Resumos
A partir do trabalho com mães de crianças de baixo peso (BP) numa unidade de saúde do Rio de Janeiro, tentamos apreender as representações sociais (RS) das mães das crianças desnutridas e suas práticas de saúde, objetivando promover maior captação e observância terapêutica. Um estudo exploratório baseado na teoria de Moscovici incluiu relatos do grupo de mães e 20 entrevistas em profundidade, divididas em dois grupos: 10 mães cujos filhos obtiveram alta clínica da desnutrição infantil (DI) e 10 com filhos em atendimento médico. Fizemos uma análise de conteúdo categorial temática. As RS da DI estão ligadas à idéia da morte, à terminalidade da vida dos filhos. Elas preferem a terminologia Baixo Peso, que seria um atraso do desenvolvimento, recuperável com cuidado materno e acompanhamento médico. O trabalho indica quanto o reconhecimento do saber consensual, popular, serve ao bom relacionamento com os serviços de saúde, à observância terapêutica e captação.
Transtornos da nutrição infantil; Cooperação do paciente; Saúde da criança
En el trabajo con madres de niños con bajo peso (BP) en una unidad de salud de Rio de Janeiro, tratamos de aprehender representaciones sociales (RS) y prácticas de salud de dichas madres, objetivando aumentar la captación y la observación terapéutica. Un estudio exploratorio basado en la teoría de Moscovici que ha comprendido relatos del grupo de madres y de 20 entrevistas en profundidad, divididas en: 10 madres cuyos hijos habían obtenido alta clínico de la desnutrición infantil (DI) y 10 con hijos en atención médica. Hicimos un análisis de contenido temático. Las RS de la DI se vinculan a la idea de muerte, de terminalidad de la vida de los hijos. Ellas prefieren el término Bajo Peso, que sería un retardo del desarrollo, recuperable con cuidados maternos y atención médica. El trabajo indica cuánto el reconocimiento del saber consensual, popular, sirve al buen relacionamiento con los servicios de salud, a la observación terapéutica y a la captación.
Trastornos de la nutrición del niño; Cooperación del paciente; Salud del niño
Working with mothers of low weight (LW) children in a Public Health Unit in Rio de Janeiro, we tried to understand their social representations (SR) and health practices in order to influence the search for treatment and therapeutical observance. An explorative study based on the theory of Moscovici, included accounts from the group of mothers and 20 in-depth interviews, divided in two groups: 10 mothers whose children received clinical release and 10 mothers with children in medical treatment. We made a thematic content analysis. The study disclosed that SR of infantile malnutrition is associated to the idea of death, the end of life of their children. These mothers prefer to speak of LW, considered as transitory and recoverable by maternal care and medical treatment. The results of this work indicate how much the recognition of consensual popular knowledge, assists the good relationship with health services and therapeutical observance.
Child nutrition disorders; Patient compliance; Child health (public health)
ARTIGO ORIGINAL
A desnutrição infantil representada por mães de crianças com baixo peso
La desnutrición infantil representada por madres de niños de bajo peso
Infantile malnutrition represented by mothers of low weight children
Vera HeinI; Angela ArrudaII
IMestre em Saúde Coletiva, Psicóloga dos Serviços de Saúde do Município do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, Brasil (In memoriam)
IIDoutora em Psicologia, Professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro(UFRJ), Rio de Janeiro, Brasil
Endereço da autora Endereço do autora: Angela Arruda Rua Francisco Sá, 38, ap. 806 22080-010, Rio de Janeiro, RJ E-mail: arrudaa@centroin.com.br
RESUMO
A partir do trabalho com mães de crianças de baixo peso (BP) numa unidade de saúde do Rio de Janeiro, tentamos apreender as representações sociais (RS) das mães das crianças desnutridas e suas práticas de saúde, objetivando promover maior captação e observância terapêutica. Um estudo exploratório baseado na teoria de Moscovici incluiu relatos do grupo de mães e 20 entrevistas em profundidade, divididas em dois grupos: 10 mães cujos filhos obtiveram alta clínica da desnutrição infantil (DI) e 10 com filhos em atendimento médico. Fizemos uma análise de conteúdo categorial temática. As RS da DI estão ligadas à idéia da morte, à terminalidade da vida dos filhos. Elas preferem a terminologia Baixo Peso, que seria um atraso do desenvolvimento, recuperável com cuidado materno e acompanhamento médico. O trabalho indica quanto o reconhecimento do saber consensual, popular, serve ao bom relacionamento com os serviços de saúde, à observância terapêutica e captação.
