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O choque argentino e o dilema brasileiro

The Argentine shock and the Brazilian dilemma

RESUMO

A aplicação da política anti-inflacionária do chamado “choque heterodoxo” na Argentina provocou diversas discussões sobre as semelhanças e diferenças entre a inflação brasileira e argentina, e a possibilidade de sua aplicação no Brasil. Este artigo tenta examinar algumas dessas questões. A análise enfatiza a questão das defasagens nos reajustes de preços e a contribuição da conversão de preços aos valores médios do período para a estabilidade da nova moeda; a questão da sincronização de salários e aumentos de preços; e a utilização de tabelas de conversão. Por fim, a taxa de juros e sua relação com o nível de atividade econômica.

PALAVRAS-CHAVE:
Inflação; estabilização

ABSTRACT

The application of the so-called “heterodox shock “ anti-inflation policy in Argentina provoked several discussions about the similarities and differences between Brazilian and Argentine inflation, and the possibility of its application in Brazil. This article attempts to examine some of these questions. The analysis emphasizes the question of the lags in the readjustments of the prices and the contribution of the conversion of prices to the average values of the period for the stability of the new currency; the question of the synchronization of wages and prices increases; and the utilization of conversion tables. Finally, the rate of interest and its relation with the level of economic activity.

KEYWORDS:
Inflation; stabilization

1. INTRODUÇÃO

O governo argentino anunciou em 14 de junho uma reforma monetária que, além de instituir uma nova moeda de curso legal, o austral (cuja taxa de conversão foi fixada em mil pesos por austral), incorpora um congelamento por tempo indeterminado dos preços, salários e da taxa de câmbio. Inspirada nos trabalhos de pesquisa de professores associados ao Departamento de Economia da PUC/RJ, dentre as quais destaca-se Francisco Lopes, que formulou a proposta do “choque heterodoxo”, a reforma monetária não-convencional argentina surpreendeu a comunidade econômico-financeira internacional. É óbvio que o sucesso do novo plano de desinflação argentina só poderá ser corretamente avaliado a médio prazo. A administração do período de descongelamento de preços e salários, não prescrita pelo governo por ocasião do “choque”, constitui uma séria dificuldade a ser enfrentada nos próximos meses. Entretanto, os resultados a curtíssimo prazo não devem ser menosprezados. A inflação medida pelo índice de custo de vida, que em junho atingira 30,6%, caiu para 6,2% em julho e 3,1% em agosto. Os preços por atacado, que subiram 47% em junho, baixaram 1% em julho.

A terapia do “choque heterodoxo” parte de um diagnóstico, acatado pelo governo argentino, de que em uma economia indexada a inflação tem caráter predominantemente inercial. Estabelece-se um “círculo vicioso” em que a indexação perpetua a inflação, e a inflação estimula a indexação. Neste contexto, o principal determinante da inflação presente seria a inflação passada, que se propaga através dos mecanismos formais e informais de indexação (correções cambial, salarial, monetária etc.). A inflação caminharia em saltos provocados por choques (escassez de produtos agrícolas, aumentos dos preços internacionais, desvalorizações cambiais, reposições salariais, aumentos das margens de lucro etc.). Na ausência de choques, a inflação ficaria simplesmente onde ela está. Assim, a inflação que se tem hoje seria principalmente fruto de choques passados, predominantemente desfavoráveis (aumento do preço de petróleo de 1980, maxidesvalorização de 1983, quebra da safra agrícola de 1983 etc.). O “choque heterodoxo” promoveria uma desejável ruptura com este passado.

A eventual aplicação do “choque” ao caso brasileiro tem suscitado inúmeras discussões acerca das semelhanças e diferenças entre as situações econômicas brasileira e argentina. Esta nota técnica tem por objetivo examinar algumas dessas questões. Assim, em seguida a esta introdução, enfatiza-se na seção 2 a contribuição da conversão dos preços pelos valores médios para a estabilidade da nova moeda. Na seção 3 discute-se a questão da sincronização mensal dos reajustes de salários e preços. Verifica-se que a sincronização mensal não é uma condição suficiente para garantir o êxito do “choque heterodoxo”. A utilização de taxas de conversão diferenciadas por ocasião da reforma monetária em economias com reajustes dessincronizados, tal como a brasileira, é analisada na seção 4.

