havia elaborado uma crítica arrasadora àquilo que ele chama de "falso individualismo" que, para ele, está na base das construções neoclássicas. Retomando seu argumento, o único antídoto possível contra teorias que deduzem a ação individual a partir da apreensão de estruturas sociais autônomas seria a explicação dos resultados sociais em termos das ações individuais e isso era precisamente o que a economia neoclássica não fazia. Com seu "individualismo racionalista", como Hayek o denomina, e com seu pressuposto acerca do conhecimento objetivo dos fatos (informação perfeita), a teoria neoclássica estaria reduzindo todos os indivíduos, por particulares que fossem suas específicas situações, a átomos de comportamento idêntico e previsível. Sendo assim, o ótimo social (equilibrado e eficiente) podia ser então a priori desenhado, e, o pior de tudo, acabava por retirar do indivíduo a primazia que ele devia ter como fonte por excelência da ação.4 4 "O verdadeiro individualismo é a única teoria capaz de tornar compreensível a formação de resultados sociais espontâneos. E, enquanto as teorias planejadoras levam necessariamente à conclusão de que os processos sociais só podem ser postos a serviço de fins humanos se forem submetidos ao controle da razão humana, e assim levam direto ao socialismo, o verdadeiro individualismo acredita, ao contrário, que se deixados livres, os homens freqüentemente obtêm um resultado melhor do que a razão humana possa planejar ou prever." (Hayek, 1948a: 10-1).

Para as convicções liberais de Hayek, essa conclusão era desastrosa e precisava ser questionada. Além dos maus resultados do "debate sobre o cálculo socialista", a flagrante derrota que em pouco tempo o keynesianismo impusera ao paradigma neoclássico e a importância prática que ganhara na realidade social do pós-guerra certamente fortaleceram em Hayek sua percepção da necessidade de recuperar os princípios liberais que ele via enfraquecidos e desguarnecidos de uma teoria econômica que lhe servisse de fundamento.5 5 A revolução keynesiana jogou por terra por um bom tempo não apenas a teoria neoclássica e seus epígonos. O próprio Hayek teve sua luz ofuscada pelo brilhante sucesso das idéias keynesianas. "Ao longo dos anos 30, a academia inglesa viu Hayek surgir, inicialmente, como uma estrela de primeira grandeza na constelação dos economistas e, posteriormente, terminar a década completamente apagado, ofuscado em grande medida pela avalanche keynesiana. Ao longo desse período, ele conseguiu conquistar corações e mentes de várias gerações de economistas para depois perder pouco a pouco seus mais eminentes seguidores" (Andrade, 1997:176). Assim, ao invés da insistência, contraprodutiva para ele,6 6 "Nossa análise [do equilíbrio], ao invés de mostrar quais informações as diferentes pessoas devem possuir a fim de obter aquele resultado, cai no pressuposto de que todo mundo sabe tudo e, elimina, assim, qualquer solução real para o problema." (1948b:51) na tentativa de demonstrar a capacidade de o mercado atingir o equilíbrio e, mais que isso, o equilíbrio ótimo, tratava-se agora de defendê-lo enquanto única instituição capaz de respeitar a primazia do indivíduo, entendido corretamente este último como particularidade inserida num contexto social cuja totalidade lhe escapa. Neste sentido, qualquer intromissão do Estado torna-se perniciosa e, nessa medida, irracional, pois parte do princípio de que resultados sociais promissores podem ser intencionalmente buscados, o que, para ele é impossível. A defesa do laissez faire torna-se, portanto, a peça chave desta versão "século XX" do liberalismo.

A nova doutrina que Hayek funda, e para a qual atrai os conservadores de seu tempo, prescinde por isso completamente da assim chamada "ciência econômica". O neoliberalismo é, em primeiro lugar, normativo: o mercado deve dominar tudo e o Estado deve ficar reduzido ao papel de preservar as instituições que permitam o funcionamento do primeiro. Em decorrência disso, ele é essencialmente prescritivo, arrolando as medidas que devem ser tomadas para que seja construído (ou reconstruído) esse mundo ideal, completamente organizado pelo mercado. Não há papel aí, portanto, para a "ciência" econômica. A norma que define essa doutrina não decorre da constatação "científica" (que seria em princípio produzida pelo paradigma neoclássico) de que essa sociedade é a melhor possível e/ou de que o mercado é o demiurgo de um processo que maximiza utilidades e lucros e minimiza custos, produzindo o "ótimo social". As pretensões científicas da teoria atrapalham a consecução dos objetivos concretos e práticos da economia capitalista. A ciência não demonstra nem pode demonstrar nada; ela não "prova" que esse mundo é o mais eficiente possível, que nele todos os agentes podem ver realizadas suas pretensões; ela não diz que esse estado de realização mútua de desejos de oferta e demanda é eterno e durará para sempre. A ciência está muda, é desnecessária, mais atrapalha que ajuda. Deste ponto de vista, a ciência econômica torna-se uma espécie de ficção literária que pouca relação tem com o mundo real.

Não é mera coincidência a semelhança dessa conseqüência da era neoliberal com as vertentes pós-modernas que advogam que não há distinção entre o valor de verdade das proposições científicas e o valor de verdade das proposições literárias (caso explícito de McCloskey, no que tange à ciência econômica). O que está na raiz dessa proximidade é o ponto em comum que existe entre aquilo que Habermas denomina pós-modernismo anárquico (desconstrucionismo e relativismo em destaque) e aquilo que ele chama de pós-modernismo conservador, a saber, que ambos despedem-se dos fundamentos autoconscientes da razão que caracterizaram o espírito moderno em sua origem, o primeiro lamentando e o segundo aplaudindo a autonomia conseguida pela objetivação social desse espírito.

Daí, aliás, o caráter dúbio das leituras pós-modernas anarquistas, que são as mais comumente identificadas com o rótulo do pós-modernismo. A despeito de sua aparência, por assim dizer, "radicalmente radical", essas correntes acabam por referendar, por outros caminhos, a mesma objetivação social do espírito da modernidade (o capitalismo contemporâneo) para a qual os conservadores batem palmas abertamente. Eagleton (1998:126-7) coloca bem a questão, apontando a ambigüidade dessas posturas que são, a um só tempo, radicais e conservadoras. Para ele, uma característica marcante das sociedades capitalistas de hoje encontra-se no fato de elas serem, em razão da própria lógica do mercado, "tanto libertárias como autoritárias, tanto hedonistas como repressoras, tanto múltiplas como monolíticas", de modo que os indivíduos surgem como "meros reflexos passageiros" dessa grande rede descentrada de anseios e cobiças, marcada pelo efêmero e pelo descontínuo. Mas, alerta Eagleton, esse sistema, que não tem como acomodar o metafísico de maneira adequada, também não pode simplesmente abrir mão dele.7 7 Contrariando Adorno, Eagleton afirma que "a mercadoria não pode ser a própria ideologia, pelo menos por enquanto" e ironicamente ele completa: "poderíamos imaginar uma fase futura do sistema em que isso seria verdade, em que ele fez um curso em alguma universidade norte-americana, livrou-se dos próprios fundamentos e deixou para trás toda essa história de legitimação retórica. Com efeito, existem aqueles que alegam que é precisamente isso que está em marcha hoje: que a 'hegemonia' não tem mais relevância, que o sistema não se importa se acreditamos nele ou não, que ele não sente necessidade de garantir nossa cumplicidade espiritual, desde que façamos mais ou menos o que ele exige. Ele não tem mais de passar pela consciência humana para se reproduzir, só manter essa consciência em permanente estado de distração e contar, para sua reprodução, com seus mecanismos automatizados. Mas o pós-modernismo pertence, nesse aspecto, a uma época de transição, em que o metafísico, como um fantasma inquieto, não pode nem ressuscitar nem morrer com dignidade. Se ele pudesse deixar de existir, o pós-modernismo sem dúvida morreria com ele" (1998:127-8). Para manter em ação toda a anarquia potencial cevada nas próprias forças do mercado, agora vitaminadas pela aplicação do receituário neoliberal, são necessárias sólidas bases políticas e a insistência nos valores tradicionais. Mas a contradição fica aí instalada, porque "quanto mais esse sistema apela para valores metafísicos para se legitimar, mais suas atividades racionalizantes, secularizantes ameaçam esvaziá-los".

