Acessibilidade / Reportar erro

Conversão da dívida: realidade e alternativas

Debt convertion: reality and alternatives

RESUMO

Esta nota discute a possibilidade de conversão da dívida externa em investimento. Para o autor, esse já é um fenômeno em curso e deve ser norteado por uma política que questione como isso deve ser feito como parte integrante da política industrial brasileira.

PALAVRAS-CHAVE:
Dívida externa; fluxo de capitais; crise da dívida

ABSTRACT

This note discusses the possibility of converting external debt into investment. For the author, this is already an ongoing phenomenon and should be guided by a policy that issues how this should be done as an integral part of Brazil’s industrial policy.

KEYWORDS:
External debt; capital flux; debt crisis

A ideia de converter parcelas da dívida externa em investimentos passou a constituir um dos principais temas da discussão econômica no Brasil, extrapolando o ambiente empresarial ou acadêmico e chegando à própria Constituinte. O governo, desde a gestão de Dilson Funaro no Ministério da Fazenda, tem afirmado que a conversão faz parte de sua estratégia econômica, embora não tenha, até agora, demonstrado pressa em estabelecer novas regulamentações.

Como seria de esperar, o tema tem despertado reações de sinal contrário: para alguns, poder-se-ia proporcionar, via conversão, um importante alívio no endividamento externo no país, mediante a transformação da dívida externa em capital de risco pertencente a residentes no exterior. Paralelamente, estar-se-ia estimulado o investimento no mercado interno, o saneamento financeiro e a capitalização de empresas.

Para outros, porém, a estratégia da conversão impulsionaria a desnacionalização da economia, sem, ao mesmo tempo, reduzir significativamente os encargos externos, uma vez que o capital investido no país também subtrairia divisas: ao invés de pagarmos juros, remeteríamos lucros, ao invés de amortização da dívida, haveria repatriação de capital. Lembram ainda que a conversão poderia inibir os investimentos externos tradicionais, que têm melhores efeitos sobre o balanço de pagamentos e são com mais certeza aplicados produtivamente.

Um tratamento adequado de um tema complexo como o da conversão requer, além de maiores esforços e reflexão, a formulação de hipóteses difíceis de testar no quadro das incertezas que envolvem a performance da economia brasileira e o seu relacionamento com o exterior. Por isso, procurarei apenas resumir as questões que me parecem mais fundamentais, introduzindo também dados e informações que, surpreendentemente, têm sido ignorados nas discussões.1 1 Duas abordagens sobre conversão de dívida, que retomei aqui, estão no meu artigo “Conversão da Dívida”, Folha de São Paulo, de 30.6.1987, e no item 7.2 do boletim bimestral do Grupo de Análises de Conjuntura Econômica do CEBRAP (mai.-junho 1987, n. 26), “A Conversão da Dívida em Investimentos e as Novas Formas de Financiamento Externo”, escrito por Monica Baer.

A RETRAÇÃO DOS INVESTIMENTOS E A CONVERSÃO

A partir de 1982, inclusive, houve uma queda vertical nos investimentos externos diretos no Brasil, simultaneamente a uma elevação das remessas de lucros e dividendos e das próprias repatriações (desde 1984), como demonstra a Tabela 1. O resultado líquido sobre o balanço de pagamentos, isto é, ingresso de investimentos menos lucros e dividendos remetidos menos repatriações, passou a declinar naquele mesmo ano, sendo negativo nos anos subsequentes. Somente no quadriênio de 1983-1986 a perda de divisas, por esse conceito, foi superior a 3 bilhões de dólares (estimando-se outro 1,5 bilhão em 1987), enquanto o ganho, nos quatro anos anteriores (1979-1982), havia sido superior a 2 bilhões de dólares.

Tabela 1:
Investimentos e conversão de divida (milhões de dólares)

É interessante notar que o forte declínio do investimento líquido estrangeiro (linha C da Tabela 2) foi muito mais intenso do que a contração da produção na economia em 1981-1983. Tal declínio prosseguiu nos anos de crescimento da produção, levando ao resultado mais baixo em 1986, quando o ingresso líquido de investimentos foi negativo (linha A da mesma tabela). Os investimentos realizados mediante conversão de dívida atenuaram esta última tendência, mas não o reverteram. Isto é um indicador, grosso modo, de que houve nos últimos anos uma diminuição da participação estrangeira no estoque de capital da economia.