Descritores: Transtornos da nutrição infantil. Cooperação do paciente. Saúde da criança.
RESUMEN
En el trabajo con madres de niños con bajo peso (BP) en una unidad de salud de Rio de Janeiro, tratamos de aprehender representaciones sociales (RS) y prácticas de salud de dichas madres, objetivando aumentar la captación y la observación terapéutica. Un estudio exploratorio basado en la teoría de Moscovici que ha comprendido relatos del grupo de madres y de 20 entrevistas en profundidad, divididas en: 10 madres cuyos hijos habían obtenido alta clínico de la desnutrición infantil (DI) y 10 con hijos en atención médica. Hicimos un análisis de contenido temático. Las RS de la DI se vinculan a la idea de muerte, de terminalidad de la vida de los hijos. Ellas prefieren el término Bajo Peso, que sería un retardo del desarrollo, recuperable con cuidados maternos y atención médica. El trabajo indica cuánto el reconocimiento del saber consensual, popular, sirve al buen relacionamiento con los servicios de salud, a la observación terapéutica y a la captación.
Descriptores: Trastornos de la nutrición del niño. Cooperación del paciente. Salud del niño.
ABSTRACT
Working with mothers of low weight (LW) children in a Public Health Unit in Rio de Janeiro, we tried to understand their social representations (SR) and health practices in order to influence the search for treatment and therapeutical observance. An explorative study based on the theory of Moscovici, included accounts from the group of mothers and 20 in-depth interviews, divided in two groups: 10 mothers whose children received clinical release and 10 mothers with children in medical treatment. We made a thematic content analysis. The study disclosed that SR of infantile malnutrition is associated to the idea of death, the end of life of their children. These mothers prefer to speak of LW, considered as transitory and recoverable by maternal care and medical treatment. The results of this work indicate how much the recognition of consensual popular knowledge, assists the good relationship with health services and therapeutical observance.
Descriptors: Child nutrition disorders. Patient compliance. Child health (public health).
INTRODUÇÃO
Considerada um fator de risco associado à morbidade infantil, a desnutrição infantil (DI), presente em áreas carentes de todo o mundo, representa ainda hoje um sério problema em saúde pública, responsável por 6,6 milhões das 12,2 milhões de mortes entre crianças menores de cinco anos: 54% da mortalidade infantil nos países em desenvolvimento(1). Apesar de o governo brasileiro vir se declarando favoravelmente à infância, as taxas de morbimortalidade infantil continuam altas, e faixas da população necessitada acabam não atingidas pelo atendimento dos serviços de saúde.
O tema da DI apresenta, assim, relevância social indiscutível, que nos desafiava em nossa prática profissional. A criança com DI, devido a pouca resistência imunológica, está mais sujeita às intercorrências clínicas (sobretudo doenças infecciosas pulmonares, intestinais, digestivas). Segundo a antropometria, método mais utilizado para avaliar o estado nutricional, abaixo do percentil (P) 3, a criança apresenta um quadro de desnutrição moderada ou grave, e entre os P 3 e 10, desnutrição leve(2).
A criança depende da intervenção da mãe para ter acesso ao tratamento. Isso demonstra a importância do papel dessas mães na observância ao tratamento, bem como na percepção de uma enfermidade ou desconforto em seu filho.
A partir do trabalho de psicóloga com mães de crianças com baixo peso realizado numa unidade de saúde da zona norte do Rio de Janeiro, procuramos entender como as práticas sociais e de saúde podem interferir na captação e observância terapêutica.
Primeiros passos na compreensão do problema
Tornou-se prioritária uma adequação da estratégia de intervenção para a captação e a observância terapêutica pelas mães de crianças desnutridas. A baixa captação levou a percebermos a importância de conhecer melhor a clientela, ouvi-la, compreender as suas práticas de cuidado com a saúde e a doença, bem como o que compreendia sobre a DI.
