Open-access A agricultura urbana e suas faces: caracterização a partir de um estudo comparativo multicasos em Curitiba

Urban agriculture and its faces: characterization based on a multi-case comparative study in Curitiba

Resumos

Resumo  A pesquisa caracteriza o modo de organização de três expressões da Agricultura Urbana (AU) calcada na tipologia estabelecida por Feniman (2014): Assistida, Vernacular e Politizada. Metodologicamente adotou-se uma estratégia de pesquisa de casos de base qualitativa e natureza descritivo-exploratória, contemplando a coleta de dados e posterior análise comparativa das organizações. Os resultados apontam que o modo de organização da Assistida é de base técnica instrumental, dependente da assistência do poder público, com favorecimento da produção de espécies com valor de mercado e estruturação social formalizada que limita integração social interna e externa, além de apresentar menor utilização de tecnologias de produção não convencionais. A Organização Vernacular tem base de estruturação informal e afetiva, que valoriza saberes ancestrais e a manutenção de práticas tradicionais, estando fixada em forte enlace familiar. A Organização Politizada manifesta o desejo dos participantes em conferir à agricultura urbana um aspecto integrativo, alternativo, soberano, autônomo e inovador, embora apresente limitações no que diz respeito à constituição de uma vida comunitária estável. O estudo demonstra que os modos de organização observados se relacionam com diferentes dinâmicas de ocupação do espaço, participação, estruturação social, uso de tecnologias de produção, relações com poder público e inovação social.

Palavras-chave:  agricultura urbana; características da agricultura urbana; modos de organização; vida comunitária; convivencialidade


Abstract  This research characterizes the mode of organization of three expressions of urban agriculture (UA) based on the typology established by Feniman (2014): Assisted, Vernacular and Politicized. It is based on a qualitative and descriptive-exploratory methodology contemplating data collection and subsequent comparative analysis of organizations. The results point out that the way of organization of Assistida is of instrumental technical base, dependent on the assistance of the public power, favoring the production of species with market value, formalized social structuring that limits internal and external social integration, and presenting less use of non-conventional production technologies. The Vernacular Organization is based on an informal and affective social relation, which values ancestral knowledge and the maintenance of traditional practices, based on a strong family bond. In the Politized Organization, the open, libertarian and informal mode of organization is linked to the desire of the participants to give urban agriculture an integrative, alternative, sovereign, autonomous and innovative aspect. The study demonstrates that the observed modes of organization are related to different dynamics of space occupation, participation, social structure, use of production technologies, relations with public authorities and social innovation.

Keywords:  urban agriculture; characteristics of urban agriculture; modes of organization; community life; conviviality


1. Introdução

O desenvolvimento das cidades e da agricultura está entrelaçado na história humana. À medida que a quantidade de indivíduos a serem alimentados crescia, novas técnicas de produção agrícola foram desenvolvidas e, com elas, surgiram as primeiras cidades (Harari, 2015). Nesse contexto, tanto a agricultura quanto a pecuária eram desenvolvidas perto das famílias ou junto delas em suas casas. Ao longo do processo de industrialização nos séculos XVIII, XIX e, principalmente, XX, ocorreu o deslocamento da produção de alimentos para fora das cidades. O fenômeno técnico que caracteriza o processo de industrialização (Ellul, 1968) alterou a relação entre indivíduos e alimentos, que anteriormente eram produzidos por eles ou perto deles.

Todavia, considerando que a Agricultura Urbana (AU) é uma prática milenar (Mumford, 2008), ela continua a ser adaptada e praticada nos dias atuais. Recentemente, esse fenômeno vem recebendo crescente atenção devido ao seu vínculo com inúmeras questões pertinentes à vida humana associada. Entre essas questões estão a segurança alimentar, a saúde e bem-estar das pessoas, o meio-ambiente, a integração com o poder público, a manutenção de tradições e o estabelecimento de vida comunitária (Altieri et al., 1999; Cantor, 2010; Cisneros, 2016; Comassetto et al., 2013; Costa et al., 2015; Feniman, 2014; Moruzzi et al., 2021; Nagib, 2016; Ribeiro et al., 2015).

Entretanto, a despeito do crescente interesse pelo fenômeno e o gradual aumento do seu impacto em agendas políticas no Brasil e no exterior, ainda são escassos os estudos no campo (Curan & Marques, 2021; Corrêa et al., 2020). A revisão da literatura na área permite reconhecer pelo menos duas lacunas relevantes às quais o presente estudo se propõe a contribuir. Primeiro, a AU tende a ser investigada sem o devido reconhecimento da diversidade de suas formas de organização. Segundo, ao se reconhecer que a AU pode se manifestar de formas diferentes (Feniman, 2014; Pereira, 2021), pouco se sabe como essas diferentes expressões da AU se organizam.

No estudo de Pereira (2021), foi analisada a morfologia urbana e as condições socioeconômicas da produção agrícola no município de Presidente Prudente. Sua tipologia evidencia as funções que diferentes práticas agrícolas no contexto urbano proporcionam aos sujeitos e às cidades. Já Feniman (2014), com base no envolvimento dos praticantes de AU com as políticas públicas, a intencionalidade política da prática pessoal e a tradição de produzir gêneros alimentares no espaço domiciliar, propôs uma tipificação da prática dos agricultores urbanos como assistidos, politizados e vernaculares. Embora a tipologia de Feniman (2014) contribua para o reconhecimento das diferentes representações simbólicas do cultivo de alimentos para cada uma dessas diferentes expressões de AU, seus modos de organização permanecem ocultos.

Considerando essas lacunas e inspirado pela tipologia proposta por Feniman (2014), este trabalho tem como objetivo caracterizar o modo de organização de três expressões da agricultura urbana identificadas na cidade de Curitiba: assistida, vernacular e politizada.

