A obra de Jelson Oliveira representa um grande esforço da pesquisa jonasiana brasileira para compreender o fenômeno recente da crise climática. Para isso, investiga as profundezas da Modernidade orientado pela obra do filósofo Alemão Hans Jonas e, mais especificamente, por um dos conceitos que mais radicalmente influenciou a história do Ocidente, até nossos dias. Trata-se do conceito de Progresso, esse estranho hóspede1. É Nietzsche, aliás, que Oliveira destaca já na epígrafe do livro, dando-lhe a sugestão do título: “As verdades são ilusões, das quais se esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como moedas”.
Do conceito de verdade à moeda e sua efígie, temos duas metáforas. Da utopia do progresso à catástrofe ambiental: a primeira, como uma moeda que perdeu sua face pelo excesso de uso, restando gasta e sem valor; a segunda, não uma ilusão, mas uma realidade tão eminente que sua concretização não é mais uma questão de “e se?”, mas “quando?”. De verdades metafóricas a realidades concretas, Nietzsche constata nessa pequena afirmação, o fato de que certos ideais fundantes da modernidade são, na verdade, meras ilusões que perderam seu valor devido ao desgaste do tempo. Jonas comunga dessa crítica à modernidade e também investiga os ideais que fundaram este tempo histórico, sendo um dos principais o Progresso, tema central da obra de Oliveira.
Ora, o progresso perdeu seu valor, mas se manteve enquanto ideal utópico e condição material de reprodução social. Nas palavras de Oliveira, “o Progresso é uma crença que se traduz no uso corrente de uma moeda cujo valor se perdeu, mas que continua sendo usada como moeda. Uma moeda gasta, sem efígie, mas que continua sendo usada como moeda. É assim que seu uso, tendo perdido seu efeito real, acaba dependendo de uma crença, na medida em que seu valor depende de uma perspectiva transcendente” (Oliveira, 2023, p. 21). Essa moeda gasta, por um lado, mantém no ideário humano contemporâneo a superioridade do Progresso e, por outro, mantém na prática quotidiana a necessidade da constante evolução da forças produtivas, expandindo o nível de consumo dos diversos produtos e mercadorias. É por isso que, com a metáfora da moeda sem efígie, coloca-se em discussão o projeto de sociedade pretendido pela Modernidade, demonstrando que o valor que carregava se desgastou e se perdeu com o tempo, deixando de ser um ideal para se sustentar apenas como crença - é preciso, portanto, transvalorar a crença no Progresso e isso é uma tarefa filosófica, conforme propõe Oliveira.
A obra Moeda sem efígie: a crítica de Hans Jonas à ilusão do progresso, publicada em 2023 pela Kotter Editorial, é composta por dez capítulos assim distribuídos: (1) A origem e ascensão de uma crença; (2) A crítica do progresso como tarefa filosófica; (3) Moeda sem valor; (4) Por um catastrofismo metodológico; (5) Contra a ilusão do progresso; (6) Um sentido geral da história?; (7) Progresso como utopia; (8) Progresso e melhorismo; (9) Um estilo de vida perdulário; e (10) Progresso com precaução.
Em nosso ver, é possível dividir os capítulos em três grandes intenções. Os capítulos um, dois e três buscam estabelecer a gênese do conceito de Progresso na Modernidade, assim como sua importância para a filosofia. Os capítulos quatro, cinco e seis estabelecem algumas críticas importantes ao Progresso realizadas por diversos autores, os quais mantém uma unidade temática com a crítica de Jonas. Por fim, dos capítulos sete ao dez, o autor apresenta a abordagem de Hans Jonas a respeito do conceito de Progresso, que se articula com outros dois componentes importantes para o mundo moderno: a utopia e a técnica. Conjugando esses conceitos, Jonas centraliza sua crítica no que chama de utopia do progresso técnico. Oliveira executa a tarefa de articular e atualizar essa posição, trazendo respostas concretas e objetivas para as problemáticas levantadas ao decorrer dos primeiros seis capítulos, sem deixar de articular Jonas com os demais filósofos e filósofas que estão debatendo o tema em nossos dias.
O livro demonstra, assim, que a noção de Progresso certamente existia antes da Modernidade, mas algo ocorreu nesse tempo histórico que a transformou em um ideal e, em seguida, a partir da sua decadência, em uma crença. Rossi, em sua célebre obra Naufrágios sem espectador: a ideia de Progresso (2000), central para Oliveira em sua análise, demonstra que o Progresso se transformou em um ideal principalmente porque se associou à ciência e à técnica. Tanto que o ideal de Progresso muitas das vezes é associado ao “progresso científico” ou ao “progresso técnico”. Jonas também compreendeu essa relação, mas foi mais a fundo na análise, associando o Progresso não apenas a um ideal ou a uma crença, mas a uma verdadeira utopia.