Tabela 2
Investimentos estrangeiros (US$ Milhões)

Além de fatores relacionados com mudanças nas estratégicas das grandes empresas internacionais (maior especialização em suas atividades principais) e com a própria capacidade das empresas nacionais para adquirirem patrimônio externo, os principais motivos daquele declínio foram:

  • 1) a recessão de 1981 e 1983 (naturalmente, com efeitos defasados sobre o comportamento dos investimentos);

  • 2) as incertezas ou mesmo expectativas adversas dos investidores em relação à conjuntura política brasileira (idem);

  • 3) a mudança da legislação do imposto de renda nos Estados Unidos em 1986, que incentivou a repatriação de capital e a remessa de lucros. Entre as 20 maiores repatriações feitas no primeiro semestre desse ano, cerca de 75% (64% em 1985) referiram-se a capitais norte-americanos;

  • 4) a queda do valor das obrigações externas brasileiras no mercado secundário, desde 1982.

Esta última circunstância influencia negativamente os investimentos diretos tradicionais de duas maneiras. Primeiro, embora o capital de risco se baseie num cálculo econômico e numa estratégia empresarial diferentes dos que envolvem o refinamento da dívida, é plausível supor que o deságio das obrigações externas brasileiras tenda a exercer algum tipo de “contaminação” sobre o dólar novo internalizado como investimento direto.2 2 Edmar Bacha (“Endividamento Externo”, manuscrito, abril de.1987) considera que “qualquer dólar novo, uma vez internalizado, entra na vala comum das obrigações brasileiras;’, passando a valer, hoje, não mais do que 55 centavos. Mesmo que essa relação não seja one to one, algum efeito certamente existe. Além disso, é óbvio que o maior deságio reflete um “clima” menos favorável para qualquer tipo de investimento novo. Segundo, porque a possibilidade de ganho pelo deságio tende a provocar (ou pelo menos a despertar a expectativa de) uma certa substituição de investimento direto tradicional por investimento via conversão.

O desconto do valor das obrigações externas brasileiras, no mercado secundário, atingiu entre 12 e 20% em 1983 e chegou perto de 45% nos dias de hoje. Tal queda deveu-se ao virtual default externo no país no segundo semestre de 1982 e à subsequente incerteza sobre a possibilidade de o Brasil . pagar os juros de sua dívida de forma continuada (mesmo depois de cumprir integralmente seus compromissos em 1985 e 1986), tendo se acentuado, como é óbvio, após a moratória em fevereiro de 1987. Assim, como foi dito, atualmente cada dólar de crédito externo no Brasil vale, no exterior, cerca de 55 centavos. Ou seja, um investidor estrangeiro poderia, em tese, comprar de um banco (que faria uma cessão de crédito) USS 50 milhões de dívida brasileira pagando USS 27,5 milhões, mas esse montante poderia “valer” USS 50 milhões quando ingressasse no Brasil como investimento, permitindo, assim, um ganho patrimonial de USS 22,5 milhões.

Evidentemente, a queda do valor do crédito ao Brasil no mercado secundário constitui um fator poderoso para induzir à conversão. Para o banco que “cede” o crédito, tal conversão significaria recuperar pelo menos uma parte do valor emprestado, que hoje parece ser incobrável, sendo que o prejuízo pelo deságio já foi em grande medida coberto por provisões anteriores, crescentes desde 1982. Para o comprador, ou para o próprio banco (se resolver ser ele próprio o aplicador), coloca-se a possibilidade do ganho ao converter o crédito em investimento. Para as matrizes estrangeiras em filiais no Brasil cria-se alternativa de aumentar a rentabilidade dos investimentos novos, como o ganho pelo deságio. Para empresas locais endividadas, apresenta-se perspectiva do saneamento financeiro e da ampliação patrimonial, abrindo-se a acionistas estrangeiros. Para o governo, a possibilidade de conversão aparece como um instrumento na renegociação da dívida externa e de reativação dos investimentos privados estrangeiros.

