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Alguns aspectos críticos da “nova macroeconomia keynesiana”

Some critical aspects of the “new Keynesian macroeconomics”

RESUMO

Este artigo argumenta que a nova “macroeconomia keynesiana” apresenta alguns pontos fracos ao ignorar os efeitos de longo prazo da demanda agregada sobre o funcionamento do sistema econômico. Para introduzir esta realidade, o artigo mostra que é necessário definir as relações entre o salário real e o desemprego de forma a iluminar as políticas cruciais de emprego e crescimento. Isso é feito através da introdução de uma função de investimento que permite determinar diferentes caminhos de longo prazo para a economia de acordo com o estado do “espírito animal” dos empresários.

PALAVRAS-CHAVE:
História do pensamento econômico; pós-Keynesianismo; novo-Keynesianismo

ABSTRACT

This paper argues that the new “Keynesian macroeconomics” presents some weak points by ignoring the long-run effects of aggregate demand on the working of the economic system. In order to introduce this1 reality, the paper shows that it is necessary to define the relationships between real wage and unemployment in a manner that sheds light on the crucial policies of employment and growth. This is done by introducing an investment function which makes possible to determine different long run paths for the economy according to the state of the “animal spirits” of the entrepreneurs.

KEYWORDS:
History of economic thought; post-Keynesianism; new Keynesianism

1. INTRODUÇÃO

O objetivo deste trabalho é analisar alguns aspectos da chamada mainstream macroeconomics, especialmente na sua versão keynesiana, tendo em vista mostrar que alguns de seus pressupostos, bem como suas conclusões, apresentam limitações que dificilmente podem torná-la um modelo de validade geral para analisar aspectos fundamentais das economias capitalistas contemporâneas, sobretudo emprego, inflação, crescimento e distribuição de renda.

Tais pontos críticos têm especial relação com a substituição do conceito de demanda agregada keynesiana-kaleckiana por um conceito de extração ortodoxa baseado no pressuposto de um efeito de “encaixe real”, também conhecido por “efeito Pigo-Patinkin”. Uma das consequências dessa substituição é a ideia da mainstream macroeconomics, aceita de maneira quase axiomática nos livros-texto atuais de macroeconomia, de que o desemprego nas economias capitalistas decorre da existência de instituições que geram certos tipos de rigidez nominais ou reais, especialmente de salários.1 1 Mankiw (1992) aponta como causas da rigidez salarial, além das apontadas tradicionalmente, isto é, a lei de salário mínimo e a ação dos sindicatos, os chamados “salários de eficiência”, que, apesar de estarem acima dos salários de equilíbrio do mercado, se fossem reduzidos, reduziriam a produtividade da mão-de-obra e os lucros das firmas; a essas causas podemos acrescentar os chamados contratos periodizados, ou staggered wage contracts, tais como estudados especialmente por Fischer (1977) e por Taylor (1979).

A utilização do mencionado conceito de demanda agregada, ao se basear na existência de tais formas de rigidez, permite estabelecer alguns resultados que podem ser entendidos em princípio como “keynesianos”; assim, torna-se possível explicar por que, em certas situações particulares, tais como choques de oferta ou choques de procura, justificam-se formas de política keynesiana, tal como atuação sobre a demanda agregada, justificativa essa que será reforçada se as expectativas dos agentes econômicos forem formadas racionalmente. Daí a observação de Mankiw de que em tais situações “os trabalhadores poderão estar desempregados não porque não estejam procurando efetivamente os empregos a que melhor se adaptem suas habilidades individuais, mas porque, em face dos salários vigentes, a oferta de trabalho excede a demanda. Esses trabalhadores estarão simplesmente esperando que vagas se tornem disponíveis” (Mankiw, 1992MANKIW, N. G. (1992). Macroeconomics. Nova York: Worth Publisher., pp. 126-7).

A longo prazo, porém, dada a suposição de que os agentes econômicos baseiam suas decisões em “expectativas formadas racionalmente” e dado o tipo de demanda agregada baseado nos “efeitos de encaixe real”, o sistema deverá tender naturalmente para uma forma de equilíbrio clássico (ou à “taxa natural de desemprego”), isto é, determinado pelo equilíbrio no mercado de trabalho, em cuja situação todo desemprego deve ser considerado voluntário.

O questionamento básico que se fará em relação a tal conclusão prende-se a dois fatos:

  • uma redução do salário real acompanhada de uma elevação no nível de emprego não pode ser considerada uma regra geral sem maiores qualificações. A qualificação presente nos modelos “novos keynesianos” é exatamente a existência de um “efeito de encaixe real”. Acontece, no entanto, que o “efeito de encaixe real” está longe de poder ser considerado um mecanismo de ajuste geral e universal, isto é, sua eficiência depende da existência de uma série de condições que nem sempre estão presentes no sistema econômico, como já mostraram Leijonhufvud (1968LEIJONHUFVUD, A. (1968). On Keynesian Economics and the Economics of Keynes. Nova York e Londres: Oxford.), Davidson (1985DAVIDSON, P. “Liquidity and not increasing returns is the ultimate source of unemployment equilibrium”. Journal of Post Keynesian Economics, 7 (3), primavera, 1985.), Dutt (1986-1987DUTT, A. K. (1986). “Wage rigidity and unemployment - the simple diagramatic views”. Journal of Post-Keynesian Economics, IX (2), inverno.) e Davidson e Smolensky (1964DAVIDSON, P. e E. Smolensky (1964). Aggregate Supply and Demand Analysis. Nova York: Harper and Row.);

  • em segundo lugar, e mais importante, ao se limitar o ajustamento do sistema econômico, no longo prazo, às consequências dos efeitos de “encaixe real” com “expectativas racionais”, está se excluindo da análise o papel estratégico das decisões capitalistas relativas aos investimentos; como também a possibilidade de mostrar em que situações os interesses dos macroagentes (capitalistas e assalariados) podem ser compatíveis, em um “regime cooperativo”, ou opostos, em um “regime conflitual”, para se utilizar a terminologia empregada por Marglin e Badhuri (Marglin e Badhuri, 1990MARGLIN, S. e A. Badhuri. (1990). “Profit Squeeze and Keynesian Theory”, in Marglin e Schor, eds. The Golden Age of Capitalism. Oxford: Clarendon Press.). Obviamente, a análise de steady-state, desenvolvida a partir do modelo de Solow, tal como utilizado pelo mainstream, não cumpre tais objetivos (v., sobre esse ponto, Taylor (1991TAYLOR, J. (1991). Income Distribution, Inflation and Growth. Cambridge: The MIT Press.), p. 81, nota 8).