Dessa forma, também Jonas considera que, na Modernidade, o Progresso se articula em torno da ciência e tecnologia. O filósofo alemão chega mesmo a estabelecer que a ciência é “um adorno ideológico da moderna tecnologia” (2013, p. 31), exaltando a intrínseca relação entre os dois conceitos. Não é possível, a partir dessa primeira constatação, dissociar Progresso, ciência e tecnologia, como bem estabelece Oliveira: “o Progresso é a lógica interna da própria ciência e essa, por sua vez, o atributo principal dos tempos modernos” (Oliveira, 2023, p. 24).
Assim, o Progresso, na Modernidade, está ligado, de forma decisiva, ao avanço ininterrupto da ciência e da tecnologia. Entretanto, ele também se apodera da própria noção de tempo, uma vez que foi esculpido, pouco a pouco, como a finalidade última da história humana. Em outras palavras, ao longo dos últimos séculos, o Progresso foi se constituindo como o objetivo final da natureza humana, como a causa final de toda ação ética, política e histórica: transformou-se em filosofia da história, portanto. O passado, nessa perspectiva, é necessariamente observado como ultrapassado e o futuro como um campo em aberto de infinitas possibilidades. Ou seja, “o tempo do Progresso é um tempo pretensamente inesgotável que postula sempre um tipo de melhora que se alonga infinitamente e se apresenta como progressismo, sem nenhuma visão crítica do presente e sem capacidade de olhar o futuro de forma adequada” (Oliveira, 2023, p. 32).
Essa concepção, como bem aponta o autor, é problemática em vários aspectos, pois representa uma contradição bastante evidente: um projeto de infinitas possibilidades em um mundo com recursos limitados. Eis o nascimento da primeira condição de possibilidade para a crise climática, a qual já carrega em si a solução do problema: como não é possível mudar os recursos finitos disponibilizados pela natureza, para levar o mundo ao colapso, é preciso mudar o estilo de vida para um modelo que deixe de encarar o futuro como inesgotável e a natureza como algo a ser infinitamente explorado.
A partir da contradição supracitada, muitos teóricos questionaram o Progresso e começaram a falar em alternativas:
Fala-se, então, em alternativas ao Progresso, como forma de objeção ao modus operandi que levou ao confronto entre natureza e civilização e como forma de difusão de novos modos de vida, baseados em palavras que soam mal aos ouvidos da maioria: precaução, parcimônia, frugalidade, modéstia e responsabilidade, por exemplo. […] Trata-se, no fim, não de abandonar algo cujo sucesso é inquestionável, mas de questionar o sucesso de algo cujas esperanças, depois de séculos, continuam infundadas e cujos danos são evidentes (Oliveira, 2023, p. 41).
Com base nisso, reflexões sobre os custos e os limites do Progresso começam a ganhar importância, não só na filosofia mas também em forma de política. Surgem tentativas, das mais variadas possíveis e dos mais diversos grupos, de investigar o impacto do crescimento, do desenvolvimento, das mudanças climáticas, da poluição, do aquecimento global etc. Todas as ideias que se articulam em torno do projeto da utopia do progresso técnico consolidada na Modernidade. Assim, principalmente a partir da década de 1970, começa-se a pensar nessas alternativas, as quais ganham inúmeras formas concretas, das mais radicais às mais conservadoras, das mais otimistas às mais pessimistas.
Fala-se, por exemplo, em decrescimento, ressaltando que o estilo de vida atual não é compatível com o meio ambiente e com a continuidade da vida no planeta Terra. Também surge a proposta de um capitalismo sustentável e a própria ideia de sustentabilidade. A partir dessa análise e compreendendo o avanço do capitalismo, especialistas de diferentes áreas propõem que adentramos em uma nova era geológica: o Antropoceno. As consequências, que afetam as populações de modo desigual, dão azo às demandas em prol de uma justiça climática. Fala-se, também, em ecossocialismo, buscando uma alternativa ecológica nas propostas socialistas. Por fim, há posturas resignadas que entendem não haver nenhuma possibilidade ética de evitar o inevitável, de tal sorte que resta aprender a viver depois do fim do mundo ou, até mesmo, acelerar a catástrofe - é a tese dos aceleracionistas, que observam na catástrofe a possibilidade de surgimento de um novo mundo.
