Resumo
É inegável o valor histórico e filosófico da leitura usual do Fédon, que enfatiza a dimensão imortal da alma que migraria em um plano metafísico, porém, aqui, propomos desenvolver a abordagem hermenêutico-fenomenológica e as implicações éticas decorrentes dessa interpretação. Faremos isso a partir da sugestão de Gadamer de traduzir o conceito de μɛτοίκησις como traslado da alma, o que abre precedentes para abordar a experiência de morte como um exercício espiritual que acontece e se finaliza na facticidade. Na primeira seção, destacaremos passagens e proporemos uma compreensão do Fédon a partir do mote da alma que muda de hábitos e se configura como uma transvaloração existencial. A seguir, mostraremos que a experiência de compreensão, calcada sobre a consciência da finitude, nos leva a intensificar e a ressignificar a noção de morte e a discussão sobre imortalidade da alma, como mudança da morada do ser, isto é, um modo de [re]orientar nosso modo de viver. Por fim, elucidaremos implicações éticas decorrentes da abordagem relativas aos temas da transfiguração de valores e da morte, divisão do corpo e da mente, orientação existencial, expressão da responsabilidade e modo de viver mais consciente em sociedade.
Palavras-chave Μɛτοίκησις; Morte; Platão; Fédon; Gadamer; Hermenêutica.
Abstract
The historical and philosophical value of the usual reading of the Phaedo, emphasizing the immortal dimension of the soul, which would migrate in a metaphysical plane, is undeniable, however, here, we propose to develop the hermeneutic-phenomenological approach and the ethical implications arising from this interpretation. We will do this based on Gadamer’s suggestion to translate the concept of μɛτοίκησις as a transfer of the soul, which sets precedents for addressing the experience of death as a spiritual exercise that happens and ends in facticity. In the first section, we will highlight passages and propose an understanding of the Phaedo from the motto of the soul that changes habits and is configured as an existential transvaluation. After that, we will show that the experience of understanding, based on the awareness of finitude, leads us to intensify and resignify the notion of death and the discussion about the immortality of the soul, as a change of the house of being, that is, a way to [re]guide our way of living. Finally, we will elucidate ethical implications arising from the approach related to the themes of transfiguration of values and death, division of body and mind, existential orientation, expression of responsibility and a more conscious way of living in society.
Keywords Μɛτοίκησις; Death; Phaedo; Gadamer; Hermeneutics.
Resumen
Platón, en el Fedón, abordó el tema de la muerte con la maestría que le era propia. El valor histórico y filosófico de la lectura habitual, que enfatiza la dimensión inmortal del alma que emigraría en un plano metafísico, es innegable, sin embargo, aquí nos proponemos desarrollar el enfoque hermenéutico-fenomenológico y las implicaciones éticas que se derivan de esta interpretación. Lo haremos a partir de la sugerencia de Gadamer de traducir el concepto de μɛτοίκησις como la transferencia del alma, lo que abre precedentes para abordar la experiencia de la muerte como un ejercicio espiritual que tiene lugar y termina en la facticidad. En el primer apartado destacaremos pasajes y propondremos una comprensión del Fedón a partir del lema del alma que cambia de hábitos y se configura como una transvaloración existencial. A continuación, mostraremos que la experiencia de comprensión, basada en la conciencia de finitud, nos lleva a intensificar y resignificar la noción de muerte y la discusión sobre la inmortalidaddel alma, como cambio de morada del ser, es decir, una manera de [re]orientar nuestra manera de vivir. Finalmente, dilucidaremos implicaciones éticas derivadas del abordaje relacionado con los temas de transfiguración de valores y muerte, división de cuerpo y mente, orientación existencial, expresión de responsabilidad y una forma más consciente de vivir en sociedad.
Palabras clave: Μɛτοίκησις; Muerte; Platón; Fedón; Gadamer; Hermenêutica.