Assim, tendo como objetivo desenvolver as questões anteriormente mencionadas, pretende-se abordar os seguintes pontos:

Na parte I, serão discutidos os conceitos de demanda agregada kaleckiana e keynesiana a partir das interpretações de Maglin e Badhuri (1990MARGLIN, S. e A. Badhuri. (1990). “Profit Squeeze and Keynesian Theory”, in Marglin e Schor, eds. The Golden Age of Capitalism. Oxford: Clarendon Press.) e de Taylor (1991TAYLOR, J. (1991). Income Distribution, Inflation and Growth. Cambridge: The MIT Press.), tendo em vista sua utilização tanto a curto como a longo prazos.

Na parte II, será discutido o conceito de demanda agregada da mainstream macroeconomics, tal como presente na maioria dos autores dessa linha, bem como nos principais textos de macroeconomia (Mankiw, Dombusch e Fischer, Hall e Taylor etc.), e que se baseia na “equação quantitativa” e no já mencionado efeito de “encaixes reais”. Nesse ponto, procura-se mostrar de que maneira se dá o ajuste do curto para o longo prazo, e porque nesse processo o conceito de demanda agregada é eliminado, tornando-se totalmente inócuo como explicação dos problemas de longo prazo do sistema econômico (distribuição, acumulação, emprego e crise).

Na parte III, serão contrapostas as consequências da análise de longo prazo, keynesiana e kaleckiana, permitidas pelo seu conceito de demanda agregada, ao caráter restritivo e a-histórico que marca a análise do mainstream neokeynesiano. Assim, procura-se mostrar a forma pela qual determinadas condições históricas podem gerar diferentes regimes de acumulação, tal como aconteceu com a economia capitalista no pós-guerra, de acordo com diferentes relações possíveis de ser estabelecidas entre salário real, investimento e emprego. Essa análise opõe-se claramente à visão neokeynesiana de que “as flutuações na demanda agregada afetam a produção e o emprego apenas a curto prazo” e de que “no longo prazo a economia retorna aos níveis de produção, emprego e desemprego descritos pelo ‘modelo clássico’” (Mankiw, 1992MANKIW, N. G. (1992). Macroeconomics. Nova York: Worth Publisher., p. 317).

I

A característica do equilíbrio nas análises de Kalecky e de Keynes é a causalidade do gasto capitalista na determinação do produto e da renda, o que nada tem a ver com a concepção de equilíbrio neokeynesiano.2 2 Sobre esse ponto, v. especialmente Taylor (1991), pp. 45 e 54. Considerando-se inicialmente a visão kaleckiana, podemos definir algumas variáveis e relações: supõem-se os salários nominais (W) como um dado, de tal modo que variações no salário real w=WP, em que P é o nível de preços - ou as variações da participação dos lucros na renda (p) -, decorrem de razões históricas e institucionais. As variações na renda serão identificadas por variações na relação produto/capital u=YK, supondo-se K constante, e Y dado em termos reais. Como modelo de determinação de preços se utilizará o modelo de mark-up, sendo posteriormente substituído, para se analisar Keynes, pelo critério convencional de equilíbrio, dado pela igualdade entre receita e custo marginais.

Veremos assim que o nível de preços é dado por

P = l + m W b (1)

onde m é a taxa de mark-up e b é o inverso da produtividade, isto é, nY, sendo n a mão-de-obra utilizada e Y o produto da economia.

De outro lado, podemos estabelecer a equação da distribuição da renda.

P Y = W b Y + r P K (2)

sendo r a taxa de retorno sobre o capital.

Podemos, também, estabelecer a partir de (2) o valor der, a taxa de lucro, por

r = P Y - W b Y P K = Y P - W b P K (3)

Substituindo-se em (3), (P - Wb) por (mwb), pode se obter

r = m 1 + m · Y K = π u (4)

em que a expressão

m 1 + m = m W b P

pode ser obtida por simples manipulação da equação (1). Estabelece-se, de outro lado, a condição de equilíbrio ex ante, dada pela igualdade

g s = g i (5)

onde gs é a taxa de crescimento do estoque de capital permitido pela taxa de poupança da economia. Supondo-se que apenas os capitalistas poupem, teremos

g s = s r P K P K (6)

sendo s a propensão dos capitalistas a poupar a partir dos lucros r P K.

De outro lado, gi corresponde à demanda de investimentos como um porcentual do estoque de capital, isto é, PIPK. Os argumentos de gi são a relação produto-capital, u, e a participação dos lucros na renda, p, de tal maneira que

g i = i π , u (7)

ou, alternativamente

g i = i r , u (7a)

A justificativa dessa função é dada por Taylor: “a relação u=YK é usada como uma medida da utilização da capacidade. Como um argumento, u representa uma versão contemporânea do acelerador introduzida por Kaldor e Steindl. A taxa de lucro r pode ser interpretada como um índice de rendimentos futuros esperados na base do senso comum ou na base da dinâmica de otimização e expectativas das firmas, como na teoria q do investimento proposta por Tobin e seguidores, e (com menos barulho) por Minsky (Taylor, 1991TAYLOR, J. (1991). Income Distribution, Inflation and Growth. Cambridge: The MIT Press. p. 43).

