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CAEIRO, António de Castro. O que é a filosofia?. Lisboa: Tinta-da-China, 2023, 376p.

CAEIRO, António de Castro. O que é a filosofia?. Lisboa: Tinta-da-China, 2023. 376

Já na 2.ª edição, desde que foi publicado pela primeira vez em 2023, este livro é o resultado de seis sessões, no Centro Cultural de Belém (Lisboa), entre Outubro e Novembro de 2020. Ou seja, foi concebido em período pandémico e de confinamento. Essa marca está no livro, em diversos momentos, , como se constata na p. 49: “Mas encontramo‑nos continuamente, mesmo sem disso nos apercebermos, virados para o que está aí por vir: o fim da sessão, depois o jantar, o fim‑de‑semana que se aproxima, o Natal já a espreitar, o fim da pandemia” ou “Vemos na situação de epidemia pandémica, de uma forma extrema, as restrições a que estamos submetidos, mas também, ao nível mundial, calculamos a relação entre o número de habitantes do planeta e os seus recursos” (pp. 203-204). Num contexto destes, a filosofia constitui-se como uma importante ferramenta para controlar a ansiedade ou até a indolência (à letra, ‘a falta de dor’), porque a metodologia inerente à filosofia confere consciência e piedade, neste caso.

Das referidas seis sessões resultaram os seis capítulos deste livro: Aristóteles, Platão, Santo Agostinho, Kant, Wittgenstein e Heidegger. Na linha de outros filósofos, como Heidegger, precisamente, o título, em forma de interrogativa directa, o que é a filosofia?CAEIRO, António de Castro. O que é a filosofia?. Lisboa: Tinta-da-China, 2023, 376p., reflecte o conteúdo da obra e resume o espírito indagador da techne filosófica na busca de entender a existência e as suas diversas formas. A filosofia é uma tentativa de inteligibilidade ou uma provocação à existência, como a literatura pode ser uma tentativa de imitar a realidade e o direito uma tentativa de organizar e de conferir justiça às sociedades. E nós o que somos? Uma tentativa da criação, com a hipótese de tentarmos ser perfeitos e felizes? Talvez sim, talvez não. Ou apenas sombra de um sonho, como nos disse Píndaro.

De facto, este livro em pensamento hexagonal conduz-nos por uma viagem reflexiva que tem, desde logo, o mérito de ter uma narrativa elegante, com ritmo constante. Apesar de abordar temas complexos, o A. recorre a um registo escrito de notável clareza, um mérito digno de nota. Por isso, o leitor sente-se interpelado pela torrente filosófica, também porque a escrita tem uma forte marca oral. De seguida, registamos a marca autobiográfica desta obra. Quando lemos estudos sobre a narrativa biográfica, entre outras teorias, deparamo-nos com uma que é fácil de enunciar: toda a obra é biográfica ou autobiográfica. Talvez assim seja, mas essa não é uma matéria que queiramos agora discutir. Pela leitura destes 6 filósofos, de Platão a Heidegger, essa teoria sai reforçada, uma vez que a marca biográfica está muito presente, como por exemplo, em A Ética a Nicómaco de Aristóteles ou na monumental obra de Santo Agostinho, As Confissões. Na verdade, este livro contém vários apontamentos autobiográficos, quase sempre em forma de fragmento ou como se fosse um resumo para apoiar a argumentação ou a amplificar: o desporto de combate, a ida para o treino ou as tardes de sábado no Rock Rendez-Vous, um espaço musical de grande relevância na década de 80 em Lisboa. Uma outra marca a realçar é a intertextualidade, uma vez que os 6 textos relacionam-se, complementam-se, dialogam e esclarecem-se. Por conseguinte, o leitor é obrigado a reler constantemente ou depara-se com a repetição de vários conceitos ou dúvidas. É, ainda, de salientar uma outra característica: a relação entre o pensamento e a palavra. O verbo/palavra neste livro é cuidado e intimamente ligado à raiz etimológica (em particular, ao latim e ao grego), até porque o verbo comanda o sentido, como aprendemos nas línguas clássicas: olha-se primeiro para o verbo e depois surgem as perguntas: quem? A quem? Com quem? O quê? A partir daqui a estrutura decompõe-se, organiza-se e evidencia-se. De igual modo, o pensamento exige um verbo que o ilumine. Assim sendo, este livro é um excelente exemplo de como o esforço filosófico é um exercício arqueológico, na busca do sentido, sem o A. sobrecarregar a sua narrativa com citações dos tratados filosóficos. Esses textos estão no livro, são a base, mas a narrativa é dominada pelo pensamento que esses textos geram.