É essa contradição que encontra no discurso pós-moderno um tradutor à altura. O pós-modernismo é radical "na medida em que desafia o sistema que ainda precisa de fundamentos metafísicos e sujeitos auto-idênticos; contra essas coisas ele mobiliza a multiplicidade, a não-identidade, a transgressão, o anti-fundamentalismo, o relativismo cultural". Enquanto encarna esse enfant terrible, ele é rechaçado violentamente pelos homens de negócios, já que, segundo Eagleton, tal postura representa um assalto contra tudo aquilo que esses profissionais mais amam. No nível do mercado, porém, o sujeito autônomo que povoa os sonhos metafísicos daqueles que tocam o andamento da vida material, não lhes serve de nada e constitui um enorme estorvo. O mundo dos shopping centers e da mídia não sobrevive sem pluralidade, fragmentação e efemeridade e sem um espaço para a submissão de toda essa autonomia aos doces encantos do mercado e do consumo. "Muitos profissionais de negócio", continua Eagleton, "são, nesse sentido, pós-modernos naturais". Assim, em sua permanente ambigüidade, o pós-modernismo, por um lado, ataca o sistema com sua própria lógica, mas, por outro, o reafirma e é para ele uma necessidade, funcionando como uma espécie de caixa de ressonância metafísica de suas necessidades anárquicas, agora ainda mais infladas.

Em outras palavras, o pós-modernismo anárquico, ao atentar difusamente contra o sistema, parecendo desafiar a ordem social com sua pregação pela não-identidade, pela transgressão, pelo relativismo, pela desconstrução, serve, ao mesmo tempo e por isso mesmo, para realimentá-lo: a aparência desafia o sistema, para que sua essência possa ser ratificada. Um indivíduo cuja autonomia e independência se reduzem à sua capacidade de escolher a marca e o modelo do boné e da jaqueta que vai vestir para transgredir e desconstruir a ordem instituída, pode ser qualquer coisa, menos o indivíduo efetivamente autônomo dos sonhos da teoria e da metafísica dos "grandes valores" (o Bem, a Razão, a Individualidade). A destruição do indivíduo, sua idiotização, aparece como afirmação incondicional da individualidade na sua capacidade de se impor e até destruir a ordem estabelecida.8 8 A força dessa dubiedade e sua enorme capacidade de fazer o papel ideológico que lhe cabe ficam visíveis no fato de que sua mística leva de roldão intelectuais altamente sofisticados. Senão vejamos: "Meus dois lindos netos estão em Orlando, fazendo o aprendizado de meninos ricos. E eles são muito ricos. Seus quartos competem com qualquer loja de brinquedos de São Paulo. Eles não possuem apenas um exemplar do último boneco importado. Fazem questão de ter todas as modalidades da série (...) No último telefonema lhes perguntei: 'de que estão mais gostando?', e a resposta veio unânime: 'compramos um monte de brinquedos novos' (...) Tudo parece indicar assim que o mundo contemporâneo do consumo deixou de produzir idiotas robotizados". E ainda: "O universo do consumo está passando por um processo de diversificação de tal modo inesperado e fantástico que destrói por completo todos os prognósticos a respeito de sua função e de seu papel alienante (...). As casas se tornam discotecas, videotecas, acervos de cultura para todos os gostos (...).O menino mais pobre da periferia de São Paulo sabe perfeitamente que roupa vestir, que música quer ouvir, a que programa assistir (...)". E finalmente: "Não acredito na estandartização (...). Não acredito nisso (...). Esse pessimismo não se sustenta (...). Você se lembra que todo mundo imaginava que, por causa da comunicação de massa, haveria estandartização. Mas considere a televisão. Veja o número de canais que você pode escolher. Portanto ocorre justamente o contrário".As duas primeiras falas são de José Arthur Giannotti, famoso filósofo brasileiro, em artigo publicado na Folha de S. Paulo de 19/11/1995. A última é de Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente da República (1995-2002), também conhecido como "príncipe dos sociólogos brasileiros", em entrevista à Folha de S. Paulo em 13/10/1996. Essas e outras preciosidades fazem parte do Dicionário de Bolso do Almanaque Philosophico Zero à Esquerda (Petrópolis, Vozes, 1997), compilado por Paulo Eduardo Arantes, as duas primeiras no verbete "O Patriarca e o Bacharel", e a última no verbete "Sacadura Cabral e Gago Coutinho".

Como se viu, pelo caminho oposto, o pós-modernismo anárquico deságua, tanto quanto o pós-modernismo conservador, no mesmo reservatório da ratificação incondicional do capitalismo duro, intransigente e livre de regras que a era neoliberal produziu.9 9 Mas há mais no capítulo da congruência entre conservadorismo e radicalidade pós-moderna e seus vínculos com a doutrina neoliberal. Num ensaio instigante em que mostra as relações entre o pensamento de cada um dos componentes do "mais importante quarteto de teóricos europeus da direita intransigente, cujas idéias agora dão forma (...) a grande parte do mundo mental da política ocidental do final do século XX" — Carl Schmitt, Michael Oakeshott, Leo Strauss e Friedrich von Hayek — Anderson (2002:319-44), mostra que, para Oakeshott, a idéia de governo como uma associação civil baseada no "orgulho da individualidade livre" excluía categoricamente o objetivo coletivo. Sendo assim, ficava no ar a pergunta sobre o que é que motivaria então essa associação, ou seja, por que razão esses orgulhosos indivíduos embarcariam nessa canoa, assinando um contrato com esse état gratuit, uma entidade abstrata desprovida de objetivos. A resposta a que ele chega é que essa associação não é ditada pela virtude, mas apenas "modelada pela linguagem". Segundo o mesmo Anderson, foi Carl Menger quem primeiro defendeu a proposta teórica do benefício das instituições sociais geradas por crescimento espontâneo e "para ilustrar os méritos do mercado, ele o comparou a duas outras invenções humanas, igualmente não planejadas: o direito e a linguagem". Como se sabe, dissolver tudo na linguagem é um dos expedientes prediletos do pós-modernismo anárquico, particularmente em sua versão desconstrucionista. Na seara específica da ciência econômica, é McCloskey, com sua pregação em defesa do "projeto retórico", que vai se encarregar de percorrer esse movimento. Consideremos então a discussão levantada por McCloskey e os acertos que ela involuntariamente produz.

Como já adiantamos, há pelo menos uma espécie de coincidência temporal entre a aplicação efetiva dos princípios pregados pelo duro liberalismo "fundado" por Hayek ao fim da segunda guerra e a eclosão da polêmica sobre a retórica na ciência econômica. É entre meados dos anos 70 e o início dos anos 80 que tudo acontece. Como demonstramos, por conta do predomínio do receituário neoliberal, a própria idéia de uma "ciência econômica" começa a não fazer sentido. A noção tipicamente conservadora, austríaca e hayekiana das virtudes inatas dos sistemas construídos por geração espontânea impregna, mais do que se possa imaginar, o ideário liberal contemporâneo. Com esse tipo de visão não adianta contra-argumentar com as iniqüidades e mazelas que um sistema completamente desregulado inevitavelmente produz: ele é considerado sempre o melhor que se poderia atingir, preservada a sagrada autonomia dos indivíduos. E como os interesses afinados com esse ideário, interesses que marxistas-braudelianos e pós-keynesianos rotulam de "altas finanças", tomaram a dianteira na competição surda que travam desde que o capitalismo é capitalismo com outras formas de acumulação, a exigência universal que se passa a ouvir por toda parte e que ganha contornos de uma objetividade natural que Marx não chegou a conhecer nem em seus piores pesadelos é uma só: mercado, mercado, mercado...10 10 Sobre isso afirma Hobsbawm: "Era, portanto, provável que a moda da liberalização econômica e 'marketização', que dominara a década de 1980 e atingira o pico de complacência ideológica após o colapso do sistema soviético, não durasse muito. A combinação da crise mundial do início da década de 1990 com o espetacular fracasso dessas políticas quando aplicadas como 'terapias de choque' nos países ex-socialistas já causava reconsiderações entre alguns entusiastas (...) Contudo, dois grandes obstáculos se erguiam no caminho de um retorno ao realismo. O primeiro era a ausência de uma ameaça política digna de crédito ao sistema, como antes tinham parecido ser o comunismo e a existência da URSS, ou — de uma maneira diferente — a conquista nazista da Alemanha. Estes (...) proporcionaram o incentivo para que o capitalismo se reformasse. (...) O segundo obstáculo era o próprio processo de globalização, reforçado pela desmontagem de mecanismos nacionais para proteger as vítimas da livre economia global dos custos sociais daquilo que se descrevia orgulhosamente [num editorial do Financial Times de 1993] como 'o sistema de criação de riqueza hoje encarado em toda parte como o mais efetivo que a humanidade já criou'" (1995:552, itálicos meus). Sendo assim, a ciência torna-se uma adereço dispensável (e, na maior parte das vezes, problemático).