Ainda de acordo com Taylor, o conceito de mark-up como explicação do processo de determinação de preços tem a vantagem de ser coerente com os dados do setor não primário, no qual os preços costumam ser bastante estáveis, além de a justificação teórica para seu uso já ter sido dada por Kalecki, Steindl e Sylos Labini.

Assim, o modelo econômico que inclui as equações de (1) a (7) constitui-se num sistema macroeconômico completo por várias razões: impõe poucas restrições à oferta; os valores de m e de rt são decorrentes de variáveis institucionais, inclusive de política econômica, enquanto o coeficiente b tem a ver com a tecnologia e com as instituições de mercado. A estrutura causal do sistema depende dos determinantes das relações de input/output dadas pelas equações de l a 4 e do nível da demanda, conforme as equações que vão de 4 a 7 (cf. Taylor, op. cit., pp. 43 e segs.).

A partir deste ponto podem-se considerar as implicações do equilíbrio dado pela equação (5), isto é, gi = gs

Para tanto devem-se substituir os valores de gi e gs pelos valores dados nas equações (4), (6) e (7), de tal modo que

i π , u = s π u

ou

h = i π , u - s π u = 0

Diferenciando-se a equação implícita (8), teremos

α i α π · α π α i α u d u - α s π u α π d π + α s π u α u d u = 0

de tal maneira que, manipulando, temos

d u d π = α i α π - s u s π - α i α u (9)

Tradicionalmente supõe-se que um sistema como o representado na equação (9) será estável se a poupança for mais sensível que o investimento para uma dada variação na renda; no caso acima a estabilidade requer que sπ-αiαu>0.

Disso decorre que o sinal do numerador indica o que acontecerá com a produção dada uma certa variação da distribuição, isto é, da parcela dos lucros na renda (p), Considerando-se inicialmente uma redistribuição da renda em benefício dos lucros, isto é, uma elevação em p, verificar-se-á um aumento na atividade econômica, se o efeito de p sobre o investimento for grande. O aumento de valor do investimento deverá ser capaz de compensar, com vantagem, a queda do consumo dos assalariados decorrente de uma redução de seu salário real; para que tal ocorra deve-se supor também que a propensão dos capitalistas a poupar não seja muito elevada. Essa situação pode ser caracterizada pela condição αiαu-su>0.

Podemos considerar agora uma situação contrária, com uma queda inicial na parcela dos lucros (p) levando a um aumento de u.3 3 O salário real estará aumentando. Se o investimento não for muito sensível a rr, a renda poderá aumentar se s for elevado, pois então uma queda em p não implicará uma redução muito grande do consumo dos capitalistas. De outro lado, o investimento sendo sensível ao valor de u - terá sua queda compensada em parte.

As condições acima podem ser sintetizadas por αiαu-su<0

O que está exposto acima deixa claro que não se pode estabelecer uma única direção para as variações de u decorrentes de variações em p. Podemos estabelecer, através de um gráfico (Figura 1a), uma linha, função IS, que terá uma inclinação positiva ou negativa de acordo com os sinais que se obtenham no numerador de (9).

Assim, dudπ será positivo ou negativo de acordo com a sensibilidade dos valores nocionais do investimento e da poupança a variações em p e u.

Segundo a terminologia de Marglin e Badhuri (1990MARGLIN, S. e A. Badhuri. (1990). “Profit Squeeze and Keynesian Theory”, in Marglin e Schor, eds. The Golden Age of Capitalism. Oxford: Clarendon Press., p. 72), teremos um regime “expansionista” na primeira situação analisada, isto é, quando elevações nos valores de n: estiverem associadas a elevação nos valores de u, assim, dudπ>0; e teremos um regime estagnacionista se à redução nos valores de z corresponderem elevações dos valores de u, isto é, dudπ<0.

O regime estagnacionista, dado por dudπ<0, requer a existência de um “acelerador forte”, o que implica a expectativa, por parte dos capitalistas, de que uma elevação na taxa de utilização da capacidade (u), dada uma certa taxa de lucros, elevará a taxa de lucro esperada. Tal suposição torna-se necessária porque, quando aumenta a taxa de utilização - mantida constante a taxa presente de lucros-, a participação dos lucros na renda (p) estará caindo; assim, esse elemento, que passa a ter um efeito negativo sobre o investimento, será compensado pela elevação de u, na medida em que esta permite antecipar uma elevação futura de lucros.

Assim, dado que o sinal da função que relaciona distribuição e renda não pode ser definido sem que se considerem certas situações concretas, só podemos estabelecer em princípio que o equilíbrio macroeconômico deverá estar sobre uma curva como a representada a seguir (Figura 1a).

FIGURA 1a

FIGURA 1b

Deve-se notar que o modelo acima, além de expressar duas lógicas econômicas - estagnacionista e expansionista-, apresenta uma forma de indeterminação em termos de variações de p e u, que não é eliminada mesmo se introduzirmos, como fez Keynes, a forma de determinação do equilíbrio convencional, através da igualdade entre salário real e produto físico marginal da mão-de-obra. Para mostrar como isso ocorre, deve-se substituir inicialmente a equação de mark-up, como explicação do preço, por uma função de custos linearmente homogênea, que corresponde a uma função de produção com retornos constantes de escala. Supondo-se competição perfeita, admite-se que a remuneração de cada fator é igual à sua produtividade marginal.

Dessa maneira definindo-se o produto em termos monetários e sua distribuição por

P Y = W b Y + r P K ,

em que

W b Y = P M g N X N ,

e

r P K = P M g K X K .

Manipulando-se a equação acima chegamos a

w b P = 1 - r k Y

e a

w b P + p = 1 (10)

Admite-se, em tal função, substitutibilidade entre K e L, e que a elasticidade de substituição é dada por j.