A seção 5 ilustra a aplicação, para o Brasil, da tabela de taxas diferenciadas da seção anterior na conversão dos salários, na ausência de um programa de transferências de renda para a classe assalariada. A aplicação da tabela de conversão aos preços-chave da economia brasileira é apresentada na seção 6. A seção 7 analisa a estabilização das “moedas indexadas” que convivem atualmente com o cruzeiro, tal como o dólar, a ORTN, a UPC etc. Finalmente, discute-se na seção 8 a fixação da taxa de juros na nova moeda e sua relação com o nível de atividade econômica.

2. A CONVERSÃO PELA MÉDIA

O regime de reajustes mais comum numa economia indexada é denominado recomposição do pico. Salários e preços são corrigidos no início de um período; com base na inflação acumulada no período anterior, e mantidos constantes em termos nominais pelo resto do período. No caso da economia brasileira, a periodicidade é semestral para os salários, semestral ou anual para os aluguéis, mensal para as ORTN, trimestral para a UPC etc. O nome de recomposição do pico decorre da observação de que, num contexto de estabilidade inflacionária, o reajuste com base na variação integral passada de um índice composto de preços (IGP-DI, INPC etc.) recompõe no início do período seguinte o pico de preço real (preço do bem ou serviço relativo ao índice composto de preços) do período anterior.

A Figura 1 ilustra o processo de recomposição. Imediatamente após um reajuste tem-se um pico do preço real. No decorrer do período em que o preço do bem ou serviço em questão é mantido fixo em cruzeiros, verifica-se uma queda do preço real devida à contínua elevação do índice composto de preços. O preço real atinge seu nível mais baixo no instante que precede o próximo reajuste. Num contexto de estabilidade das taxas mensais de inflação, este ciclo repete-se a cada período (semestre. para os salários, semestre ou ano para os aluguéis, mês para as ORTN, trimestre para a UPC etc.). Fica então claro que a média, calculada entre dois reajustes consecutivos, representa uma medida mais estável do preço real dos bens e serviços numa economia indexada. Assim, estabilidade inflacionária e estabilidade dos preços relativos (em termos dos valores médios) são sinônimos e caracterizam o que se pode esperar de melhor de uma situação de equilíbrio no contexto de uma economia indexada.

FIGURA 1

Um argumento geométrico permite verificar a existência de uma relação direta entre os valores de pico e a taxa de inflação. Note-se na Figura 1 que uma redução do pico do preço real, que mantenha· inalterado o valor médio entre dois reajustes consecutivos, corresponde a uma rotação da “rampa” no sentido anti-horário em torno da média. Tendo em vista que a inclinação da ‘’rampa’’ é equivalente à taxa de crescimento do índice composto de preços, à redução do pico correspondente uma queda da inflação. No limite, com o pico igualando-se à média, a “rampa” torna-se horizontal e o componente inercial da inflação tende a desaparecer. Assim, fica claro que o principal ingrediente da estabilidade dos preços seria a redução dos picos aos valores médios. A instituição de uma nova moeda, o congelamento de salários e preços e a supressão dos mecanismos de indexação reforçariam esta estabilidade.

A introdução não-traumática de uma moeda estável na economia deve, portanto, estabelecer sob a nova moeda as mesmas relações de preços (em termos dos valores médios) que vigoram com taxas de inflação estáveis sob a velha moeda. A conversão pela média garantiria a ausência de perdedores e ganhadores com a reforma monetária. Qualquer desalinhamento dos preços relativos na transição gera uma “inflação potencial” na nova moeda. Esta inflação só se manifestaria, porém, se os perdedores procurassem recuperar as suas perdas e ganhadores procurassem proteger os seus ganhos.

A substituição do peso argentino pelo austral não observou rigorosamente a conversão pela média. Exceto pela escolha da data da conversão (meio do mês) não houve a preocupação com o estabelecimento em austrais dos preços relativos (no caso argentino, em termos dos valores médios mensais) vigentes em pesos. Pelo contrário, às vésperas do choque o governo argentino promoveu uma desvalorização cambial de 18%, elevou o preço da carne em 50% e aumentou drasticamente os preços públicos. Segundo cálculos feitos por Francisco Lopes, o congelamento dos salários em austrais com base no salário real médio de maio resultou “... mais de um golpe de sorte que de um desígnio de política”.