Bem feitas as contas, a relação entre neoliberalismo prático e economia teórica é de incompatibilidade. O paradigma que deveria servir-lhe de sustentação teórica acaba por se contradizer, como bem mostra Hayek. Quanto aos demais, ou lhe são absolutamente estranhos, ou o ameaçam. Logo, não há porque procurar sarna para se coçar. O simulacro de teoria macroeconômica apresentada pelos "novos clássicos", mais o serviço prestado pelos assim chamados "novos keynesianos" somam o suficiente para produzir as coordenadas técnicas e os modelos (como os de target inflation) segundo os quais devem operar os gestores das finanças públicas e das políticas monetária e cambial na pilotagem de juros, câmbio e superávits. A política econômica entendida em seu sentido mais amplo não tem mais lugar. Há um deslocamento da ciência pela "técnica", da Economics por uma espécie de Business Administration de Estado, que tem por único objetivo preservar a estabilidade monetária custe o que custar e garantir o "respeito aos contratos".11 11 Ainda que com outros propósitos e referindo-se não à teoria econômica que deveria sustentar cientificamente o sistema, mas, contrariamente, à teoria que mostra suas fraquezas, Eagleton (1998:14) faz uma observação que vai na mesma direção: "Não há sentido em continuar trabalhando a duras penas no Museu Britânico, consumindo montes de teoria econômica indigesta, se o sistema mostra-se simplesmente inexpugnável". Os organismos multilateriais como o FMI e o Banco Mundial ficam encarregados de alcançar esses mesmos objetivos em termos planetários.12 12 É bem verdade que esse movimento tem feições relativamente diferentes no "centro" e na "periferia", se ainda estamos autorizados a utilizar o jargão dos tempos do desenvolvimentismo. Se é idêntica a prevenção contra tudo que tenha qualquer parentesco com o Estado e a louvação de tudo que favoreça o mercado e a "livre iniciativa", a regra da abertura comercial irrestrita, por exemplo, vale mais para a periferia do que para o centro. Da mesma maneira, contrariamente à pobre América Latina, vergastada sob a exigência de descomunais superávits primários, os EUA podem se dar ao luxo de fazer um déficit do tamanho do PIB brasileiro (foi o que aconteceu em 2003). Finalmente, para falar só nas diferenças mais gritantes, o desmonte da rede de proteção social construída ao longo dos 30 anos dourados no centro, particularmente na Europa, não foi tão grande, nem teve tantos efeitos deletérios quanto a desconstrução, na América Latina, de um Estado do bem estar social que mal começava a ser erguido. Mas em qualquer caso trata-se de diferenças de prescrição e de condução prática das políticas de recondução do mercado ao lugar principal que lhe havia sido usurpado. Não é demais observar que o caráter puramente prescritivo do ideário neoliberal e sua difícil vinculação a um corpo teórico que lhe garanta o suporte científico difere muito da relação estreita que havia, na fase anterior, entre as políticas de regulação de demanda e/ou as práticas desenvolvimentistas, de um lado, e a teoria keynesiana, de outro.13 13 No caso da periferia latino americana, as idéias cepalinas, particularmente a deterioração dos termos de troca que Prebisch demonstrara, vieram fornecer o complemento necessário para conferir ao Estado o papel de destaque que aí teve entre o pós-guerra e a chamada crise das dívidas.

Portanto, no contexto do que aqui estamos chamando "era neoliberal", pouco importa o que continua a existir dentro dos muros da academia com o rótulo de "teoria econômica"; são inócuos os debates aí travados, pouco importa quem vence, a cada round, a luta das idéias. Aquilo que aparece como debate "econômico" restringe-se, no mais das vezes, a discussões sobre como pilotar as finanças públicas e os preços macroeconômicos mais importantes, de forma a conduzir, com o maior lucro possível, os negócios correntes.

Assim, se não há mais nenhuma ponte entre o mundo da ciência econômica e o mundo externo, onde se trava a concreta e dura batalha capitalista,14 14 Roger Backhouse (1998:420) lembra o artigo de Bloor e Bloor, de 1993, em que os autores, analisando uma amostra de papers acadêmicos sobre as estratégias de hedge, chegam à interessante conclusão de que "os fatos do mundo real não são centrais para a ciência econômica". Não por acaso, a lembrança de Backhouse encontra-se no verbete Rhetoric do The Handbook of Economic Methodology. o conhecimento dito científico ali produzido, as polêmicas e controvérsias geradas pelos confrontos entre diferentes paradigmas podem perfeitamente, como quer McCloskey, ser vistos como uma "falação", uma conversa, cujo resultado interessa apenas a quem dela participa, um "debate" em que os contendores podem ser grosseiros e gritões ou educados e amantes da Sprachethik, mas cujo evolver é determinado em si e por si mesmo, não por um móvel externo chamado "verdade", não pela busca do desvendamento das relações que efetivamente presidem o comportamento da economia moderna.

Sendo assim, a cara pós-moderna das considerações mccloskeyanas mostra-se perfeitamente adequada para traduzir, pelo menos no que diz respeito à economia, o estado-das-artes da relação entre teoria e realidade, entre ciência e verdade nesta era neoliberal. Encontra-se aí não só o amálgama entre ciência e literatura típico do desconstrucionismo, quanto a verdade relativa de todas as crenças típica do pragmatismo.15 15 Para uma discussão mais detalhada dos diversos e em muitos casos incompatíveis sentidos em que McCloskey usa o termo "retórica", bem como a dificuldade daí surgida para enquadrar metateoricamente suas considerações, vide Paulani (1996) e Paulani (1999). Para completar a receita, a freqüente exortação da Sprachethik oriunda do neoiluminismo germânico como providência absolutamente necessária para aprimorar mais essa "conversação da humanidade". Assim, se McCloskey erra na condução do tema, pois não se sabe muito bem como definir sua exortação em defesa da retórica na ciência econômica, ele acerta sem querer na tradução involuntária que acaba por fazer do estado atual da relação entre ciência positiva e normativa. Em outras palavras, dada a sem-cerimônia com que os valores do mercado são não só apregoados como caninamente defendidos, torna-se desnecessário, para a sua sorte e para a sorte dos interesses a ele atrelados, qualquer verniz científico que atue como disfarce para se tomar uma pela outra. Além do mais, se isso fosse necessário, provavelmente o neoliberalismo como prática não teria o "sucesso" que vem experimentando há quase três décadas, já que, como demonstrou Hayek, o paradigma que deveria servir-lhe de sustentação científica presta exatamente o serviço contrário.

Eis então que a comunidade acadêmica dos economistas pode ficar posta em seu sossego, travando seus debates e disputando suas idéias, usando o método falseacionista ou o (sic) método retórico, estapeando-se ou praticando a Sprachethik. Nada do que acontece nessa cidadela tem qualquer importância que seja para o andamento corrente da vida material do planeta. Acerta McCloskey, portanto, quando identifica a ciência econômica a uma falação, a uma grande conversa, que só interessa a quem dela participa, pois nenhum vínculo tem com o que ocorre extramuros. McCloskey torce para que essa conversação seja mais educada, humana, e para que os economistas sejam mais modestos. Mas não tem nenhuma expectativa quanto aos mundos que seriam construídos caso as idéias dos economistas fossem transformadas em receitas práticas. Atirando no que viu, ou no que sentiu (leia-se, a vaga pós-moderna que tomou de assalto as humanidades a partir dos 70), McCloskey acertou no que não viu. Foi a tradutora involuntária da situação concreta hoje experimentada, em que o comando das economias nacionais, com raras exceções, depende muito mais das burocracias dos bancos centrais e tesouros nacionais e da aplicação de não mais que meia dúzia de regras, do que de um suposto menu de políticas econômicas que produziria resultados distintos a cada mudança de governo promovida pelo processo democrático.

