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Sobre o “horizontalismo” da oferta da moeda: tréplica ao Professor Cardim de Carvalho

On the “horizontalism” of money supply: response to professor Cardim de Carvalho

Resumo

Esses comentários constituem uma análise sobre a resposta de Cardim de Carvalho a um exame crítico da teoria da moeda de Keynes. Essa teoria pressupunha a inelasticidade da oferta em relação à demanda como um atributo necessário do dinheiro. Este artigo examina porque Basil Moore sustenta a abordagem “horizontalista”.

Palavras-chave:
Oferta de moeda; pós-Keynesianismo

Abstract

These comments constitute an analysis about Cardim de Carvalho’s reply for a critical examination of Keynes’s theory of money. That theory assumed inelasticity of supply with respect to demand as a necessary attribute of money. This paper examines why Basil Moore sustains the “horizontalist” approach.

Keywords:
Money supply; post-Keynesianism

As críticas diretas, realizadas pelo professor Cardim de Carvalho1 1 Carvalho, F. J. C. “Sobre a endogenia da oferta de moeda: réplica ao professor Nogueira da Costa”. Revista de Economia Política 13(3), jul./set., 1993. , ao meu ensaio “(Im)propriedades da moeda”2 2 Costa, F. “(Im)propriedades da moeda”. Revista de Economia Política 13(3), abr./jun., 1993. são muito bem-vindas. Quero comentar as indiretas, via Moore3 3 Moore, B. Horizontalists and verticalists: The macroeconomics of credit money. Cambridge: Cambridge University Press, 1988. , devido à minha pretensa adesão ao “horizontalismo”. Acho a controvérsia sobre a endogeneidade da moeda ainda inconclusa, com pontos obscuros, para me classificar assim tão resolutamente. O horizontalismo é apenas uma estilização. Não se deve usá-lo como uma “camisa-de-força”, para aprisionar os dissidentes do fundamentalismo pós-keynesiano.

Tenho muitas dúvidas a respeito da redução dessa controvérsia à representação gráfica. Tem um papel didático, porém ao custo de sério empobrecimento teórico. Economistas instruídos à força da lei da oferta e da procura têm dificuldade de representá-las no espaço juros-moeda, no caso de a oferta de moeda (efetivamente resultante ex-post) não ser independente, mas sim interdependente da demanda. Como identificar uma curva de demanda da moeda na ausência de independência estatística?

Mas economistas que - para espanto dos leigos - tratam “retas” horizontais ou verticais como se fossem “curvas” insistem nessa representação. Porém sem qualificá-la: está representado o curto ou o longo prazo? Somente moeda-creditícia ou todas as formas de moeda? Opções ex-ante de decisão ou operações efetivadas ex-post? A atitude dos bancos comerciais (BC) ou a do Banco Central (Bacen)? É possível fazer considerações dinâmicas através de um simples gráfico?

Na medida em que a demanda de crédito seja elástica em relação à taxa de juros (não muito elástica), demanda de crédito e oferta de moeda são influenciadas indiretamente pelas taxas controladas pelo Bacen. Mas, na medida em que a demanda de crédito seja inelástica (e/ou que mude independentemente das taxas de juros), ou que a função “demanda por moeda” seja difícil (ou impossível) de ser especificada e estimada acuradamente, a oferta de moeda-creditícia é endogenamente determinada e não controlável, nem indiretamente, pelo Bacen. A manipulação do prêmio para abrir mão da liquidez nem sempre, por exemplo, em circunstâncias de armadilha de liquidez, atinge as demandas especulativa e precaucional.

Segundo meu entendimento de Moore, em sua opinião o que o Bacen pode determinar é o preço pelo qual oferece fundos aos bancos (taxa de desconto) ou recompra títulos da dívida pública (taxa de overnight): se acima ou abaixo da taxa de mercado. Desde que isso representa ou influencia o custo marginal dos fundos para os bancos comerciais e também influencia seu custo agregado de fundos, as práticas oligopolistas de os bancos fixarem preços - um mark-up sobre o custo dos fundos é usado para determinar taxas básicas dos empréstimos - resultam em taxas de empréstimos ajustadas às taxas controladas pelo Bacen.