O trabalho, fruto da investigação de três casos de AU na capital paranaense, representativos da tipologia de Feniman (2014), contribui de forma prática para o melhor entendimento do fenômeno em diversas perspectivas: 1) pela descrição das hortas, do perfil dos envolvidos e seu modo de organização; 2) pela identificação e enumeração das espécies cultivadas, incluindo Plantas Alimentícias Não Convencionais (PANCs), hortaliças convencionais, ervas medicinais e árvores frutíferas; 3) pela verificação dos modos de conduzir as ações; 4) pela compreensão dos objetivos e motivações que orientam diferentes expressões de agricultura urbana; 5) pela constatação de que as iniciativas de AU não tecnificadas (vernacular e politizada) favorecem a construção de espaços de convivialidade, inovação e mudança; 6) pela identificação de quais políticas públicas podem ser mais efetivas no escopo de atenuar o problema da insegurança alimentar local; e 7) pelo reconhecimento de que alternativas à AU podem não ter valor equivalente no que diz respeito ao estímulo à vida comunitária e convivial. Nesses termos, o estudo ganha pertinência ao reconhecer a diversidade de expressões vinculadas à prática da AU, bem como ao expor as peculiaridades de três modos de organização da AU desveladas ao longo da realização da pesquisa: assistida, vernacular e politizada.

Além desta seção de introdução, o artigo é composto por outras cinco. A segunda trata do referencial teórico, onde são abordadas as concepções sobre AU. A terceira discorre sobre os procedimentos metodológicos. A quarta seção é dedicada à apresentação dos resultados. A quinta elabora as discussões e contribuições, e a última as conclusões e considerações finais.

2. Fundamentação Teórica

Segundo Slater (2001, p. 635), a agricultura urbana pode ser caracterizada por “atividades de agricultura e jardinagem (como produção de vegetais, criação de animais, hidroponia, flores e jardins ornamentais), em áreas tanto urbanas quanto periurbanas”. Para Mougeot (2000), a AU se define como um movimento organizado dentro da cidade (intra-urbano) ou em sua periferia (periurbano), em que se cultiva, processa e distribui uma diversidade de alimentos e também produtos não alimentares, por meio de um processo que conta com recursos humanos e materiais existentes no próprio contexto urbano. Trata-se, sobretudo, de um fenômeno inerente à existência humana e à história das cidades (Mumford, 2008). Outrossim, pode ser enxergada sob prisma individual, organizacional ou governamental.

Hardman & Larkham (2014) argumentam que a AU pode também ser entendida como uma forma de oposição à revolução verde (RV) – fenômeno sociotécnico conhecido como a Segunda Revolução da Agricultura. Segundo os autores, esta forma de agricultura ou jardinagem libertária no contexto urbano remete à mobilização originada na década de 1970 em Nova Iorque, denominada jardinagem de guerrilha (guerrilla gardening) (Hardman & Larkham, 2014). De acordo com a perspectiva da jardinagem libertária, ocupam-se espaços públicos e terrenos baldios com a finalidade de serem constituídas hortas urbanas. Tal iniciativa visa promover conscientização coletiva sobre a relevância da AU, podendo as hortas se tornarem um centro de ações sociais diversificadas (Ribeiro et al., 2015), avançando para além da questão da produção de alimentos propriamente.

Na medida em que a AU articula dimensões sociais, ecológicas, econômicas, de planejamento e políticas em contexto urbano, ela tem sido apontada como central para reflexões sobre uma possível cidade sustentável (Aggarwal et al., 2023; Pueyo-Ros et al., 2024). De acordo com Coutinho (2010, p. 13), atividades de AU “trazem a possibilidade de diversificar o uso do solo urbano, ao atribuir ao solo a fertilidade que devolve o seu valor de uso e o sentido de matéria-prima para o cultivo de alimentos”. A literatura da área aponta inúmeras funções cumpridas pela AU (Altieri et al., 1999; Cantor, 2010; Comassetto et al., 2013; Feniman, 2014; Costa et al., 2015; Cisneros, 2016; Nagib, 2016; Moruzzi et al., 2021; Ribeiro et al., 2015), entre elas destaca-se: 1) a readequação das cidades para viabilizar um novo modelo de urbanização; 2) a reaproximação da produção e do consumo entre os atores envolvidos; 3) a reação positiva face às adversidades determinadas pelo sistema convencional por meio de autoabastecimento; 4) a produção de alimentos orgânicos, livres de agrotóxicos; 5) a satisfação e bem-estar ao consumir os próprios alimentos e até mesmo pela atividade realizada na horta; 6) a utilização de quintais em residências ou espaços em apartamentos mesmo que limitados; 7) a ocupação de terrenos baldios; 8) o reaproveitamento de resíduos orgânicos urbanos; 9) a preservação do meio ambiente e cultura local, inclusão social e governabilidade participativa; e 10) o fortalecimento de laços familiares, vida comunitária e autonomia das pessoas.

A AU praticada em diferentes lugares do mundo pode ter diversas motivações, estabelecendo laços com a cultura do local onde se realiza. Isso implica dizer, por exemplo, que a lógica por trás da AU realizada nos community gardens do Bronx em Nova Iorque difere daquela dos horteiros dos bairros Fanny e Parolin em Curitiba (Ottmann, 2011). No bairro nova-iorquino, cultiva-se para relaxar, interagir, falar sobre política, traçar diálogos sobre o bem-estar da população local, entre outros. Já em alguns bairros curitibanos, como demonstra Ottmann (2011), trata-se de uma iniciativa para complementar a alimentação dos moradores locais, ocupar o tempo e fomentar a convivência. Nesse sentido, Biazoti e Sorrentino (2022, p. 2) sustentam que “uma horta comunitária no interior de um bairro pode possibilitar um espaço de convivência e interação social que transcende a garantia de segurança alimentar e nutricional da região”. Portanto, por meio da prática da AU, obtêm-se benefícios não apenas relativos à busca de uma alimentação saudável (livre de agrotóxicos). Trata-se da possibilidade de readquirir o contato com tradições familiares, com a natureza, e de construir ligações afetivas entre os envolvidos. Nesse sentido, ações de AU poderiam caracterizar organizações de convivialidade (Illich, 1976) na medida em que seu modo de organização não seria tecnicamente orientado (Ellul, 1968). Para Illich (1976), a principal característica da estrutura organizacional convivencial é sua contraposição à dominação técnica (Ellul, 1968), permitindo assim uma ação mais autônoma, afetiva e criativa.