Pode-se admitir, também, que j expressa a elasticidade da relação nY, isto é, b, que será uma função decrescente do salário real.4 4 Trata-se da função CES. Essa função estabelece que é sempre possível determinar a forma da relação entre e a taxa de salário, e que, cm consequência, a elasticidade da produtividade em relação à taxa de salário será também a elasticidade de substituição entre trabalho e capital (cf. Harcourt, 1972, pp. 52-3).

Combinando-se (8) e (10) pode-se obter uma nova condição de equilíbrio

i w , u - s - s w b u = 0 (11)

em p que é substituído por w na função de investimento, pois uma depende monotonicamente da outra (cf. Taylor, 1991TAYLOR, J. (1991). Income Distribution, Inflation and Growth. Cambridge: The MIT Press., p. 78).

Diferenciando-se a função implícita acima, chegamos às condições que permitem estabelecer o efeito de uma variação da taxa de salário sobre a renda ou sobre u.

d u d w = α i α w + s b u s π - α i α u (12)

Dado que se supõe como condições de estabilidade que

s π - α i α u > 0 ,

pode-se obter uma resposta “estagnacionista” ou “expansionista” de acordo com o sinal do numerador. Tal sistema tem sua representação gráfica dada na Figura 1b.

Para tornar mais claras essas duas possibilidades, devemos considerar o efeito de uma elevação de w no numerador de (11), isto é, em sbu. Nesta, a relação b é uma função inversa de w, com elasticidade j.

Se j < 1.0, b cairá menos do que w se eleva, de tal maneira que a participação dos salários, wb, se elevará aumentando o consumo e elevando u. Se uma reação do investimento a uma elevação do salário real for pequena [dado que em iw, u, αiαw<0], e a propensão a poupar dos capitalistas for grande, teremos que αiαw+sbu>0

Consideremos agora uma situação em que j >/1.0/, e que ocorra uma elevação do salário real. A primeira consequência será uma substituição de mão-de-obra por capital e uma queda do valor de b. Se supusermos uma queda da participação nos lucros (p), devido ao fato de o aumento de K ser neutralizado por uma redução de sua produtividade marginal e se o investidor for sensível a p, teremos um valor ­razoável para αiαw<0, e uma queda dos valores b e u, no numerador da equação (11), isto é, αiαw+sbu<0, justificando assim uma resposta “expansionista”, ou seja dudw<0.

II

Diante de tal análise, fica a dúvida sobre a possibilidade de se fazer uma generalização entre a queda dos salários reais e a elevação do emprego. Tal generalização só será possível pela substituição dos mecanismos básicos da demanda agregada, tal como analisados até agora, pelo efeito de “encaixes reais”.

De acordo com tal efeito, partindo-se do pressuposto de que os agentes econômicos detêm encaixes monetários, qualquer redução no nível geral de preços deixará tais agentes com maior riqueza, levando-os a gastar mais, aumentando a demanda e a produção. Consideremos como a introdução de tal conceito permite a obtenção dos efeitos admitidos pela macroeconomia do mainstream. Determina-se inicialmente uma função de demanda agregada de trabalho desenvolvida a partir da função agregada de produção indicada a seguir:

Y = f L , K , c o m f > 0 e f < 0

ou

Y K = F L K , 1 , e u = F L K , 1 (13)

Obtendo-se a função inversa de (13) e substituindo-a na equação de maximização de lucros em competição perfeita, isto é, wP=LK, obtemos

W P = F ' F - 1 Y K = F ' F - 1 u (14)

A função (14) representada no espaço WP, u corresponde a uma função de oferta nocional (un).

De outro lado, estabelece-se a partir da equação de trocas MV = PY a função, que, juntamente com a função u, determinará o equilíbrio macroeconômico, em termos de Y. Supondo-se M e V constantes, manipulando-se a expressão acima, multiplicando-se os dois lados por W e introduzindo-se u, teremos.5 5 Pode-se interpretar WP=uKWMV como uma função de demanda agregada, pois admitindo-se V e K constantes, para um dado valor de W uma elevação de u, deverá ter como consequência uma redução de P e, portanto, uma elevação de W. Obtém-se assim uma relação inversa entre variações de u e P.

W P = Y W M V = u K W M V (15)

Para tomar mais claro tal equilíbrio, vamos representá-lo juntamente com uma situação de equilíbrio nocional no mercado de trabalho clássico (Figura 2).

FIGURA 2

Os quadrantes I e III indicam os valores de equilíbrio que seriam obtidos se se realizasse o equilíbrio no mercado de trabalho, isto é, LK* e YK*. Suponhamos, porém, que, em função da rigidez salarial, os valores de LK e YK devam ser estabelecidos pela função de “demanda agregada” expressa por

W P = W u K M V

Teremos uma causalidade diversa da anterior (clássica) que se inicia em I e termina em III. Nesse caso o processo se iniciará em III e terminará em I. Isto é, dado WP1 determinado em III, teríamos YK1LK1.

De acordo com a função WukMV, dado um excesso de oferta no mercado de trabalho, no longo prazo uma redução de W deveria ocorrer aumentando a renda, elevando o emprego e reduzindo o salário real. Tal ocorreria porque uma redução de W reduziria o valor de P, fazendo com que os detentores de ativos monetários se sentissem mais ricos e aumentassem suas compras, elevando assim a demanda agregada e justificando uma queda em WP.

Pressupõe-se, assim, a existência de um “efeito de encaixe real” suficientemente forte para contrabalançar os mecanismos discutidos na parte I deste artigo, que podem justificar uma queda do salário real acompanhada de uma redução da produção.

A utilização de tal conceito de demanda agregada pelo mainstream keynesiano tem algumas consequências importantes.