3. A SINCRONIZAÇÃO MENSAL

Possivelmente, uma das questões mais polêmicas que cerca a aplicação do “choque” ao caso brasileiro é a falta de sincronização dos reajustes de preços e salários em contraste com a mensalização generalizada no caso argentino. A Figura 1 permite demonstrar porque a inflação brasileira não pode terminar abruptamente. Com reajustes dessincronizados, a interrupção brusca do processo inflacionário congelaria os preços relativos da economia em diferentes estágios do “escorrega inflacionário”.

Vale notar, no entanto, que apenas a sincronização mensal dos reajustes à la Argentina, defendida por alguns economistas com o intuito de criar condições mais propicias à reforma monetária, não é suficiente para garantir relações de preços adequadas por ocasião do congelamento. Apenas evita maiores distorções, por ocasião do congelamento, nas relações entre preços que têm datas de reajuste coincidentes, tais como os salários e aluguéis que seriam corrigidos normalmente nos dias 30 ou 31. Não são eliminadas as eventuais distorções nas relações entre preços com datas de reajuste distintas ao longo do mês. Por exemplo, considere-se dois produtos cujos preços sejam reajustados mensalmente, com base na inflação passada, nos dias 13 e 15 respectivamente. Com uma taxa mensal de inflação de 30%, um congelamento anunciado no dia 14 favoreceria em 30% o produto com reajuste no dia 13, em detrimento daquele cujo reajuste ocorreria no dia 15.

Algumas propostas que contemplam a transição não-inflacionária para correções salariais mensais têm sido veiculadas pela imprensa. Dentre elas destacam-se: a mensalização com a aplicação de um redutor de 50% da variação do INPC por ocasião do último reajuste semestral de cada classe e o repasse mensal da variação trimestral do INPC a partir do terceiro mês após o último reajuste semestral de cada classe. A mensalização com o redutor de 50% mantém o salário real mensal em torno do salário real médio dos últimos seis meses sob a semestralidade. O repasse mensal da variação trimestral do INPC estabeleceria um salário real mensal um pouco superior à média dos último seis meses. A transição da semestralidade para as correções salariais mensais pelos valores médios (ou, mesmo, ligeiramente acima), em contraste com a transição pelos valores de pico (que ocorrem nos meses imediatamente após os reajustes), tem, sem dúvida, um custo político. Por este motivo, diversos economistas e políticos vêm sugerindo que a adoção de um outro regime de correções salariais mensais pressupõe a negociação de um amplo pacto social.

Além de estabelecer um salário real mensal próximo ao salário real médio dos últimos seis meses, a implementação não-inflacionária de um regime de correções salariais mensais requer ainda que a transição a partir da semestralidade ora vigente seja lenta e gradual. No caso da mensalização com o redutor de 50%, esta transição levaria seis meses. Com os repasses mensais da variação trimestral do INPC, este prazo seria dilatado para nove meses. Fica, então, claro porque a opção por um esquema de reajuste mensais, apenas com o intuito de preparar a economia para o “choque”, tem riscos. Diante da ameaça de congelamento, é mais difícil conter o impulso de mensalizar os reajustes dos preços pelos valores de pico, e não pelos valores médios. Torna-se necessária uma ação extensiva e prolongada dos controles de preços, o que levaria inevitavelmente a seu esgotamento. A preservação do elemento “surpresa” sugere que o momento ideal de aplicar um “choque” é aquele em que se decide aplicá-lo.

4. AS TAXAS DE CONVERSÃO DIFERENCIADAS

Conforme vimos, a dessincronização atual dos reajustes de salários e preços na economia brasileira impede, ainda mais fortemente que no caso argentino, a conversão direta de valores em cruzeiros para cruzados a uma taxa uniforme. A aplicação indiscriminada de uma taxa de conversão de mil cruzeiros por cruzado aos salários e aos preços da economia provocaria enormes distorções nos preços relativos. Ficariam congeladas as relações de preços vigentes no instante de congelamento, que podem estar muito distantes das relações de equilíbrio. Numa economia indexada em que proliferam as recomposições do pico com diferentes periodicidades, as relações de preços de equilíbrio só são observadas em um intervalo de tempo mais longo, e em termos de valores médios. Assim, um salário de 1.000.000 de cruzeiros em agosto com reajuste semestral em setembro é distinto de um salário de 1.000.000 de cruzeiros em agosto com reajuste semestral em dezembro, ou ainda de um salário de 1.000.000 de cruzeiros em agosto, porém, com reajuste trimestral em setembro.

