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A prática educativa dos preceptores nas residências em saúde: um estudo de reflexão

Resumos

O objetivo deste artigo foi refletir sobre o exercício da preceptoria como prática educativa na formação e qualificação do profissional em saúde para o sistema único de saúde. Trata-se de uma reflexão teórica, com apoio na literatura sobre a temática. O preceptor conduz o processo de ensino-aprendizagem e transforma as atividades desenvolvidas no âmbito do trabalho em momentos educacionais. Nessa seara, surgem questionamentos sobre o que é ser preceptor e o seu papel na formação em saúde. Para ensinar, é necessário conhecimentos para além do conteúdo da disciplina e, considerando que a preceptoria é uma prática de educação no trabalho, o preceptor precisa de formação pedagógica. Com isso, ser preceptor é ser professor? Essa reflexão nos coloca frente a uma problemática presente em nosso dia-a-dia, que é a formação de quem forma, para uma ação transformadora da prática em Saúde.

Saúde; Educação em saúde; Tutoria


The purpose of this article was to reflect on the practice of preceptorship as an educational practice in the training and qualifications of professional health information for the public health system. This is a theoretical reflection with support in the literature. The teacher addresses the teaching-learning process and transforms the activities in the work on educational moments. In this area arise questions about what is being preceptor and their role in health education. It is necessary to teach knowledge beyond the content of the discipline, and reflecting about preceptorship as an educational practice in the workplace, the preceptor needs pedagogical preparation. Herewith, being a preceptor means being a teacher? This reflection places us in front of a problem present in our daily exercise, which is the pedagogical training of those who teach for a transformation of practice in health.

Health; Health Education; Preceptorship


El propósito de este artículo es reflexionar sobre la práctica de la preceptoría como práctica educativa en la formación y cualificación de la información de salud profesional para el sistema público de salud. Se trata de una reflexión teórica con apoyo en la literatura sobre el tema. El preceptor conduce el proceso de enseñanza-aprendizaje y transforma las actividades desarrolladas en el ámbito de trabajo en momentos educativos. En este ámbito surgen preguntas acerca de lo que está siendo preceptor y su papel en la educación para la salud. Para enseñar es necesario conocimientos más allá del contenido de la disciplina y considerando que la preceptoría es una práctica de educación en el trabajo, el preceptor necesita de formación pedagógica. Con eso, ¿ser preceptor es ser profesor? Esa reflexión nos coloca frente a una problemática presente en nuestro día a día que es la formación de quien forma, para una acción transformadora de la práctica en Salud

Salud; Educación en salud; Tutoría


INTRODUÇÃO

A experiência com programas de residência e a vivência como profissional da prática e docente no ensino superior em saúde fez-nos suscitar algumas inquietações sobre a atuação do preceptor na formação do profissional para o Sistema Único de Saúde (SUS). Se o preceptor participa da formação em saúde, articulando o mundo do trabalho com o mundo do ensino, como um dos protagonistas no processo de ensino-aprendizagem do programa de residência, ele necessita ter conhecimentos que vão além dos saberes sobre a prática. Ao exercício da preceptoria, o profissional precisa ter domínio não somente do conhecimento clínico, mas ser capaz de transformar a vivência do campo profissional em experiências de aprendizagem. Para isso, o preceptor precisa de conhecimento pedagógico.

Os programas de residência em saúde consistem em formação latu sensu fundamentados na educação no trabalho e o processo de ensino-aprendizagem acontece no serviço, articulando teoria e prática. Nesse contexto, o preceptor (profissional da prática) e o residente (profissional em formação) compartilham o ensinar e aprender, a partir da troca de experiências, reflexões sobre a prática e (re)construção do conhecimento em cenários reais da atenção à saúde.

Desta forma, o preceptor atua como mediador no processo de aprendizagem e, para isso, precisa mobilizar saberes e estratégias que lhe permitam conduzir tal processo, pois não basta dominar o conhecimento especializado do conteúdo ou uma prática, é preciso saber ensinar de forma a ser compreendido( 11 Shulman LS. Conocimiento y Enseñanza: fundamentos de la nueva reforma. Revista de currículum y formación del professorado [Internet]. 2005 [citado 2013 Fev 22]; 9(2):01-30. Disponible en: http://www.ugr.es/~recfpro/rev92ART1.pdf
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). Além disso, é necessário compreender como esse conhecimento se transforma para formar um novo conhecimento aplicado na teoria e na prática( 22 Ramos V, Graça ABS, Nascimento JV. O conhecimento pedagógico do conteúdo: estrutura e implicações à formação em educação física. Rev. bras. educ. fís. esp. [Internet]. 2008 [citado 2013 Out 24]; 22(2):161-71. Disponível em: http://www.revistasusp.sibi.usp.br/pdf/rbefe/v22n2/v22n2a7.pdf
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). Pois, "aqueles que sabem, fazem. Aqueles que compreendem, ensinam"(3:14).