A primeira delas, a que permite que tais modelos sejam identificados como keynesianos6 6 V. por exemplo Fischer (1977), pp. 196-8; Taylor (1979), p. 11 O; ou nos manuais tradicionais de macroeconomia; Dornbusch e Fischer (1985), pp. 202-2; Mankiw (1992), pp. 217 e segs. , é a de que, em certas circunstâncias - independentemente da racionalidade dos atores econômicos-, a existência de instituições como salários periodizados, salários de eficiência, etc. pode fazer com que no curto prazo a demanda agregada, dada por WukMV, não coincida com a situação em que toda mão-de-obra estaria empregada, isto é, dada pela intersecção de

F K , L s e F ' F - 1 Y K

Nesse caso seria possível, pelo aumento de oferta monetária - ou simplesmente por seu anúncio pelas autoridades monetárias, supondo-se “expectativas racionais”-, deslocar-se a demanda agregada para a direita, opondo-se tal hipótese à ideia da ineficácia da política monetária tal como afirmada pela “nova macroeconomia clássica”.

Consideremos, como um exemplo, uma forma de rigidez nominal de salários: o caso de contratos periodizados. Suponha um sistema em que os assalariados assinem contratos por dois períodos, e que eles conheçam as regras de política monetária, a estrutura do modelo e as condições de risco e usem racionalmente tais conhecimentos para estabelecer suas condições salariais. De outro lado, supõe-se que as autoridades tenham condições de alterar as regras do jogo, enquanto os assalariados devem ater-se aos termos do contrato.

Se houver, por acaso, um choque de oferta ou demanda que reduza a produção, as autoridades, ao anunciarem para o segundo período uma elevação da oferta monetária, estarão provocando uma elevação dos preços e uma redução dos salários reais no segundo período, o que provocará níveis de emprego e de produção maiores, neutralizando-se assim o efeito do choque mencionado. Porém, qualquer tentativa de as autoridades monetárias explorarem a estrutura de contratos existentes para produzir um tipo de comportamento diferente daquele visado quando da assinatura dos contratos7 7 Fischer observa que uma das contribuições mais importantes das “teorias das expectativas racionais” seria a possibilidade de reestruturação dos contratos, quando há alguma alteração de variáveis econômicas, e nesse sentido a existência de expectativas racionais seria um elemento equivalente a flexibilidade de preços e salários a longo prazo (Fischer, 1977, p. 204). De outro lado, Neary e Stiglitz argumentam que, “em economias com informações grandemente imperfeitas, as hipóteses de expectativas racionais e flexibilidade de preços, não são necessariamente equivalentes” (Neary e Stiglitz, 1983, p. 225). levará a uma reformulação da estrutura contratual (Fischer, 1977FISCHER, S. (1977). “Long terms contracts, rational expectations and the money supply rule”. Journal of Political Economy nº 85., p. 204).8 8 V. Mankiw (1992), p. 225 e segs.

Qual a outra consequência das hipóteses acima consideradas, isto é, de efeito de encaixes reais e de expectativas racionais dos assalariados, para o equilíbrio de longo prazo da economia?

Seria impossível, a longo prazo, estabelecer um nível de renda diverso do que corresponde ao equilíbrio no mercado de trabalho, ou à “taxa natural de desemprego”. No caso de haver um excesso de oferta de trabalho, W começará a cair, deslocando WuK Mv para a direita até o ponto em que YK for igual a WuKMV*. Nesse caso é inequívoca a relação entre queda do salário real e elevação da renda.

III

O ajustamento de longo prazo, tal como acima considerado, apresenta dois problemas críticos: o primeiro que será apenas mencionado aqui tem a ver com a suposição de um “efeito de encaixe real” suficientemente forte e generalizado para determinar a posição dos detentores de ativos na economia, se ocorrer uma queda dos preços. Se considerarmos que, no entanto, os ativos financeiros não são constituídos apenas pelo passivo das autoridades monetárias, mas também pelo ativo de pessoas, empresas e bancos, uma queda nos preços apenas redistribuirá riqueza de devedores para credores. Assim, “o efeito agregado no gasto real dependerá da extensão da redistribuição da riqueza e das derivadas parciais do gasto real (consumo e investimentos) em relação à riqueza real. Se os devedores tiverem uma maior propensão marginal a gastar que os credores, uma queda líquida no gasto real pode ser a consequência de uma queda nos preços” (Dutt, 1986-1987DUTT, A. K. (1986). “Wage rigidity and unemployment - the simple diagramatic views”. Journal of Post-Keynesian Economics, IX (2), inverno., p.284).9 9 V. também Davidson e Smolensky (1964), pp. 167-8.

O segundo problema, que parece ser mais importante, pois se desenvolve em um contexto dinâmico e não meramente estático, como o primeiro, é. que o conceito de demanda agregada tal como desenvolvido pelo mainstream macroeconomics é colocado em uma camisa-de-força, deixando de ter qualquer significado a longo prazo. O equilíbrio é determinado por condições que têm apenas a ver com a oferta (algo semelhante às offer-curves walrasianas). Uma delas, a condição de mercado em equilíbrio, especialmente dos mercados de trabalho [a função F (K,LSs)], corresponde a uma situação em que todos os assalariados estão sobre sua curva da oferta. A segunda condição, dada pela função F’ [F-1 (u)], corresponde à função de oferta das firmas, isto é, à função de maximização de lucros, que tem como correspondente no mercado de trabalho a função de demanda de trabalho (v. Figura 2).

Assim, a teoria da demanda agregada, ficando restrita ao curto prazo, não permite analisar o papel estratégico do investimento como força motora da economia, nem o papel fundamental do comportamento e dos objetivos das diferentes classes sociais em determinadas condições históricas.

