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Quem tem mais recursos para governar? Uma comparação das receitas per capita dos estados e municípios brasileiros * * Os resultados, interpretações e conclusões são exclusivamente dos autores e não devem ser associados de maneira nenhuma ao Banco Mundial ou a suas organizações filiadas. Agradecemos a Ana Dolores Novaes os comentários valiosos sobre o artigo (e as correções de gramática).

Who has the most resources to govern? A comparison between states and local governments per capital revenue

RESUMO

Este artigo examina as diferenças nas receitas per capita nos estados e capitais de municípios do Brasil. Ele fornece uma visão geral teórica dos programas de equalização fiscal do Brasil (os Fundos de “Participação” estaduais e municipais). O documento fornece evidências de que esses programas não estão apenas falhando em atingir seus objetivos de equalização, mas também estão criando padrões distorcidos de receita per capita entre estados e municípios: alguns estados e municípios economicamente pobres têm receita per capita muito acima da média nacional. Esse padrão de receita per capita deve ser levado ao conhecimento do público e dos formuladores de políticas, para que eles possam: (i) avaliar melhor o desempenho dos governos estaduais e locais e (ii) avaliar melhor as propostas de revisão do sistema de federalismo fiscal do Brasil.

PALAVRAS-CHAVE:
Gasto público; federalismo fiscal; relações intergovernamentais

ABSTRACT

This paper examines differences in per capita revenues across Brazil’s states and capital municipalities. It provides a theoretical overview of Brazil’s fiscal equalization programs (the State and Municipal “Participation” Funds). The paper then provides evidence that these programs are not only failing to meet their equalization objectives, but in addition they are creating distorted patterns of revenues per capita across states and municipalities: some economically poor states and municipalities have revenues per capita far above the national average. This pattern of revenues per capita should be brought to the public’s and policy makers’ attention so that they may: (i) better evaluate the performance of state and local governments, and (ii) better evaluate proposals for revising Brazil’s system of fiscal federalism.

KEYWORDS:
Public expenditure; fiscal federalism; intergovernmental relations

1. INTRODUÇÃO

Uma comparação das receitas per capita dos governos estaduais e municipais revela um fato marcante no Brasil: estados e municípios com populações relativamente ricas não necessariamente têm governos com recursos correspondentes. Essa constatação talvez não surpreenda devido à importância das transferências intergovernamentais no Brasil. Essas transferências têm como objetivo explícito diminuir as diferenças regionais na capacidade de financiar as atividades dos governos estaduais e municipais. Como consequência, estados menos desenvolvidos economicamente desfrutam níveis mais altos de receitas per capita. Neste artigo, apresentamos os dados comparativos de receitas e discutimos a necessidade de divulgação desses dados para que os cidadãos brasileiros possam avaliar melhor o desempenho de seus governos estaduais e municipais. Através desta discussão, pretende-se contribuir para uma melhor compreensão das recentes propostas de mudanças no atual sistema do federalismo fiscal no Brasil.

2. CONCEITOS GERAIS

Como regra geral, entre as grandes repúblicas federativas como o Brasil, os Estados Unidos, o Canadá e a Índia, não existe um consenso sobre o melhor modelo federalista de governo. A literatura de economia e ciência política apresenta algumas regras gerais sobre as vantagens e desvantagens na alocação de bens e serviços públicos entre as três esferas de governo (federal, estadual e local). Por exemplo, governos locais, democraticamente eleitos, estão em melhor posição para escolher um conjunto de produção de bens e serviços públicos que correspondam mais nitidamente às demandas de suas populações locais. O governo federal, por outro lado, deve ter poder de decisão sobre o volume de oferta de certos bens públicos que têm um efeito sobre o país como um todo. Esse é, por exemplo, o caso das despesas com a defesa nacional, em que a centralização leva a economias de escala na produção desse bem. Há um teorema simples que diz que a esfera mais “baixa” na hierarquia federal-estadual-local que possa internalizar o efeito de uma externalidade deve-se responsabilizar pelas políticas públicas que lidam com aquela externalidade1 1 Para maiores detalhes, ver Wallace Gates, Fiscal Federalism, 1972. .