Considerando ainda as diferentes motivações e intenções vinculadas à prática da AU, Caldas & Jayo (2019) fazem referência às modalidades denominadas “agricultura urbana de escala”, geralmente apoiadas pelo poder público e localizadas em extensas áreas periféricas, e “agricultura urbana de visibilidade”, estabelecidas em pontos centrais e de menor dimensão, destacando-se por seu caráter educativo, conscientizador e político. Para além de seus usos enquanto ferramenta de planejamento e gestão urbana, é importante reconhecer que algumas iniciativas de AU têm intencionalidade genuína de criticar os malefícios do sistema alimentar convencional e a relação de dependência construída por meio de uma cadeia produtiva fornecedora de alimentos, que dita regras e cerceia a capacidade de escolha dos habitantes das grandes cidades (Schneider, 2014; Feniman, 2014; Nagib, 2019). Por essa razão, um dos impulsionadores da AU contemporânea seria a busca por autonomia, a independência e a intencionalidade de fomentar mudanças legislativas e culturais em toda a cidade (Schneider, 2014; Feniman, 2014; Nagib, 2019).

A revisão bibliográfica dos estudos conduzidos na área sugere que as iniciativas de AU podem ser posicionadas sob diferentes perspectivas. Ou seja, ao mesmo tempo em que podem ser vistas sob o enfoque da segurança alimentar, enquanto alternativa para populações em situação de vulnerabilidade e/ou em cenários de crise, também podem ser consideradas espaços de inovações sociais, resgate de tradições, jardinagem, planejamento urbanístico, reaproveitamento de resíduos orgânicos, além de reduzir a distância entre o produtor e o consumidor em grandes centros urbanos (Costa et al., 2015; Cisneros, 2016; Comassetto et al., 2013; Moruzzi et al., 2021; Ribeiro et al., 2015).

Tal reconhecimento reforça o entendimento de que a AU é um fenômeno multifacetado cuja complexidade ainda não está adequadamente descrita e consolidada. Avanços nessa direção são os trabalhos de Pereira (2021) e Feniman (2014). Ao analisar a morfologia urbana e as condições socioeconômicas da produção agrícola no município de Presidente Prudente, Pereira (2021) propõe uma tipologia de análise da agricultura urbana que leva em conta as funções que a prática agrícola proporciona aos sujeitos e às cidades. O autor reconhece que tanto a lógica subjacente de produção, quanto as prerrogativas de apropriação do solo urbano como negócio, bem como os condicionantes econômicos e culturais ao consumo alimentar podem variar. Já Feniman (2014), ao investigar as representações simbólicas atribuídas à horta no contexto urbano do município de Curitiba, reconhece pelo menos três modos de AU: assistida, politizada e vernacular.

Na agricultura urbana assistida, a horta concretiza-se por força externa, isto é, mediante a intervenção formal de um agente externo, como no caso em estudo, da prefeitura municipal de Curitiba, promotora das hortas comunitárias. Esta força externa é capaz de manter e reordenar a prática da AU de acordo com seus objetivos, atribuindo suas próprias significações simbólicas ao lugar. De acordo com Feniman (2014), na AU assistida, os significados atribuídos à horta estão diretamente ligados ao passado de seus participantes, posicionando-a como uma maneira de recordar os tempos idos vividos na agricultura. Logo, constitui um espaço de cultivo que carrega uma herança histórica, cujo sistema de significação permite uma leitura do mundo sensível ligado ao passado. Interessante observar que, segundo Feniman (2014), na AU assistida, tipicamente não se estabelecem relações intergeracionais, uma vez que os filhos dos horticultores não se envolvem na atividade de cultivo com os pais.

Já a agricultura urbana politizada se concretiza como expressão da mobilização política, ideológica ou cultural de um grupo social. Nessa forma de AU, os significados atribuídos à horta e à ocupação do espaço estão diretamente vinculados aos sujeitos participantes e não a uma força externa. De acordo com Feniman (2014), para os agricultores urbanos politizados, a horta é o lugar onde eles criam a possibilidade de demonstrar seu descontentamento com a lógica agroalimentar dominante. Ela também carrega consigo significações relacionadas à soberania alimentar e ao poder de decidir o que e como cultivar, mesmo que em uma escala muito pequena. Tipicamente, no contexto da AU politizada, as hortas são reconhecidas pelos seus membros como como espaços de liberdade. Estabelecidas em áreas públicas ou privadas, materializam-se por meio de práticas de sujeitos cuja inspiração vem de um passado não vivido, já que a maior parte dos integrantes não tem origem rural (Feniman, 2014). Agricultores urbanos politizados veem as áreas públicas como uma grande oportunidade para a expansão da AU, abrindo a possibilidade da ressignificação ou mesmo de múltipla significação para áreas como os parques e as praças.

Finalmente, de acordo com Feniman (2014), a agricultura urbana vernacular se concretiza como parte da vida, isto é, como prática histórica e culturalmente arraigada entre seus sujeitos. Na agricultura urbana vernacular, a horta e o cultivo doméstico simbolizam a habilidade de produzir e de abastecer a mesa de seus praticantes com alimentos frescos oriundos do seu próprio trabalho. Nestes termos, a agricultura vernacular se materializa como algo intrínseco ao modo de viver de seus sujeitos, que lhes foi transmitido ao momento presente pela influência familiar.