Assim, o objetivo desse artigo foi refletir sobre o exercício da preceptoria como prática educativa na formação e qualificação do profissional em saúde para o SUS.

O preceptor na formação do profissional em saúde

Durante as últimas três décadas, o debate sobre a formação do profissional de saúde, no tocante a consolidação do SUS como modelo de saúde e prática social no Brasil, vem crescendo. As discussões pontuam o modelo de formação, suas propostas pedagógicas, os desafios no processo educativo e na prática profissional e buscam romper com o modelo fragmentado e médico-centrado, para uma formação com vistas a integralidade e maior articulação entre o trabalho e a educação( 44 Ferreira SR, Olschowsky A. Residência integrada em saúde: a interação entre as diferentes áreas de conhecimento. Rev. gaúch. enferm. [Internet]. 2009 [citado 2013 Out 24]; 30(1):106-12. Disponível em: http://seer.ufrgs.br/RevistaGauchadeEnfermagem/article/view/8882
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).

Sob esse prisma, os programas de residência, articulados à Política Nacional de Educação Permanente (PNEP), se colocam como estratégia à formação de recursos humanos para SUS. É nesse cenário que surge a figura do preceptor. Mas, qual é seu papel? Quais são as condições necessárias ao profissional da assistência para o exercício da preceptoria?

O preceptor é o profissional que participa do processo de formação em saúde ao articular a prática ao conhecimento científico. Ele precisa dominar a prática clínica, bem como os aspectos pedagógicos relacionados a ela, transformando o cenário profissional em ambiente educacional( 55 BOTTI, S. H. de O . Desenvolvendo as competências profissionais dos residentes. Revista Hospital Universitário Pedro Ernesto [Internet]. 2012 [citado 2012 Nov 27]; 11(Supl.1):102-6. Disponível em: http://revista.hupe.uerj.br/detalhe_artigo.asp?id=317
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). Nessa dinâmica, conta com o apoio do tutor que atua como orientador acadêmico, responsável direto pela implementação do plano pedagógico. Esse tutor é um profissional com titulação mínima de mestre e mais de três anos de experiência profissional, vinculado à instituição formadora ou executora( 66 Ministério da Educação (BR). Comissão Nacional de Residência Multiprofissional em Saúde (CNRMS). Resolução n. 2 de 13 de abril de 2012. Dispõe sobre as diretrizes gerais para os programas de residência multiprofissional e em áreas da saúde. Diário Oficial da Uinão, Brasília (DF) 2012 Abr 13; (73) Secão 1: 24-5. Disponível em: http://webcache.googleusercontent.com/search?q=cache:vcp3zN7dhWMJ:portal.mec.gov.br/index.php%3Foption%3Dcom_docman%26task%3Ddoc_download%26gid%3D10563%26Itemid+&cd=2&hl=pt-BR&ct=clnk&gl=br
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). Ambos, tutor e preceptor, possuem responsabilidade pedagógica.

Todavia, é ao preceptor que compete o acompanhamento direto do residente, transformando o dia-a-dia do trabalho num cenário rico em experiências de aprendizagem. Isso requer, do preceptor, a capacidade de mediar o processo de aprender-ensinar no trabalho, problematizar a realidade e provocar, no residente, um processo de ação e reflexão para reconstrução da sua prática diária.

Assim, compreendemos que a atuação do preceptor na formação do profissional de saúde para o SUS, destaca-se e se revela como atitude educativa no trabalho. Ele precisa incentivar o repensar da prática, a comunicação e o compartilhamento de ideias, o trabalho em equipe, a integralidade do cuidado e fomentar a educação permanente nos espaços do trabalho em saúde.

Ser preceptor é ser professor?