Tal reativação interessa não tanto do ponto de vista do ingresso de divisas, mas pela formação de capital nas atividades em que as empresas internacionais atuam e que, se não prosseguir em ritmo adequado, pode comprometer o abastecimento do mercado interno e/ou das exportações, sem mencionar as perdas do ponto de vista do progresso tecnológico. Ao mesmo tempo, tampouco se deveria desprezar efeitos indiretos, que consistem no ingresso marginal de investimentos sob a forma tradicional, de natureza complementar aos que resultariam da conversão, bem como o estímulo à maior retenção de lucros e menor repatriação de capital que tal processo poderia induzir, implicando entrada e/ou retenção de divisas no país.

A existência do deságio abriu caminho também para propostas de estratégia de negociação da dívida externa que, no limite, supõe a possibilidade de “recompra” (com deságio) do estoque da dívida externa brasileira junto aos bancos privados mediante, por exemplo, a emissão de bens, garantidos por algum fiador, o que permitiria ao país apropriar-se dos ganhos do deságio. Além da indagação crítica sobre quem, e como, garantiria esse bônus, caberia acrescentar outra questão vital relacionada com a sempre incômoda diferença, em teoria econômica, entre média e margem (que concorrem com a que existe entre fluxo e estoque). Como é óbvio, o fato de que as obrigações externas do Brasil no mercado secundário sofrem um deságio de quase 50% não significa que, existindo demanda e permitindo-se sua comercialização, seu preço médio teria esse deságio, a menos que toda a dívida fosse recomprada de uma vez, de surpresa. Essa possibilidade, ademais de meramente teórica, suporia uma disponibilidade inimaginável de recursos nas mãos do Brasil ou de algum fiador poderosíssimo e confiante (para garantir o bônus).

A CONVERSÃO QUE EXISTE

É importante ter presente que a conversão de dívida já é permitida no Brasil, embora de forma restrita desde julho de 1984, com a Carta Circular n. 1.125 do Banco Central, divulgada em novembro desse ano. Até 1981, a conversão era livre, mas não contava com incentivo de peso, seja oficial ou de mercado. Neste último caso, o incentivo inexistia porque as obrigações externas brasileiras não tinham desconto e a taxa de juros vinha em elevação (dadas a taxa de lucros e as possibilidades de remessa, quanto maior a taxa de juros, menor a vantagem da conversão).

Em 1982, antes da crise, o governo criou um incentivo à conversão, concedendo um crédito real (abatimento de imposto) equivalente a 10% do valor convertido. A boa vontade era tal que, quando a empresa receptora· do investimento não tivesse imposto a pagar suficiente para cobrir os 10%, poderia ser reembolsada diretamente pela diferença. Esse incentivo não foi retirado posteriormente (segundo semestre daquele ano), somando-se então ao deságio surgido em razão da crise (entre 12 e 20%). Por isso - e ainda face à desaceleração da subida dos juros e sua posterior queda - a conversão passou a ser extraordinariamente atraente, crescendo fortemente em 1983-1984; e o investimento direto, como se não bastassem outras razões, se retraiu.

Como mostra a Tabela 1, a conversão da dívida aumentou mais que três vezes entre 1982 e 1983, atingindo seu ponto mais alto em 1984 (746 milhões de dólares). Mesmo em 1985, depois das restrições estabelecidas em novembro do ano anterior, o valor das conversões foi alto, pois 75% dos 582 milhões de dólares já haviam sido autorizados antes dessa última data.

Sobre o processo de conversão, realizado nos últimos anos, convém assinalar que:

  • 1) face à queda do investimento tradicional, não se pode dizer que implicou “desnacionalização” relativa, considerando-se a economia em seu conjunto;

  • 2) até 1985 deve ter substituído parte do investimento direto tradicional. Mas, além de o fato da substituição ter sido parcial, é preciso notar que a queda do investimento tradicional foi muito forte em termos absolutos, permanecendo significativa mesmo descontando-se a conversão. Essa queda é reflexo de outros fatores que já apontamos;

  • 3) não garantiu necessariamente, na sua totalidade, a ampliação ou modernização do parque produtivo, como tende a ocorrer de forma mais clara no caso do investimento direto. No entanto, pode ter contribuído, nos casos de simples aumento de participação acionária, para o saneamento financeiro de empresas locais, melhorando sua posição patrimonial;