Introdução
O tema da morte e a consequente discussão sobre origem e destino da alma transpassam boa parte da história da filosofia. O Fédon de Platão é, usualmente, interpretado como o diálogo que trata da morte e da imortalidade da alma e seu destino final, sugerindo, inclusive, que esta migraria para outro plano de existência, mais sutil, metafísico, por assim dizer. Diferentemente da interpretação tradicional, pretendemos desenvolver uma abordagem hermenêutico-fenomenológico e extrairemos implicações éticas decorrentes desse propósito. Assim, aprofundaremos a sugestão de tradução de Gadamer (1986) segundo a qual, em Fédon 107 d, deveríamos compreender os termos ἄγɛιν e πορɛίας, respectivamente, como ato de levar [bringen] e jornada [Reise] ou viagem [Fahrt] da alma, e não como transmigração da alma no sentido de passagem deste para outro mundo, ou de um corpo para outro corpo. Na passagem de Fédon 117 c, Gadamer sugere o uso de Umsiedlung para μɛτοίκησιν, isto é, o traslado, a mudança de morada da alma (Cf. Sloterdijk, 1998). Já na Apologia 40 c, a morte é interpretada como: a) ela não é nada, visto que mortos não têm ou possuem nada ou b) é uma mudança [μɛταβολή] e um traslado da alma [μɛτοίκησις1]. Da perspectiva gadameriana, retomamos o conceito de experiência [Erfahrung] para fundamentar nossa hipótese, segundo a qual estamos autoimplicados em nosso esforço de compreender [a morte, a alma, a vida] o que, portanto, consciente ou inconscientemente, nos modifica, transforma e influencia nossa orientação, nosso modo de ser e de agir. Pode-se dizer que, ao abordar a morte, em Fédon 64 a, reflete-se sobre sua causa, a saber, a vida. Se o filósofo elege este tema de reflexão e nele se demora fazendo uma espécie de exercício de morte [μɛλέτη θανάτου], certamente é para aprender a viver de forma mais plena e capaz, livre e responsável (Patočka, 1999, p. 105). Propomos, pois, uma leitura do tema em questão, enquanto instauração de sentido (Rohden, 2004), enquanto exercício de interiorização consigo mesmo, próprio do cuidado de si mesmo, a partir da hermenêutica filosófica de Gadamer que se estriba especialmente na fenomenologia e na apropriação desta na filosofia heideggeriana (Finlay, 2002, p. 61).
Enfim, nos debruçaremos sobre o conceito de μɛτοίκησις propondo uma leitura para além de sua compreensão tradicional, que tende a restringi-la ao ponto de vista pitagórico, enquanto transmigração da alma. O objetivo não é refutar tais interpretações, mas fundamentar outra interpretação a partir da proposta interpretativa gadameriana. Gadamer (1986, p. 43) inspira nossa compreensão alternativa de μɛτοίκησις ao propor que, em Fédon 107 d; 117 c, se compreenda πορɛίας, ἄγɛιν e μɛτοίκησιν enquanto uma experiência de vida, uma transfiguração do nosso ser, uma transvaloração da nossa existência e não transmigração de um corpo ou de um mundo para outro. Com isso, sugerimos implicações éticas da leitura hermenêutico-fenomenológico do termo μɛτοίκησις, enquanto experiência filosófica, ínsitas, inclusive, na intenção filosófica de Platão na medida em que seu projeto propõe um modo de viver (Rohden, 2015; Rohden; Kussler, 2017). Kussler (2018), a partir da indicação gadameriana de uma interpretação fenomenológica do conceito de μɛτοίκησις, desenvolveu o exercício tanáthico como uma forma de expressão do que chamou de transvaloração existencial, portanto, com um teor ético implícito. A experiência de bem viver ou bem morrer constitui, na verdade, base de uma vida ética à esteira da proposta de Dennis J. Schmidt, como mostraremos.
Reinterpretação hermenêutico-fenomenológica do tema da morte no Fédon
Sócrates afirma, em Fédon 61 e, estar destinando-se a sair para o outro lugar, não necessariamente o Hades, mas uma outra morada do ser outra forma de οἶκος, de habitação, de modo de ser. Assim, quando Sócrates, em Fédon 62 a, assim, ao afirmar que algumas pessoas preferem morrer a continuar vivas, Sócrates busca explicitar que, em casos específicos, a melhor solução é desfazer-se de um modo de vida anterior para que seja possível recomeçar uma existência plenamente filosófica. Nesse sentido, a coragem é condição imprescindível para alinhar o modo de vida ao próprio discurso, possibilitando uma vida virtuosa que conecta teoria e prática, discurso filosófico e uma postura existencial verdadeiro e exemplar.
Quando se fala que filósofos desejam a morte, afirma-se que quem pratica a filosofia não se furta de sacrificar uma vida prosaica, ditada por valores tradicionais e da obtenção de bens materiais, enganações e paixões fugidias. O filósofo, pois, dedica-se à vida política, de participação ativa na vida pública e de purificação, de modo que o objetivo de separar o corpo da alma também possui o sentido de tornar-se teorético, isto é, contemplativo, capaz do cuidado de si mesmo e do exercício espiritual (Gertz, 2011, p. 51). O que a raiz filosófica socrático-platônica almeja é explicitar que exercer a filosofia requer a capacidade de distanciar-se de uma existência que se reduz a batalhar por benefícios privados e a satisfação de paixões particulares e efêmeras que em quase nada se coadunam à tríade de belo, bom e justo.
Em Fédon 64 c, Sócrates afirma que a morte não passa de uma separação da alma e do corpo, de maneira a possibilitar que cada parte possa existir de modo independente, não podendo ser reduzida ao que comumente se compreende como morte somática. O motivo disso é que Sócrates fala em liberação de uma parte relativa à outra, algo que pode ser compreendido como a vida filosófica entendida enquanto instância capaz de ater-se às problemáticas do corpo e da alma no âmbito da prudência, da reflexão e do discernimento. Assim, a morte pode ser compreendida em um processo dialético, de separação/generalização e união/sintetização. A separação do corpo e da alma é melhor compreendida como um exercício de [ab]negação de si mesmo, na esperança de concentrar-se no puro pensar, eximindo-se de ocupar-se com os prazeres, emoções e sensações do corpo (Bostock, 1999, p. 409).