Além desse complexo problema sobre qual esfera deve ser responsável pela oferta dos diferentes bens e serviços públicos, há o problema paralelo de repartição da receita entre os três níveis de poder. Um dos princípios básicos de finanças públicas sugere adequar o sistema de arrecadação à alocação de responsabilidades. Na prática, contudo, esse objetivo pode ser difícil de alcançar. Um exemplo ajuda a entender melhor essa dificuldade. Durante a década de 80, o Distrito Federal de Washington, nos Estados Unidos, aumentou as alíquotas do imposto de renda2 2 Nos Estados Unidos, em adição ao imposto de renda federal, existe o imposto de renda estadual. . O resultado foi uma forte emigração da população em direção aos subúrbios próximos nos estados vizinhos, onde o imposto de renda estadual é menor. Na literatura, esse problema é conhecido como “a mobilidade da base tributável” (isto é, as pessoas e empresas fogem de locais onde os impostos são altos). Ademais, cobrar taxas ao nível local de quem recebe os benefícios dos serviços locais pode contribuir para a criação tanto de desequilíbrios verticais entre as diferentes esferas de governo como de desequilíbrios horizontais em termos de diferenças econômicas entre estados ou entre municípios.

Após essa pequena digressão, chegamos finalmente ao tema desta comunicação: as diferenças nas receitas orçamentárias entre os estados e municípios brasileiros. Como no Canadá e na Austrália, o sistema federalista brasileiro inclui um mecanismo fiscal para diminuir as diferenças regionais em termos de receita fiscal. A ideia básica é capacitar, em termos financeiros, todos os estados e municípios a produzir um nível mínimo de bens e serviços públicos. No Brasil, os instrumentos são o Fundo de Participação dos Estados (FPE) e o Fundo de Participação dos Municípios (FPM). Na verdade, cada Fundo de Participação tem uma função dupla: descentralização da administração pública e correção das desigualdades regionais. Em outras palavras, o FPE e o FPM são utilizados para repartir a arrecadação federal com as outras duas esferas de governo (descentralização) e ao mesmo tempo para ajudar a melhorar a situação financeira dos governos dos estados e municípios de renda per capita menor que a média nacional. Alguns políticos já sugeriram que o atual papel constitucional do FPE e do FPM acarretou uma descentralização exagerada da receita. Como consequência, esse fato está gerando um desequilíbrio entre as responsabilidades de cada esfera de governo, já que as responsabilidades não foram transferidas de maneira correspondente a essa capacidade.

Nesta comunicação, concentramos nossa discussão na segunda função do FPE e do FPM: a correção das desigualdades regionais. No Brasil, desenhar um mecanismo de transferências fiscais com tal objetivo é, obviamente, mais complicado do que num país como o Canadá ou a Austrália, onde as diferenças econômicas entre as regiões não são tão severas. O objetivo deste artigo não é sugerir um modelo específico de como dividir o “bolo” do FPE e do FPM, pois a fórmula de alocação do “bolo” já utiliza critérios razoáveis, como o índice do Produto Interno Bruto (estadual) per capita de cada estado.

Na seção seguinte, a execução financeira de cada estado nos últimos anos é analisada de forma a se entender melhor como o atual sistema está funcionando.

3. UMA COMPARAÇÃO DAS RECEITAS PER CAPITA

Os dados das receitas totais per capita de cada unidade da federação brasileira (os 26 estados mais o Distrito Federal) durante os anos 1989 a 1991 são apresentados na Tabela 1. As receitas incluem as transferências e operações de crédito. Apesar da existência dos fundos FPE e FPM, o nível de dispersão medido através do coeficiente de variância3 3 O coeficiente de variância é definido como desvio-padrão/média e representa a distância média entre as receitas per capita de um estado qualquer e a média nacional-como um porcentual da média nacional. é bastante alto: entre 72% e 83%. Note-se, por exemplo, que a receita per capita de um estado pequeno como Roraima pode ser três vezes maior que a de São Paulo. Surpreendentemente, os estados da Região Norte estão entre os estados com receitas per capita mais elevadas. O fato de esses estados terem uma área geográfica extensa sob sua jurisdição pode explicar parte dessa colocação no ranking. Outra explicação para essa posição seria a baixa densidade populacional da região, que impede esses estados de aproveitar economias de escala na produção de certos bens públicos. Também, durante o período em análise, estados recém-criados como Roraima e Amapá estavam passando pela fase inicial de implantação de um governo estadual, enfrentando despesas iniciais extraordinárias que exigiam transferências adicionais da União ou operações de crédito adicionais4 4 Deve-se notar que a situação do Distrito Federal é única no sentido de ter uma administração conjunta de governo municipal e estadual. . Enfim, diferenças na receita per capita entre estados (ou municípios) podem ser explicadas de várias maneiras: um índice alto pode ser evidência de uma alta eficiência na arrecadação de impostos estaduais (ou municipais).