Uma forma alternativa de promover o “choque”, que prescinde da sincronização mensal dos reajustes a priori, consistiria na aplicação de taxas diferenciadas na conversão de cruzeiros contratados, no passado, em cruzados. Na ausência de um programa de transferências de renda, estas taxas de conversão restabeleceriam os valores médios a partir dos valores vigentes na data do congelamento. No caso do “choque argentino” a sincronização mensal dos reajustes facilitou a aplicação de uma taxa uniforme de conversão, que foi fixada em mil pesos por austral. A utilização de taxas diferenciadas restringiu-se à conversão de pesos contratados para o futuro em austrais.

A Tabela 1 apresenta uma tabela de taxas de conversão, que permitiria a aplicação do “choque” numa economia com reajustes dessincronizados. Nas linhas tem-se diferentes periodicidades dos reajustes em meses e na colunas tem-se os números de meses completos transcorridos a partir do último reajuste. Assim, dados a periodicidade dos reajustes (linha) e os meses completos transcorridos a partir do último reajuste (coluna), a entrada correspondente na tabela indica a taxa a ser aplicada na conversão de cruzeiros passados em cruzados correntes. A tabela foi calculada supondo-se que a inflação dos preços em cruzeiros esteja estabilizada em 10% ao mês por ocasião da instituição da nova moeda, Vale notar ainda na Tabela 1 que para qualquer periodicidade dos reajustes as taxas de conversão aumentam com o número de meses transcorridos a partir do último reajuste. Além disso, são aproximadamente unitárias na metade do período. Isto sugere que neste esquema a conversão de preços, cujos reajustes não têm periodicidade fixa, à razão de mil cruzeiros por cruzado, é equivalente à hipótese de que os preços vigentes representam aproximadamente valores médios.

TABELA 1
TAXAS DE CONVERSÃO* (Cruzados por mil cruzeiros)

Em nossa opinião, o custo político da aplicação das taxas de conversão diferenciadas, o que permite o “choque já”, não é muito maior do que aquele incorrido com o esquema do “choque em dois estágios”. Este último preconiza, num primeiro estágio, a transição pelos valores médios para reajustes mensais de preços e salários. Completada a transição não-inflacionária, preços e salários seriam convertidos a uma taxa uniforme de, por exemplo, mil cruzeiros por cruzado, e congelados nestes níveis por pelo menos seis meses.

5. O CONGELAMENTO DOS SALÁRIOS

Consideremos inicialmente o caso dos salários, que, segundo a legislação vigente, têm reajustes semestrais. A primeira coluna da Tabela 2 apresenta seis valores distintos para o salário em cruzeiros no final do mês de julho. De acordo com a segunda coluna do mesmo quadro, cada nível salarial corresponde à remuneração de um trabalhador pertencente a uma das seis classes (definidas pelas datas de reajuste) em que podem ser agrupados os assalariados que têm reajustes semestrais. As taxas de conversão, associadas ao número de meses completos contados a partir do último reajuste semestral em 30 de agosto, são apresentadas na quarta coluna da mesma tabela. Originam-se da sexta linha da Tabela 1. Os salários na nova moeda, que se obtêm multiplicando os níveis salariais em cruzeiros pelas respectivas taxas de conversão e eliminando três zeros do resultado final, encontram-se na quinta coluna da Tabela 2.

TABELA 2
A conversão dos salários

A Tabela 2 reflete uma peculiaridade deste processo de conversão. Todos os seis distintos níveis salariais em cruzeiros em 31 de julho resultam no mesmo salário em cruzados a partir de 31 de agosto. Assim, em 31 de julho um salário de 1.000.000 de cruzeiros para um trabalhador da Classe 2 (fevereiro/agosto) seria equivalente a um salário de 1.100.000 para um trabalhador da Classe 3 (março/setembro) ou ainda a um salário de 1.610.510 cruzeiros para um trabalhador da Classe 1 (janeiro/julho). A partir de 31 de agosto todos estes valores em cruzeiros convertem-se em 1.349,21 cruzados.