A determinação do filósofo, no Fédon, é daquele que se prepara à morte tanto pelo conhecimento quanto pela purificação de si mesmo (Miller Jr, 2006, p. 280). A preocupação de Sócrates é mostrar o tipo de vida que o filósofo vive, e não aquela que recusa (Guthrie, 1975, p. 338). A função tácita do filósofo não é satisfazer toda fonte de qualquer prazer, mas direcionar-se à alma, como se mostra em Fédon 64 e. Fédon é, também, uma celebração à vida, uma forma de enaltecer uma vida de amor à sabedoria, de autossuficiência e preparo para as agruras da vida, uma vida de paz interior (Russell, 2005, p. 77).
Enquanto viventes, a ameaça nos é feita por sua oposição, a morte, de modo que Sócrates indica para o compromisso de tomarmos para si o exercício da consciência da finitude humana. Ao afirmar que a vida surge da morte, em Fédon 70 c, Sócrates busca nos fazer compreender o tema sob um prisma fenomenológico, um exercício para se entender e incorporar novos hábitos existenciais e reassumir a vida com tais critérios, num movimento de reviver. Ao argumentar que a alma vai a outro lugar, em Fédon 80 d, Sócrates está afirmando que valores podem transformar-se em outros valores, que se desdobra enquanto uma prática filosófico-existencial cujo intuito é propiciar um tipo de transformação de forma de vida, uma metaética, no sentido de mudança de hábito [ἦθος].
No Fédon, o filósofo que ganha a imortalidade é aquele que não se importa com ambições, vivendo apenas em prol de sua melhoria existencial e modo de ser virtuoso em comunidade (Blundell, 1992, p. 169). Dito de outro modo, a mudança existencial pode ser compreendida como uma meditação acerca da morte, que é o modo como se define o modo de filosofar no Fédon. Praticar a morte é, pois, viver em estado de morte no sentido de ter capacidade de separar as dimensões intelectiva e sensorial, permitindo que seja possível escolher uma vida menos ambiciosa, com ações com fins extrínsecos, inclinando o filósofo a uma vida mais especulativa e comprometida com a vida política.
Libertar-se do corpo significa controlar-se quanto à dimensão dos prazeres, ocupando-se na tarefa de um melhoramento de si mesmo e da própria vida em comunidade, que exprime o teor originário de ética. A atividade de filosofar busca promover uma libertação dos vícios da existência em busca de uma existência virtuosa e, por conseguinte, mais a fim da sabedoria, da prudência e da temperança. Na passagem de Fédon 83 a, isso é expresso em atividades meditativas que sugerem a concentração da alma a si mesma. Quem exercita a própria alma tem condições de harmonizá-la com o ambiente no qual vive, assim como com as pessoas com as quais coabita no mundo, pois quem compreende o que é estritamente necessário para a boa vida tem melhores condições de tomar melhores decisões tanto no âmbito individual quanto no coletivo.
Acerca da imortalidade da alma, de forma metafórica, se compreendemos que o que permanece é a alma e, de acordo com nossa interpretação, isso significa os novos hábitos e o novo modo de vida adquirido pelo exercício filosófico, podemos aceitar que morre o modo de ser anterior e permanece o novo modo de ser, instituindo-se um processo de transvaloração existencial. O conselho socrático, em Fédon 107 c, é de que devemos cuidar dela [da alma], não apenas em relação ao tempo, que chamamos viver, mas em relação a todo o tempo. A preocupação do filósofo, pois, é mudar de vida enquanto vivente, isto é, mudar o modo de ser enquanto vivo, com intuito de evitar uma vida viciosa e vergonhosa. Desse modo, se a alma continua, e, em nossa proposta, isso representa os valores de cada indivíduo, que conformam seu modo de ser, isso quer dizer que, mesmo após o exercício tanáthico, estamos à mercê dos valores antigos, do modo de vida anterior, que, se vicioso, deve ser encarado constantemente e repelido com as virtudes propostas nos exercícios espirituais (Kussler, 2018).
Ao falar de julgamento final, em que todos seriam avaliados pelo modo como viveram, não precisamos derivar apenas a compreensão disso como recurso explicativo metafísico. É possível interpretar tal metáfora do julgamento de outro mundo como prática da própria consciência, que compara a forma como vivemos em relação à forma como vivíamos, cujo intuito é evitar um tipo de decadência existencial em uma forma de vida mais bestial e menos virtuosa. Dessa forma, quando se fala em partir para outro mundo, isso também pode denotar o momento de avaliação e orientação por alguém que guia, e não rigorosamente uma jornada espiritual ao Hades. Podemos entender esse movimento como uma jornada da alma que procura uma habitação [οἴκησιν], que interpretamos como processo de exercer as virtudes para um crescimento existencial, uma autopoiese, no sentido de uma recriação de nós mesmos, de modo que quem é capaz de passar por tal processo habita [ᾤκησɛν] e tem a honra de ser guiado pelo elemento divino, que entendemos, aqui, como forma de vida exemplar.