Os estudos aqui revisados apresentam evidência contundente para reconhecer que, além de ser um fenômeno relevante e multifacetado, o atual conhecimento disponível sobre AU apresenta limitações no sentido de pouco especificar e caracterizar suas diferentes manifestações. Nessa direção, considerando a possibilidade de reconhecimento de pelo menos três tipos de AU, tal como propôs Feniman (2014), o presente estudo investiga características vinculadas ao modo de organização de cada uma, a partir de um estudo comparativo de casos representativo de cada uma dessas abordagens. Os procedimentos metodológicos utilizados para a consecução deste objetivo são apresentados na próxima seção.

3. Metodologia

Para realização deste estudo, adotou-se uma estratégia de pesquisa de casos de base qualitativa e natureza descritivo-exploratória (Yin, 2005, 2016). Tal opção considerou a coleta de dados e posterior análise comparativa de três organizações escolhidas a partir de seu alinhamento com as características dos três tipos de AU identificados por Feniman (2014) na Cidade de Curitiba/PR: assistida, politizada e vernacular.

Inicialmente, realizou-se contato com o secretário municipal de abastecimento de Curitiba. Tal encontro viabilizou a realização de entrevista com dois gestores vinculados ao seu gabinete. Na ocasião, foi informado que havia 33 organizações praticantes de AU na cidade.

A seleção da Organização Assistida se deu pela representatividade das hortas assistidas pelo poder público e pela facilidade de acesso construído a partir do contato inicial com a Secretaria Municipal de Abastecimento de Curitiba. Para a seleção da iniciativa de AU Politizada, as referências encontradas no trabalho de Feniman (2014) foram centrais. A partir da aproximação inicial com os agentes da Secretaria Municipal de Abastecimento, também foi possível estabelecer contato com o líder da Organização Politizada. Já a Organização Vernacular foi selecionada em face da facilidade de acesso a partir da rede de contatos de um dos pesquisadores. Nestes termos, os critérios de conveniência que definiram a seleção dos três casos considerados neste estudo compreenderam sua representatividade, alinhamentos com a tipologia proposta por Feniman (2014) e facilidade de acesso.

A coleta de dados ocorreu ao longo de 14 meses, tendo iniciado em fevereiro de 2019 e terminado em abril de 2020. Na Organização Assistida, além de entrevistas semiestruturadas com a líder, outros 11 integrantes foram entrevistados. A seleção dos entrevistados na Organização Assistida se deu com base em critérios de conveniência, especificamente acessibilidade e disponibilidade dos participantes nos momentos em que foram realizadas visitas às hortas.

Na Organização Vernacular, entrevistas semiestruturadas em profundidade foram conduzidas com o líder e mais cinco integrantes da família. Os contatos promovidos com a Organização Politizada originaram entrevistas semiestruturadas com o líder da iniciativa. A fim de preservar as identidades dos envolvidos na pesquisa, estas foram omitidas. Quanto às organizações selecionadas, foram atribuídos os seguintes nomes: Organização Assistida, Organização Politizada e Organização Vernacular. O roteiro de entrevista considerou o levantamento de informações sobre: a) extensão da área cultivável; b) perfil, número e papel desempenhado pelos participantes; c) motivações e intenções vinculadas à iniciativa de AU realizada; c) cultivares plantadas; d) técnicas e tecnologias empregadas; e) divisão do trabalho; e, f) relação com o poder público (Prefeitura Municipal de Curitiba).

Além das entrevistas semiestruturadas, o processo de coleta de dados incluiu também períodos de observação que serviram como forma de triangulação dos dados levantados nas entrevistas e que também contemplaram as práticas e interações entre os agricultores integrantes de cada uma das organizações. As observações realizadas durante as visitas às organizações estudadas ao longo do período de coleta foram registradas em diário de campo.

Ao final da pesquisa, foram obtidas seis horas de gravação de entrevistas, 271 registros fotográficos e 50 páginas de diários de campo. Durante os meses de fevereiro a abril de 2020, o processo de coleta de dados incluiu acompanhamentos à distância por meio de quatro ligações telefônicas, 55 minutos de áudios e 548 mensagens de texto, estes últimos por meio do aplicativo WhatsApp e envio de seis e-mails.

Os dados obtidos foram examinados com base nos pressupostos da análise qualitativa (Miles & Huberman, 1994; Silverman, 2006). Foram analisados comparativamente e triangulados, levando em consideração, além dos aspectos teóricos anteriormente assimilados, o conteúdo manifesto por meio das falas contidas nas entrevistas, os diários de campo construídos ao longo do processo de observação dos pesquisadores, fotos, mensagens, áudios e ligações telefônicas (Bauer & Gaskell, 2002; Mattos, 2006; Miles & Huberman, 1994; Silverman, 2006). A análise qualitativa foi realizada com o objetivo de permitir a comparação analítica do modo de organização de cada um dos casos investigados (Miles & Huberman, 1994; Yin, 2005).

4. Resultados e Discussão

A descrição dos resultados apresenta as características dos três casos de AU estudados nesta pesquisa, aqui denominados de Organização Assistida, Organização Vernacular e Organização Politizada. Para cada uma, é descrita a contextualização histórica e geográfica, e apresentados elementos do seu modo de organização incluindo: perfil dos participantes, objetivos e motivações, espécies cultivadas, técnicas empregadas na produção, estruturação social, divisão do trabalho e relação com o poder público.

4.1 A Organização Assistida

A organização em questão é uma entidade social sem fins lucrativos voltada apenas à prática de AU, qualificada pelo poder público local como horta comunitária. Situada sob os fios de alta tensão que compõem uma rede de transmissão administrada por uma companhia estatal federal de energia elétrica, a qual é proprietária do terreno e que o cede aos agricultores, a Organização Assistida possui uma área cultivável correspondente a 11.400 m2.