A equivalência entre os seis distintos níveis salariais em cruzeiros da Tabela 2 não é fruto da substituição do cruzeiro pelo cruzado. A nova moeda apenas torna explícita essa equivalência. A afirmação, por exemplo, de que o poder de compra do salário do trabalhador da Classe 1 (janeiro/julho) é superior em 61% ao poder de compra do salário do trabalhador da Classe 2 (fevereiro/agosto) é verdadeira em 31 de julho. Configura, porém, uma situação de “miopia inflacionária”. Mesmo sem a introdução dos cruzados, os valores da primeira coluna do Quadro 2 são idênticos quando vistos da perspectiva de um semestre e de uma inflação estabilizada à taxa de 10% ao mês ou 77,2% ao semestre.

Suponhamos que a cesta básica de consumo do trabalhador valha 1.000.000 de cruzeiros em agosto e que seu preço aumente todo mês à taxa constante de 10%. A primeira coluna da Tabela 3 apresenta os valores da cesta nos seis meses que vão de setembro de 1985 a fevereiro de 1986. Consideremos inicialmente o trabalhador da Classe 2 (fevereiro/agosto) cujo salário é 1.000.000 de cruzeiros em 31 de julho. Caso não houvesse uma reforma monetária, o salário em agosto seja reajustado, com base na variação semestral do custo de vida, em aproximadamente 77,2%. O salário de 1.771.560 cruzeiros seria mantido nos meses de setembro de 1985 a fevereiro de 1986. Imediatamente após o reajuste em setembro, o poder de compra do salário, obtido dividindo-se o salário em cruzeiros pelo valor da cesta também expresso em cruzeiros, é de 1,61 cesta. Entre outubro e fevereiro do ano seguinte, verifica-se uma queda do poder de compra do salário devido ao aumento mensal do preço da cesta de consumo. A partir do pico de setembro, o poder de compra do salário cai à taxa de 10% ao mês, atingindo 1 cesta em fevereiro de 1986. Ao longo dos seis meses o consumo deste trabalhador soma 7,71 cestas, o que é equivalente a uma média de 1,285 cesta ao mês.

TABELA 3
O poder de compra dos salários

De acordo com a Tabela 3, o trabalhador da Classe 3 (março/setembro), com um salário de 1.100.000 cruzeiros, consome apenas uma cesta em setembro. O reajuste de 77,2% em setembro leva o assalariado da Classe 3 ao pico de poder aquisitivo em outubro. O poder de compra do salário reajustado para 1.948.720 cruzeiros deteriora-se a partir de novembro. De setembro a fevereiro, porém, o consumo do trabalhador da Classe 3 soma as mesmas 7,71 cestas ou 1,285 cesta em média, do trabalhador da Classe 2. O mesmo resultado é verdadeiro para o trabalhador da Classe 1 (janeiro/julho) na Tabela 3 e, também para os assalariados das Classes 4, 5 e 6 omitidos do quadro a título de simplificação.

Note-se que, com a reforma monetária, o valor da cesta básica de consumo do trabalhador seria congelado por seis meses no nível de 1.049,21 cruzados (obtido multiplicando-se o valor de 1.000.000 de cruzeiros em agosto pela taxa de conversão de 1,04921 cruzado por mil cruzeiros da primeira linha e segunda coluna da Tabela 1). O poder de compra de um salário de 1.349,21 cruzados, nível para o qual convergem os seis distintos níveis salariais em cruzeiros da Tabela 2, seria então 1,285 cesta por mês. Na ausência de transferência de renda para a classe assalariada, o poder de compra mensal do salário na nova moeda é, portanto, idêntico à média que se obtém com os reajustes semestrais dos salários e a inflação dos preços em cruzeiros estabilizada em 10% ao mês. Em seis meses, o poder de compra do novo salário somaria as mesmas 7,71 cestas. Este resultado não é surpreendente na medida em que as taxas de conversão da Tabela 1 foram construídas exatamente com o intuito de recompor os valores médios dos preços reais a partir dos preços vigentes na data do congelamento.