Então, um diagrama para o mercado monetário deve retratar a função oferta de moeda de curto prazo como horizontal em níveis referenciados às taxas de juros fixadas pela AM, durante um período de tempo no qual estabeleceu uma faixa desejada para suas metas de taxas de juros. Variações nos níveis fixados mudam a função de oferta monetária a curto prazo para cima ou para baixo, mas a curva de oferta de curto prazo permanece horizontal. Portanto, são variações da curva e não na curva de oferta e demanda interdependentes. Essas variações na mesma curva - o comprimento da abscissa - dependem da quantidade de moeda demandada nesse nível da taxa de juros, ou seja, depende da elasticidade da demanda.

Moore não sugere como uma curva de oferta de moeda de médio e longo prazo deveria ser. Suponha-se que a demanda de crédito resultou num crescimento monetário que o Bacen toma como excessivo, e eleva sua taxa de juros fixada (mudando a curva de oferta de moeda de curto prazo horizontal para um nível acima). Como seria representada a curva de oferta de moeda de longo prazo: seria positivamente inclinada, vertical ou negativamente inclinada, para cima? Dependeria do grau de (in)elasticidade da demanda de moeda em relação aos diversos níveis da taxa de juros, ao longo do tempo. Em outras palavras, dependeria dos diversos graus de fragilidade financeira. Como sabemos, a saúde das estruturas patrimoniais oscila ao longo do ciclo econômico.

Pelo que conheço da obra de Moore, interpretaria que, no longo prazo, o nível futuro da taxa de juros dependeria do estado futuro do mundo e da reação futura a esse estado por parte das autoridades monetárias (AM); em outras palavras: “tudo depende” ... Nada mais pós-keynesiano do que essa incerteza.

Acho extremamente complexa a questão dos prazos na área financeira. Tendo a pensar, à la Kalecki, o futuro como uma sucessão de curtos prazos. Com taxas de juros de longo prazo, no mercado financeiro, fixadas por repactuações periódicas de acordo com as taxas de mercado flutuantes a curto prazo (tendo como referência a taxa básica fixada pelo Bacen), há sentido em determinar a priori o longo prazo?

Uma analogia possível é com o longo prazo na área produtiva, definido como aquele em que teria ocorrido mudança estrutural na capacidade produtiva. Conceberia o longo prazo na área financeira como aquele em que teria ocorrido mudanças na estrutura financeira, ou seja, inovações financeiras que manteriam a endogeneidade da moeda. Deve-se destacar que inovações financeiras, administração de ativos e passivos, mercado interbancário e a internacionalização dos mercados financeiros e dos próprios bancos permitem-lhes cobrir suas posições de reservas se os passivos criados pelos empréstimos exigem-nas superiores ao nível coberto pelas reservas originais. Os bancos recorreriam a esses expedientes, em primeira instância, antes de recorrer ao Bacen, em última instância.

A questão é relevante também para a discussão do exercício da função de emprestador em última instância pelo Bacen. Vejo-a sendo exercitada no longo prazo, quando o aperto de liquidez via política de taxas de juros, fixadas sistematicamente acima das taxas de mercado, provocar uma ameaça à estabilidade do sistema. Portanto, não quando somente um banco se encontra em uma conjuntura de iliquidez, que não atinge o sistema financeiro. O risco de quebra sistêmico, provocado por corrida bancária, seria detectado pelo nível de demanda generalizada de assistência financeira de liquidez, mesmo com taxas de juros punitivas e ameaça de fiscalização bancária. Nessa circunstância, o Bacen aliviaria sua política de controle (indireto) ao fixar taxas de redesconto abaixo das taxas do mercado (interbancário e/ou financeiro), adotando em última instância uma política de apoio, suporte ou acomodação.

Outro pomo de discórdia é a separação dos níveis micro e macroeconômico no sistema financeiro. Moore não propõe que os bancos simplesmente validem as solicitações de crédito que recebem. Constata que a maior parte dos empréstimos bancários (70% do crédito comercial e industrial e todo o empréstimo de cartão de crédito), nos Estados Unidos, é realizada sob previamente negociadas promessas de empréstimos e linhas de crédito. A maioria do crédito bancário é então determinada pela demanda - os bancos atendem às solicitações dos clientes por crédito, desde que tenham prefixado seu preço acima da taxa de juro de captação. Bancos são fixadores de preços e tomadores de quantidade nas operações de saques a descoberto.