Ser professor é "exercer, numa perspectiva de totalidade pessoal, as mediações possíveis da relação do aluno com o mundo, visando facilitar sua percepção, apreensão, domínio e, portanto, capacidade transformadora da realidade [...] pressupõe mais do que o domínio dos conhecimentos específicos em torno dos quais deverá agir" (7:7). É ter consciência, sensibilidade e, sob uma visão emancipadora, transformar o conteúdo informativo em conhecimento e consciência crítica para formação( 88 Gadotti M. Perspectivas atuais da educação. São Paulo perspect [Internet] 2000 [citado 2013 Ago 22]; 14(2). Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/spp/v14n2/9782.pdf
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). Ensinar é um ato que vai além da transmissão do conhecimento e demanda interação com o estudante na construção do aprendizado. Requer segurança, competência profissional, generosidade, comprometimento, consciência, liberdade, saber escutar, compreender que a educação é um modo de intervir no mundo, tomada de decisão, disponibilidade para o diálogo e, acima de tudo, o querer bem aos educandos( 99 Freire P. Pedagogia da autonomia. Saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e terra; 2011. ).

As estratégias didáticas devem permear essa prática, pois apenas o conhecimento sobre o conteúdo não é suficiente. É necessário que o professor tenha expertise da prática pedagógica, além de outros saberes como o conhecimento dos alunos, dos valores educacionais, do currículo e do contexto educativo( 33 Shulman LS. Those Who Understand: Knowledge Growth in Teaching. Educ. res [Internet]. 1986 [cited 2013 Out 22]; 15(2): 4-14. Available from: http://www.fisica.uniud.it/URDF/masterDidSciUD/materiali/pdf/Shulman_1986.pdf
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). Esses conhecimentos permitem autogestão e autocontrole da prática, proporcionando autonomia, discernimento, reflexão e atitude diante das situações que surgem diariamente( 1010 Tardif M. Saberes docentes e formação profissional. 13 ed. Petrópolis: Vozes; 2012. ). Sobre essa ótica, entendemos que para ser professor não basta saber o conteúdo, é preciso saber ensinar, de modo que o processo e o conteúdo sejam compreendidos pelo estudante.

O preceptor, no programa de residência em saúde, desenvolve atividades de educação no trabalho, ações de ensino, na qual se evidencia uma relação didática estabelecida pela sua interação com o residente e com o conhecimento, o que compõem um processo educativo.

Sob esse ângulo, pode-se então afirmar que ser preceptor é ser professor?

O preceptor é o profissional que se encontra na prática, porém o seu compromisso vai além do cuidado ao usuário. Compete, a ele também, o papel de mediador e facilitador do processo de formação do residente, compartilhando a responsabilidade pelo desenvolvimento do conhecimento. Nesse processo ele também aprende, pois ninguém educa ninguém ou educa a si mesmo, os homens se educam nas relações estabelecidas entre si e com o mundo( 1111 Freire P. Pedagogia do oprimido. 50 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra; 2011. ).

Nessa dinâmica, é preciso que se estabeleça um espaço intercessor entre o professor da Instituição de Ensino Superior (IES) e o profissional da assistência, no qual preceptores e tutores se colocam como mediadores entre o mundo do ensino e o mundo do trabalho (figura 1).

Figura 1
Inserção do preceptor na dinâmica do ensino e serviço, 2013 Fonte: Elaborado pelas autoras, UFSC, 2013.

Nesse processo, é necessário motivar o residente em sua formação e provocar reflexões para uma prática transformadora da realidade. O professor é um profissional que ensina, mas que também cuida, e o preceptor é um profissional que cuida, mas que também ensina.

O preceptor media os aspectos teóricos e práticos da formação por meio de sua prática clínica, levantando problemas e instigando a busca de explicações( 1212 Missakai H, Ribeiro VMB. A Preceptoria na Formação Médica: o que Dizem os Trabalhos nos Congressos Brasileiros de Educação Médica 2007-2009. Rev. bras. educ. méd. [Internet]. 2011 [citado 2013 Jul 26]; 35(3): 303-10. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbem/v35n3/a02v35n3.pdf
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). Esse preceptor precisa dispor de um repertório que o ajude a tornar o conhecimento acessível ao profissional-aprendiz - o residente - e promover uma práxis em saúde, que mobilize a um pensar-agir curioso, crítico e reflexivo.