6. O CONGELAMENTO DOS PREÇOS

O desequilíbrio recente dos preços relativos e a consequente instabilidade das taxas mensais de inflação no Brasil também têm sido apontados como empecilhos à aplicação do “choque heterodoxo”. Neste aspecto os casos brasileiro e argentino têm suas semelhanças. A inflação mensal argentina saltou do patamar de 20% para 30% em julho, quando o governo, no crepúsculo do peso, forçou uma transferência de renda em favor do Estado e do setor externo.

Por ocasião da proposta do “choque heterodoxo”, em meados de 1984, a inflação brasileira encontrava-se relativamente estabilizada à taxa de 10% ao mês. Os reajustes dos preços-chave da economia tinham periodicidades fixas e bem determinadas. Os preços relativos pareciam estar em equilíbrio. A partir do segundo semestre de 1984 verificou-se um aumento da frequência de correção dos preços públicos e uma intensificação do movimento em direção à trimestralização dos reajustes salariais. A inflação passou para um patamar de 11,5% ao mês. Com o controle de preços instituído em abril de 1985, logrou-se obter uma queda das taxas mensais de inflação para cerca de 8% ao mês entre abril e julho. A descompressão dos controles provocou um “repique inflacionário” em agosto, com a taxa de inflação atingindo 14%. Assim, obviamente, os últimos doze meses não configuram um período de estabilidade inflacionária.

Vale notar ainda que nesse período a estrutura de preços relativos da economia brasileira foi severamente modificada e, em muitos casos, novas periodicidades para os reajustes ainda não foram definidas. O caso dos derivados de petróleo é típico. Até meados de 1984 os reajustes dos preços eram trimestrais. Em seguida passaram a ocorrer a cada dois meses. Entre março e julho de 1985 os preços foram congelados. Após o descongelamento em julho, apostava-se em correções mensais. No entanto, em setembro, os reajustes foram bimensais. Não está claro, tampouco, que as relações de preços vigentes sejam sustentáveis a médio prazo. Assim, não é possível descartar a hipótese que um eventual “choque” brasileiro venha acompanhado também de uma transferência de renda em favor do Estado ou do setor externo.

Pelos motivos acima expostos, a conversão dos preços-chave da economia brasileira para cruzados é, no momento atual, um exercício que requer alguma abstração. O dilema é óbvio. Se forem mantidas as relações de preços vigentes, pode-se estar congelando uma distribuição da renda incompatível com um equilíbrio da economia a mais longo prazo. Se, por outro lado, o “choque desalinha os preços relativos vigentes, gera-se uma inflação potencial” na nova moeda.

Supõe-se na Tabela 4 que os níveis correntes dos preços na segunda coluna e as periodicidades arbitradas para os reajustes na terceira coluna sejam consistentes com uma inflação dos preços em cruzeiros estabilizada à taxa de 10% ao mês. Na quarta coluna da mesma tabela tem-se a data do último reajuste. Tendo em vista que a Tabela 1 apresenta as taxas de conversão apenas para meses completos transcorridos a partir do último reajuste, a tabela precisaria ser estendida para incluir também frações do mês. Para isto, bastaria multiplicar a taxa referente ao número de meses completos da Tabela 1 pelo fator que resulta da aplicação de uma taxa de 0,3182% ao dia (o que acumula os mesmos 10% em um mês de trinta dias) pelo número de dias que representa a fração do mês.

TABELA 4
A conversão dos preços

Por exemplo, para gasolina, cujo preço foi reajustado para 2.580 cruzeiros por litro em 30 de agosto, a taxa de 0,95382 cruzado por mil cruzeiros é extraída diretamente da primeira linha e primeira coluna na Tabela 1. O preço da gasolina seria, então, fixado em 2,46 cruzados por litro. No caso do leite em pó, decorridos 25 dias do último reajuste, a taxa de conversão é obtida multiplicando-se 0,86974 (da terceira linha e primeira coluna da Tabela 1) por 1,08266, o que corresponde a 1,003182. Com a taxa de conversão de 0,94164 cruzado por mil cruzeiro, obtêm-se o preço de 6,43 cruzados por lata de 454 g. Para o açúcar refinado, cujo último reajuste ocorreu há 2 meses e 20 dias, a taxa de 1,05239 (da terceira linha e segunda coluna na Tabela 1) é multiplicada por 1,06560, ou seja, 1,003182. À taxa de 1,12143 cruzado por mil cruzeiros, o preço do saco de 1 kg de açúcar refinado converte-se em 2,39 cruzados.