Numa imagem para ilustrar este livro, pensemos na estrutura de uma casa. Entramos, subimos as escadas e deparamo-nos com seis portas dispostas de forma igual, com a indicação de Platão, Aristóteles, até Heidegger. Podemos, ou não, começar por Platão, mas se o A. optou por esta organização vamos segui-la. Entramos na primeira, apreciamos a divisão e saímos. Fazemos o mesmo para as outras. Alguns leitores, no entanto, podem apenas entrar na primeira porta e na quinta, outros ficam-se somente por Kant. Porém, este livro exige um pouco mais. Dentro das divisões percebemos que há ligação interna entre as divisões, mas é preciso descobrir essa passagem. E, além disso, há objectos comuns, semelhantes, colocados na parede ou em cima de móveis. Assim sucede neste interessante livro. Há uma dinâmica de pensamento e palavras que se repetem e nos vão adicionando espessura de sentido.

Começando pelos últimos três filósofos, passemos a analisar as temáticas e as perguntas que cada um dos nos legou e que continuam a preencher o pensamento humano, segundo a interpretação do A. Quanto a Kant, ficou conhecido pelas questões - por exemplo, que posso conhecer? Que devo fazer? Que me é permitido esperar? O que é o ser humano? - ligadas, respectivamente, à metafísica, à moral, à religião e à antropologia. Com base na razão humana, acreditava Kant ser viável realizar a possibilidade do humano. Esse entusiasmo pelo humano, no que pode conhecer, fazer ou pensar, da sua relação com os outros em comunidade, é uma das marcas do pensamento de Kant, na certeza de que cada um de nós existe num determinado intervalo, entre o nada e a totalidade, mas num entre que torna possível o humano. Sobre Wittgenstein, o A. sublinha a ideia de gramática e da classificação dos enunciados, como forma de entender o pensamento. Cita, assim, vários exemplos de jogos de linguagem, em sentido declarativo, que expressam um saber (“pôr uma hipótese e testá-la”), incluindo-se o silêncio. Por conseguinte, a linguagem é uma actividade, é uma forma de vida ou “a linguagem corresponde à formação da própria vida” (p. 284). Por sua vez, em Heidegger, sobressai a ideia de impulso e, sobretudo, como a filosofia é uma cadência, assemelhando-se à arte da música (“fazer filosofia é fazer música”, p. 306); por isso, tem ritmo, melodia, movimento, sons, mas tudo isso precisa de uma disposição, tal como a organização de uma orquestra, pois cada elemento tem o seu momento, o seu tempo, numa relação consigo e os outros. É essa disposição que se procura, que orienta e confere sentido. Realça outro conceito que atravessa a história da filosofia: o que é o sentido? Como encontrar um sentido? Como se pode viver sem sentido? O que acontece ao tempo se a vida se desencontra do sentido? Ainda quanto às disposições, umas são fundamentais, outras normais, diríamos que algumas estranhas e outras adormecidas, mas que podem ser activadas. O contexto, o percurso, o desejo ou a motivação podem determinar a disposição, sem afastar a problemática da vida humana: fomos, somos e seremos, em cadência interligada. Quanto maior for a transparência, significado aqui atribuído à palavra grega sophia, melhor será o sentido que cada um determina para a sua existência.