Esse deslocamento da Economics pela Business Administration, que ganha assim uma contraparte estatal, é o responsável, junto com a completa naturalização dos fenômenos econômicos, pela situação aparentemente paradoxal de que sejam hoje economistas os profissionais mais procurados pela mídia para emitir suas opiniões sobre o andamento e as perspectivas da vida material da sociedade. Se o que ocorre no mundo acadêmico não tem rigorosamente nenhuma conseqüência para o dia-a-dia da vida econômica, como se explica isso? A resposta não é difícil de adivinhar. Os supostos economistas atuam aí sempre como "técnicos". Não diferem em nada dos meteorologistas a quem se pergunta sobre o tempo amanhã ou na semana que vem. Mas a ciência não tem nada que ver com isso. Ela tem muito menos importância do que a Meteorologia, que, bem ou mal, ainda que eles errem muito, sustenta as opiniões dos meteorologistas.

Assim, o mundo da ciência econômica pode ser deixado a si mesmo com sua hermenêutica e seus cacoetes. As conseqüências da pregação de McCloskey indicam que temos também aí uma manifestação inequívoca dessa situação. A despeito da acolhida extremamente favorável que teve por parte dos economistas alheios aos mainstream, o trabalho de McCloskey não teve rigorosamente nenhuma conseqüência para o andamento do ofício acadêmico dos economistas, a não ser, como já assinalamos, a criação de mais um nicho especializado de discussão. Os polêmicos debates que gerou não afetaram em nada, nem a forma de se fazer essa ciência na academia, nem sua relação com o mundo externo. Sendo assim, não faz de fato muita diferença entender-se a "produtividade marginal do trabalho", para retomar um exemplo de McCloskey, como uma variável científica que faz parte de um determinado paradigma ou como uma esperta metáfora do discurso neoclássico.16 16 Duayer escreve um artigo/conto muito interessante em que, ao final, fala com criativa ironia da discussão sobre a retórica na Economia. Um professor de Economia está prestes a entrar no Céu. Vai com a consciência tranqüila e confiante de ter lá seu lugar, já que, "jamais em sua atividade profissional envolvera-se com valores ou discutira fins, mas cuidara tão-somente de ensinar assalariadamente os meios mais eficientes para a consecução de fins exteriormente postos" (1998:144). Abruptamente é interrompido por um anjo que lhe mostra estar no caminho errado, sendo o seu o do Inferno. "Entre perplexo e indignado, o cândido professor protestou de tal veredicto, subentendendo, em seu sincero espanto, grave equívoco na sublime ordenação que lhe coubera, pois considerava tremenda injustiça ter de assumir os ônus de eventuais malefícios causados por valores subjacentes à ciência que difundira com raro e profissional zelo[...]" (1998:145). Depois de algumas peripécias que não impedem o personagem de ter de se atirar no fogaréu, Duayer conclui: "assim enleados em definitiva e estonteante indeterminação, o professor, o narrador e o leitor podemos todos, menos o anjo, é claro, buscar guarida na retórica, refúgio tranqüilo, porto seguro, da vertigem provocada pela recente descoberta da textualidade do mundo. Na ausência de chão para ancoragem, paz e sossego somente no seio do consenso, da opinião relevante. Pois, se não há salvação, já que não se pode saber o certo e o errado, o bem e o mal, é mais seguro pecar em grupo. Não qualquer grupo, mas o grupo dos especialistas e de suas instituições, o grupo da ciência normal. Na pior das hipóteses, calhando haver triagem celeste, a companhia no Inferno está garantida" (1998:159).

O CAPÍTULO BRASILEIRO DA RETÓRICA

A despeito da extrema polêmica que gerou, o assim chamado "projeto retórico", resultante das investidas metodológicas de McCloskey, não abalou a forma de os economistas fazerem ciência, nem sua relação com a realidade econômica em si mesma. Contudo, não foram nulos seus desdobramentos "objetivos", ganhando tal projeto duas feições distintas: por um lado, como já assinalamos, criou-se mais um nicho especializado de pesquisa, de modo que passaram a surgir em profusão as chamadas "análises retóricas" dos discursos produzidos pelos economistas (de ontem e de hoje e das mais variadas correntes teóricas);17 17 No Brasil podemos citar: Anuatti (1996); Bianchi e Salviano Jr. (1996); Bianchi e Salviano Jr. (1999); Bianchi (2002); Dib (2003); Gala (2003); Fernández et alii (1997); Fernández e Pessali (2003). Fora do Brasil temos, entre outros: Bazerman (1993); Denton (1988); Galbraith (1988); Mirowski (1987); Warsh (1988); e a própria McCloskey (1994). por outro, partindo da firme convicção de que a retórica tem extrema importância nesse discurso, chegando a substituir a própria ciência, seus adeptos dispuseram-se a realizar uma série de entrevistas com os economistas, certos de que elas poderiam revelar mais mistérios sobre a vida intestina desse discurso, do que poderia fazê-lo a vã investigação acadêmica dos livros e papers.

O primeiro produto desta última empreitada foi o livro organizado por Arjo Klamer "Conversations with Economists". Klamer dirigiu as conversas de modo a expor o tumultuado ambiente da ciência econômica, particularmente depois do advento das "expectativas racionais" e da conseqüente ascensão dos chamados "novos clássicos". Coerente com a idéia da natureza retórica dessa ciência, Klamer buscou mostrar, por meio da investigação "conversativa" desse episódio, a insustentabilidade da pretensão de objetividade da Economia, em contraste com seu enorme apetite persuasivo. A conclusão a que chega é que "as entrevistas confirmam essa visão de ciência econômica em termos de comunicação". Na ausência de padrões uniformes e testes empíricos claros, os economistas, continua Klamer, "são forçados a confiar no seu julgamento, e argumentam de forma a tornar seu argumento persuasivo. Este processo deixa um espaço para elementos não racionais, tais como estilo e envolvimento pessoais e disciplina social. Eu afirmo que as entrevistas evidenciam esta visão da discussão de problemas econômicos[...]" (1988, 245-6).

Essas conclusões indicavam o acerto da decisão de ir buscar na viva voz dos expoentes de cada corrente de pensamento as artimanhas retóricas que servem de escudo ao "debate científico". Os discípulos brasileiros desse projeto, apostadores de primeira hora em suas perspectivas, fizeram o mesmo por aqui. Assim, com o professor José Márcio Rego à frente, surgiu, em 1996, publicado pela editora 34, o livro "Conversas com Economistas Brasileiros". No entanto, a especificidade do contexto brasileiro acabou por alterar tanto a forma quanto o resultado do projeto. Os próprios idealizadores, de uma certa maneira, admitem isso: "As divergências entre os economistas brasileiros guardam diferenças em relação às apresentadas por Klamer (...) Apesar de partirmos de uma mesma metodologia, nossas preocupações são essencialmente diversas. As condições históricas e políticas brasileiras geraram uma classe de economistas profissionalmente diferenciados" (p. 10).

Essas declarações indicam que, desde o início, os organizadores do trabalho pressentiram as dificuldades de reproduzir aqui a experiência dos colegas americanos. Dado o poder efetivo que os economistas detiveram e detêm em nosso país,18 18 Veja a esse respeito o trabalho da Profa. Maria Rita Loureiro, Os Economistas no Governo, Rio de Janeiro, Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1997. torna-se muito difícil reduzir suas divergências às querelas teórico-metodológicas, confinando-as ao suposto mundo puramente "conversativo" da academia. Não por acaso, o livro brasileiro foi organizado, não como o de Klamer, pelas correntes de pensamento, mas pelas gerações dos economistas entrevistados. Sendo assim, o que resultou do projeto foi menos a revelação dos mistérios da arte persuasiva dos economistas, encobertos na assepsia dos textos acadêmicos, do que parte significativa da história recente do país. Malgrado a intenção inicial, o resultado da versão brasileira da empreitada retórica mostrou-se, por isso, muito mais interessante do que o da matriz americana.