7. A ESTABILIZAÇÃO DAS “OUTRAS MOEDAS”

Convivem atualmente com o cruzeiro na economia brasileira diversas “moedas indexadas” que servem frequentemente como referência para os reajustes dos preços em cruzeiros. Enquanto, num contexto de estabilidade inflacionária, o cruzeiro (e, consequentemente, também os bens cujos preços são fixos em cruzeiros) se desvaloriza constantemente com a inflação, as “moedas indexadas” (e, consequentemente, também os bens cujos preços são fixos em moeda indexada) são protegidas da inflação através das correções periódicas de seus valores em cruzeiros. Dentre as moedas indexadas, destacam-se: o dólar norte-americano (US$); as Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional (ORTN); a Unidade Padrão de Crédito (UPC); o Salário Mínimo (SM); o Maior Valor de Referência (MVR); e a Unidade Fiscal do Estado do Rio de Janeiro (UFERJ).

A estabilidade da nova moeda dispensaria a coexistência de “moedas indexadas”. E, por sua vez, a eliminação das “moedas indexadas” contribuiria para a estabilidade da nova moeda. Assim, por ocasião da substituição do cruzeiro pelo cruzado, os valores contratados em “moedas indexadas” seriam imediatamente convertidos para a nova moeda. O congelamento (ainda que temporário) dos valores em cruzados das “moedas indexadas” implicaria de fato a suspensão das regras atuais de recomposição (diária para US$, mensal para as ORTN, trimestral para a UPC e a UFERJ, e semestral para o SM e o MVR). No período de congelamento poderiam ser formuladas novas cláusulas de indexação, restritas a contratos de longa duração (possivelmente, superiores a um ano), privilegiando um maior espaçamento na recomposição dos valores em cruzados.

A Tabela 5 apresenta um esquema para a conversão em cruzados das “moedas indexadas”. Supõe-se, novamente, que a inflação esteja estabilizada a uma taxa média de 10% ao mês e que o congelamento seja anunciado em 31 de agosto. A taxa de câmbio, que tem correção diária, seria convertida à razão de um cruzado por mil cruzeiros. Com base na cotação prefixada para 30 de agosto em 6.950 cruzeiros, o valor do dólar seria congelado em 6,95 cruzados.

TABELA 5
A Conversão das “outras moedas”

As taxas de conversão aplicadas às outras moedas seriam obtidas diretamente da Tabela 1, na linha correspondente à periodicidade do reajuste (na segunda coluna da Tabela 5) e na coluna correspondente aos meses completos transcorridos a partir do último reajuste em 30 de agosto (na quarta coluna da Tabela 5). A multiplicação dos valores em cruzeiros, na terceira coluna da Tabela 5, pelas respectivas taxas de conversão, repetidas na quinta coluna da mesma tabela, resulta nos valores em cruzados a serem mantidos no período de congelamento. Assim, de acordo com a última coluna da Tabela 5, as ORTN, a UPC, o SM, o MVR e a UFERJ teriam seus valores fixados em 51,83 cruzados, 48,31 cruzados, 337,68 cruzados, 169,39 cruzados e 112,84 cruzados respectivamente.

Um exercício similar àquele utilizado para o caso dos salários permitiria verificar que a conversão acima manteria em cruzados o poder de compra médio das “moedas indexadas”. Por exemplo, na ausência da reforma monetária, 1.000 UPC adquiriam em setembro 41,73 cestas de consumo ao preço unitário de 1.100.000 de cruzeiros. Com a inflação estabilizada à taxa de 10% ao mês, o valor da UPC seria reajustado em 33,1% para 61.095,44 cruzeiros entre outubro e dezembro. Em outubro o poder de compra de 1.000 UPC eleva-se para 50,49 cestas no valor de 1.210.000 cruzeiros. Com o aumento do preço da cesta para 1.331.000 cruzeiros em novembro, o poder aquisitivo de 1.000 UPC cai para 45,90 cestas. Ao longo dos três meses são consumidas 138,12 cestas ou 46,04 em termos da média mensal. Com o congelamento do valor da UPC em 48,31 cruzados e a estabilização do preço da cesta básica de consumo em 1.049,21 cruzados, 1.000 UPCs adquiririam a partir de setembro exatamente 46,04 cestas ao mês.

