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Dívida e inflação

Debt and inflation

RESUMO

Esta breve nota trata da situação atual em que a maior parte da dívida pública no Brasil está indexada à inflação, o que leva à impossibilidade por parte do governo de reduzir sua dívida por meio da monetização.

PALAVRAS-CHAVE:
Dívida pública; inflação

ABSTRACT

This short note deals with the current situation where most of the public debt in Brazil is indexed to inflation, which leads to the impossibility by the government of reducing its debt through monetization.

KEYWORDS:
Public debt; inflation

Devido à indexação quase total da dívida pública federal (títulos e dívida bancária interna e externa), o governo não tem mais possibilidade de, através de monetização do déficit, reduzir seu já elevado endividamento. A menos que sejam adotadas medidas fiscais contracionistas e/ou os juros reais caiam e/ou o PIB continue crescendo a taxas elevadas, mais cedo ou mais tarde, o governo poderá ter que monetizar o déficit, com óbvias implicações sobre o atual patamar inflacionário.

O crescimento da relação dívida/PIB, d, é descrito aqui a partir da restrição orçamentária consolidada (Tesouro, Estatais e Autoridades Monetárias):

d ^ = x d + i γ - η ,

onde d^ é a taxa de crescimento daquela relação, x representa o déficit não-financeiro (exclui juros) como proporção do PIB no período base, i a taxa nominal de juros (inclui juros e correção monetária e exclui impostos), γ é a parcela da dívida que paga juros, ou seja, a proporção entre dívida onerosa e o passivo total do governo (dívida e base monetária), e η é a taxa de crescimento nominal do PIB.1 1 Ver J. Tobin, “Budget Deficits, Federal Debt, and Inflation”, in Restructuring the Federal Budget, A. T. Sommers (ed.), Nova Iorque, Prarger, 1984. Essa expressão pode ser aberta para mostrar o problema da indexação num regime altamente inflacionário. Reescrevendo-a obtém-se:

d ^ = x d + r + π γ - g + π ,

onde r representa a taxa real de juros, g o crescimento do PIB e π a taxa de inflação. Recolhendo-se os termos em π, chega-se a:

d ^ = x d + r γ - π 1 - γ - g (1)

O primeiro termo reflete a pressão fiscal do governo sobre o setor privado (pode ser positivo ou negativo); os segundo e terceiro termos dão o custo efetivo da dívida - cresce com a taxa de juros e decresce com a inflação (imposto inflacionário), ponderados pelo parâmetro de política rnonetária γ; o último termo, a taxa de crescimento real de PIB faz, evidentemente, diminuir o crescimento dessa relação.

Neste exemplo, a inflação contribui inequivocamente para atenuar o custo da dívida. Isto porque, da maneira como foi especificado o encargo da dívida, os juros não incidem sobre a inflação, ou seja, sobre a correção monetária. Em outras palavras, a dívida não é indexada. Se o grosso dos encargos da dívida fosse a taxas prefixadas, e o nível da inflação não fosse elevado, essa especificação teria grande poder explicativo.2 2 A taxa real de juros e de crescimento do PIB é aplicada, respectivamente, sobre o estoque da dívida e o PIB do período inicial, e não do final. Isto não faz muita diferença quando a inflação é pequena, mas, quando o parâmetro tt é superior à unidade, essa especificação pode levar a distorções, como se verá adiante.

Entretanto, no Brasil, o governo paga juros reais aplicados sobre uma correção monetária, ou cambial, pós-fixada e muito elevada. Neste caso, a taxa nominal de juros é descrita com mais vantagem por i = r (1 + π) + π e não simplesmente por i = (r + π), como se fez acima. Assim, substituindo-se a nova especificação na restrição orçamentária e, dando-se o mesmo tratamento nessa expressão para o crescimento do produto, obtém-se:

d ^ = x d r 1 + π + π γ - g 1 + π + π

que, recolhidos os termos em n, apresenta-se como:

d ^ = x d + r 1 + π γ - π 1 - γ - g 1 + π (2)