Na passagem de Fédon 114 c, Sócrates afirma que os que se purificam por meio da filosofia vivem sem corpos, em moradias muito mais belas, e é por isso que devemos buscar virtude e sabedoria em/na vida. Nossa proposta é que podemos entender a vida sem corpo como uma vida de paixões controladas, uma vida não dependente de realizações materiais, e não necessariamente uma vida de uma alma metafísica sem corpo. A moradia mais bela pode ser compreendida como um modo de ser, um modo de habitar e de ter hábitos mais virtuosos enquanto seres vivos. É por isso que Sócrates repete tal propósito de compreender a filosofia como um exercício de morte, para que se torne um hábito viver de um modo mais austero e, nesse sentido, filosófico. O único conselho que Sócrates deixa aos presentes, em Fédon 115 b, é a exortação de sua missão filosófica: Se cuidarem de vocês mesmos, servirão a mim, aos meus e a vocês mesmos, em tudo que fizerem... (Kussler, 2018).
Exercícios de transfiguração da morte em Sócrates
O diálogo Fédon tem por protagonista Sócrates, “por cenário, o cárcere de Atenas, por data, o derradeiro dia de vida do ‘melhor, do mais sábio e do mais justo dos homens’, por assistentes e interlocutores, discípulos e amigos do filósofo, por assunto dominante, a imortalidade da alma” (Carvalho, 1975, p. V). No seu início, em Fédon 57 a, temos Equécrates perguntando a Fédon se este havia presenciado ou ouvido a narrativa da morte de Sócrates, pois gostaria de saber o que o filósofo teria dito, ao que Fédon replica que Sócrates parecia ter serenidade quanto à morte. Sócrates enfrenta a morte de frente, e a narrativa de Fédon constitui um exercício ressignificativo dela, o que nos permite concluir que uma das formas de transfigurar a morte seja pela narração. Filosofar, em Sócrates, significa dar novo sentido à morte, aprender a morrer, que é o mesmo que aprender a viver bem mediante a transfiguração do seu lugar comum, como expresso em Fédon 64 a, em que se afirma que quem busca a filosofia se ocupa especialmente em aprender a morrer e estar morto.
O fato é que, mesmo assentando sua transvaloração da morte com a existência de vida pós-morte, Sócrates nos lega a lição de que aprender a viver bem implica aprender a morrer para aquilo que não contribui para a felicidade e liberdade - o que é representado pela dependência aos prazeres físicos, aos bens materiais, ao poder. Refletir, raciocinar, ou seja, transfigurar, não significa menosprezar a dimensão físico-corporal, mas minimizar os apegos que atrapalham viver livremente. A meta da reflexão do Fédon não é apenas a alma e sua imortalidade, mas também a postura do filósofo diante da realidade. Santos (2009) aponta que, no Fédon, Platão mostra que a alma é princípio condutor da ação individual, com uma recusa de qualquer associação ao corpo que, para a época, mostra uma inteligência visionária deste.
Podemos dizer que uma das metas da transvaloração da morte consiste em realizar uma purificação, pelo pensamento, daquelas paixões que não nos tornam mais temperantes, mais justos e mais livres. O pensamento, especialmente o narrativo, reúne nossas atenções em torno do foco essencial que é nossa alma, cujo cultivo nos faz felizes e livres. O filósofo aspira à sabedoria ao procurar viver transfigurando o morrer e, nesse sentido, ele se exercita para a morte em vida, como nos recomenda Sócrates, em Fédon 82 c, ao afirmar que os filósofos ficam afastados de uma vida de prazeres corporais e de riquezas, visto que não se entregam a um modo de vida que não se destine ao desenvolvimento da própria existência.
Aquele que reconfigura a morte pode priorizar em vida aquilo que lhe confere sentido, de modo que seu modo de proceder e seu caminho não se confundem com quem não sabe para onde vai, como afirmado em Fédon 82 d, pois estes não são capazes de se desvencilhar do seu chão, dos seus lugares comuns. A proposta do Fédon tem a ver mais com a transfiguração da morte e sua implicação para nossas vidas do que a demonstração da imortalidade da alma, pois, para Gadamer (1980, p. 29), a preocupação mais profunda é saber “[...] o que constitui o ser real da alma - não em relação à sua possível mortalidade ou imortalidade, mas sua contínua compreensão vigilante de si mesmo e da realidade”.