8. AS TAXAS DE JUROS E O NÍVEL DE ATIVIDADE

Uma outra linha de oposição ao “choque heterodoxo” enfatiza um possível impacto contracionista sobre o nível de atividade econômica. A recessão é diretamente associada às elevadas taxas de juros reais que, por exemplo, prevaleceram no caso argentino. Certamente a fixação das taxas de juros na nova moeda envolve um importante dilema. Se, por outro lado, as taxas de juros reais devem ser suficientemente altas para inibir a estocagem especulativa de bens e de moeda estrangeira no período do congelamento, por outro lado não devem ser tão altas a ponto de prejudicar sensivelmente a atividade econômica.

Na economia brasileira, assim como no caso argentino, podem ser identificados essencialmente dois tipos de contratos para pagamentos em cruzeiros no futuro. A diferença reside nas taxas de juros que podem ser pós ou prefixadas. Os contratos com taxas pós-fixadas não causam maiores problemas. Com a eliminação da correção monetária, os percentuais contratados acima da correção monetária transformam-se em taxas de juros nominais na nova moeda. Se a inflação na nova moeda for nula, as taxas de juros nominais serão também as taxas de juros reais.

O caso das operações com taxas de juros prefixados é bem mais complexo. O governo argentino resolveu este problema criando uma tabela de conversão entre pesos futuros e austrais. Este mecanismo teve por objetivo eliminar a “expectativa inflacionária’’ embutida nas taxas prefixadas. Partindo de uma paridade de mil pesos por austral em 15 de junho, a escala de conversão entre pesos futuros e austrais supõe uma desvalorização diária do peso de 0,8524%, o que acumula aproximadamente a “expectativa inflacionária” de 30% em um mês de trinta dias.

O caso brasileiro distingue-se do argentino principalmente no que se refere à maturação dos contratos a taxas de juros prefixadas. Enquanto, na Argentina, os contratos a taxas prefixadas maturavam a cada 30 ou 45 dias, na economia brasileira existem ainda operações desse tipo com prazos de até 360 dias. Com uma inflação rigorosamente estabilizada em, por exemplo, 10% ao mês, o problema poderia ser resolvido nos mesmos moldes da reforma argentina, com uma tabela de conversão entre cruzeiros futuros e cruzados. Partindo-se de uma paridade de mil cruzeiros por cruzado, a taxa de conversão poderia ser obtida supondo uma desvalorização diária do cruzeiro de 0,3182%, o que acumula aproximadamente a “expectativa inflacionária” de 10% em um mês de trinta dias.

No entanto, é razoável admitir que, na atual situação econômica brasileira, os contratos a taxas prefixadas com maturação mais longa tenham embutido não só uma inflação esperada maior do que a inflação passada como também maiores prêmios de risco. Estes estariam associados a uma maior variância das taxas de inflação a médio prazo. O espaço para a arbitrariedade na escolha da “expectativa inflacionária” é, portanto, bem mais amplo do que no caso argentino. E o maior espaço para a arbitrariedade é perigoso, pois a eliminação da “expectativa inflacionária” das taxas de juros prefixadas em cruzeiros fixa as taxas de juros em cruzados.

No que concerne à recessão e a sua relação com as elevadas taxas de juros, a transposição da experiência argentina ao caso brasileiro merece alguns comentários. Em primeiro lugar, convém notar que as taxas elevadas se referem principalmente aos juros de curto prazo, cujos efeitos sobre a atividade econômica são, no mínimo, discutíveis. Em segundo lugar, a resposta da demanda a altas taxas de juros reais pode ser distinta nos casos argentino e brasileiro. Um indicador desta distinção seria o exacerbado crescimento apresentado pela economia brasileira no primeiro semestre de 1985, ao mesmo tempo que as taxas de juros reais atingiram patamares considerados elevadíssimos. E, em terceiro lugar, deve-se ter em mente que a economia argentina já se encontrava numa trajetória francamente recessiva antes do “choque”. Nos primeiros seis meses de 1985, o produto industrial argentino caiu 13,65% em relação ao mesmo semestre do ano anterior. Em contraste, de janeiro a julho de 1985 o produto industrial brasileiro cresceu 6,87%.

  • JEL Classification: E31.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 1986
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