  • 4) do ponto de vista do balanço de pagamentos (que representa um fluxo), o ingresso de recursos novos foi mínimo, pois a conversão feita diminuiu uma parcela do estoque da dívida e permitiu economizar somente a fração de juros correspondente, além de possibilitar o envio de lucros e dividendos de acordo com os mesmos critérios dos investimentos diretos tradicionais. Em outras palavras, no balanço de pagamentos, a linha E da Tabela 1não representa uma compensação pelas “perdas” registradas na linha D. A soma de ambas (D + E) não indicaria o resultado líquido global sobre o balanço de pagamentos, uma vez que a linha E não expressa entrada de recursos, mas diminuição do estoque da dívida, em troca da ampliação do capital de risco externo na economia.

Para compreender melhor a restrição efetuada no final de 1984, cabe fazer uma distinção essencial no processo de conversão; referente à natureza da relação credor/devedor. Ou seja, se o débito externo de uma empresa localizada no Brasil é junto a sua matriz ou junto a uma instituição financeira.

A Carta Circular n. 1.125 do Banco Central (ver Anexo 1) manteve a permissão para o primeiro caso, isto é, conversão de dívida inter empresas. Essa modalidade é praticamente inevitável e não envolve ganho por deságio. Sua motivação depende do nível da taxa de juros externa comparado com a remessa de lucros permitida: quanto mais altos os juros (como em 1979-1983), passa a ser mais conveniente que a filial aumente capital via empréstimos da matriz; quanto mais baixos (pós - 1983), passa a ser mais conveniente o investimento direto (e a conversão).

  • 1
    Duas abordagens sobre conversão de dívida, que retomei aqui, estão no meu artigo “Conversão da Dívida”, Folha de São Paulo, de 30.6.1987, e no item 7.2 do boletim bimestral do Grupo de Análises de Conjuntura Econômica do CEBRAP (mai.-junho 1987, n. 26), “A Conversão da Dívida em Investimentos e as Novas Formas de Financiamento Externo”, escrito por Monica Baer.
  • 2
    Edmar Bacha (“Endividamento Externo”, manuscrito, abril de.1987) considera que “qualquer dólar novo, uma vez internalizado, entra na vala comum das obrigações brasileiras;’, passando a valer, hoje, não mais do que 55 centavos. Mesmo que essa relação não seja one to one, algum efeito certamente existe. Além disso, é óbvio que o maior deságio reflete um “clima” menos favorável para qualquer tipo de investimento novo.
  • 3
    Nos dois casos, se encaixariam bem as empresas estatais. Não é de estranhar, portanto, a frequência das propostas de conversão envolvendo estatais. A “vantagem”, no caso, seria a operação de limpeza do seu passivo, mediante ações preferenciais sem direito a voto. Mesmo assim, haveria duas barreiras de um lado, a resistência política interna; do outro, salvo exceções, sua pouca atratividade para o investidor externo.
  • 4
    Ver item 4 a seguir.
  • 5
    Ver boletim do CEBRAP, já citado.
  • 6
    Ou seja, que tais instituições comercializem parcelas da dívida brasileira e o investidor que as adquire possa convertê-las em capital de risco no Brasil, realizando total ou parcialmente o ganho do deságio.
  • 7
    Esse problema é extremamente relevante, quando se considera que o volume total de meios de pagamento no Brasil (MI) é da ordem de 10 bilhões de dólares.
  • 8
    Evidentemente, os leilões não seriam a única forma de disciplinar a conversão e orientar os investimentos a ela associados. Trata-se apenas de um exemplo.
  • 9
    Com relação a esse item, poder-se-ia, a título de exemplo, na seguinte proposta: o país avaliaria que proporção de juros vincendos (sobre dívida de médio e longo prazos) poderia pagar aos bancos privados dada a provável performance da balança comercial. Para a parcela não paga, abrir-se-ia a opção aos banqueiros de capitalização e/ou conversão em capital de risco, inclusive com cessão de crédito a terceiros, respeitando critérios que minimizassem o “efeito substituição” sobre os investimentos tradicionais. O efeito monetário da conversão nesses termos seria parecido, ceteris paribus, ao da capitalização. Outra ideia consistiria em permitir a conversão apenas para a parcela de dívida “securitizada” (trocada por bônus de longo prazo, com juros fixos e baixos, segundo a recente proposta brasileira), como forma de estimular segmentos de credores a aderirem a esse esquema.
  • 10
    JEL Classification: H63; F34.