Na região onde a Organização Assistida está situada já havia outras ações voltadas à prática de AU. Ela foi a última (da localidade) a ser implantada em setembro de 2011, mediante assinatura de contrato entre representantes do poder público, companhia estatal federal de energia elétrica e a líder da organização. Em fevereiro de 2019, no início da coleta de dados, a Organização Assistida contava com 105 integrantes ativos, número que reduziu para 88 em abril de 2020, quando finalizou a coleta de dados. Segundo a líder da horta, é comum ocorrer flutuação no número de integrantes ao longo do tempo, devido à desistência de alguns participantes. A maioria dos integrantes tem entre 50 e 70 anos de idade. Quanto à escolaridade, entre os entrevistados, três informaram não ter completado o ensino fundamental, quatro relataram ter concluído, três afirmaram ter concluído o ensino médio, um informou ter curso superior completo e outro afirmou não ter escolaridade. O interesse em participar da horta é motivado pelo prazer em trabalhar com a terra, pela ocupação do tempo com uma atividade útil e pela sensação de bem-estar que ela proporciona.

De acordo com os gestores da prefeitura municipal, a horta comunitária contribui para a saúde física e mental dos participantes. Além disso, auxilia na recuperação e manutenção do local, deixando-o em condições adequadas (livre de lixo, mato e presença de desocupados), direciona resíduos orgânicos domésticos com a finalidade de adubar a terra e produzir alimentos isentos de agrotóxicos. A companhia estatal federal de energia elétrica, proprietária do terreno, orienta as ações dos hortelões quanto às regras de segurança, exigindo, por exemplo, a utilização de botas de borracha durante as atividades e o limite de tempo de permanência no local, em média 3 horas diárias. Os agentes públicos entrevistados afirmaram fornecer todo o apoio necessário, embora a líder da horta aponte divergências. Segundo ela, tem sido cada vez menos constante a presença dos representantes do poder público (gestores do departamento de hortas urbanas) no local, além das discordâncias a respeito do apoio prestado1.

A agricultura praticada é caracterizada pela existência de canteiros retangulares nos quais são cultivadas hortaliças comuns. Cada canteiro possui 1,10m de largura e 15m de comprimento, totalizando uma área de 8m x 15m – 8m de largura por 15m de comprimento. Existem cinco canteiros dentro desse espaço com quatro passagens, ou “carreiros”, separações necessárias para movimentação de manejo. Como regra, cada hortelão possui uma horta conforme essas características.

Em relação ao cultivo, há pelo menos 32 tipos de hortaliças, entre legumes, verduras, temperos e algumas poucas PANCs, cultivadas continuamente ao longo do ano. As variedades são as seguintes: 1) Verduras: alfaces americana, crespa, lisa e roxa, mimosa, mimosa-roxa; rúcula, almeirão-liso e pão-de-açúcar, radiche, couve-manteiga, kale e rabano; 2) Legumes: brócolis, repolho, beterraba, cenoura, abobrinha-de-árvore e rabanete; 3) Temperos: alho-poró, cebolinha, coentro, manjericão, manjerona, salsão, alecrim, orégano e hortelã; 4) PANCs: lambari, trevo, azedinha e peixinho.

Quanto às tecnologias empregadas, observou-se que o trabalho é majoritariamente manual com auxílio de ferramentas como o rastel e a enxada. A maior parte do trabalho realizado diz respeito a manter os canteiros limpos, adubados e livres de ervas daninhas. No local, foi constatado a existência de um poço artesiano que bombeia água para uma série de caixas d’água onde os hortelões abastecem seus regadores para aguar as plantações.

4.2 A Organização Vernacular

Trata-se de um agrupamento familiar que tem como característica a ausência de organização formal e a desvinculação com o poder público local. A área cultivável total é de aproximadamente 800 m2, estendendo-se a um terreno particular vizinho, cedido para a prática de agricultura. Especificamente, na Organização Vernacular, a agricultura é praticada em dois espaços: (1) no quintal da residência da família, em aproximadamente 200 m2, e (2) no terreno frontal emprestado, com aproximadamente 600 m2.

Na Organização Vernacular, as ações são caracterizadas como “atividade familiar informal”, iniciadas em 2007 pelo patriarca da família, já falecido, onde sobressaem ofícios típicos de agricultura doméstica. A área de 200 m2 no quintal conta com canteiros espalhados onde há anos se planta milho, batata-doce, quiabo, pimenta, chuchu, maracujá, mamão, pés de feijão e ervas medicinais. Com o empréstimo do terreno frontal, a área cultivável aumentou para 800 m2. Esta propriedade foi regenerada através da limpeza e recuperação do solo, e nele foram iniciadas plantações de quiabo, abóbora, milho (com até duas safras anuais), batata-doce, mandioca e feijão do tipo rosinha. Não há objetivos formais vinculados à organização e produção, sendo os participantes da horta familiar motivados por questões afetivas, manutenção de laços com suas tradições campesinas, e valorização da terra e dos frutos que ela oferece.

Inicialmente, a Organização Vernacular contava com dois integrantes, eventualmente auxiliados por mais, e assim a agricultura foi conduzida de 2007 até o início de 2014. Durante a realização das observações e entrevistas, a horta familiar reunia seis integrantes ativos. Uma das integrantes, aposentada, tem 78 anos e não finalizou o ensino fundamental, assim como a sua irmã de 55 e o sobrinho de 50 anos. Três irmãos, com idades de 41, 48 e 54 anos, respectivamente, possuem diferentes níveis de escolaridade: dois têm curso superior completo e um concluiu o ensino médio.

No que diz respeito a agricultura praticada, organizados em dupla, trio e eventualmente quarteto, especialmente no terreno emprestado, os praticantes lavram a terra conforme aprendizado que receberam de seus ancestrais. Manejam o solo por meio de enxadas, pás cortadeiras, rastelo, utilizam também foice e roçadeira. O trabalho é essencialmente manual, exceto pela roçadeira motorizada. No quintal da casa onde residem, o plantio e manutenção das espécies acontece de maneira simples, relegado ao desenvolvimento natural. Sistematicamente ocorre a limpeza dos canteiros de modo manual e esporadicamente com o uso de enxadas. Periodicamente, os canteiros são rearranjados, as mudas renovadas e/ou sementes lançadas. Todo o lixo doméstico orgânico é aproveitado através da prática da compostagem, utilizando cascas de legumes e frutas, restos de hortaliças, cascas de ovos, pó de café passado, entre outros.