Nesse aspecto, é necessário o preceptor reconhecer a importância de desenvolver em si o que Shulman( 11 Shulman LS. Conocimiento y Enseñanza: fundamentos de la nueva reforma. Revista de currículum y formación del professorado [Internet]. 2005 [citado 2013 Fev 22]; 9(2):01-30. Disponible en: http://www.ugr.es/~recfpro/rev92ART1.pdf
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) chama de Conhecimento Base para o ensino, que é composto por sete categorias de conhecimento, a saber: do conteúdo; pedagógico geral; do currículo; pedagógico do conteúdo; dos alunos e suas características; dos contextos educacionais; dos objetivos, metas e valores educacionais e sua fundamentação filosófica e histórica. Dentre esses conhecimentos, destaca-se o conhecimento pedagógico do conteúdo (CPC), amálgama do conhecimento da disciplina com o conhecimento pedagógico geral( 22 Ramos V, Graça ABS, Nascimento JV. O conhecimento pedagógico do conteúdo: estrutura e implicações à formação em educação física. Rev. bras. educ. fís. esp. [Internet]. 2008 [citado 2013 Out 24]; 22(2):161-71. Disponível em: http://www.revistasusp.sibi.usp.br/pdf/rbefe/v22n2/v22n2a7.pdf
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).

Para esse autor, o ensino deve ser um ato cíclico de compreensão, raciocínio, transformação, ação/reflexão( 11 Shulman LS. Conocimiento y Enseñanza: fundamentos de la nueva reforma. Revista de currículum y formación del professorado [Internet]. 2005 [citado 2013 Fev 22]; 9(2):01-30. Disponible en: http://www.ugr.es/~recfpro/rev92ART1.pdf
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). É preciso compreender que os processos de raciocínio estão entranhados ao ensino e que para sua evolução é imperativo manter uma interação ativa com as ideias. A compreensão não é, por si só, suficiente, visto que a concretude do conhecimento reside em seu poder de discernir, refletir e agir.

Nesse contexto, não (re)conhecer o processo de ensino como inerente a sua prática, pode levar o preceptor a simplesmente delegar suas atividades ao residente e não estabelecer uma verdadeira relação pedagógica( 1313 Barbeiro FMS, Miranda LV, Souza SR. Nurse preceptors and nursing residents: interaction in the practice scenario. Rev. pesqui. cuid. fundam. (Online) [Internet]. 2010 [cited 2013 Ago 10]; 2(3): 1080-7. Available from: http://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=3651644.
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). É necessário entender que a preceptoria, enquanto prática educativa, é uma atividade que demanda planejamento, competência, criatividade e sensibilidade( 1414 Skare TL. Metodologia do ensino na preceptoria da residência médica. Rev. Med. Res.[Internet]. 2012 [cited 2013 Out 20]; 4(2): 116-20. Disponível em: http://www.crmpr.org.br/publicacoes/cientificas/index.php/revista-do-medico-residente/article/download/251/241
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).

Portanto, se faz necessário refletir sobre a importância do preceptor na formação e qualificação do profissional de saúde para o SUS, bem como, propor uma formação pedagógica que o prepare para o exercício da preceptoria, o que proporcionará uma maior apropriação de saberes para o ensino e aprimoramento do seu papel de educador no âmbito do trabalho.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No contexto das residências em saúde precisamos pensar a preceptoria, repensando a prática e o ensino. É necessária uma maior aproximação entre o campo da prática e da teoria, em que todos (técnicos, preceptores, tutores ou docentes) constituam uma equipe integrada na formação do profissional para o SUS.

Inúmeros são os desafios e não temos a intenção de esgotar essa discussão, mas problematizar e provocar reflexões sobre a temática se constitui em um dos primeiros passos para sua transformação. Avançar no fazer da preceptoria como prática educativa requer romper paradigmas para construir caminhos que viabilizem uma maior integração entre o mundo do trabalho e o mundo do ensino.

O preceptor precisa ser um protagonista, visto que compartilha a responsabilidade da formação do residente, e nesse conterxto a fundamentação científica e pedagógica são imprescindíveis para que possam aplicar no espaço do trabalho, seus saberes, transformando, assim, o ambiente do cuidado em verdadeiro espaço de múltiplas aprendizagens, promovendo a construção/reconstrução do conhecimento.

REFERENCES

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Mar 2014

Histórico

  • Recebido
    19 Nov 2013
  • Aceito
    17 Jan 2014
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