Entretanto, nem todos os tomadores potenciais têm promessas de empréstimos para sacar. Assim, vários tipos de empréstimos bancários não são feitos sob compromissos prévios; tomadores que abordam bancos para tais empréstimos devem ter de pagar taxas maiores, argumentam os defensores do grau de endogeneidade (ou exogeneidade) parcial da moeda. Desde que bancos podem escolher não fazer novos compromissos, não seria exagerado o caso de se dizer que o crédito bancário é inteiramente determinado pela demanda e não discricionário? E se novos empréstimos são feitos a taxas crescentes, por causa das percepções de elevação dos riscos dos credores, quer dizer, a curva de curto prazo não seria inclinada para cima, mesmo se o Bacen tomasse uniformes ou fixas as taxas interbancárias ou de desconto?

Na realidade, os bancos nem sempre provêm os empréstimos a custos constantes (juros fixos não têm esse sentido), mas sim a dados custos, que posteriormente - por exemplo, num pedido de refinanciamento - podem passar para outro dado nível superior. Da mesma forma, o Bacen decide a taxa a ser paga antes de os bancos demandarem assistência financeira de liquidez. Ela pode, numa próxima operação, ser punitiva. A curva de oferta só se efetivará se os bancos demandarem reservas nessa nova taxa. O Bacen não pode decidir cada nível de reservas oferecido, pois esse é um resultado ex-post, dependente da aceitação dos bancos. A taxa de empréstimos bancários posteriores também será afetada, podendo impedir a concretização de refinanciamentos.

Portanto, não se assume nenhum automatismo no ajuste da oferta de moeda à demanda, ou seja, que “bancos não negam pedidos de crédito”. Concorda-se com a visão de que bancos individuais não reagem simples e passivamente à demanda do tomador de empréstimos. Essa decisão microeconômica depende também de avaliação do projeto, do cadastro do tomador, das garantias oferecidas, além de seu próprio grau de exposição e risco de credor. Os bancos ativamente escolhem em que mercados de crédito entrar e disputar. Entretanto, isso não afeta o argumento básico de que, sob o ponto de vista do sistema bancário, a quantidade total de moeda creditícia efetivamente ofertada (resultante ex-post das múltiplas decisões particulares) deve ser vista como endogenamente determinada pela demanda. Temos uma concordância “micro”. A discordância é “macro”.

Moore admite que o Banco Central não é livre para estabelecer qualquer taxa de juros, na medida em que a consideração primeira deve ser manter estabilidade nos mercados financeiros. A taxa de juros é exógena se os desenvolvimentos do mercado financeiro determinam a taxa de desconto que pode ser fixada pelo Bacen para manter a estabilidade? Ele também admite que uma variedade de fatores afeta o tamanho do mark-up sobre o custo por atacado das reservas. Podem a preferência pela liquidez ou as relações de alavancagem afetar o tamanho do spread? Isto é, quando os graus de exposição dos balanços dos bancos se expandem, eles não requerem taxas de juros crescentes para induzi-los a alavancar capital e ativos líquidos? Se isso ocorre, então, para seus críticos, a curva de oferta de moeda deveria ser inclinada para cima em vez de ser horizontal.

Essa é uma crítica costumeira ao argumento do autor de Horizontalists and verticalists: a endogeneidade monetária não implica que a curva de oferta de moeda seja horizontal. “Deixe sua inclinação somente um pouco para cima” é o apelo de moderação usual a Moore. Representar a oferta de moeda como horizontal é simplesmente um meio de retratar que, no período de mercado, banqueiros, como produtores de serviços (no caso, financeiros), são fixadores de preços e tomadores de quantidade. Em período posterior, a oferta poderá estar representada em outro nível da taxa de juros, porém horizontal. Todo crédito é contratado a uma dada taxa de juros, sobre a qual os demandantes decidem a operação de empréstimo.

A oferta de moeda creditícia, produzida sob contrato, não pode existir independentemente da demanda. No mundo real, moeda creditícia ordinariamente aumenta pari passu com um aumento no total de ativos e na renda agregada. Por isso é ilegítimo e equivocado analisar os efeitos de uma elevação na oferta de moeda creditícia, ceteris paribus, como é costumeiramente realizado por monetaristas e proponentes da síntese neoclássica.

O reconhecimento da interdependência mútua entre a oferta e a demanda por moeda faz da Equação de trocas de Fisher (uma formalização genérica da TQM) mais claramente uma não informativa identidade ex-post, sem poder causal ou explicativo. Somente com a reapresentação da TQM por Friedman é que ela passa a ser vista por seus seguidores como uma teoria da demanda por moeda. Kaldor, Moore e seus seguidores também não a enxergam como uma teoria de oferta de moeda. De acordo com estes, inflação não pode ser atribuída a uma oferta excessiva de moeda, desde que a moeda creditícia não possa nunca estar em excesso de oferta. A interdependência da oferta e da demanda de moeda, portanto, torna oferta monetária e demanda por dinheiro menos úteis como conceitos analíticos.