O setor de Saúde Mental propôs uma discussão semanal com o grupo de profissionais sobre o que entendiam como DI, sua relevância e estratégias mais adequadas para a captação e observância. Vimos a necessidade de haver uma maior aproximação entre o saber dos profissionais, científico, e o da clientela, o saber popular.
A criação de um ambiente mais propício ao estabelecimento de uma real aliança terapêutica e à implicação profissional, bem como a um maior comprometimento das mães, seria facilitado pela criação de grupos de efetiva interação. A participação das mães possibilitaria a observância terapêutica (adesão) de seus filhos ao tratamento.
Revelando o olhar dos profissionais
Estas discussões deixaram surgir as hipóteses dos profissionais quanto à dificuldade da adesão: falta de comprometimento das mães; fatores sociais como analfabetismo e pobreza; baixa auto-estima e negligência delas. A compreensão da DI parecia partir de pressupostos: a DI grave seria muitas vezes, oriunda de doenças ou intercorrências clínicas; a DI moderada e leve sem causa clínica, de fatores sociais; a DI leve, sem intercorrências clínicas, podia ser conseqüência do próprio "biótipo" da criança.
As reuniões possibilitaram estratégias para facilitar o acesso das mães à Unidade de Saúde e a relação médico-paciente, no intuito de promover uma maior captação e observância terapêutica (OT) e algumas mudanças de rotina na Unidade.
O trabalho com as mães
O grupo de mães formou-se no primeiro semestre de 1998. Por um brevíssimo período, chamou-se Grupo de Mães de Crianças Desnutridas (GMCD). Indagado sobre a denominação ideal para o grupo, este respondeu: "grupo de crianças de baixo peso". Desnutrido, para elas, significava que não tinha mãe ou era filho de mãe negligente.
O nome do grupo mudou para Grupo de Atenção às Mães de Crianças com Baixo Peso (GAMCBP). As reuniões não apenas serviam para discutir questões relacionadas à doença, mas também à promoção da saúde: cuidados, lazer, aspectos culturais (religiosidade, interesses em geral), e sobretudo à vida cotidiana. A interação das mães promoveu ações de saúde como a detecção e a captação das crianças em risco nutricional, uma importante conquista. À medida que se apropriavam do conhecimento que emergia no/do grupo, o número de mães foi se ampliando e a intercorrência clínica diminuindo.
REFERENCIAL TEÓRICO E ESCOLHA METODOLÓGICA
Este estudo pretendeu encontrar uma estratégia que ajudasse a compreender o universo da DI, da criança, das mães e de sua comunidade. O referencial que utilizamos foi o da teoria das Representações Sociais(3).
A representação social (RS) é considerada como uma forma de conhecimento socialmente elaborado e partilhado com um objetivo prático, e que contribui para a construção de uma realidade comum a um conjunto social(4). Esta forma de conhecimento, o senso comum, é diferenciada do conhecimento científico. Sobre ela procuramos nos aprofundar em nosso objeto de pesquisa: as RS da DI para as mães de crianças de baixo peso (BP). As RS são reconhecidas "enquanto sistemas de interpretação que regem a nossa relação com o mundo e com os outros"(4) e assim, orientam e organizam as condutas e as comunicações sociais. As mulheres que foram alvo desta pesquisa possuem seus sistemas de interpretação do mundo, e também uma forma peculiar de traduzir o pensamento médico que lhes é transmitido. A compreensão desses fenômenos pode nos levar a uma melhor forma de interação por exemplo, na OT e em ações preventivas. Assim, acreditamos que estes estudos podem ser valiosos não só para o controle e prevenção de doenças, mas também para o entendimento dos complexos processos que envolvem a prevenção e a observância terapêutica - que contemplem dimensões coletivas e sociais, como no caso da DI.