Em relação ao cultivo, há pelo menos 40 espécies entre verduras, temperos, ervas medicinais, árvores frutíferas e culturas anuais. As variedades incluem: 1) Verduras: couve, alface e escarola; 2) Temperos: cebolinha, salsinha, orégano, manjericão, manjerona, alecrim e pimenta; 3) Ervas medicinais: hortelã, bálsamo, babosa, arruda, capim-limão e boldo; 4) Árvores frutíferas: limão-rosa e limão-siciliano, laranja, lima, mexerica, banana, abacate, mamão, jabuticaba, pêssego, goiaba, uvaia, nêspera, amora e figo; 5) Culturas anuais: feijão rosinha, milho, abóbora (4 tipos), chuchu, mandioca, batata-doce, quiabo e cana-de-açúcar.

Quanto às técnicas e tecnologias empregadas, o trabalho é essencialmente artesanal, fundamentado na sabedoria dos pais e avós, transmitida de forma prática e oral. O preparo manual da terra envolve capinação e viragem do solo com o uso da cortadeira e pás. Para o cultivo das hortaliças, são montados canteiros e as mudas são adquiridas em hortos, floriculturas ou casas de suprimentos agrícolas. Os fertilizantes são substituídos pelas cascas de frutas, legumes e pelo próprio mato, que, quando cortado, cobre o solo gerando adubo orgânico, dispensando qualquer uso de pesticida.

Costumes e tradições norteiam as atividades, as quais contam com aproveitamento de resíduos orgânicos domésticos direcionados ao cultivo. Os participantes enfatizam que a produção é orgânica, ou seja, isenta de agrotóxicos e/ou qualquer tipo de aditivo químico.

4.3 A Organização Politizada

A Organização Politizada é uma ocupação pública, não formalizada, ou seja, embora reconhecida pelo poder público local, não depende dele. Localiza-se em um terreno de propriedade da prefeitura municipal. Essa organização realiza o tipo mais peculiar de AU entre os casos investigados, considerada jardinagem, conforme disposto na lei municipal n. 15.300/2018 – lei de agricultura urbana de Curitiba, que autoriza a ocupação de espaços públicos e privados para o desenvolvimento de atividades de AU.

Uma especificidade a respeito da Organização Politizada, em comparação com as anteriores, é o fato de ser totalmente aberta a qualquer interessado (não há grades, cercas ou portões). Os vizinhos costumam colher as verduras, legumes e PANCs produzidos. As premissas da ocupação são aspectos democráticos, inclusivos e acolhedores.

A Organização Politizada possui uma área cultivável de aproximadamente 400 m2, localizada em uma região residencial próxima ao centro da cidade, sem edifícios nas imediações. As atividades de AU neste local iniciaram-se em resposta aos atos de violência e criminalidade frequentemente cometidos no entorno da área. O líder e idealizador da iniciativa reuniu-se com mais quatro interessados em dezembro de 2017 e iniciou as primeiras ações voltadas à regeneração do local, como o recolhimento de lixo e preparação do espaço para o cultivo.

Em 2018, a Organização Politizada contava com aproximadamente 20 integrantes ativos. Entre os participantes havia chefs de cozinha, conhecedores de práticas tradicionais de agricultura, simpatizantes e demais interessados. Entretanto, em fevereiro de 2020, quando da incursão realizada, o líder informou que havia apenas dois e, às vezes, até três participantes ativos naquele momento – redução drástica em comparação ao ano de 2018, seu auge.

Quanto aos perfis dos integrantes, as idades variaram entre 35 e 45 anos, apresentando uma mescla entre membros mais e menos escolarizados, tendo a predominância de graduados em diferentes cursos acadêmicos. O líder, de 38 anos, possui curso superior completo.

A agricultura praticada na Organização Politizada é essencialmente manual, com intensa realização de compostagem, contando com a participação da comunidade local que diariamente leva até a ocupação o seu lixo orgânico doméstico, algo próximo de 100kg semanais. No local, não há água encanada, o que exige o desenvolvimento de tecnologias de produção que reduzem e/ou minimizam a necessidade da rega periódica. A compostagem é fundamental para enriquecer e adubar o solo, além de hidratá-lo. Utilizam-se ferramentas simples como enxadas, rastelos e roçadeira motorizada. A compostagem e a cobertura do solo com resíduos orgânicos oriundos das podas e roçadas, realizadas pelo poder público local2, reduzem a necessidade de limpar/capinar o terreno. O plantio é realizado em “ninhos”, ao invés dos tradicionais canteiros retangulares. De acordo com os participantes, essa é uma técnica inspirada na agrofloresta e que visa otimizar o uso do espaço, tempo e esforços dos integrantes, bem como reduz a necessidade da rega periódica. Cada ninho é arranjado com o uso de madeiras em seu entorno, normalmente troncos e galhos de árvores aproveitados para tal fim.

A variedade de espécies cultivadas provém do conhecimento e do esforço dos integrantes, especialmente de seu líder. Devido às conexões estabelecidas com sujeitos que detêm conhecimentos teóricos e práticos acerca de sistemas agroflorestais, como é o caso da ocupação, há troca de experiências, recebimento de sementes e mudas de diversas partes do Brasil, incluindo comunidades indígenas e quilombolas.