Consideremos como tais elementos são incorporados no modelo desenvolvido em I, com base na igualdade investimento/poupança. De acordo com tal modelo puderam distinguir dois regimes: “expansionista” e “estagnacionista”, de acordo com os efeitos que a distribuição traria para a renda e o emprego. Com base em tal modelo podem-se distinguir também duas outras situações: “conflitual” e “cooperativa”. Nesta última, tanto assalariados como capitalistas têm um interesse comum na expansão da economia, enquanto na primeira um dos grupos perderá. Assim, se o interesse dos assalariados é dado pela massa de salários e o interesse dos capitalistas pela taxa de lucro, pode-se identificar um regime “cooperativo” independentemente do sinal da função IS, desde que sua inclinação seja bastante suave.

Um regime estagnacionista será cooperativo se a função IS for menos inclinada que uma curva de isolucros ou de isocrescimento descrita por uma hipérbole retangular derivada a partir de s p u pois s p u, = rs = gs.10 10 De acordo com a equação (4), sabemos que r = u.

Dada a igualdade acima, podemos representar graficamente as curvas de gi ri no espaço definido por p e u, sendo s, no caso, o shift parameter.

FIGURA 3

No caso representado na Figura 3 (como também em situações em que a inclinação de IS for positiva, porém mais suave que a das funções gi ri) haverá sempre uma relação positiva entre aumento da capacidade, lucratividade e massa salarial. Assim, considerando-se o caso de inclinação negativa, pode-se observar que um movimento ao longo de IS, do ponto A para o ponto B, indica um aumento da taxa de lucro r, bem como um aumento do salário real (p está caindo) e um aumento da massa de lucros.11 11 Verifica-se um aumento do estoque de capital e um aumento da rentabilidade. No caso de termos IS positiva, um aumento da capacidade, embora tivesse como consequência uma redução do salário real (p está se elevando), faria a massa salarial se elevar, desde que se obtivesse a condição abaixo.

Definindo-se a massa salarial por B

B = 1 - π u K ,

derivando-se B em relação a u

d B d u = 1 - n - u d π d u · K = 1 - π - u d π d u K ,

temos que dBdu>0 desde que 1-πu>dπdu

Segundo a tipologia de Marglin-Badhuri pode-se estabelecer que uma curva de inclinação negativa e suave descreve um regime estagnacionista e cooperativo (wage led growth). No caso de uma inclinação suave e positiva, o regime será expansionista e cooperativo (profit led growth). Deve-se ressaltar que um regime estagnacionista conflitual é improvável, já que taxas elevadas de crescimento seriam obtidas em situação de baixa utilização, isto é, com u reduzido.

A importância dessa análise é que ela estende para as configurações de longo prazo o conceito de demanda agregada. Consideremos a partir dela o auge de pós-guerra e a forma pela qual chegou ao fim. No imediato pós-guerra as margens de lucro eram altas em todo o mundo capitalista: nos EUA os ganhos de produtividade, que resultavam da racionalização da atividade produtiva durante a guerra, não tinham sido totalmente transferidos para os salários, enquanto no Japão e na Europa os salários tinham caído mais que a produtividade.

Acontece, então, que uma nova depressão era esperada para o pós-guerra, fazendo com que, em termos da nossa função de investimento, os investimentos fossem pouco sensíveis a r ou p.

Em tais circunstâncias, o remédio para a economia podia ter sido uma estratégia de crescimento wage led. Em termos de IS, uma função com uma pequena inclinação negativa, combinada com valores elevados de u, poderia ser mantida, por um razoável período de tempo, com elevação em r, embora com um valor de p em queda; explica-se assim o investimento pela ação do “acelerador forte”.

Quando se percebeu, no entanto, que a depressão prevista não se concretizou, mantendo-se ou mesmo se elevando a margem de lucros ao longo do tempo, passa-se a esperar uma rentabilidade maior do que a vigente, de tal modo que o investimento passa a ser mais sensível p do que a u. Isso significa, em termos formais, que αiαπ se torna maior que αiαu, fazendo com que a função IS torne-se mais inclinada. Pode-se considerar que essa análise caracteriza adequadamente o que ocorreu nos anos 50 e nos primeiros 3/4 dos anos 60. Ocorre, no entanto, que no fim dessa década verifica-se uma tendência para uma maior elevação dos salários reais e uma queda nos ganhos de produtividade.12 12 Na medida em que uma situação de pleno emprego se torna uma realidade e a memória da depressão se torna mais fraca, há uma tendência a mais reivindicações salariais, como também cai o custo da perda do emprego (encontrar novo emprego torna-se fácil). Ora, esse fato, como Kalecki (1971) já havia antecipado, implica uma redução dos padrões de disciplina na fábrica e uma consequente queda de produtividade.

As consequências desse processo poderão ser sintetizadas se combinarmos, com a parte da função IS correspondente a um regime estagnacionista, uma função de preços (PE) derivada a partir da equação (1). Podemos admitir que tal função, mantidos os salários e a produtividade, deverá inclinar-se positivamente conforme u se eleve, em decorrência de pressões de demanda (obviamente deslocamentos de tal função podem decorrer de variações autônomas dos salários e da produtividade). PE representa o equilíbrio do lado da oferta, isto é, a situação em que a taxa de mark-up, m, é compatível com um determinado nível de u.

Dessa forma, nas Figuras 4a e 4b tentaremos representar as variações estruturais acima mencionadas.

FIGURA 4a

FIGURA 4b

De acordo com a Figura 4a, podemos identificar as passagens do ponto A ao B com o que ocorreu nos anos 50 até o fim dos anos 60, quando o investimento se tornou mais sensível a uma variação de π, o chamado golden age do pós-guerra. No entanto, quando ocorrem as alterações na produtividade e na taxa de salários que marcam especificamente o fim dos anos 60, a economia ter-se-á deslocado do ponto B para o ponto C, ao longo de uma nova IS conflitual, acompanhando o deslocamento de PE para PE’. O resultado foi uma modesta elevação na taxa de utilização e uma queda em p e na taxa de lucro.