Anexo 1

A Carta Circular n. 1.125, de 9.11.1984, preservou como passíveis de serem autorizadas as conversões, em investimento, de:

  • 1. créditos concedidos originalmente por entidades não financeiras do exterior (créditos inter-company);

  • 2. créditos de instituições financeiras internacionais, não precedidos de cessão de direitos creditícios;

  • 3. créditos que contassem com garantias de empresas no exterior, assumindo tais empresas a titularidade do investimento.

No segundo caso (dívida de uma empresa local junto a uma instituição financeira do exterior), a Circular n. 1.125 vedou a conversão de dívida externa junto a terceiros, ou seja, que um banco estrangeiro cedesse seu crédito a alguma empresa local para um investidor. Não proibiu, porém, a possibilidade de o banco credor tornar-se acionista da empresa devedora, ou de participar (ou ampliar sua participação) quando se trata de banco local devedor, mediante aumento de capital da instituição.

Após a Circular, a conversão parece ter sido realizada principalmente sob essa segunda modalidade (exceto os casos autorizados antes de meados de 1984), sendo seu raio de manobra ampliado por duas possibilidades: (1) um banco estrangeiro pode adquirir de outro um crédito ao Brasil e realizar a conversão na forma permitida; (2) quando o pagamento dos serviços da dívida externa foi feito por uma empresa local mediante depósito de cruzeiros (cruzados) no Banco Central, mas este não transferiu ao banco credor as divisas correspondentes (pelo fato de estar negociando a dívida), esse banco pode realizar a conversão investindo diretamente no mercado interno ou mediante participação em empresas existentes.

É importante compreender que tal modalidade pode chegar a viabilizar a venda de patrimônio com desconto, na hipótese de o banco credor tornar-se acionista de uma empresa local (ou ele próprio constituí-la) e, posteriormente, casar o novo ativo com o passivo, colocando-o, no exterior, junto a investidores virtualmente interessados em aplicar no Brasil. Ou seja, neste caso, o banco estaria atuando na função de trustee. Essa operação, em princípio não autorizada pela Carta Circular n. 1.125, permite a realização do lucro do deságio.

É sugestiva a forte elevação da conversão em 1987 (ver Anexo 2): até meados deste ano já se havia autorizado a conversão de quase 400 milhões de dólares, estando dois terços com o câmbio já fechado; havia, ademais, perdidos de conversão de cerca de 700 milhões de dólares sob exame no Banco Central. Para isso deve haver contribuído: (1) a nova deterioração das contas externas brasileiras no última trimestre de 1986, seguida da moratória, que aumentou o deságio das obrigações externas brasileiras; (2) a maior percepção e aceitação por parte dos bancos da dificuldade, não apenas de cobrar a dívida como também de receber os juros, e a maior capacidade (pelas provisões constituídas) para enfrentar essa situação. Um terceiro fator para explicar a retomada da conversão pode ter sido precisamente o procedimento mencionado no parágrafo anterior, que consistiria numa espécie de cessão de crédito não prevista na regulamentação existente. Caso isto esteja ocorrendo, de fato, seja inevítável alguma providência por parte das autoridades econômicas, convenientemente seguida por uma necessária e mais abrangente regulamentação para a conversão, como veremos mais adiante.

Anexo 2

Autorizações de conversão concedidas em 1987 (até 7 de julho)

  • Total US$ 376,3 milhões

  • Com câmbio fechado US$ 248,2 milhões

  • Com câmbio fechado US$ 128,1 milhões

Pedidos em exame (em 17.7.1987)

  • USS 702,5 milhões*

  • TOTAL US$ 1.078,8 milhões

Cabe ainda notar que depois da Circular n. 1.125 e não obstante a abertura para além das regras permitidas, ficou sem dúvida mais limitada a substituição de investimentos diretos tradicionais por investimentos baseados em conversão. Para as filiais de empresas internacionais já instaladas - com importante papel estratégico na economia e responsáveis pelo grosso dos investimentos estrangeiros-, depois da Carta Circular n. 1.125 e esgotadas as possibilidades de conversão decorrentes dos créditos inter-empresas (matriz-filiais), estreitaram-se bastante as alternativas de realizarem novos investimentos via conversão, uma vez que fechou-se o caminho da compra de obrigações externas brasileiras no mercado secundário para financiarem seus investimentos. Aliás, isso se evidencia no declínio dos montantes convertidos em 1985 e 1986 e na análise das conversões já aprovadas ou em exame para 1987, que registram proporções muito pequenas para essas filiais.