Em relação ao que é cultivado, prevalece o cultivo de PANCs e, em pequena quantidade, hortaliças comuns. A horta conta com mais de 90 espécies, incluindo árvores frutíferas, árvores tradicionais, espécies não nativas do Brasil, entre outras. Tal configuração se deve ao fato de a Organização Politizada ter feições de sistema agroflorestal. As espécies cultivadas incluem: 1) PANCs: ora-pro-nóbis, peixinho, capuchinha, major-gomes, caruru, cariru, jambu, ginseng, feijão-guandu, tansagem, fisális, canela, cará, araruta, inhame, taioba, vinagreira; 2) Hortaliças comuns: alface, couve, repolho, salsinha, chuchu, almeirão, rúcula, agrião, ervilha, tomate, linhaça, berinjela, pimenta; 3) Ervas medicinais: hortelã, capim-limão, boldo, boldo-do-chile, alecrim, alecrim-branco, alecrim-do-campo, sálvia, manjericão, alfavaca, guanxuma, mirra, assa-peixe, beldruega, babosa, pata-de-vaca; 4) Temperos: manjericão, cebolinha, açafrão; 5) Culturas anuais: abóbora, feijão-preto, milho, milho-pipoca, mandioca, maracujá, mamão, quiabo, batata-doce; 6) Frutas (árvores frutíferas): banana, nêspera, gabiroba, grumixama, araçá, pitanga, acerola, araticum, aroeira, café, limão, maçã, abacate, cerejeira, bacaba, juçara, amora-espinhuda, butiá, uvaia (uvalha), astrapeia; 7) Árvores (madeiras/não frutíferas): carvalho, peroba, imbuia, cedro-rosa, araucária, fumo-bravo, juçara, canelinha, erva-mate, mamona; 8) Flores: lírio, lírio-do-brejo, cosmo; 9) Outras: trapoeraba-branca, picão, cana-de-açúcar.

As tecnologias empregadas têm relação com a opção por realizar o plantio de espécies diferentes que compartilham um mesmo espaço, em regra dentro de um ninho já preparado. Nesse sentido, a lógica empregada é a de que uma planta de determinada espécie é acompanhada de outra, e de outra em uma cadeia, na qual todas se beneficiam mutuamente ocupando um mesmo espaço. Essa abordagem, baseada em um estrato primário, secundário e terciário, visa obter plantios de espécies cuja duração é permanente.

Conforme explicado pelo líder da organização, a intenção é construir alternativas à lógica agroalimentar dominante e ampliar as dinâmicas de soberania alimentar, contribuindo para o nascimento de pequenos biomas no contexto urbano. De acordo com um dos entrevistados, trata-se de uma oposição entre duas tecnologias: “farming versus gardening”. O primeiro representaria a agricultura cooptada pela onda industrial (Revolução Verde), que a tornou mais um produto moldado conforme a lógica econômica, cujo modo de organizar, portanto, orienta-se pelo mercado e sua racionalidade técnica/instrumental. O segundo, o gardening, é um movimento de libertação, reencontro com as tradições, congregando o cultivo em contexto urbano com a jardinagem, contendo beleza, praticidade, afetividade e integração com a natureza.

4.4 Discussão

A lógica técnica de natureza instrumental constitui aspecto da AU observada na Organização Assistida. Esta, manifesta-se na forma de organização do espaço com o uso de canteiros tradicionais, formas e linhas retas, e na opção pelo plantio de hortaliças convencionais com valor mercadológico (alface, couve, repolho, rúcula etc.). A ordenação técnica também é evidente na estrutura social responsável pela gestão da horta, no uso e acesso aos espaços, no processo de decisão e na dependência da assistência do poder público. Constitui, portanto, evidência de como o fenômeno técnico (Ellul, 1968) pode se materializar em iniciativas de AU.

Observou-se que aspectos subjetivos vinculados à horticultura, como o gosto pela terra, a ocupação do tempo, bem-estar, produção de alimentos orgânicos, religação com o passado e as origens corroboram os achados anteriores de Feniman (2014). Todavia, o presente estudo sugere que esses aspectos tendem a ser relegados a segundo plano devido à presença de um modelo formal de gestão, adotado a partir da sugestão pelo poder público em conjunto com a companhia estatal de energia elétrica. A consequência disso é a ausência de flexibilidade e de inovação em relação à agricultura praticada, limitação da quantidade de cultivares, nível insatisfatório de integração com a vizinhança e entre os próprios horteiros, além da secundarização da compostagem obtida por meio de aproveitamento de resíduos orgânicos domésticos e a incidência de conflitos.

Já na Organização Vernacular, observa-se uma experiência marcada pela informalidade, convívio familiar, manutenção de tradições e afetividade, sem qualquer influência direta do poder público. Em relação ao seu modo de organizar a agricultura, verifica-se a predominância de uma lógica informal e afetiva, que valoriza saberes ancestrais e a manutenção de práticas tradicionais, além de estar calcada em um forte enlace familiar. Elementos como o gosto pela terra, o plantar em respeito à memória do pai (iniciador da horta), a ocupação do tempo, o manejo terapêutico, a realização de compostagem e o foco na produção de alimentos para a subsistência alimentar familiar se apresentam como os principais aspectos norteadores. De um lado, estas observações corroboram os achados de Feniman (2014) a respeito dos símbolos que caracterizam a AU vernacular. De outro, apontam para a importante relação entre a organização familiar e o tipo de agricultura urbana empreendida.

A relação entre família e tipo de agricultura empreendida foi anteriormente identificada por Alves et al. (2018) ao investigarem o papel da família nos Agroecossistemas Amazônicos. Em seu estudo, os autores observaram que a organização familiar (nuclear, extensa troncal e extensa comunitária) constitui ponto de partida para autopoiese dos referidos agroecossistemas. Aqui, aponta-se que essa relação também é fundamental na organização da agricultura urbana vernacular. Os resultados também sugerem que a agricultura vernacular se alinha com o modo de organização convivencial proposto por Illich (1976), oferecendo uma ação mais autônoma e mais criativa, permitindo condutas menos controláveis pelos outros.