Novos elementos, no entanto, devem ser integrados à análise para caracterizar os anos 80: crescimento dramático do custo da energia; uma elevação da relação K/Y; uma política bastante tímida de manutenção da demanda agregada; e os efeitos plenos do fim de Breton Woods. Tais elementos justificam um deslocamento para baixo da função IS e um declínio das taxas de crescimento e rentabilidade associados a um dado equilíbrio, tal como pode ser observado na Figura 4b.

IV

A análise anterior procurou mostrar a forma pela qual determinadas condições econômicas, especialmente as determinantes do gasto capitalista em bens de capital, podem gerar diferentes regimes de acumulação de acordo com diferentes relações que se estabeleçam entre salários, investimento e preços. O problema que se procurou levantar não se prende, apenas, a uma visão mais ou menos adequada da evolução e das modificações do sistema econômico, mas também às implicações que diferentes visões podem ter para a definição de políticas econômicas. Desse ponto de vista, o reconhecimento da importância da demanda agregada a longo prazo tem implicações importantes.

De acordo com dados sistematizados por Armstrong e Glyn (1986ARMSTRONG, P. and A. Glyn (1986). Accumulation, Profits, State Spending. Oxford: Oxford University Press.) nos anos da crise, verificou-se para todos os principais países capitalistas, exceto o Japão, uma acentuada queda na participação dos lucros na renda (π), sem que caísse em proporção semelhante a participação do investimento. Se considerarmos a equação gs = s π u, e que tais economias estivessem operando próximas ou sobre suas funções IS, esse processo envolveu uma elevação da propensão a poupar s, em função de um aumento da parte dos lucros destinada ao investimento. A razão desse fato é explicada por Michael Bleaney:

(Isso ocorreu) “não porque as empresas estivessem esperando um crescimento da demanda, às taxas dos anos anteriores a 1973. A evidência das elevadas taxas de utilização de capacidade relativas à taxa de desemprego sugere que o investimento posterior àquele ano foi predominantemente defensivo e de racionalização: corte de custos pela introdução de novas técnicas, mas sem aumentar sensivelmente o potencial produtivo” (Bleaney, 1985BLEANEY, M. (1985). The Rise and Fall of Keynesian Economics. Macmillan., p. 193).

Diante disso a proposta mais natural, de um ponto de vista capitalista, para reverter tal situação seria a de uma retomada das taxas de crescimento do investimento, possível desde que houvesse um aumento da rentabilidade aos níveis daquele dos anos 50 e 60, capaz de compensar a elevação da relação capital/produto, consequência do choque da energia. (Uma tentativa nesse sentido caracterizou as políticas Thatcher e Reagan, baseada na hipótese de que uma restrição de demanda agregada, ao reduzir o poder de barganha sindical, elevaria a rentabilidade.)

A dificuldade, no entanto, da aplicação de tal política está em que a simples elevação momentânea da rentabilidade não tem condições de sustentar um processo continuado de elevação do investimento se os empresários não tiverem a certeza de uma razoável continuidade do processo de crescimento da demanda agregada. Lembre-se que o auge dos anos 50 e 60 decorreu não só do fato de ter desaparecido o temor de uma nova depressão, mas também, e principalmente, em razão das políticas oficiais de pleno emprego e crescimento, que estavam na ordem do dia nos principais países capitalistas, bem como em razão da realização efetiva dessas políticas nos momentos em que houve ameaças de recessão. Daí observar Bleaney “que é legítimo especular se tal condução da política macroeconômica teve efeito significativo para a confiança dos empresários e na propensão a investir”. O argumento de que tal política teve efeito significativo baseia-se na hipótese da existência de “expectativas racionais”: o fato de as instabilidades serem muito menores que no período do entreguerras ocorreu, em parte, porque os “negócios” acreditavam que a política macroeconômica seria efetiva em impedi-las, e assim o setor privado não cortou seus planos de investimento em período de recessão. Em outras palavras, o comportamento modificado do governo induziu o setor privado a crer que a experiência 1929-1933 não se repetiria; portanto, o investimento foi muito menos sensível a flutuações cíclicas na demanda, e o setor privado revelou uma grande estabilidade em seu comportamento (Bleaney, 1985BLEANEY, M. (1985). The Rise and Fall of Keynesian Economics. Macmillan., p. 128).

No entanto, hoje tais condições não ocorrem não apenas pelas razões ideológicas que estão por trás das políticas econômicas neoliberais, mas também por razões que têm a ver com a instabilidade do sistema financeiro internacional. Por isso mesmo, melhorias na rentabilidade podem deixar de estimular um processo de investimento. Assim, tudo indica que Marglin está correto ao afirmar que, “como no começo do golden age, o jogo estagnacionista do wage-led growth pode se tomar o único jogo possível de ser jogado” (Marglin, 1990MARGLIN, S. e A. Badhuri. (1990). “Profit Squeeze and Keynesian Theory”, in Marglin e Schor, eds. The Golden Age of Capitalism. Oxford: Clarendon Press., p. 183).13 13 “As at the beginning of the golden age, the stagnationist game of wage-led growth could turn out to be the only game in town.”

V

O objetivo deste artigo foi apontar alguns aspectos críticos da “nova macroeconomia keynesiana”, através de sua comparação com um modelo de inspiração kaleckiana-keynesiana. Mediante esse modelo, procurou-se mostrar que uma análise baseada no conceito de demanda agregada é de importância fundamental, tanto a curto quanto a longo prazo, contrariando a postura dos neokeynesianos, segundo a qual tal análise vale apenas para o curto prazo. Mostrou-se que essa conclusão depende de uma concepção quantitativa da moeda juntamente com a presença de um “efeito de encaixe real”. Se a esses conceitos adicionarem-se “expectativas racionais e/ou flexibilidade de preços a longo prazo”, o destino da economia já estará definido (equilíbrio de pleno emprego), embora a curto prazo, em certas circunstâncias, se abra a possibilidade para a aplicação de políticas monetárias ou mesmo fiscais.