Platão enfrentou a dor da morte do seu mestre e nos legou a lição de que a felicidade ou imortalidade consiste em ressignificá-la. Por isso, transmutar o lugar comum da morte, para os discípulos de Sócrates e para nós, significa levar a sério e cumprir seu pedido final, em Fédon 115 b: “cuidem de vocês mesmos”, e não simplesmente aguardem a morte chegar, o que equivaleria a se afixar ao lugar comum. Sócrates personifica o exercício espiritual de aprender a viver livre e felizmente, corporificado no relato de Platão que o fez para transfigurar a sua dor pela morte injusta do seu mestre e que hoje nos ajuda a repensar lugares comuns por meio de sua leitura (Rohden, 2015).
Implicações éticas da reinterpretação da μɛτοίκησις no Fédon
Μɛτοίκησις enquanto exercício de transvaloração de valores
Μɛτοίκησις enquanto transvaloração de nossos valores traduz a instituição e o fundamento da vida ética. O desejo do filósofo de aprender a viver ou a morrer instaura uma transvaloração dos valores, isto é, a morte de velhos costumes, de tradições incompatíveis com o modo de vida filosófico; realiza-se uma mudança de vida, de uma morte de um modo de ser para renascer sob outros parâmetros. Nas palavras de Gadamer (1993, p. 301), “a arte da compreensão não é necessária somente para o trato com os textos, mas também no trato com pessoas”, de modo o processo de compreensão dialético-dialógico não se restringe à sua função meramente informativa, epistemológica, mas também se constitui com viés ético e de alteridade.
Para Schmidt (2017, p. 164), a compreensão ética se distingue no modo como nos transforma, de modo que a filosofia, enquanto projeto ético, não é apenas algo teórico ou cognitivo, mas que pode nos mudar. Visto assim, μɛτοίκησις pressupõe e implica uma experiência de morte, um exercício espiritual em direção ao melhor governo de si mesmo e de uma proposta de vida virtuosa, visto que a prática que eleva o modo de ser encontra-se nesta purgação da loucura do corpo, conforme Dodds (1971, p. 213), que é a busca de uma vida simples, frugal e não presa às necessidades corporais de primeira instância.
O exercício de morte constitui um modo de se ocupar com a alma, isto é, viver com a maior consciência possível do nosso tempo no tempo, do nosso morrer diário. A meditação sobre a morte institui um exercício de automodificação à medida que o intérprete se dispõe a reavaliar seu modus vivendi, a reconfigurar seus conceitos e a reorientar suas ações, seu modo de existir no mundo. Μɛτοίκησις enquanto transvaloração existencial ou transfiguração de nossos valores se destina a pensar que morrer também é um exercício de autonomia de melhores escolhas pela própria vida, sem intervenção de crenças e de falsos discursos (Rohden, 2015). Aqui, temos um movimento ambíguo, que inclui: 1) seguir uma missão divina, de um filósofo que opta por viver perscrutando a si mesmo e aos outros; 2) respeitar a missão legada pela divindade; e 3) não seguir os conselhos divinos, na perspectiva de exercer a autonomia de forma ponderada a partir de um superego divino indica sobre o bem viver.
Uma boa parte do exercício de meditar sobre a morte parece se desdobrar como uma súplica para que cuidemos de nossas vidas, como um enaltecimento a uma forma de viver ética e virtuosamente, permitindo que cada ser humano que busca o filosofar possa se espelhar em ótimos exemplos de vida com pessoas que ficam eternizadas por viverem de um modo invejável.
Μɛτοίκησις enquanto transvaloração do dualismo corpo e alma
Ainda sobre a proposta socrática de separação de corpo e alma, ela denota muito mais uma forma de vida que conjuga os elementos do hedonismo e do ascetismo, de corpo e alma puros separadamente. Desse modo, a unidade, no exercício thanático, significa ser diferente dos não filósofos, que vivem de forma desregrada e sem compromisso ético (Burger, 1984, p. 40). A alma liberta, separada do corpo, pode ser interpretada como um momento em que reconhecemos visões de mundo de diferentes pessoas, possibilitando uma suspensão da forma de vida que levamos até sermos contrastados com o modo de ser próprio da filosofia, que demanda cuidado de si, práticas meditativas e de abstração.
Nesse sentido, é possível compreendermos por que Sócrates não teme a morte fática, existencial, e não apenas metafórica, pois o exercício de distanciamento e de investigação da própria vida, durante toda sua existência, fê-lo refletir reiteradamente sobre a naturalidade da morte como parte do processo vital. Para filosofar acerca da realidade, sobre um determinado problema filosófico, é necessário um afastamento, um distanciamento, uma visão do alto, que só se apresenta a quem se propõe a esquecer-se de si mesmo por alguns instantes e preparar suas elucubrações, ficar absorto em pensamentos, em um processo contemplativo (Kussler, 2018).