É também importante observar que a análise dos casos atuais de investimentos via conversão revela uma grande dispersão setorial e de ramos de atividade, sem um plano minimamente ordenado de direcionamento do capital estrangeiro, como houve durante os Governos Kubitscheck e Geisel.

OS ÂNGULOS DO PROBLEMA

Com vistas a avaliar melhor as questões até aqui colocadas e sugerir uma estratégia adequada, será útil fazer algumas qualificações essenciais a respeito do processo de conversão:

  • 1) a conversão de um dólar de dívida terá, evidentemente, uma contrapartida interna, seja emissão de dinheiro e/ou de títulos públicos. O efeito monetário interno, de certo modo, é equivalente ao do aumento de um dólar nas reservas. Como também é evidente, tal circunstância impõe um limite à conversão, sob pena de elevar· excessivamente a dívida e o déficit público internos (caso a conversão não seja feita sobre débito público externo) ou descontrolar a política monetária.

Esse impacto monetário interno pode ser matizado em duas circunstâncias. Por exemplo, se a empresa devedora para o exterior não recolheu os pagamentos de juros sobre sua dívida externa (em cruzados) no Banco Central, a conversão poderá não implicar extensão adicional de moeda (ou dívida) caso se traduza em participação acionária do detentor de obrigações externas na empresa devedora. Há também o caso de conversão de parcela do principal. Quando ela se realiza sob a forma de participação acionária na empresa devedora, implica troca de dívida por propriedade patrimonial, sem aumentar a emissão de moeda;3 3 Nos dois casos, se encaixariam bem as empresas estatais. Não é de estranhar, portanto, a frequência das propostas de conversão envolvendo estatais. A “vantagem”, no caso, seria a operação de limpeza do seu passivo, mediante ações preferenciais sem direito a voto. Mesmo assim, haveria duas barreiras de um lado, a resistência política interna; do outro, salvo exceções, sua pouca atratividade para o investidor externo.

  • 2) é importante distinguir conversão de dívida externa já contraída (estoque ou principal) de conversão de obrigações com juros vincendos. No primeiro caso, o efeito positivo imediato4 4 Ver item 4 a seguir. sobre o balanço de pagamentos será pequeno, pois o país economizaria somente os juros que pagaria pela parcela do estoque convertido, admitida a possibilidade de rolagem do principal da dívida.

Assim, caso sejam convertidos 100 dólares em capital de risco, à taxa de juros de 10%, o déficit em conta corrente decresceria em cerca de 10 dólares. Esta é uma diferença crucial entre entrada de capital de risco via conversão de estoque da dívida ou mediante investimentos diretos tradicionais. Seus efeitos são semelhantes quanto à expansão dos ativos externos na economia, mas diferentes no seu impacto sobre o balanço de pagamentos, pois o investimento tradicional traz um aporte de divisas ao balanço de pagamentos num montante igual ao seu valor.

No segundo caso, de conversão de obrigações com juros vincendos, ou seja, de parcela dos juros a serem pagos no ano seguinte (ou dentro de alguns meses), o efeito positivo sobre o balanço de pagamentos é superior ao da conversão de parcela do estoque de dívida e semelhante ao dos investimentos diretos. Seria, na verdade, uma forma de capitalizar juros e, portanto, a economia de divisas equivale ao valor global dos juros vincendos. Para os bancos, a conversão de juros vincendos não exerce atração comparável à da conversão do estoque da dívida, face a dificuldades contábeis e de imagem junto a seus depositantes. Na realidade, a conversão dos juros vincendos não cumpriria o seu principal objetivo, que seria o de “limpar” as suas carteiras de ativos5 5 Ver boletim do CEBRAP, já citado. , mas somente conteria o aumento da “poluição” futura;