Normalmente, duas possibilidades críticas podem ser definidas a partir de tal análise: uma que mostra a não-generalização dos efeitos de “encaixe real”, e a outra, aqui adotada, no sentido de apontar em que o modelo kaleckiano-keynesiano é mais adequado não só para mostrar como se relacionam algumas variáveis macroeconômicas básicas - investimento, salários reais, produção e emprego-, como também para explicar alguns processos históricos cuja influência até hoje nos afeta, e que têm a ver com a evolução de capitalismo do pós-guerra: seu auge, sua crise e a inadequação das políticas econômicas aplicadas nesse contexto.

Assim, a despeito de sua contribuição importante para a análise de alguns aspectos microeconômicos do sistema capitalista, os neokeynesianos não têm muito a dizer sobre as políticas de estabilização, que vão além do curto prazo, como se pretendeu mostrar no conjunto deste artigo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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  • TAYLOR, J. (1979). “Staggered wage setting in a macromodel”. American Economic Review 69(2).
  • TAYLOR, J. (1991). Income Distribution, Inflation and Growth Cambridge: The MIT Press.
  • 1
    Mankiw (1992MANKIW, N. G. (1992). Macroeconomics. Nova York: Worth Publisher.) aponta como causas da rigidez salarial, além das apontadas tradicionalmente, isto é, a lei de salário mínimo e a ação dos sindicatos, os chamados “salários de eficiência”, que, apesar de estarem acima dos salários de equilíbrio do mercado, se fossem reduzidos, reduziriam a produtividade da mão-de-obra e os lucros das firmas; a essas causas podemos acrescentar os chamados contratos periodizados, ou staggered wage contracts, tais como estudados especialmente por Fischer (1977FISCHER, S. (1977). “Long terms contracts, rational expectations and the money supply rule”. Journal of Political Economy nº 85.) e por Taylor (1979TAYLOR, J. (1979). “Staggered wage setting in a macromodel”. American Economic Review 69(2).).
  • 2
    Sobre esse ponto, v. especialmente Taylor (1991TAYLOR, J. (1991). Income Distribution, Inflation and Growth. Cambridge: The MIT Press.), pp. 45 e 54.
  • 3
    O salário real estará aumentando.
  • 4
    Trata-se da função CES. Essa função estabelece que é sempre possível determinar a forma da relação entre e a taxa de salário, e que, cm consequência, a elasticidade da produtividade em relação à taxa de salário será também a elasticidade de substituição entre trabalho e capital (cf. Harcourt, 1972HARCOURT, G. C. (1972). Some Cambridge Controversies in the Theory of Capital. Cambridge University Press., pp. 52-3).
  • 5
    Pode-se interpretar WP=uKWMV como uma função de demanda agregada, pois admitindo-se V e K constantes, para um dado valor de W uma elevação de u, deverá ter como consequência uma redução de P e, portanto, uma elevação de W. Obtém-se assim uma relação inversa entre variações de u e P.
  • 6
    V. por exemplo Fischer (1977FISCHER, S. (1977). “Long terms contracts, rational expectations and the money supply rule”. Journal of Political Economy nº 85.), pp. 196-8; Taylor (1979TAYLOR, J. (1979). “Staggered wage setting in a macromodel”. American Economic Review 69(2).), p. 11 O; ou nos manuais tradicionais de macroeconomia; Dornbusch e Fischer (1985DORNBUSCH, R. e S. Fischer. Macroeconomics. McGraw-Hill, Inc.), pp. 202-2; Mankiw (1992MANKIW, N. G. (1992). Macroeconomics. Nova York: Worth Publisher.), pp. 217 e segs.
  • 7
    Fischer observa que uma das contribuições mais importantes das “teorias das expectativas racionais” seria a possibilidade de reestruturação dos contratos, quando há alguma alteração de variáveis econômicas, e nesse sentido a existência de expectativas racionais seria um elemento equivalente a flexibilidade de preços e salários a longo prazo (Fischer, 1977FISCHER, S. (1977). “Long terms contracts, rational expectations and the money supply rule”. Journal of Political Economy nº 85., p. 204). De outro lado, Neary e Stiglitz argumentam que, “em economias com informações grandemente imperfeitas, as hipóteses de expectativas racionais e flexibilidade de preços, não são necessariamente equivalentes” (Neary e Stiglitz, 1983NEARY, J. P. e J. E. Stiglitz. (1983) “Towards a reconstruction of Keynesian economics: expectations and constrained equilibria”. Quarterly Journal of Economies nº 98, suplemento., p. 225).
  • 8
    V. Mankiw (1992MANKIW, N. G. (1992). Macroeconomics. Nova York: Worth Publisher.), p. 225 e segs.
  • 9
    V. também Davidson e Smolensky (1964DAVIDSON, P. e E. Smolensky (1964). Aggregate Supply and Demand Analysis. Nova York: Harper and Row.), pp. 167-8.
  • 10
    De acordo com a equação (4), sabemos que r = u.
  • 11
    Verifica-se um aumento do estoque de capital e um aumento da rentabilidade.
  • 12
    Na medida em que uma situação de pleno emprego se torna uma realidade e a memória da depressão se torna mais fraca, há uma tendência a mais reivindicações salariais, como também cai o custo da perda do emprego (encontrar novo emprego torna-se fácil). Ora, esse fato, como Kalecki (1971KALECKI, M. (1971). Selected Essays in the Dynamics of Capitalist Economy. Cambridge: Cambridge University Press.) já havia antecipado, implica uma redução dos padrões de disciplina na fábrica e uma consequente queda de produtividade.
  • 13
    “As at the beginning of the golden age, the stagnationist game of wage-led growth could turn out to be the only game in town.”
  • 14
    JEL Classification: B22; E12.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 1994
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