Em comparação aos sofistas, os filósofos, no Fédon, buscam a verdade por meio da contemplação, do conhecimento e cuidado de si mesmos. O que propõe o argumento platônico sobre o qual aqui refletimos é que é impossível ter conhecimento preciso a partir do aparato sensorial, visto que não teriam contato com a essência dos entes, por isso clama-se por uma alma separada do corpo, possibilitando que tais elementos possam ser compreendidos e examinados acertadamente (Silverman, 2002, p. 51). Obviamente, isso não tira a importância dos sentidos na construção do conhecimento, como tradicionalmente se critica a filosofia platônica, mas denota que, nesses moldes teóricos, acabam por representar as coisas de um modo limitado, sem expor a essência [οὐσία = ousía] destas, que só poderia ser alcançada pelo intelecto (Annas, 1992, p. 65). Dessa ideia de que a alma pode funcionar distante do corpo para alcançar conhecimentos mais depurados, podemos compreender um modo de obtenção de conhecimento que é mais fenomenológico, permitindo que os fenômenos apareçam, de modo que quem filosofa busca reconhecer pré-conceitos particulares, o horizonte existencial do qual parte e conhecimentos anteriores e usá-los para uma compreensão mais plena de si e do mundo.
Μɛτοίκησις enquanto transvaloração do destino da alma
Usualmente, o destino da alma imortal, no Fédon, tem sido interpretado como sendo um estado ou um local aonde ela iria após a morte do corpo físico. A interpretação de μɛτοίκησις, ἄγɛιν e πορɛίας, de modo ortodoxo, tende a uma interpretação religiosa, transcendental ou metafísica. Sugerimos, aqui, complementar essas abordagens com o diapasão da ética. Nesse caso, a preocupação com o destino da alma não diz mais respeito ao tempo - pós-morte - nem ao espaço - um corpo ou uma região na qual ela passaria a residir quando a morte chegasse.
O destino não se refere a uma residência da alma depois da morte do corpo, pois ele é tecido no decorrer da própria vida. Na herança fenomenológico-hermenêutica, isso se encontra na expressão heideggeriana Da-sein com tudo que isso implica. Interessa, em última instância, ao exercício filosófico, o ser e o não ser, a eternidade e a temporalidade, a aspiração do ser pela unidade conjugada com sua situação no tempo e no espaço, um ser histórico segundo abordagem gadameriana.
Em termos literários, Guimarães Rosa (1958, p. 62-63) havia percebido e exposto essa mania humana de se ater mais aos lugares de saída e de chegada, mais à arqueologia e à teleologia que à própria travessia, como lemos no Grande Sertão: Veredas: “digo: o real não está na saída nem na chegada: ele se dispõe para a gente é no meio da travessia’”. O destino da alma imortal não está situado em um tempo posterior ou espaço alhures, mas em nosso ser-aí, no modo como lidamos com nossas histórias, minimizando a preocupação relativa aos aspectos metafísicos. De certo modo, o cuidado com o destino de nossas almas retrata, na verdade, a atenção a ser conferida às nossas ações; a reflexão sobre a imortalidade da alma retrata, também, o tema da vida ética visto que mobiliza o sujeito a repensar seu modus existendi a partir da percepção da finitude.
Lima Vaz (2011, p. 10-11) destaca o exercício essencial do filósofo como o bem morrer, que significa assumir o próprio destino em direção a um fim verdadeiro na vida contemplativa. Nesse sentido, corrobora com a noção que aqui defendemos, de que não se trata de uma leitura negativa e/ou suicida, e sim um ponto de vista que reconhece o valor das práticas de si, dos exercícios espirituais, como diriam Foucault (2001, 2011) e Hadot (1987). O modo de ser-no-mundo de quem se presta à meditação acerca da morte é a própria expressão da racionalidade que considera o ato de ser livre na disposição à temperança, isto é, ao controle das pulsões, da ansiedade, provenientes da condição humana do Dasein que é capaz de se questionar a partir do reconhecimento e do despertar da finitude.
Μɛτοίκησις enquanto transvaloração da finitude
Μɛτοίκησις enquanto experiência de morrer nos possibilita rememorar, recordar nossa finitude e, a partir daí, viver mais intensamente, pois permite revisar nossos próprios valores e ser-no-mundo de modo mais consciente. Não somos deuses, por isso precisamos aprender a viver, pois não há regras ou receitas prontas, nem seguimos nossos instintos para bem viver; precisamos compreender para poder agir bem. Dennis J. Schmidt (2017, p. 159) defende que “A ética começa com uma intensificação da sensação de vida, e é essa sensação que faz nascer um sentido do que está em jogo ao falar de vida ética”. Refletimos e experienciamos nosso morrer ou situações de mortes em função de viver intensamente, de ser, todo em tudo, conforme Fernando Pessoa (1994, p. 148). Dennis Schmidt (2017, p. 160) explica que o sentido ético se inicia no despertar de uma consciência da própria finitude, pois só assim nos tornamos mais humanos, visto que tal experiência permite que compreendamos não apenas o enigma da própria vida, mas algo da vida como tal.