Optamos por realizar um estudo descritivo, baseado em pesquisa qualitativa. Contamos com a participação das mães nos grupos de discussão, cuja intensa comunicação funcionou como meio de interação entre elas, e entre elas e a pesquisadora. Os procedimentos foram: observação participante registrada em diário de campo; registro dos encontros quinzenais com as mães; registro das reuniões mensais com os profissionais envolvidos; entrevistas profundas com 20 mães; questionários sociodemográficos; análise de conteúdo categorial temática(5) e de co-ocorrências.
Participaram da pesquisa mães de crianças com 0 a 5 anos e desnutrição leve, moderada ou grave* * Percentil igual a 3 (P3) ou entre P3 e P10. , atendidas pelo Sistema de Gestão Federal da Vigilância Alimentar e Nutricional (SISVAN)(6). Sua participação dependia da freqüência no GAMCBP e do consentimento formal para a publicação dos resultados, garantido o anonimato.
Foram considerados dois grupos: um composto por Mães de Crianças com Alta Clínica (MCAC), com mais vivência e familiaridade com o problema, as formas de lidar com ele e com os serviços de saúde, portanto, mais tempo de elaborar o objeto pesquisado (estavam em contato com ele há mais de três anos); o outro, por Mães de Criança em Acompanhamento (MCA), sem alta clínica, em atendimento há menos de um ano.
Um termo de consentimento livre e esclarecido, como preconiza a Resolução nº 196/96 do Conselho Nacional de Saúde no que se refere à pesquisa com seres humanos(7), foi assinado pelas mães, uma vez que o projeto de pesquisa foi submetido e recebeu parecer favorável do Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Cabe ressaltar que a pesquisa foi discutida com o grupo de mães, e algumas das escolhas metodológicas foram feitas em acordo com elas, como a entrevista individual.
RESULTADOS
As mães e as crianças
As mães
O estudo abrangeu 20 mães de 18 a 43 anos. A maioria (13) tinha o primeiro grau incompleto, as demais se distribuíam entre o primeiro e segundo grau incompleto. A maioria tinha dois filhos (9), e mais de três (8). O menor número de filhos na população mais jovem pode se dever à idade menor, ou ao desejo relatado de ter apenas dois.
Onze mães confirmam ter outros filhos com BP. Das mães de criança com alta, a maioria (7) confirmou o BP de outros filhos.
A grande maioria afirma não trabalhar fora: 16 ocupam-se da casa. Só duas têm maridos com trabalho formal. O trabalho fora de casa precisava ocupar pouco tempo, ter horário flexível para não prejudicar a dedicação às crianças nem o acesso a benefícios. Ter filhos de BP é uma ocupação em tempo integral para estas mulheres, o que parece contrariar a crença de que a DI/BP está em associação direta com o descuido materno.
As crianças
Treze mães afirmam que seus bebês já teriam nascido com pouco peso. Apenas seis dizem que eles tinham peso normal, o que, assim como ser grande e forte, é vivenciado como parte da capacidade de ser boa mãe, e asseguraria o crescimento saudável.
O baixo peso, a desnutrição
Percepção do baixo peso na criança
A maioria das mães percebeu o BP bastante cedo: no nascimento da criança, e em torno dos seis meses. No grupo de MCA, o BP foi percebido cedo por todas antes de um ano de idade. Estas mulheres foram captadas pelas próprias freqüentadoras do grupo, fruto de uma difusão de informação confirmada pelas próprias mães. Após a participação no GAMCBP elas passavam a insistir que seu filho "tinha algum problema" e a fazer observações mais objetivas sobre o que percebiam no estado de saúde da criança, contribuindo para uma melhor investigação pelos profissionais.
Sobre como haviam percebido o BP em seus filhos, elas afirmaram haver observado após uma doença, ou comparado com as outras crianças. Assim, elas constituíram quatro indicadores do problema: falta de apetite, perda de peso, doença e comparação com outras crianças.
Características da criança com baixo peso
As características da criança de BP identificadas foram: a magreza; o não desenvolvimento da criança e a vulnerabilidade. O atraso no desenvolvimento e a magreza vieram primeiro. As diferenças entre os grupos serão vistas mais adiante.