Assim, por exemplo, acompanhamos, trinta anos depois, a avaliação que faz, sobre o PAEG, um de seus mais influentes mentores, Roberto Campos. Não deixa de ser curiosa sua tentativa de justificar a contraditória situação em que ele, um liberal convicto, então se colocou, ao idealizar um amplo programa de planejamento a longo prazo, com profunda intervenção do Estado na economia. "Foi pura ingenuidade", afirma Campos, "imaginar que o Governo tivesse a capacidade de substituir o empresariado e o mercado e planejar a longo prazo" (Campos, apud Rego et alii, 1996:46-7). O PAEG, no entanto, foi implementado e acabou por determinar a conformação futura da realidade econômica brasileira. Da mesma maneira, está presente no livro parte da história anterior do desenvolvimento econômico brasileiro, particularmente a influência decisiva das teses cepalinas (ver os depoimentos de Celso Furtado e Maria da Conceição Tavares) e, praticamente em sua íntegra, o conturbado período que se seguiu ao milagre, quando o problema inflacionário avultou em importância e determinou, por quase duas décadas, a feição do debate econômico no Brasil.

Neste último caso, talvez mais do que nos anteriores, o cotejo entre idéias e realidade, bem como a interação mútua de ambas as esferas, tornou-se extremamente visível. A discussão sobre a natureza inercial da inflação brasileira e sobre a necessidade de programas não ortodoxos para combatê-la ganhou a mídia e foi se intrometendo decisivamente no cotidiano de todos os brasileiros, já que as "idéias" dos economistas, mais do que adeptos, foram ganhando carne e osso, objetivando-se em sucessivos planos de estabilização. Estes últimos, por seu lado, iam encontrando pela frente, a cada vez, uma realidade diferente, precisamente por conta da concretização de idéias econômicas anteriores. Detenhamo-nos por um momento nesse processo.

Independentemente do mérito em si das tentativas de estabilização, particularmente para um país como o Brasil que convivia com altas taxas de inflação desde a metade dos anos 70, o fato é que a estabilidade monetária era, já em meados dos 80, condição sine qua non para colocar os países periféricos na rota dos capitais ciganos, que circulam pelo globo em busca de valorização financeira. Com taxas de inflação "não civilizadas", como as detidas então pelo Brasil, não havia o mínimo de segurança necessário para essas operações. Não por acaso, é a partir do final da mesma década de 80 que se intensificam as pressões para que os países então denominados "emergentes" desregulamentem seu mercado de capitais, internacionalizem a emissão de papéis públicos e securitizem suas dívidas.19 19 Vide a esse respeito Chesnais, (1998:29-31). Por isso, nessa época, no Brasil, principalmente considerando-se a especificidade de nossa realidade inflacionária, os economistas acadêmicos eram instados a encontrar soluções "não convencionais" para o problema, dada a evidente incapacidade da receita monetarista em lidar com ele. Assim, se em outros países da América Latina o problema das altas taxas de inflação desandou logo em hiperinflação e foi resolvido, regra geral, com programas do tipo currency board, no Brasil, as altas inflações persistiam, sem se transformar em processos hiperinflacionários. A natureza muito particular de nosso processo de indexação é que produzia essa situação, requerendo, portanto, um outro remédio. Não por acaso, portanto, é aqui, no Brasil, e não em qualquer outro país da América Latina, que surge a teoria da inflação inercial (Paulani, 1997). Dadas algumas diferenças entre os economistas que abraçaram as teses inercialistas, não havia uma, mas duas receitas delas derivadas: o choque heterodoxo e a moeda indexada (Bier et alii, 1987). Uma versão um pouco diferenciada da segunda dessas receitas, aliada a uma posição cambial muito mais confortável do que a existente em 1986 — ano da aplicação do primeiro plano heteredoxo de estabilização — é que vai finalmente lograr a estabilidade em 1994 (Plano Real).

Esta recapitulação sumária do episódio "alta inflação — inflação inercial — planos heterodoxos" teve o propósito de mostrar que, nas circunstâncias do Brasil de meados dos 80, a relação dos economistas entre si e deles com a realidade concreta do país podia ser qualquer coisa, menos uma "conversação" inconseqüente, para deleite apenas daqueles nela envolvidos, os quais estariam pleiteando o Oscar da persuasão. Muito ao contrário, a disputa era real e concreta e continuou real e concreta, com as diversas visões, inclusive as ortodoxas, sucedendo-se no comando da política econômica até o alcance da estabilidade em 1994. Pois bem, toda essa história está inequivocamente presente no livro organizado por Rego e seus companheiros. Em particular, são extremamente reveladores desse complexo movimento de interação entre idéias e realidade os depoimentos de André Lara Resende e Pérsio Arida.

Isto posto, a conclusão é que, a despeito da pretensão inicial de seus idealizadores, esta primeira experiência de ouvir os economistas brasileiros constituiu uma contraprova poderosa da fragilidade do projeto retórico inaugurado por McCloskey e Klamer. Se é verdade que, numa economia de mercado, a realidade econômica é provida de uma objetividade que se tece às costas dos agentes e que conforma a matéria-prima a partir da qual os economistas produzem seus conceitos e modelos abstratos, não é menos verdade que há aí também um amplo espaço para inverter a mão de direção e caminhar das idéias para sua objetivação. Se não parece haver parâmetros, como alegam os defensores do projeto retórico, para avaliar o valor de verdade das proposições teóricas, a partir do momento em que as idéias se objetivam e passam a conformar essa mesma realidade não há mais como confinar as divergências ao limitado mundo da pragmática. Sua dimensão semântica impõe-se inseparavelmente, pouco importando, no caso concreto aqui comentado, que essas "idéias" tenham sido forjadas não só pela especificidade da realidade brasileira, mas primordialmente pela inadequabilidade dessa realidade às novas exigências do capitalismo.

Essa possibilidade de que as idéias dos economistas atravessem os muros da academia e aterrizem em carne e o osso no mundo real, conduzidas pelos cargos públicos ocupados por esses cientistas, é muito maior num país como o Brasil, não por acaso chamado de "a República dos Bacharéis".20 20 Loureiro (1997) mostra com profusão de detalhes os desdobramentos e as conseqüências concretas dessa peculiaridade nacional, particularmente no caso dos economistas. Na apresentação à segunda edição da mesma experiência, publicada em 1999, os autores admitem explicitamente esta característica de nossa realidade: "Esses economistas [os entrevistados da segunda leva] tiveram, em maior ou menor medida, vínculos com a Universidade. Isso demonstra a forte interligação que existe na sociedade brasileira entre os meios acadêmicos e políticos, principalmente em se tratando da esfera econômica. Essa 'promiscuidade' entre o econômico e o político tem sido maior no Brasil do que em outros países. Nos Estados Unidos, por exemplo, os economistas têm razoável poder de influência na gestão econômica (...) Porém, dificilmente um acadêmio americano (ou alguém que não abraçou explicitamente a carreira política) se tornou gestor máximo da política econômica daquele país, ao contrário do que ocorre aqui no Brasil" (Rego e Mantega, 1999:30-1).

Talvez por isso, nessa segunda série de conversas, sua vinculação ao "projeto retórico" praticamente desaparece. Não há menção sobre ela na longa Introdução escrita por Rego e Mantega. Mais que isso, o Prefácio escrito por Belluzzo, segundo os organizadores um "entusiasta" do projeto, é muito mais um libelo contra a dominância do ideário liberal no capitalismo contemporâneo, do que qualquer tipo de análise da aventura retórica, ou qualquer avaliação sobre o sucesso desse segundo momento da empreitada brasileira. Além disso, enquanto um texto que se define explicitamente pela heterodoxia e mostra as fragilidades e equívocos das análises ortodoxas, ele se constitui, por isso mesmo, numa típica "peça modernista", dessas que têm apreço pela verdade e que certamente atrairiam as boutades de McCloskey.