A vida de quem percebe a própria finitude exige um compromisso para que se torne a presença e a temporalidade com esse modo de vida o mais proveitoso possível. É por isso que Schmidt (2017, p. 161) retoma o apontamento de Derrida, que afirma que, “[...] para Heidegger, ‘a tarefa do pensar mais alta e mais básica é habitar (Verweilen) com a morte’”, isto é, viver consciente da perspectiva terminal da morte. Para Schmidt (2017, p. 170), refletir sobre o insondável da morte é um dos modos mais profundos de refletir sobre a própria vida, pois nos lembra dos nossos limites, nos tornando seres mais conscientes, por isso uma ética filosófica é uma etopoética, modo pelo qual nos aproximamos de quem somos e o que devemos fazer.
Dennis J. Schmidt (2017, p. 171) defende que a noção da tarefa da vida ética tem início quando se desperta acerca do caráter absoluto da vida, especialmente expresso em dois tipos de experiência, a saber, a vida e a morte, pois ambas não estão restritas a um momento distante, mas são possibilidades constantes da temporalidade da vida fática para nós. A partir da retomada do desenvolvimento da hermenêutica da facticidade de Heidegger, Schmidt defende que a analítica da existência, baseada na finitude da vida, é uma forma de compreensão da existência, insistindo que a questão central do senso ético se desdobra graças à possibilidade de experienciarmos a nós mesmos, especialmente a partir de uma perspectiva da morte.
A hermenêutica filosófica de Gadamer (1990), que parte e ressignifica a analítica do Dasein heideggeriana, aposta na ética, mesmo que indiretamente, especialmente por conta da noção de diálogo, que solicita a participação de outrem e lhe concede a possibilidade de ter sua tese/antítese apreciada e integrada no processo de formação de um horizonte da compreensão (Gill, 2015). Estamos de acordo com Schmidt ao sustentar que a hermenêutica filosófica de Gadamer comporta uma preocupação com a vida responsável no que tange à reflexão acerca da finitude e/ou da morte, dado o caráter ressignificante da experiência tanáthica. Schmidt atribui essa perspectiva de responsabilidade existencial à hermenêutica da facticidade de Heidegger, visto que há uma abertura à ética quando percebemos e nos questionamos a partir da nossa finitude. Para Schmidt (2019, p. 122), “[...] esta consciência da solidão radical abre um sentido real de que estamos em um mundo maior, um verdadeiro sentido de solidariedade com a vida como tal”, pois a experiência de morte mobiliza o intérprete a reorientar sua própria vida a partir da compreensão sempre renovável de si, das coisas e do mundo. Complementarmente, ao tratar de Gadamer, Bernstein (1982, p. 841) afirma que “podemos ler sua hermenêutica filosófica como uma profunda meditação sobre o sentido da finitude humana, como um constante aviso contra os excessos do que ele chama de ‘razão planificadora’, uma noção de que a filosofia precisa abandonar a ideia de um ‘intelecto infinito’”.
Μɛτοίκησις enquanto transvaloração da responsabilidade das ações
Considerando a μɛτοίκησις enquanto exercício de transvaloração de valores, enquanto efetivação do destino encarnado no tempo e no espaço, a responsabilidade de nossos atos não fica nas mãos do destino, dos deuses, dos outros, de uma mão invisível. O destino da alma passa a ser responsabilidade nossa, de modo que viver de forma mais harmoniosa e com base em uma vida equilibrada de prazeres e deveres parte da vontade e da capacidade de se autogerenciar enquanto ser humano inserido no mundo, aos moldes do que Platão indica no Filebo.
Dessa forma, o que diferencia quem se ocupa da filosofia de quem não busca viver filosoficamente é justamente a opção consciente e a vontade direcionada a um modo de vida que não se atém às ambições e ao corpo, visto que quem não filosofa tem dificuldade em abster-se do supracitado com tanta facilidade. Por conseguinte, ambos - filósofo e não filósofo - diferenciam-se, especialmente, por suas atitudes, seus modos de ser com relação à morte e seus respectivos objetivos/fins últimos, pois, no Fédon, quem não filosofa é eticamente imperfeito (Bobonich, 2007, p. 15). A vida que busca uma reflexão acerca dos modos de existir no mundo não significa um modo de vida estritamente ascético ou anti-hedonista, mas uma vida controlada, por assim dizer, em que não há uma submissão do sujeito aos seus prazeres, mas uma fruição saudável e que complementa a vida. No Fédon, Sócrates trata de explicitar sua defesa para Cebes e Símias, compondo-a de modo a desdobrar sua compreensão de quem não teme a morte por ter praticado a filosofia e cuidado de si por toda a sua vida.
Μɛτοίκησις enquanto exercício de [re]orientação de vida permite que pensemos que quem opta por viver filosoficamente escolhe transformar-se existencialmente, adotar novos parâmetros de vida com base no que aprende no contato com a filosofia. Aquele que se torna consciente de injustiças, de que há coisas erradas, por conta de sua paideia filosófica, e continua não fazendo nada a respeito não está pronto para morrer filosoficamente, pois não está praticando sua teoria. Falar sobre a morte, pois, tem o intuito de refletir sobre a vida, sobre a transvaloração existencial, sobre a mudança existencial com base naquilo em que a filosofia afeta na vida do filósofo e o torna apto a refletir de forma apurada sobre ela (Kussler, 2018).