Considero uma “versão muito flexível da TQM” sua seguinte citação: “na visão keynesiana, a moeda será ainda mais que um meio de pagamento se e enquanto os agentes confiarem que sua quantidade não será excessiva a ponto de ameaçar seu poder de compra”.4 4 Chick, Victoria. On money, method and Keynes. Londres: MacMillan, 1992, apud CARVALHO; op. cit.; p. 119. É inclusive contraditória com a ideia anti-quantitativista de que a contínua erosão do valor da moeda é causada pela acomodação de pressões inflacionárias (devido a custos, inércia ou expectativas), que não são explicadas por essa teoria monetária.

O debate sobre endogeneidade da moeda é também uma polêmica instrumental, sobre política econômica, que é relevante, substantiva e não deve ser menosprezada. Ao contrário dos monetaristas, argumenta-se que não há a alternativa de restringir diretamente a oferta de moeda a uma dada taxa de juros. A real opção (ex-ante) de política monetária é oferecer reservas a uma taxa de juros discricionariamente elevada que racione indiretamente a disponibilidade de reservas. Aí a fixação da taxa de juros é causa; o controle de reservas é consequência.

A perspectiva “horizontalista” real (não caricaturada) compreende também a administração de passivos pelos bancos como uma forma de captação via criação de quase-moeda, quando as reservas não estão disponíveis no redesconto a custo compensador, pois estão com juros punitivos acima do mercado. A vantagem para o banco é captar no mercado, numa relação custo/benefício favorável, através de um passivo não submetido à exigência de depósito compulsório no Bacen, que significa custo não remunerado. Para o público não bancário, a vantagem é dispor de um ativo facilmente transformável de recebedor de juros em transferível por cheque. Essa conciliação de interesses entre banco e cliente justifica a inovação financeira fora da regulação do Bacen.

Por fim, sobre a companhia de, na opinião do professor Cardim de Carvalho, “autores estritamente ortodoxos em questões monetárias”5 5 Carvalho, op. cit.; p. 118. - Wicksell, Schumpeter, Goodhart, Benjamim Friedman, o próprio Milton Friedman (“que não se compromete inteiramente com o exogenismo”) -, de fato, todos eles concordariam que, na prática diária, a determinação do nível da taxa de juros de mercado é tarefa relativamente simples. O nível é fixado pela intervenção do Bacen no mercado monetário, regulando o desejo do mercado por dinheiro indiretamente. As autoridades monetárias (AM) poderiam, em tese, escolher controlar em vez disso a quantidade de moeda, mas, por causa da inelasticidade de curto prazo da demanda de mercado por dinheiro, usualmente não optam por tal. Qualquer tentativa, durante um período significativo, causaria logo maior instabilidade econômica. Exemplos práticos mostram que é inconsistente uma política que busca a estabilidade monetária via aperto quantitativo do controle monetário.

Ocorreria a indesejada volatilidade nas taxas de juros de curto prazo.

Acho sectarismo afastar Moore, “que tenta manter-se próximo a outros pós-keynesianos, como Davidson e Minsky”.6 6 Idem, p. 118 Inclusive, a visão dele é perfeitamente conciliável com a proposta de “uma alternativa pós-keynesiana”, formulada pelo professor Cardim de Carvalho.

  • 1
    Carvalho, F. J. C. “Sobre a endogenia da oferta de moeda: réplica ao professor Nogueira da Costa”. Revista de Economia Política 13(3), jul./set., 1993.
  • 2
    Costa, F. “(Im)propriedades da moeda”. Revista de Economia Política 13(3), abr./jun., 1993.
  • 3
    Moore, B. Horizontalists and verticalists: The macroeconomics of credit money. Cambridge: Cambridge University Press, 1988.
  • 4
    Chick, Victoria. On money, method and Keynes. Londres: MacMillan, 1992, apud CARVALHO; op. cit.; p. 119.
  • 5
    Carvalho, op. cit.; p. 118.
  • 6
    Idem, p. 118
  • 7
    JEL Classification: E12; E51.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Maio 2023
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 1994
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