De outra forma, com diferente enunciação, estas questões encontramo-las nos capítulos dedicados aos outros três filósofos: Platão, Aristóteles e Santo Agostinho. No que concerne ao pensamento de Platão, conduz-nos o A. pela ideia de que fazer filosofia é fazer amor, uma forma de amor, enquanto desejo, impulso e obsessão pela sabedoria/transparência. Além disso, explora também a expressão de desejo enquanto aquilo de que se sente falta, ou seja, a ausência provoca algo. Para Aristóteles, diz-nos o A., não interessa ensinar filosofia, mas fazer com que seja possível manifestar-se em cada indivíduo uma “perspectiva sobre a vida” (p. 97), com lucidez. De facto, pensar transfigura, sendo pensamento e realidade caminhos distintos, mas que se cruzam. Muitas vezes a filosofia isola os elementos da realidade para tentar compreendê-los, perceber a sua relação, a sua função, num quadro mais vasto (por exemplo, os elementos da gramática). Também são colocadas outras perguntas neste capítulo: o sentido da felicidade? o que vemos realmente? como nos surgem as ideias e os pensamentos? Em todas as respostas, há possibilidades, tentativas de aproximação que aumentam a curiosidade do saber, sendo essa a essência da filosofia. Sobre o capítulo dedicado a Santo Agostinho, realçamos a referência à relação de Deus com o humano. Como Deus está no tempo, de forma diferente, e faz o tempo para vivermos, mas um tempo cronicamente finito. Neste quadro, é muito complexo entendermos a eternidade. Talvez por isso interpretamos o tempo numa perspectiva de duração, não tanto de vivência e como sujeitamos o tempo a uma inevitável tensão. Deus está no tempo, nós, seres finitos, estamos a passar pelo tempo. Ele continua, nós vamos dando lugar a outros para viverem a experiência do tempo. Deus permanece, nós passamos, estamos em trânsito. Tudo isto gera perguntas: Como Deus vive o instante? Como conseguiu Deus pensar o nosso tempo, os instantes num tempo finito? É quase como pedir a uma criança que entenda a finitude, quando a ideia de eternidade lhe faz muito mais sentido. E de novo a complexidade e a função da linguagem: para Santo Agostinho, Deus fala e as coisas aparecem (cf. p. 183). Mas como entender Deus se não o vemos ou sentimos? Nem tudo o que existe é visto e não podemos viver circunscritos ao que vemos directamente. De facto, podemos, por exemplo, passar a vida apaixonados por algo em concreto e nunca viver essa experiência ou a conhecer essa realidade.

Por fim, sintetizamos duas ideias, pensamentos ou questões transversais deste livro. Em primeiro lugar, o conceito de transparência. Para o A., a filosofia é a busca da transparência, mas também é nostalgia, provocação, música, experiência humana, possibilidade, obsessão, curiosidade ou esforço. Em segundo lugar, este livro explora outra dimensão, que é o conceito de “ausência” ou “esvaziamento”: o que está ausente não significa que seja inexistente, apenas o não conseguimos ver ou entender. A ideia de alienação, de sairmos do tempo para nos vermos ou a noção de que, na ausência, pensamos (na voz activa, passiva e média). Logo, com a ausência, aproximamo-nos da capacidade para travarmos o nosso tempo. Acrescentamos, ainda, um predicativo do sujeito para completar a definição: a filosofia é actividade. A palavra ‘actividade’ ocorre 148 vezes neste livro e é estruturante para elaborarmos as perguntas e estruturarmos as respostas.

Consideramos que, para estudantes de filosofia ou simplesmente para aqueles que valorizam o pensamento, este livro oferece uma interessante cadência de perguntas, dispostas de forma harmoniosa e com um notável sentido pedagógico.

  • Como citar:

    PINHEIRO, Joaquim. Resenha: CAEIRO, António de Castro. O que é a filosofia?. Lisboa: Tinta-da-China, 2023, 376p. Revista de Filosofia Aurora, Curitiba: Editora PUCPRESS, v. 36, e202431517, 2024. DOI: https://doi.org/10.1590/2965-1557.036.e202431517.

Referência

  • CAEIRO, António de Castro. O que é a filosofia? Lisboa: Tinta-da-China, 2023, 376p.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    29 Abr 2024
  • Aceito
    02 Maio 2024
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