A retomada dos diálogos platônicos sob a óptica de Foucault (2001; 2011) e Hadot (1987) levou em consideração o princípio socrático-platônico do cuidado de si. Isso se deve ao fato de que, diferentemente do foco racionalista proposto, por vezes, na máxima do conhecimento de si [γνῶθι σɛαυτόν], o cuidado de si [ɛπιμέλɛια ɛαυτού] remete à noção da cura e do cultivo de si mesmo, o que difere da perspectiva do conhecer-se enquanto modo de identificação cognoscitiva e intelectual. Portanto, quando se trata do cuidado de si, empregam-se termos como exercício [ἄσκησις] ou meditação [μɛλέτη], no sentido de uma prática, visto que o intuito é propor formas de exercícios espirituais que fomentem o desenvolvimento pessoal de modo integral.
Cultivar a alma é uma forma de cuidar de si mesmo, visto que visa tornar o sujeito mais harmonioso para com o meio no qual vive. Trata-se de um exercício da alma, não apenas algo estático, mas algo que se envolve com ações próprias do espírito humano, que não se restringe à temática unicamente ética, física, moral, intelectual, pois engloba o olhar introspectivo que se baseia no cuidado e no conhecimento de si mesmo. Assim, percebe-se que o exercício de morte pode ser retomado enquanto prática meditativa que centra o sujeito tanto ao seu modo de ser-no-mundo quanto em relação ao seu lugar histórico, social, econômico, ético, e o compele a reavaliar seus valores, levando-o a transvalorá-los quando necessário.
Algumas conclusões
O objetivo geral do artigo foi perceber como Gadamer sugere uma leitura fenomenológica do Fédon platônico, indicando a μɛτοίκησις enquanto uma forma de mudança da morada do ser. Assim, examinamos o diálogo sob o mote do traslado da alma em detrimento da leitura tradicional, que se debruça exclusivamente na transmigração da alma. A partir dessa leitura, propusemos uma abordagem ética do tema da μɛτοίκησις. Assim, pensar a morte a partir do contexto de finitude revelou-se um projeto que impõe um compromisso ao sujeito que filosofa em mudar de atitude com relação aos valores que compõem seu modo de ser-no-mundo.
Para tanto, mostramos a aproximação da discussão do exercício tanáthico, a prática filosófica de preparar-se para a morte, em um sentido mais amplo, que considera que o filósofo medita sobre a morte ao dar-se conta da própria finitude e buscar viver melhor a partir desse movimento da consciência. Na segunda seção, explicitamos como a própria teoria gadameriana apropria-se da proposta iniciada por Heidegger, especialmente no que tange à hermenêutica da facticidade e à analítica do Dasein, que preconizam o status do ser humano capaz de perceber-se enquanto finito e em direção à morte.
Em termos pessoais, não poucos são aqueles que, mesmo em se tratando da morte de outras pessoas, se deram conta de um modo egocêntrico e impessoal de viver; em termos familiares, perceberam o modo claudicante de cuidar de suas Alices, Helenas, Mateus e Joaquins; em termos profissionais, no âmbito da docência, aprimoraram o senso para o fato de que aula é muito mais que espaço e local de transmissão de conhecimento, mas um encontro de vidas; e em termos sociais, a vivência da pandemia aguçou a reflexão sobre o modelo econômico que gera reificação e exclusão. Vivências relativas à dor e à morte que, em suma, têm propiciado a transfiguração e a transvaloração de valores e concomitante movimento de instituição de posturas mais solidárias entre as pessoas. Mesmo que pelo caminho da dor, essa situação pandêmica nos tem mobilizado para realizarmos o translado de nossas almas, a mudança de morada para uma vida mais intensa, completa, livre e feliz.
Enfim, podemos afirmar que a presente proposta de leitura fenomenológico-hermenêutica considera a preocupação com nosso modo de viver o aqui e agora, isto é, perceber que a felicidade e a realização enquanto seres humanos importa mais que a projeção de uma perspectiva que se ocupa exclusivamente do destino final das almas. Para finalizar, rememoramos a recomendação socrático-platônica segundo a qual vale a pena uma vida examinada, ressignificada, transvalorada e transfigurada diariamente.
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Para fins de esclarecimento, vale ressaltar que usamos o conceito com base na proposta tradutória de Gadamer e no léxico de referência internacional de Liddell e Scott (1996). Tal interpretação serve, aqui, como pressuposto para a presente argumentação, compreendendo μɛτοίκησις como a mudança da morada, derivando de μɛτά + οίκος, que pode ser expresso como mudança de hábitos ou, como convencionamos chamar, transvaloração existencial, por vezes também indicado com sinônimos, como transmutação, ressignificação etc.
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Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
22 Mar 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
07 Abr 2022 -
Aceito
03 Dez 2023