  • 3) a conversão com obrigações de juros vincendos pressupõe, obviamente, que o país estivesse disposto a pagar (mesmo que não viesse a fazê-lo) uma parte dos juros a serem convertidos ou desejasse aliviar parte dos “custos” que a moratória acarreta. Evidentemente; se a moratória prossegue e não se considera relevante atenuar tais custos (inclusive políticos), convertendo uma parte dos juros vincendos que, de outra forma, entrariam na moratória, tanto faz falar de estoque da dívida como de juros vincendos;

  • 4) o capital de risco que ingressar via conversão gerará lucros e dividendos, que poderão ser remetidos. Sua maior vantagem ou desvantagem para o balanço de pagamentos, quando comparada à dívida correspondente, dependerá de três fatores: a) o nível da taxa de juros externa; b) a taxa de reinvestimento dos lucros auferidos; c) seus efeitos sobre a balança comercial do pais.

Ainda é importante considerar que, caso o país venha a implementar uma política minimamente adequada para administrar a conversão, não seria fácil impedir a concretização de algum “passeio dos lucros”, ou seja, a remessa de lucros ao exterior e seu retorno como investimento sob forma de conversão, a fim de realizar, neste caso, o sobrelucro do deságio. Isto porque a remessa de lucros está sujeita a um imposto de 25%, proporção dificilmente superior ao ganho efetivo do deságio pelo investidor.

DIRETRIZES

Face ao que foi explicado, pode-se concluir que o debate sobre a conversão de dívida não gira em torno do dilema de permiti-la ou não, mas sim em torno da ampliação do esquema já existente ou já autorizado, no sentido de permitir-se ou não (e com, no caso positivo) a cessão de crédito por parte de instituições financeiras credoras do Brasil.6 6 Ou seja, que tais instituições comercializem parcelas da dívida brasileira e o investidor que as adquire possa convertê-las em capital de risco no Brasil, realizando total ou parcialmente o ganho do deságio. Mais ainda, face aos desdobramentos da conversão autorizada, que vem crescendo de forma acelerada nos últimos meses e provavelmente extrapolando os limites da Carta Circular n. 1.125, cabe sublinhar a necessidade, urgente, de definição de uma política global referente à conversão de dívida em investimento.

Tal política, a meu ver, deveria basear-se em critérios que levassem em conta tanto os problemas a curto prazo do balanço de pagamentos, quanto os efeitos a médio e longo-prazos sobre o padrão de desenvolvimento da economia. Portanto, deveria ser inseparável de uma política industrial efetiva.

Os argumentos que desaconselham toda e qualquer conversão não são conclusivos, mas isto não significa que se possa ou se deve prescindir de uma estratégia cuidadosamente formulada. Uma política de livre conversão do estoque da dívida, que deixasse de lado a especificação de critérios de interesse do país e fosse baseada estritamente nas condições de mercado, trocando-se o registro de uma dívida pelo registro de investimento direto, ofereceria escassas vantagens, pois teria como contrapeso problemas de descontrole da política monetária, desnacionalização, contração ainda maior de investimentos diretos tradicionais e duvidosíssimo efeito positivo sobre o balanço de pagamentos a médio prazo. Por outro lado, o equívoco seria ainda maior se se propusesse que tal conversão, já tão livre, fosse acompanhada da isenção de importações e de vários benefícios desse porte nas atividades em que se realizasse o investimento correspondente.

Os caminhos e critérios fundamentais são, a nosso ver, os seguintes:

  • 1) a meta inicial de conversão deve situar-se em torno de USS 2 bilhões anuais, montante que, pelas dimensões atuais da economia, ainda estaria abaixo da tendência histórica dos investimentos externos e muito mais se se considera a atual propensão a resultados negativos na conta desses investimentos. Tal montante não conduziria à maior desnacionalização relativa da economia, mormente levando em conta outros critérios apontados adiante. Ao mesmo tempo, o ritmo da conversão efetiva ao longo do ano deveria ajustar-se à condução adequada da política monetária e do endividamento público domésticos;7 7 Esse problema é extremamente relevante, quando se considera que o volume total de meios de pagamento no Brasil (MI) é da ordem de 10 bilhões de dólares.