Baixo peso, o problema: causas, conseqüências e formas de lidar
A principal causa do BP foi atribuída às preferências alimentares da criança, incluindo aí os hábitos adquiridos. A preferência alimentar muitas vezes foi associada ao impedimento de satisfazer a criança. A escassez de alimentos foi a segunda maior causa do BP, assim como a constituição física da criança.
Duas formas de lidar com a criança de BP foram apontadas: o cuidado materno e o acompanhamento médico, que muitas vezes significa levar as crianças regularmente à consulta médica, mas não a observância terapêutica.
Observamos que a maneira de lidar com a criança de BP sofre modificações à medida que a mãe vai se dando conta do problema. Ela vai comparando e reformulando seus conceitos a partir de informações provindas da comunidade. Ao ser orientada a procurar ajuda médica, novas informações são acrescidas ao seu elenco.
O perigo: a desnutrição
Como no BP, à DI são atribuídos três grandes tipos de causas: as de ordem estrutural, socioeconômicas (falta de alimentação, de tratamento médico, de recursos); as da constituição da criança, e as de origem materna. As duas primeiras são mais importantes.
A falta de cuidado materno apresentou menos importância (7,1%) no grupo de MCAC, possivelmente pela maior vivência destas mães com a intercorrência clínica (IC) dos filhos, cuidados maternos e tratamento médico, em contraposição ao outro grupo, mais recente, que por isto, atribuiria à falta de cuidado a causa da desnutrição (43,7%).
A falta de tratamento médico apareceu no grupo de MCAC com freqüência quatro vezes maior do que no outro grupo (28,5 contra 6,3%). As MCAC estariam mais conscientes da importância do tratamento médico, talvez devido ao tempo de tratamento dos filhos e de acesso aos serviços de saúde. Outra causa da DI seria a predisposição constitucional da criança, isentando a mãe e a criança da responsabilidade (28,5 no MCAC e 18,7% em MAC).
Características da criança desnutrida
A característica mais impressionante da criança com DI refere-se às imagens veiculadas pela mídia: crianças desnutridas na África ou na região Nordeste (NE), "magrinho" e imagens da TV, NE, África, osso e pele. As MCA se referem mais a "magrinho". Em relação à outra resposta, os dois grupos apresentam a mesma distribuição.
As respostas "apatia", "raquitismo", "anemia" e "doença" perfazem uma mesma categoria e podem indicar uma diminuição da mobilidade da criança, do movimento, e possível interrupção do desenvolvimento. Também encontramos nas características a pior conseqüência da DI: pode morrer.
A criança desnutrida corre risco de vida: o que fazer
Diante desta gravidade da DI as mães enfatizam a necessidade do cuidado materno, tratamento médico e alimentação. Muitas (12) falaram do temor pela vida do filho e outras (8) negaram esse temor por afirmarem que seus filhos eram BP, não estabelecendo a possibilidade de agravamento para uma DI.
Comparando desnutrição infantil e baixo peso nos dois grupos
A grande causa comum da DI foi a constituição da criança, talvez pelo fato de que a equipe médica reforça este fator como responsável pelo estado da criança: para as MCAC, 28,5% e para as MCA, 18,7%.
Outras causas da DI e do BP aparecem com o mesmo perfil nos dois grupos: os problemas de saúde mais graves aparecem na DI. As preferências alimentares da criança só aparecem como causas do BP. Na DI as causas exclusivas são falta de tratamento e de recursos. A falta de cuidado materno é causa predominante da DI para o grupo de MCA (43,7%), mas não aparece entre as causas do BP para o mesmo grupo. Da mesma maneira, a falta de tratamento é uma das causas da DI (28,5% e 6,3%), mas não do BP para as mães de crianças de ambos os grupos (zero). Isto pode ser atribuído ao fato de que elas proporcionaram este cuidado a seus filhos identificados como de BP.
A constituição da criança é a causa mais marcante da DI para o grupo de MCAC (28,5%) e do BP para as MCA (31,3%). A falta de recursos só é mencionada para a DI, enquanto a falta de alimento aparece na DI e se transformaria em escassez de alimento com relação ao BP. Algumas causas só aparecem para o BP: problemas de saúde; hábitos adquiridos.