É sintomático, aliás, que Belluzzo encerre o referido Prefácio com a frase a seguir, já que ela se opõe frontalmente ao "projeto retórico", se por ele se entender o dissolvimento da ciência na literatura: "Hoje, mais do que nunca, a crítica da sociedade existente não pode ser feita sem a crítica da Economia Política" (Belluzzo, 1999:25). Afirmar a necessidade da crítica da Economia Política implica identificar, no discurso produzido pela ciência econômica de hoje, dificuldades semelhantes em sua natureza àquelas que Marx se especializou em desvendar nos discursos "científicos" de seus contemporâneos e cuja finalidade não é outra senão a de mostrar a verdade sobre a forma de funcionamento do capitalismo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O "mais do que nunca" que Belluzzo coloca na frase anteriormente referida permite retomar uma questão já considerada e que aparentemente entra em contradição com o que aqui se escreveu sobre a interação entre idéias econômicas e realidade no caso do Brasil. Refiro-me ao acerto involuntário de McCloskey que, ao identificar a ciência econômica a uma "conversa" movida pela vontade de persuadir mais do que pela busca da verdade, acertou sem querer no estado atual, ou seja, pós-consolidação do neoliberalismo, da relação entre economia normativa e positiva. Dada a natureza basicamente prescritiva desse ideário, cujo único objetivo é libertar o mercado das amarras intervencionistas que lhe foram sendo colocadas ao longo dos "trinta anos dourados", a assim chamada "ciência econômica" resume-se hoje às tecnicalidades necessárias para pilotar, de acordo com as necessidades da acumulação privada e sob a ditadura dos credores que caracteriza esta fase da história capitalista, "as duas dimensões inescapavelmente públicas das economias de mercado: a moeda e as finanças do Estado" (Belluzzo, 1999:16). Há assim, conforme já assinalei, um deslocamento da Economics por uma sorte de "versão estatal" da Business Administration. Sendo assim, deixam de existir os vínculos entre ciência econômica e política econômica, de modo que podem ficar os economistas sossegados, disputando seus campeonatos na arte de persuadir, enquanto o mundo real segue impassível sua marcha.

Na República dos Bacharéis, porém, as coisas são diferentes. Por mais que a relação de exterioridade entre ciência econômica e política econômica nessa fase da história do capitalismo esteja também aqui presente — afinal o país se encontra, desde o início dos anos de 1990, e agora decentemente trajado (leia-se, com estabilidade monetária) na era neoliberal — a presença concreta dos economistas nos cargos econômicos mais importantes da República impede que essa desvinculação tenha no Brasil os mesmo efeitos que tem nos países centrais. O acerto involuntário de McCloskey não se reproduz por aqui, tornando mais fácil percebera fragilidade do "projeto retórico". Que bom seria, diria um cidadão brasileiro qualquer lendo as boutades deMcCloskey, se o Plano Collor e seu seqüestro de ativos tivesse vivido apenas nas conversas dos economistas, e se os modelos de target inflation não saltassem das páginas dos papers para o board do Banco Central. Assim, dadas as idiossincrasias da realidade social brasileira, a tentativa de desenvolver aqui o "projeto retórico" revela, muito mais do que em sua matriz de origem, a relação extremamente complicada que posturas como a de McCloskey têm com o fato de que, mesmo na era neoliberal, não são nulos os vínculos entre saber econômico e poder econômico. Muito mais do que conversas e argumentos persuasivos, a atividade dos economistas conforma realidades e/ou confirma realidades que a teia social do capitalismo e suas exigências vão construindo.

A presença, "mais do que nunca" necessária, segundo Belluzzo, da crítica da Economia Política, deve-se justamente ao fato de que, no atual momento, a relação entre teoria e prática é muito mais distante do que já foi. Tudo se passa como se fosse muito mais fácil atacar, por exemplo, o keynesianismo, por sua evidente relação com as políticas de regulação da demanda efetiva, do que a macroeconomia dos novos clássicos, apartada do "mercado deixado a si mesmo", mas efetivamente presente na teorização da forma de pilotar juros, câmbio e finanças públicas. O fato de a aplicação dessas receitas ser muito mais cobrada dos países periféricos do que dos centrais, e de serem operadas aqui por economistas "vinculados à Universidade" reforça ainda mais a possibilidade de se enxergar as fragilidades e contradições do projeto retórico.21 21 No caso específico do Brasil, sobrou de toda essa discussão, além das bem-vindas análises retóricas dos textos econômicos, um grande apreço, que não é difícil de explicar, pelos livros de entrevistas com os bacharéis em geral, visto que a atividade não se restringiu mais aos economistas (já há editados Conversas com Filósofos Brasileiros e Conversas com Historiadores Brasileiros).

E temos com isso os sinais suficientes para concluir que se trata aqui de mais um capítulo das "idéias fora do lugar", descobertas por Roberto Schwarz no ensaio famoso de 1973. O que Schwarz mostra aí, como se sabe, é que a "ciência da economia política" e o ideário liberal importados e aclimatados ao Brasil escravista produziram uma reviravolta digna de nota, fazendo com que se prestassem a justificar uma realidade em tudo incompatível com a realidade onde esses discursos haviam sido produzidos e onde eram necessários ideologicamente, visto justificarem a aparência da nova ordem social que se impunha a passos largos. E o que tornava aí incompatível realidade e ideário não era apenas o trabalho escravo, de imediato incongruente com a economia política e sua categoria de trabalho livre, mas a mediação representada pelo "favor", na qual se enredava toda a multidão dos homens livres de então, vale dizer, nem proprietários, nem escravos. Vale a pena reproduzir: "Adotadas as idéias e razões européias, elas podiam servir e muitas vezes serviram de justificação, nominalmente 'objetiva', para o momento de arbítrio que é da natureza do favor (...) Assim, com método, atribui-se independência à dependência, utilidade ao capricho, universalidade às exceções, mérito ao parentesco, igualdade ao privilégio. Combinando-se à prática de que, em princípio, seria a crítica, o Liberalismo fazia com que o pensamento perdesse o pé" (1981:17-8). Mais ainda, Schwarz quis chamar a atenção para a "vantagem" do atraso brasileiro no que concerne à capacidade para perceber o ideológico desses ideários: "Inscritas num sistema que não descrevem nem mesmo em aparência, as idéias da burguesia viam infirmada já de início, pela evidência diária, a sua pretensão de abarcar a natureza humana. Se eram aceitas, eram-no por razões que elas próprias não podiam aceitar. Em lugar de horizonte, apareciam sobre um fundo mais vasto, que as relativiza: as idas e vindas de arbítrio e favor. Abalava-se na base sua intenção universal. Assim, o que, na Europa, seria verdadeira façanha da crítica, entre nós podia ser a singela descrença de qualquer pachola para quem utilitarismo, egoísmo, formalismo e o que for são uma roupa entre outras, muito da época, mas desnecessariamente apertada" (1981:22-3).

A mesma facilidade do pachola de Schwarz reencontramos aqui. Para o cidadão brasileiro comum, é no mínimo bizarra a idéia de que as discussões dos economistas não visam a outra coisa senão girar em torno de si mesmas. Mais do que idéia, concluímos, trata-se aqui de uma facetada ideologia contemporânea, que, se funciona razoavelmente no centro do sistema-mundo capitalista, enguiça na periferia e põe a nu sua natureza. Não surpreende, portanto, o resultado do capítulo brasileiro do projeto retórico, que objetivamente revela, ao invés de velar, a incongruência que têm, com a realidade capitalista de hoje, essas hipóteses tão na moda. Mais do que as competências persuasivas dos interlocutores e seu suposto déficit de objetividade, as conversas com economistas brasileiros revelam os contornos da história brasileira do século XX, empurrada, de um lado, pela dinâmica capitalista global, e conformada, de outro, pela objetivação das idéias produzidas pelos economistas a partir dessa mesma realidade. Fica aqui, portanto, mais evidente do que no centro do sistema que, se há hoje algum papel para a retórica, ele é o inverso do que advogam seus cultuadores. A análise retórica, ao invés de desembocar no vale-tudo relativista, mostra-se instrumento poderoso para fazer a crítica da sociedade existente, no mínimo porque ajuda a desembrulhar, da teia de idéias e ideologias em que ela aparece envolvida, a história concreta.