Ante a diversidade de propostas, é preciso lembrar que “o contrário do progresso não é o subdesenvolvimento, mas, precisamente, o limite. Isto porque, o progresso é a crença absoluta no ilimitado, concretizado na ideia de que a natureza pode oferecer todas as condições para uma exploração indefinida de suas fontes” (Oliveira, 2023, p. 56). Ou seja, a crítica ao ideal de Progresso (que virou mera crença e ilusão) é uma tarefa eminentemente ética, pois combatê-la não seria agir contra o crescimento, com posturas anticientíficas e antitecnológicas (crítica perpetrada contra Jonas por leitores apressados, inclusive), mas precisamente a retomada do grande objetivo da ética: estabelecer limites para a conduta humana. Trata-se, novamente, de perguntar “o que eu devo fazer?”. Ou, em face do poder alargado da humanidade, “o que não devo fazer?”.
Para responder a essa pergunta é preciso desenvolver o que Jonas chama de futurologia comparativa baseada em uma heurística do temor, as quais têm na articulação entre ética, política e ciência a possibilidade de dar respostas mais satisfatórias sobre o grande dilema ético da crise climática. Só assim
Seria possível pensar em algum papel para a ética e a política, aos moldes do que propõe Hans Jonas que, nesse caso, como veremos, não é nem um tecnofóbico nem um tecnólatra: sua perspectiva acentua a possibilidade de pensar a pedagogia da catástrofe na forma de um profetismo cuja estratégia é denunciar o risco do pior, imaginá-lo como possível e, diante disso, agir para evitá-lo. É como heurística, portanto, que a catástrofe aparece na obra de Jonas e seu objetivo é evitar o imobilismo e o fatalismo, em nome da convocação à responsabilidade (Oliveira, 2023, p. 75).
A respeito desse conhecimento interessado sobre o futuro, é importante destacar que o conceito de heurística do temor deve ter a sua primeira parte mais destacada que a segunda. É mais importante usar o conhecimento adquirido de forma heurística, e não única e exclusivamente para gerar o sentimento de temor ou medo na sociedade - aí está uma grande diferença entre a proposta ético-política de Jonas da pretendida pelos catastrofistas, pois, como muito bem estabelece Oliveira na obra em tela, Jonas desenvolve um catastrofismo metodológico. Em outras palavras, “o acento principal do conceito de ‘heurística do temor’ não deveria ser sobre o temor/medo, mas precisamente sobre a heurística, ou seja, sobre a sua função estratégica. É aí que reside a questão central da ética proposta por Jonas e é a partir ela que podemos avaliar a sua pertinência teórica e eficácia prática” (Oliveira, 2023, p. 81). Baseada na heurística, a previsão seria a virtude mais urgente do mundo contemporâneo.
Para conquistar tal virtude que permita prever, de alguma forma, o futuro, é necessário reunir informações de todas as áreas da ciência, contar com o apoio da tecnologia e dos seus instrumentos, bem como contar com homens e mulheres públicas que assumam a responsabilidade em estabelecer um poder sobre o poder para que possamos usufruir de um Progresso com precaução. Essa nova era, baseada na responsabilidade e não na euforia, seria de sacrifícios, pois “a verdadeira liberdade, como marca indelével da autenticidade da vida humana, não estaria em fazer tudo o que se quer ou tudo o que se pode, mas em optar voluntariamente por não fazer o que se pode e o que se quer quando isso colocar em risco o bem e a própria existência da humanidade” (Oliveira, 2023, p. 94). Seria preciso, em prol da responsabilidade que recai sobre o ser humano do século XXI, agir com frugalidade e com precaução, impondo limites aos desejos mais imediatistas.
Com base em Jonas, Oliveira estabelece que seria necessário, nessa nova era da responsabilidade, rejeitar o “estilo de vida perdulário” (2006, p. 245) da Modernidade e desenvolver um programa em prol de um estilo de vida frugal e baseado na austeridade. Para Jonas, que escreveu sua obra magna em 1979, nenhum dos dois sistemas produzidos pela Modernidade, capitalismo e socialismo, apresentam uma solução satisfatória a esse modo de vida, uma vez que ambos estão embebidos na crença na utopia do progresso técnico. Para Jonas, nas palavras de Oliveira,
tanto o capitalismo quanto o socialismo foram sequestrados pela crença no Progresso e nenhum dos dois seria capaz de resistir aos seus percalços e enfrentar criticamente os seus prejuízos. Seria preciso, para isso, fazer algo que parece impossível no atual momento da história: transformar o ‘entusiasmo pela utopia’ em um ‘entusiamos pela austeridade’. Esse seria o grande desafio político dos nossos tempos, portanto: trocar o Progresso pela frugalidade, a utopia pela austeridade (Oliveira, 2023, p. 154).