A DI aparece como fruto de um conjunto de carências: falta de recursos, falta de alimento, provenientes da situação econômica, falta de tratamento, falta de cuidado materno, ou mesmo a natureza da criança. A questão da alteridade aqui é mais uma vez percebida. Estamos falando do outro, não desta mãe que cuida do seu filho de BP: ela não quer ser igual àquelas mães ausentes, desleixadas. São as outras que o são.
Comparando características da criança DI e do BP nos dois grupos
A característica predominante da criança com DI é a imagem veiculada pela mídia, como já se viu (45,4% e 52,4%). Para o BP, é a magreza que aparece nos dois grupos (32% das MCAC e 33,3% das MCA), sugerindo um estágio menos grave que aquele que as imagens televisivas apresentam.
O atraso do desenvolvimento das crianças é característica do BP (56% MCAC e 62% MCA). Já ao falar da DI, mencionam apatia, raquitismo e doença, sugerindo prostração da criança, não mais um atraso, mas sim a interrupção do processo de desenvolvimento (MCAC: 27,3%, e 28,6% MCA).
A terceira característica das crianças com DI é a de que ela pode morrer (MCAC: 18,2%, e 14,3% MCA). A DI, portanto salta aos olhos como uma figura objetivada na magreza excessiva, a diminuição do ritmo e da energia, indicadores de um funcionamento contra a natureza: crianças que comem e não engordam, são pele e osso, à beira da morte.
Formas de lidar com a criança de baixo peso e com a criança desnutrida
Os dois grupos coincidem quanto ao que deve ser feito. A criança com BP necessitaria antes de tudo de cuidados maternos (56,3% MCAC e 50% em MCA) (Tabela 1); a DI demanda cuidados maternos e tratamento médico (MCAC 34,5% e MCA 33,3%), alimentos e recursos (31% e 33,3%). O acompanhamento médico (AM) no BP é menos importante para as MCAC do que para as MCA. Talvez isto indique que para uma parte daquelas enfermidades infantis podem ser tratadas em casa.
Esses dados podem sugerir que as mães da segunda geração foram beneficiadas não só pela veiculação da informação, mas também por uma abordagem diferenciada no trabalho de grupo. O estilo do trabalho em grupo que se formou mostrou-se, segundo relatos, mais adequado ao diálogo com elas.
CONCLUINDO A ANÁLISE
Para encerrar a análise dos dados, procedemos à co-ocorrência entre algumas respostas nos dois grupos de mães: as causas, as características e as formas de lidar ou soluções, da DI e do BP. Elas forneceram um esboço de sistematização do pensamento daquelas mulheres. O quadro A mostra a síntese dessas co-ocorrências.
O baixo peso
As três causas que aparecem nas co-ocorrências do BP com outras respostas (escassez de alimentos, falhas maternas, preferências alimentares) conduzem a uma caracterização da criança com BP: magreza, vulnerabilidade e atraso no desenvolvimento.
As causas principais do BP (escassez de alimento e falha materna) se associam à possibilidade de recuperação: ambas são contingenciais, portanto, remediáveis (Quadro 1). Parece-nos haver por parte das mães a crença na possibilidade de um controle melhor sobre o estado de saúde de seus filhos quando falam de BP. Nesta visão de reversibilidade, o BP seria vivenciado pelas mães como um desvio de percurso: ele atrasa o desenvolvimento, mas isso é recuperável. Tudo depende dos seus cuidados e do médico.
A desnutrição infantil
As quatro causas que aparecem em co-ocorrência da DI (Quadro 2) com outras respostas (falhas estruturais, constituição, falha materna e falta de alimento) conduzem a uma caracterização comum da criança desnutrida: a sua imagem, que se torna, assim, a objetivação da desnutrição. São as figuras veiculadas pela mídia, verdadeiros signos da morte. Para esta condição quase terminal, as soluções têm que ser múltiplas e consistentes o tratamento médico, o cuidado materno e providenciar alimentos. Essas figuras do horror também se ancoram em outra, semelhante, e igualmente passível de morte: a AIDS. Algumas mães associam a DI à magreza da AIDS, demonstrando a força da sua presença no imaginário social contemporâneo como território de ancoragem para outras representações. Sua imagem reúne e sintetiza o que significa para as mães a criança desnutrida, revelando a ancoragem e objetivação da DI.