  • 2) o governo fixaria montantes mensais de conversão dentro do padrão anual estabelecido, e poderia, como forma de arbitragem, realizar, por exemplo, leilões entre os interessados. Os pontos a serem levados em conta positivamente seriam do tipo: a) ingresso de dinheiro novo e, preferencialmente, grau de repartição com o país dos ganhos do deságio; b) carência para à remessa de lucros e prazos para repatriação (fixados períodos mínimos para ambos).8 8 Evidentemente, os leilões não seriam a única forma de disciplinar a conversão e orientar os investimentos a ela associados. Trata-se apenas de um exemplo. Além disso, se daria prioridade a outros critérios, que mencionamos em seguida;

  • 3) dar-se-ia alta preferência à conversão de juros vincendos. A esse respeito, o governo poderia pagar os juros com títulos de valor de face equivalente ao valor dos juros que se deseja converter, para entrarem no leilão nessa condição inicial;

  • 4) os investimentos que resultassem de conversão deveriam ser analisados com maior preferência quando dirigidos ao acréscimo de ativos que quando destinados à compra de ativos existentes. As conversões que implicassem controle majoritário de empresa, até então nacional, não seriam autorizadas;

  • 5) deveria também ser dada preferência para conversão em investimentos que gerassem divisas líquidas (exportações ou substituições de importações) e/ou fossem importantes do ponto de vista tecnológico. Deveria levar-se em conta, também, a localização regional;

  • 6) neste último aspecto, poder-se-ia, a meu ver, dar prioridade ao Nordeste, região que carece de investimentos privados novos e que sofre em maior medida os problemas do subemprego, além de dispor, em certos casos, de razoável infraestrutura subaproveitada. O ritmo crescente das transferências tributárias, a manutenção dos incentivos fiscais (que não deveriam ser extintos mas reorganizados) e os grandes investimentos governamentais nessa região não parecem ser, e nem serão, suficientes para romper o círculo vicioso das desigualdades regionais, que cobram hoje um elevado preço politico-administrativo ao país. É crucial, para a ruptura desse círculo, a dinamização do investimento privado no Nordeste;

  • 7) para os investidores, as vantagens advindas da conversão (deságio) deveriam ser suficientes, não sendo necessários nem convenientes outros benefícios além dos já existentes (como o BEFIEX) para o capital de risco que opera no Brasil.

Em resumo, parece-me fundamental a definição de uma política para a conversão de obrigações externas em investimentos que: a) permita disciplinar o processo que já está em marcha, caracterizado pela pulverização ou aleatoriedade dos investimentos convertidos e, possivelmente, pela apropriação externa integral dos lucros do deságio ao menos para alguns investidores; b) sirva como instrumento para a renegociação da dívida em termos adequados;9 9 Com relação a esse item, poder-se-ia, a título de exemplo, na seguinte proposta: o país avaliaria que proporção de juros vincendos (sobre dívida de médio e longo prazos) poderia pagar aos bancos privados dada a provável performance da balança comercial. Para a parcela não paga, abrir-se-ia a opção aos banqueiros de capitalização e/ou conversão em capital de risco, inclusive com cessão de crédito a terceiros, respeitando critérios que minimizassem o “efeito substituição” sobre os investimentos tradicionais. O efeito monetário da conversão nesses termos seria parecido, ceteris paribus, ao da capitalização. Outra ideia consistiria em permitir a conversão apenas para a parcela de dívida “securitizada” (trocada por bônus de longo prazo, com juros fixos e baixos, segundo a recente proposta brasileira), como forma de estimular segmentos de credores a aderirem a esse esquema. c) se inscreva no conjunto de uma política industrial coerente que o Brasil necessita e não tem e que deve integrar variáveis como: absorção de tecnologia, poupança ou geração de divisas, localização regional, produção de insumos novos, saneamento financeiro.

Isto tudo se pressupor que a conversão representaria, necessariamente, uma desgraça ou que, ao contrário, seria uma fórmula mágica para os problemas do nosso desenvolvimento. Nem desastre nem panaceia. Trata-se apenas de um instrumento a mais, na política econômica atual, que pode ser bem ou mal utilizado.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Fev 2024
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 1988
Centro de Economia Política Rua Araripina, 106, CEP 05603-030 São Paulo - SP, Tel. (55 11) 3816-6053 - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: cecilia.heise@bjpe.org.br