Ora, esse novo estilo de vida austero baseado na responsabilidade necessitaria de um poder sobre o poder. Alternativas de poder que as duas formas de sociabilidade da Modernidade não produziram. É tarefa ética, assim, buscar por essas alternativas para a nossa forma de organização social, seja por meio de políticas públicas, pelo Direito, por iniciativas da sociedade civil, por revoluções ou até mesmo por mudanças nos modos de consumo. Algo precisa ser feito. E logo. A análise crítica da crença no Progresso é apenas o início.
É claro que Jonas toma uma postura a respeito das melhores alternativas entre as alternativas possíveis, analisando, de início, as duas que estavam dadas em seu tempo (socialismo e capitalismo). Para o autor, a solução estaria necessariamente no desenvolvimento de um poder sobre o poder, o que seria um papel da ética: “A ética seria a única possibilidade de que a humanidade recolocasse o poder da tecnologia a serviço da proteção da vida, salvando a humanidade da catástrofe produzida por um poder que não se orienta mais pelos valores, entre os quais o maior seria a preservação da própria humanidade” (Oliveira, 2023, p. 159).
Somado ao poder sobre o poder, esse novo estilo de vida responsável deve, ao criticar a crença no Progresso, não rejeitá-lo em sua inteireza. O Progresso definitivamente representa um grande ganho ao ser humano, porém, diante do seu funcionamento interno, ele se desenvolve sem nenhum cuidado. Na medida em que projeta no futuro infinitas possibilidades, não age responsavelmente diante do meio ambiente. Para Jonas, nas palavras de Oliveira, um progresso com precaução estaria baseado na modéstia dos fins, em freios voluntários e em um estilo de vida frugal. Nas palavras do autor:
Com isso, podemos afirmar que a ética jonasiana caminha na direção contrária àquela das utopias do Progresso tecnológico, que teriam fechado os olhos para o fato de que os recursos naturais são esgotáveis e finitos. Para Jonas, assumir a responsabilidade significa assumir ‘uma nova modéstia nas metas, nas expectativas e no modo de vida’, e fazer da ‘frugalidade em nossos hábitos de consumo’, da parcimônia, da contenção, da continência e da temperança os valores centrais das realizações humanas (TME, 77). Por isso, o novo estilo de vida não só diria respeito à moderação e a continência em sentido de consumo, mas também à imposição de ‘freios nos poderes’ e nos êxitos, algo que é descrito por Jonas como uma ‘domesticação dos nossos impulsos realizadores’ (TME, 79) (Oliveira, 2023. p. 170).
A verdadeira tarefa do ser humano responsável nesse novo tempo é assumir a sua liberdade, que nesse caso, é a renúncia do modo de vida perdulário da Modernidade. Diante da urgência da extinção em massa e da devastação completa do meio ambiente, é preciso renunciar a esse modelo de vida baseado na produção infinita de mercadorias e na exploração desenfreada da natureza.
A renúncia, ensina Oliveira, é a melhor possibilidade ante a bifurcação que o ser humano do século XXI se encontra. Ou continuamos pelo caminho do capitalismo e do modo de vida baseado na utopia do progresso técnico ou buscamos uma alternativa, sustentada na harmonia com a natureza e respeito a vida. “Esse é o modo como, nessa bifurcação da história, temos de optar pelo caminho certo: o caminho da proteção, da sobriedade, da convivialidade e da corresponsabilidade. Não para retomar um passado miserável e sofrido, mas para desenharmos um futuro promissor para a nossa espécie que, em sua fragilidade, depende da existência das demais formas de vida” (Oliveira, 2023, p. 175). A solução para essa renúncia estaria, paradoxalmente, como ensina a sabedoria indígena, em um futuro ancestral, uma vez que nessa cosmologia, a natureza e os seres extra-humanos são compreendidos como seres dignos de respeito e não objetos a serem explorados. Frente à urgência da proteção do planeta contra o Progresso, isso pode abrir a possibilidade de um novo mundo, no qual se respeite a dignidade da vida em todas as suas formas e da natureza em todos os seus aspectos.
Referências
- JONAS, Hans. O princípio responsabilidade: Ensaios de uma ética para a civilização tecnológica. Rio de Janeiro, Contraponto: Ed. PUC RIO, 2006.
- JONAS, Hans. Técnica, medicina e ética: sobre a prática do princípio responsabilidade. Tradução do Grupo de Trabalho Hans Jonas da ANPOF. São Paulo, 2013.
- OLIVEIRA, Jelson. Moeda sem efígie: a crítica de Hans Jonas à ilusão do progresso. Curitiba: Kotter Editorial, 2023, 184p.
- ROSSI, Paolo. Naufrágio sem espectador: a ideia de progresso. Tradução de Álvaro Lorencini. São Paulo: Editora Unesp, 2000.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
12 Fev 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
-
Recebido
09 Out 2023 -
Aceito
20 Out 2023