Ao mesmo tempo, as mães distanciam de si essa imagem: ela está na África, no NE. Trata-se, portanto, de uma construção baseada na produção da alteridade(8). O desnutrido é o outro, a mãe que falhou, também. Essa construção dificulta a observância terapêutica, uma vez que o diagnóstico do médico se torna um veredito, culpabilizando a mãe, indicando que deveria ser reconsiderada a forma de lidar com a DI no contato com as mães.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As dúvidas e as crenças que existiam no início de nosso percurso acadêmico foram se transformando. À proporção que fomos nos apropriando do referencial teórico, tornou-se possível ver naquelas mulheres um saber valioso. Através da conversação no grupo deu-se maior aproximação entre as mães e a responsável pelo grupo, uma melhor comunicação, o que incidiu sobre a observância e a captação: elas mesmas passaram a fazer o trabalho de difusão do serviço e do atendimento às crianças de BP, na comunidade.
As RS da DI para essas mães estão ligadas à imagem da morte, ao temido, à terminalidade da vida de seus filhos. Essas RS são a contramão da normalidade do desenvolvimento da criança. Como no senso comum a criança encontra-se vinculada à idéia de nascimento, vida, crescimento e desenvolvimento, é muito ameaçador para elas considerarem a possibilidade de que seus filhos sofram de DI.
A representação do BP aparece como um estágio de atraso do desenvolvimento que pode ser remediado pelo cuidado materno e acompanhamento médico. A mãe encontra aí seu lugar e sua responsabilidade. Já a DI é a figura extrema e terminal, na qual as mulheres não querem se ver refletidas. Por isso, para elas, seus filhos são sempre de BP. Essas representações indicam, para os serviços de saúde, que é preciso cuidado no lidar com a forma como as mães dão significado aos agravos, ao BP e à DI. Da mesma maneira, o conjunto do trabalho indica o quanto o reconhecimento do saber consensual, popular, serve ao bom relacionamento com os serviços e à observância e captação.
Recebido em: 06/04/2009
Aprovado em: 21/12/2009
-
1The United Nations Children's Fund. Expresso 227: notícias dos direitos das crianças e dos adolescentes [Internet]. Brasilia (DF); 2005 [citado 2003 jul 22]. Disponível em: http://www.unicef.org/brazil/expresso/expresso227_n9.htm
- 2 Beaton GH, Kelly A, Kevany J, Martorell R, Mason J. Appropriate uses of anthropometric indices in children: a report based on an ACC/SCN Workshop. Geneva: ACC/SCN; 1990. (Nutrition policy discussion paper; 7)
- 3 Moscovici S. A representaçăo social da psicanálise. Rio de Janeiro: Zahar; 1978.
- 4 Jodelet D. As representaçőes sociais: um domínio em expansăo. In: Jodelet D, organizadora. As representaçőes sociais. Rio de Janeiro: EdUERJ; 2001. p. 17-44.
- 5 Bardin L. Análise de conteúdo. Lisboa: Ediçőes 70; 2000.
-
6Sistema de Gestão Federal da Vigilância Alimentar e Nutricional. O SISVAN como estratégia de qualificação da atenção à saúde: a experiência da Cidade do Rio de Janeiro [Internet]. Brasília (DF): Instituto de Nutrição Annes Dias; [200-] [citado 2003 set 25]. Disponível em: http://www.sbmfc.org.br/site/not/download/SISVAN%20(RJ).pps
-
7Ministério da Saúde (BR), Conselho Nacional de Saúde, Comitê Nacional de Ética em Pesquisa em Seres Humanos. Resolução 196, de 10 de outubro de 1996: diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisa envolvendo seres humanos. Brasília (DF); 1996.
- 8 Jodelet D. A alteridade como produto e processo psicossocial. In: Arruda A, organizadora. Representando a alteridade. Petrópolis: Vozes; 1998. p. 47-67.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
14 Out 2010 -
Data do Fascículo
Dez 2009
Histórico
-
Recebido
06 Abr 2009 -
Aceito
21 Dez 2009