E voltamos com isso à frase de Belluzzo. A crítica da Economia Política, ou crítica do discurso econômico, busca desvendar, por trás da pretensa cientificidade desses textos, constrangimentos de natureza ideológica, enganos involuntários, prescrições normativas disfarçadas de conhecimento positivo etc., e não há como efetivar essa operação de desvendamento sem atentar para a "retórica" desses discursos e as armas que eles utilizam para se fazerem ouvir. Encarado dessa perspectiva, qual seja, a da análise retórica do discurso econômico, o "projeto retórico" começou na metade do século XIX, pelas mãos de um pensador mouro, e continua hoje extremamente atual, apesar de seu idealizador ser dado amiúde como cachorro morto.

Submetido: Setembro 2004; aceito: Abril 2005.

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  • 1
    No mundo subdesenvolvido, particularmente na América Latina, esse mesmo espírito, em contato com a realidade diferenciada que aí existia, tomou a forma do desenvolvimentismo. Apoiado fundamentalmente nas idéias cepalinas, o desenvolvimentismo percebia a necessidade de que o Estado, mais do que controlador de demanda efetiva, atuasse como alavanca dos investimentos necessários para que essas economias superassem o estágio atrasado em que se encontravam. Completando o conjunto de "realidades" que contribuíam para a manutenção desse espírito, em quase tudo contrário às máximas liberais, o então chamado "segundo mundo" também fazia sua parte, já que uma economia inteiramente planejada parecia forte o suficiente para desafiar e intimidar a maior economia capitalista do planeta.
  • 2
    Uma das teses mais instigantes sobre o significado desse período foi elaborada por Francisco de Oliveira. Resumidamente se poderia denominá-la como a tese do "surgimento do antivalor". Para ele, ao longo dos anos dourados do capitalismo, o chamado
    Welfare State, oriundo das políticas keynesianas anticíclicas, constituiu-se no padrão de financiamento público da economia capitalista. Nesse novo padrão, o fundo público, funcionando numa esfera pública estruturada a partir de regras universais e pactadas, passa a ser o pressuposto do financiamento da acumulação de capital assim como o pressuposto do financiamento da reprodução da força de trabalho. Esse novo arranjo institucional teria operado "uma verdadeira revolução copernicana nos fundamentos da categoria do valor como nervo central tanto da reprodução do capital quanto da força de trabalho". Levado às últimas conseqüências, continua Francisco de Oliveira, "o padrão do financiamento público 'implodiu' o valor como único pressuposto da reprodução ampliada do capital, desfazendo-o parcialmente enquanto medida da atividade econômica e da sociabilidade em geral" (1998:27). O caráter "radical" da tese é indicação inequívoca da magnitude das mudanças operadas no funcionamento do sistema a partir do pós-guerra. A reviravolta que começa em meados dos 70, e que vai tirar os (neo)liberais da defensiva para colocá-los na posição oposta, funcionou então, para parafrasear Francisco de Oliveira, como uma espécie de "vingança do valor". A partir de então não só a atividade econômica volta a ser inteiramente dominada por seus imperativos, como também a sociabilidade vai ficando inteiramente submetida a suas exigências.
  • 3
    Segundo Anderson, no referido livro, o alvo imediato de Hayek era o Partido Trabalhista inglês, às vésperas da eleição geral de 1945 (que ele de fato venceria). Hayek é implacável e sentencia: "Apesar de suas boas intenções, a social-democracia moderada inglesa conduz ao mesmo desastre que o nazismo alemão — uma servidão moderna" (Hayek,
    apud Anderson, 1995:9).
  • 4
    "O verdadeiro individualismo é a única teoria capaz de tornar compreensível a formação de resultados sociais espontâneos. E, enquanto as teorias planejadoras levam necessariamente à conclusão de que os processos sociais só podem ser postos a serviço de fins humanos se forem submetidos ao controle da razão humana, e assim levam direto ao socialismo, o verdadeiro individualismo acredita, ao contrário, que se deixados livres, os homens freqüentemente obtêm um resultado melhor do que a razão humana possa planejar ou prever." (Hayek, 1948a: 10-1).
  • 5
    A revolução keynesiana jogou por terra por um bom tempo não apenas a teoria neoclássica e seus epígonos. O próprio Hayek teve sua luz ofuscada pelo brilhante sucesso das idéias keynesianas. "Ao longo dos anos 30, a academia inglesa viu Hayek surgir, inicialmente, como uma estrela de primeira grandeza na constelação dos economistas e, posteriormente, terminar a década completamente apagado, ofuscado em grande medida pela avalanche keynesiana. Ao longo desse período, ele conseguiu conquistar corações e mentes de várias gerações de economistas para depois perder pouco a pouco seus mais eminentes seguidores" (Andrade, 1997:176).
  • 6
    "Nossa análise [do equilíbrio], ao invés de mostrar quais informações as diferentes pessoas devem possuir a fim de obter aquele resultado, cai no pressuposto de que todo mundo sabe tudo e, elimina, assim, qualquer solução real para o problema." (1948b:51)
  • 7
    Contrariando Adorno, Eagleton afirma que "a mercadoria não pode ser a própria ideologia, pelo menos por enquanto" e ironicamente ele completa: "poderíamos imaginar uma fase futura do sistema em que isso seria verdade, em que ele fez um curso em alguma universidade norte-americana, livrou-se dos próprios fundamentos e deixou para trás toda essa história de legitimação retórica. Com efeito, existem aqueles que alegam que é precisamente isso que está em marcha hoje: que a 'hegemonia' não tem mais relevância, que o sistema não se importa se acreditamos nele ou não, que ele não sente necessidade de garantir nossa cumplicidade espiritual, desde que façamos mais ou menos o que ele exige. Ele não tem mais de passar pela consciência humana para se reproduzir, só manter essa consciência em permanente estado de distração e contar, para sua reprodução, com seus mecanismos automatizados. Mas o pós-modernismo pertence, nesse aspecto, a uma época de transição, em que o metafísico, como um fantasma inquieto, não pode nem ressuscitar nem morrer com dignidade. Se ele pudesse deixar de existir, o pós-modernismo sem dúvida morreria com ele" (1998:127-8).
  • 8
    A força dessa dubiedade e sua enorme capacidade de fazer o papel ideológico que lhe cabe ficam visíveis no fato de que sua mística leva de roldão intelectuais altamente sofisticados. Senão vejamos: "Meus dois lindos netos estão em Orlando, fazendo o aprendizado de meninos ricos. E eles são muito ricos. Seus quartos competem com qualquer loja de brinquedos de São Paulo. Eles não possuem apenas um exemplar do último boneco importado. Fazem questão de ter todas as modalidades da série (...) No último telefonema lhes perguntei: 'de que estão mais gostando?', e a resposta veio unânime: 'compramos um monte de brinquedos novos' (...) Tudo parece indicar assim que
    o mundo contemporâneo do consumo deixou de produzir idiotas robotizados". E ainda: "O universo do consumo está passando por um processo de diversificação de tal modo inesperado e fantástico que
    destrói por completo todos os prognósticos a respeito de sua função e de seu papel alienante (...). As casas se tornam discotecas, videotecas, acervos de cultura para todos os gostos (...).O menino mais pobre da periferia de São Paulo sabe perfeitamente que roupa vestir, que música quer ouvir, a que programa assistir (...)". E finalmente: "Não acredito na estandartização (...). Não acredito nisso (...). Esse pessimismo não se sustenta (...). Você se lembra que todo mundo imaginava que, por causa da comunicação de massa, haveria estandartização. Mas considere a televisão. Veja o número de canais que você pode escolher. Portanto ocorre justamente o contrário".As duas primeiras falas são de José Arthur Giannotti, famoso filósofo brasileiro, em artigo publicado na Folha de S. Paulo de 19/11/1995. A última é de Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente da República (1995-2002), também conhecido como "príncipe dos sociólogos brasileiros", em entrevista à
    Folha de S. Paulo em 13/10/1996. Essas e outras preciosidades fazem parte do
    Dicionário de Bolso do Almanaque Philosophico Zero à Esquerda (Petrópolis, Vozes, 1997), compilado por Paulo Eduardo Arantes, as duas primeiras no verbete "O Patriarca e o Bacharel", e a última no verbete "Sacadura Cabral e Gago Coutinho".