A diferença entre as duas especificações está no segundo e último termo dessa expressão. A partir do momento em que a divida está indexada, ou seja, o governo paga juros sobre a inflação, o custo efetivo da dívida se eleva sobremaneira, na medida em que o termo n.aí se apresenta explicitamente. No Brasil, a inflação está na casa dos 200% ao ano; portanto, o parâmetro π’’ é igual a 2. A magnitude desse número é tal que pode tornar explosivo o endividamento público, além de fazer inoperantes os instrumentos clássicos de política monetária. Nesse caso é imprescindível crescer para estabilizar essa relação.3 3 Note-se que somente quando r-ye g são iguais, as duas formulações levam ao mesmo resultado.

Para ver isso melhor, convém substituir nas duas expressões os valores das variáveis aí explicitadas. Estimativas preliminares sugerem que o déficit não-financeiro aproxima-se de zero: os encargos financeiros totais do governo, Cr$· 80 trilhões, são praticamente iguais ao seu déficit de caixa em 1985. A taxa real de juros aqui utilizada será de 12% ao ano. O parâmetro-y aproxima-se de 95% e o crescimento anual do PIB, de 7%. Com esses dados, o custo efetivo da divida, caso esta não fosse indexada, seria praticamente nulo; como decorrência, conforme expressão (1), o grau de endividamento público poderia estar decrescendo à taxa de 7% ao ano.

Entretanto, a dívida é quase totalmente indexada e o nível de inflação é elevado. Portanto, a especificação alternativa é mais interessante para testar a estabilidade do endividamento público no Brasil. Após substituição dos mesmos valores na segunda especificação, expressão (2), conclui-se que o custo efetivo da dívida se eleva de zero para 24%·ao ano. Neste caso, reduzidos déficits fiscais e elevadas taxas de crescimento do PIB são insuficientes para reverter o impacto do excessivo custo financeiro no crescimento da relação dívida/PIB, que aumenta à taxa de 3% ao ano.

O superávit fiscal não-financeiro teria que se elevar para estabilizar a relação dívida/PIB; alternativamente, a taxa real de juros teria que cair dois pontos percentuais, para que o mesmo resultado fosse alcançado. Também, com o PIB crescendo 8% ao ano o problema estaria praticamente· resolvido. Note-se, políticas monetárias expansionistas, destinadas a atenuar o elevado passivo do governo, através de maiores taxas nominais de juros e depreciações da dívida, são ineficazes no caso brasileiro, já que o principal está indexado.

O endividamento público, entretanto, não está fora de controle, se se confiar nos números aqui apresentados. Menores gastos e mais impostos e tarifas podem estabilizar a relação dívida/PIB, desde que seja mantido o elevado nível de atividade e que menores taxas reais de juros possam ser obtidas. Mas, isto não é suficiente para que o governo recupere seus instrumentos de política monetária.

De fato, ele pode estar numa armadilha; políticas contracionistas pressionam os juros reais, desestimulam o crescimento e aumentam o endividamento, com mínima repercussão sobre a inflação. Políticas expansionistas, ao fazer a inflação disparar, elevam os juros nominais, sem reduzir nesse processo o endividamento, porque a dívida está indexada; dada a rigidez para baixo dos juros reais, tampouco se elevam os investimentos. Portanto, dentre os maiores desafios que o governo enfrenta hoje, surge; em primeiro plano, a necessidade de rever o sistema monetário e desindexar a economia.

  • 1
    Ver J. Tobin, “Budget Deficits, Federal Debt, and Inflation”, in Restructuring the Federal Budget, A. T. Sommers (ed.), Nova Iorque, Prarger, 1984.
  • 2
    A taxa real de juros e de crescimento do PIB é aplicada, respectivamente, sobre o estoque da dívida e o PIB do período inicial, e não do final. Isto não faz muita diferença quando a inflação é pequena, mas, quando o parâmetro tt é superior à unidade, essa especificação pode levar a distorções, como se verá adiante.
  • 3
    Note-se que somente quando r-ye g são iguais, as duas formulações levam ao mesmo resultado.
  • JEL Classification: E31; H63.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 1986
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