Tabela 1
Receitas totais per capita dos governos estaduais e do Distrito Federal, 1989-1991 x1.000 Cr/Cz/etc correntes

Uma comparação das receitas per capita das prefeituras das capitais revela uma taxa de variância ainda mais elevada (ver Tabela 2). Alguns estados mudam de posição entre o “ranking” dos governos estaduais e o “ranking” dos governos municipais. Isso significa que provavelmente maiores transferências da esfera estadual estão sendo feitas em direção às capitais onde existe uma maior concentração da população estadual.

Tabela 2
Receitas totais per capita dos governos municipais das capitais, 1989-1991 Cr/Cz correntes

4. CONCLUSÃO

Neste artigo, não é nossa intenção sugerir que o sistema federalista brasileiro deveria ter como objetivo estabelecer um nível igual de receitas per capita para todos os estados e outro nível igual para todos os municípios. Esta nota, porém, sugere que o FPE e o FPM não estão cumprindo seu papel como deveriam e já existem propostas sendo discutidas entre políticos e acadêmicos brasileiros de revisar o atual sistema de transferências fiscais no Brasil.

Nossa intenção é enfatizar a importância, em um regime democrático, de divulgar informações sobre as atividades e finanças do setor público5 5 Os dados sobre as execuções financeiras dos governos estaduais e municipais apresentados neste artigo vêm de um projeto do Ministério da Fazenda de ampliar a informação disponível sobre as contas dos governos estaduais e municipais. Antigamente, a Fundação Getúlio Vargas (FGV) publicava de cinco em cinco anos dados da “Regionalização das transações do setor público”. Por falta de financiamento, a FGV parou de publicar essas informações desde 1985. Esses esforços para colecionar essas informações básicas são louváveis, e um esforço maior para divulgar amplamente esses dados pode aumentar bastante a participação dos eleitores no processo democrático. . Os eleitores deveriam estar bem-informados a respeito de como as receitas e despesas de seus governos estaduais e/ou municipais se comparam com os governos de outras regiões no que diz respeito a sua capacidade financeira em relação à oferta de serviços públicos. No âmbito do governo federal, foi iniciada recentemente em Brasília uma nova forma de acesso do público às contas do governo federal, com a instalação de um sistema de informática no Congresso Nacional. Dada a importância das outras esferas do governo no Brasil, alguns estados e municípios deveriam seguir esse exemplo.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

  • DEPARTAMENTO DO TESOURO NACIONAL (1992) Execução Orçamentária dos Estados e Municípios Brasileiros, 1981-1991. Brasília.
  • GATES, W. (1972) Fiscal Federalism. Nova York, Harcourt, Brace Jovanovich.
  • 1
    Para maiores detalhes, ver Wallace Gates, Fiscal Federalism, 1972GATES, W. (1972) Fiscal Federalism. Nova York, Harcourt, Brace Jovanovich..
  • 2
    Nos Estados Unidos, em adição ao imposto de renda federal, existe o imposto de renda estadual.
  • 3
    O coeficiente de variância é definido como desvio-padrão/média e representa a distância média entre as receitas per capita de um estado qualquer e a média nacional-como um porcentual da média nacional.
  • 4
    Deve-se notar que a situação do Distrito Federal é única no sentido de ter uma administração conjunta de governo municipal e estadual.
  • 5
    Os dados sobre as execuções financeiras dos governos estaduais e municipais apresentados neste artigo vêm de um projeto do Ministério da Fazenda de ampliar a informação disponível sobre as contas dos governos estaduais e municipais. Antigamente, a Fundação Getúlio Vargas (FGV) publicava de cinco em cinco anos dados da “Regionalização das transações do setor público”. Por falta de financiamento, a FGV parou de publicar essas informações desde 1985. Esses esforços para colecionar essas informações básicas são louváveis, e um esforço maior para divulgar amplamente esses dados pode aumentar bastante a participação dos eleitores no processo democrático.
  • 6
    JEL Classification: H71; H72; H77.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 1996
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