  • 9
    Mas há mais no capítulo da congruência entre conservadorismo e radicalidade pós-moderna e seus vínculos com a doutrina neoliberal. Num ensaio instigante em que mostra as relações entre o pensamento de cada um dos componentes do "mais importante quarteto de teóricos europeus da direita intransigente, cujas idéias agora dão forma (...) a grande parte do mundo mental da política ocidental do final do século XX" — Carl Schmitt, Michael Oakeshott, Leo Strauss e Friedrich von Hayek — Anderson (2002:319-44), mostra que, para Oakeshott, a idéia de governo como uma associação civil baseada no "orgulho da individualidade livre" excluía categoricamente o objetivo coletivo. Sendo assim, ficava no ar a pergunta sobre o que é que motivaria então essa associação, ou seja, por que razão esses orgulhosos indivíduos embarcariam nessa canoa, assinando um contrato com esse
    état gratuit, uma entidade abstrata desprovida de objetivos. A resposta a que ele chega é que essa associação não é ditada pela virtude, mas apenas "modelada pela linguagem". Segundo o mesmo Anderson, foi Carl Menger quem primeiro defendeu a proposta teórica do benefício das instituições sociais geradas por crescimento espontâneo e "para ilustrar os méritos do mercado, ele o comparou a duas outras invenções humanas, igualmente não planejadas: o direito e a linguagem". Como se sabe, dissolver tudo na linguagem é um dos expedientes prediletos do pós-modernismo anárquico, particularmente em sua versão desconstrucionista.
  • 10
    Sobre isso afirma Hobsbawm: "Era, portanto, provável que a moda da liberalização econômica e 'marketização', que dominara a década de 1980 e atingira o pico de complacência ideológica após o colapso do sistema soviético, não durasse muito. A combinação da crise mundial do início da década de 1990 com o espetacular fracasso dessas políticas quando aplicadas como 'terapias de choque' nos países ex-socialistas já causava reconsiderações entre alguns entusiastas (...) Contudo, dois grandes obstáculos se erguiam no caminho de um retorno ao realismo. O primeiro era a ausência de uma ameaça política digna de crédito ao sistema, como antes tinham parecido ser o comunismo e a existência da URSS, ou — de uma maneira diferente — a conquista nazista da Alemanha. Estes (...) proporcionaram o incentivo para que o capitalismo se reformasse. (...)
    O segundo obstáculo era o próprio processo de globalização, reforçado pela desmontagem de mecanismos nacionais para proteger as vítimas da livre economia global dos custos sociais daquilo que se descrevia orgulhosamente [num editorial do Financial Times de 1993] como 'o sistema de criação de riqueza hoje encarado em toda parte como o mais efetivo que a humanidade já criou'" (1995:552, itálicos meus).
  • 11
    Ainda que com outros propósitos e referindo-se não à teoria econômica que deveria sustentar cientificamente o sistema, mas, contrariamente, à teoria que mostra suas fraquezas, Eagleton (1998:14) faz uma observação que vai na mesma direção: "Não há sentido em continuar trabalhando a duras penas no Museu Britânico, consumindo montes de teoria econômica indigesta, se o sistema mostra-se simplesmente inexpugnável".
  • 12
    É bem verdade que esse movimento tem feições relativamente diferentes no "centro" e na "periferia", se ainda estamos autorizados a utilizar o jargão dos tempos do desenvolvimentismo. Se é idêntica a prevenção contra tudo que tenha qualquer parentesco com o Estado e a louvação de tudo que favoreça o mercado e a "livre iniciativa", a regra da abertura comercial irrestrita, por exemplo, vale mais para a periferia do que para o centro. Da mesma maneira, contrariamente à pobre América Latina, vergastada sob a exigência de descomunais superávits primários, os EUA podem se dar ao luxo de fazer um déficit do tamanho do PIB brasileiro (foi o que aconteceu em 2003). Finalmente, para falar só nas diferenças mais gritantes, o desmonte da rede de proteção social construída ao longo dos 30 anos dourados no centro, particularmente na Europa, não foi tão grande, nem teve tantos efeitos deletérios quanto a desconstrução, na América Latina, de um Estado do bem estar social que mal começava a ser erguido. Mas em qualquer caso trata-se de diferenças de prescrição e de condução prática das políticas de recondução do mercado ao lugar principal que lhe havia sido usurpado.
  • 13
    No caso da periferia latino americana, as idéias cepalinas, particularmente a deterioração dos termos de troca que Prebisch demonstrara, vieram fornecer o complemento necessário para conferir ao Estado o papel de destaque que aí teve entre o pós-guerra e a chamada crise das dívidas.
  • 14
    Roger Backhouse (1998:420) lembra o artigo de Bloor e Bloor, de 1993, em que os autores, analisando uma amostra de
    papers acadêmicos sobre as estratégias de
    hedge, chegam à interessante conclusão de que "os fatos do mundo real não são centrais para a ciência econômica". Não por acaso, a lembrança de Backhouse encontra-se no verbete
    Rhetoric do The Handbook of Economic Methodology.
  • 15
    Para uma discussão mais detalhada dos diversos e em muitos casos incompatíveis sentidos em que McCloskey usa o termo "retórica", bem como a dificuldade daí surgida para enquadrar metateoricamente suas considerações, vide Paulani (1996) e Paulani (1999).
  • 16
    Duayer escreve um artigo/conto muito interessante em que, ao final, fala com criativa ironia da discussão sobre a retórica na Economia. Um professor de Economia está prestes a entrar no Céu. Vai com a consciência tranqüila e confiante de ter lá seu lugar, já que, "jamais em sua atividade profissional envolvera-se com valores ou discutira fins, mas cuidara tão-somente de ensinar assalariadamente os meios mais eficientes para a consecução de fins exteriormente postos" (1998:144). Abruptamente é interrompido por um anjo que lhe mostra estar no caminho errado, sendo o seu o do Inferno. "Entre perplexo e indignado, o cândido professor protestou de tal veredicto, subentendendo, em seu sincero espanto, grave equívoco na sublime ordenação que lhe coubera, pois considerava tremenda injustiça ter de assumir os ônus de eventuais malefícios causados por valores subjacentes à ciência que difundira com raro e profissional zelo[...]" (1998:145). Depois de algumas peripécias que não impedem o personagem de ter de se atirar no fogaréu, Duayer conclui: "assim enleados em definitiva e estonteante indeterminação, o professor, o narrador e o leitor podemos todos, menos o anjo, é claro, buscar guarida na retórica, refúgio tranqüilo, porto seguro, da vertigem provocada pela recente descoberta da textualidade do mundo. Na ausência de chão para ancoragem, paz e sossego somente no seio do consenso, da opinião relevante. Pois, se não há salvação, já que não se pode saber o certo e o errado, o bem e o mal, é mais seguro pecar em grupo. Não qualquer grupo, mas o grupo dos especialistas e de suas instituições, o grupo da
    ciência normal. Na pior das hipóteses, calhando haver triagem celeste, a companhia no Inferno está garantida" (1998:159).
  • 17
    No Brasil podemos citar: Anuatti (1996); Bianchi e Salviano Jr. (1996); Bianchi e Salviano Jr. (1999); Bianchi (2002); Dib (2003); Gala (2003); Fernández
    et alii (1997); Fernández e Pessali (2003). Fora do Brasil temos, entre outros: Bazerman (1993); Denton (1988); Galbraith (1988); Mirowski (1987); Warsh (1988); e a própria McCloskey (1994).
  • 18
    Veja a esse respeito o trabalho da Profa. Maria Rita Loureiro,
    Os Economistas no Governo, Rio de Janeiro, Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1997.
  • 19
    Vide a esse respeito Chesnais, (1998:29-31).
  • 20
    Loureiro (1997) mostra com profusão de detalhes os desdobramentos e as conseqüências concretas dessa peculiaridade nacional, particularmente no caso dos economistas.
  • 21
    No caso específico do Brasil, sobrou de toda essa discussão, além das bem-vindas análises retóricas dos textos econômicos, um grande apreço, que não é difícil de explicar, pelos livros de entrevistas com os bacharéis em geral, visto que a atividade não se restringiu mais aos economistas (já há editados
    Conversas com Filósofos Brasileiros e Conversas com Historiadores Brasileiros).
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      29 Mar 2006
    • Data do Fascículo
      Mar 2006

    Histórico

    • Recebido
      Set 2004
    • Aceito
      Abr 2005
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