Na organização Politizada, a AU se caracteriza como expressão de um movimento orientado para o rompimento com a perspectiva organizacional racional técnica da agricultura e do sistema alimentar dominante. Desta forma, materializa o desejo de seus participantes em conferir à agricultura/jardinagem um aspecto maior: integrativo, alternativo, soberano, autônomo e inovador. Essas representações simbólicas corroboram os achados de Feniman (2014) e evidenciam um modo de organização aberto, libertário, participativo e alternativo à lógica convencional técnica observada na Organização Assistida. A organização não formalizada, coletivista e participativa posiciona-se de forma desafiadora e em tensão tanto com o poder público quanto com a lógica da agricultura industrial (farming). Característica também identificada no estudo de Méndez-Villamizar et al. (2024), que investigou o processo de organização de 14 comunidades de alimentos e o desenho participativo do modelo de fazenda camponesa como estratégia para a segurança alimentar nos territórios colombianos de Magdalena Medio e Santander.

Assim como os resultados reportados aqui, Méndez-Villamizar et al. (2024) observaram que os modelos participativos fortalecem a autonomia local na defesa de práticas de sustentabilidade alimentar dentro de seus respectivos contextos. Entretanto, diferentemente das comunidades camponesas naquele contexto, a organização Politizada de AU apresenta limitações e dificuldades na constituição de uma vida comunitária estável, possivelmente devido à ausência de laços afetivos familiares observados na Organização Vernacular ou nos Agroecossistemas Amazônicos estudados por Alves et al. (2018). Ao longo do processo de coleta de dados, verificou-se uma redução significativa no número de participantes na Organização Politizada, o que levanta dúvidas sobre sua continuidade.

Em face do exposto, o presente estudo corrobora o entendimento de que a AU é um fenômeno heterogêneo, tanto nas suas representações simbólicas, como observado por Feniman (2014), quanto nos modos de organização. Mais importante, aponta que os modos de organização estão vinculados a diferentes orientações organizacionais, materializando diferentes dinâmicas de ocupação do espaço, participação, estruturação social, uso de tecnologias de produção, relações com poder e inovação social.

5. Conclusões

Este estudo teve como objetivo caracterizar o modo de organização de três expressões de agricultura urbana identificadas em hortas urbanas situadas na cidade de Curitiba. Primeiramente, constatou-se que as organizações engajadas na prática de AU são distintas e devem ser tratadas como tal. Com base na caracterização desenvolvida neste trabalho, foi possível perceber que existem perspectivas dissonantes sobre os modos de organizar, se relacionar e desenvolver práticas de AU. Isso sugere que futuros estudos considerem a diversidade do fenômeno da AU e suas implicações materiais, ao invés de tratá-la como um fenômeno homogêneo.

Em segundo lugar, a pesquisa contribui para o campo de estudos organizacionais ao demonstrar que as organizações/hortas engajadas na atividade de AU, especialmente aquelas de base vernacular, podem constituir espaços em que despontam atividades comunais, recuperam-se saberes tradicionais e se aproximam da organização convivial, conforme considerada por Illich (1976). Os resultados do estudo indicam que a dinâmica organizacional de base técnica, exemplificada pela Organização Assistida, pode atuar como um fator desagregador da autonomia e das relações conviviais.

Além disso, as experiências observadas na Organização Politizada apontam para a possibilidade da construção de novas tecnologias e métodos de cultivos no contexto urbano, inovando na escolha de espécies, muitas das quais não convencionais, bem como em relação aos procedimentos realizados (ninhos/policultivos e estratos variados). Esses aspectos são potencialmente relevantes para estudos da área de inovação no contexto da AU.

É importante ressaltar que este estudo e os modos de organização investigados não representam a totalidade das alternativas e possibilidades de organização para a AU. Reconhece-se que formas e modos de organização híbridos possam existir, eventualmente incluindo elementos das Organizações Vernacular, Politizada e Assistida. Assim, sugere-se que trabalhos futuros ampliem e complementem a tipologia proposta por Feniman (2014) e aprofundada neste estudo, explorando outros contextos urbanos.

Os resultados deste estudo também apontam a necessidade de aprofundar o entendimento sobre o papel de diversas expressões da AU na construção de espaços organizacionais orientados para a convivencialidade (Illich, 1976).

  • 1
    Na ocasião, a líder relatou seu descontentamento a respeito de uma doação em dinheiro feita, segundo ela, diretamente à Organização Assistida. Contudo, tal importância seria gerida pelo departamento de hortas urbanas (poder público), e não por ela enquanto responsável pela horta. Outra questão conflitiva teria relação com a compra de adubo orgânico pelo poder público, feita no estado do Rio Grande do Sul, distante 740km da cidade onde a horta está localizada. Segundo relatou, tal compra poderia ser efetuada em uma cidade contígua à horta.
  • 2
    No final do ano de 2019, foi realizada uma parceria com a administração municipal envolvendo o trabalho periódico de manutenção da vegetação (mato) em vias públicas. Conforme relatado pelo líder, após realizarem as podas, os servidores direcionam todo o resíduo varrido (e colocado em sacos) para a ocupação. Ato contínuo, todo o objeto da “varreção” é utilizado para a realização de compostagem laminar, ativando novos ninhos, e de forma geral, requalificando o solo cultivável de toda a ocupação. Segundo informado, a cada 15 dias, ao longo de dois meses, algo próximo de três toneladas de resíduos de “varreção” foram entregues até que se atingisse um limite.
  • Como citar:
    Oliveira, E. F., Seifert, R. E., Nascimento, T. C., & Kolachnek, L. M. P. (2024). A agricultura urbana e suas faces: caracterização a partir de um estudo comparativo multicasos em curitiba. Revista de Economia e Sociologia Rural, 62(4), e268559. https://doi.org/10.1590/1806-9479.2023.268559
  • Classificação JEL: Q19

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Dez 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    11 Out 2022
  • Aceito
    15 Ago 2024
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