Resumo
Entre 1505 e 1508, Duarte Pacheco Pereira, explorador e militar português, escreveu o Esmeraldo de situ orbis, um livro de “cosmografia e marinharia”, um dos mais importantes roteiros de viagem de seu tempo, o qual, além de desenhar as fronteiras e rotas comerciais conhecidas na África e no oriente, empenhou-se por traçar, ainda, o esboço de uma crônica sobre as navegações. Este artigo analisa o livro de Pereira, propondo que o autor apresenta uma legitimação política das terras conquistadas, ao mesmo tempo em que rompe com a geografia sacra, tipicamente medieval, e com a geografia mercantilista, típica dos portulanos mediterrâneos, para compor o primeiro roteiro de viagem moderno, expondo o desenho do novo mundo conhecido pelas navegações que vinham mapeando novas terras na África e na Ásia desde o século anterior.
Palavras-chave
Expansão portuguesa; renascimento; roteiro de viagem; cosmografia;
Esmeraldo de situ orbis
Abstract
Between 1505 and 1508, Duarte Pacheco Pereira, a Portuguese soldier and explorer, wrote Esmeraldo de situ orbis, a book on “cosmography and seamanship,” one of the most important travel guides of its time. In addition to drawing up the known trade routes and borders in Africa and the East, Pereira also set out to chronicle the journeys undertaken. This article reviews Pereira’s book, proposing that the author offers political legitimation to the lands conquered while breaking with both the mediaeval religious maps and the traders’ maps of the Mediterranean Portolans to develop the first modern travel guides. He exposed the new world presented by the navigations that had been mapping new lands in Africa and Asia since the previous century.
Keywords
Portuguese expansion; Renaissance; travel routes; cosmography;
Esmeraldo de situ orbis
Um livro de cosmografia e marinharia
Na primeira década do século XVI, quando a expansão marítima portuguesa já alcançava terras remotas na Índia e nos mares do Índico, a necessidade de mapear e registrar os novos mundos conhecidos era emergencial. Ao longo daquele século, a vulgarização dos chamados “livros de marinharia” fez com que informações basilares da arte de navegar circulassem por mãos de pilotos e marinheiros pouco hábeis na astronomia e na leitura. Misturando gêneros diversos, como guias náuticos, roteiros de viagem e diários de navegação, os livros de marinharia, pobres em estilo literário, eram todos anônimos e vinham sendo amplamente disseminados entre pilotos e capitães de frotas3 3 As edições modernas, entretanto, estampam nomes de autores (O livro de marinharia de André Pires, por exemplo), apenas para sugerir que aquele nome aparece em algum momento do livro, o que não quer dizer que ele tenha redigido o texto, mas é certo que tenha interferido de alguma maneira na obra. Ver, por exemplo, Albuquerque (1977, p. 6). . Longe de se preocupar com erudição e refinamento linguístico, os pilotos anônimos, nos livros de marinharia, compreenderam o essencial: o registro dos novos mundos vinha sendo cuidadosamente anotado.
Além disso, os novos mundos vinham se ampliando, pois desde o começo do século XV, Portugal traçava lentamente a costa africana, em busca de terras a oriente, aumentando aos poucos o anseio por um império, o que não se concretizou no sentido mais amplo do termo. Importantes historiadores referem-se a algo como seaborne empire (BOXER, 1977BOXER, Charles Ralph. The Portuguese seaborne empire, 1415-1825. Londres: Hutchinson, 1977.), ou world on the move (RUSSELL-WOOD, 1998RUSSELL-WOOD, Anthony John. The Portuguese Empire: 1415-1808: A World on the Move. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1998.), para caracterizar o status político e econômico de Portugal naquele cenário histórico. Diffie e Winius (1977, p. 195-220)DIFFIE, Bailey; WINIUS, George D. Foundations of the Portuguese Empire: 1415-1580. Minneapolis: University of Minnesota Press, 1977 (“Europe and the World in the Age of Expansion”). admitem que, por volta de 1500, Portugal não tinha exatamente um império, mas as pré-condições para um império asiático: até 1510, no governo de Afonso de Albuquerque na Índia, os portugueses passarão de visitantes a conquistadores do Índico. Studnicki-Gizbert (2007, p. 10-19)STUDNICKI-GIZBERT, Daviken. A Nation Upon the Ocean Sea: Portugal’s Atlantic Dispora and the Crisis of the Spanish Empire, 1492-1640. Oxford, Oxford UP, 2007. prefere o termo nation e não empire, para definir a situação portuguesa nos mares do Atlântico e do Índico: mais do que constituir um império propriamente, com dominação política efetiva, a nação portuguesa, para além dos territórios do país, era uma nação sem estado, uma coletividade dispersada pelos mares, uma debandada de imigrantes, como numa diáspora, em que todos se reconheciam apenas pelo comércio e pelas interações sociais e religiosas4 4 Sobre o problema das migrações, Malyn Newitt (2010, p. 2-3) aponta pelo menos três tipos de diásporas como consequência da expansão portuguesa nesse período: a diáspora portuguesa propriamente (camponeses que se arriscaram na vida marítima); a diáspora judaica, à época em que judeus foram expulsos da Península Ibérica; e a diáspora de africanos, trazidos de suas terras como escravizados. .
No alvorecer do século XVI, Portugal buscava ambiciosamente dominar o comércio do Índico e enfraquecer os muçulmanos, já havia edificado o Estado da Índia em 1505, com a nomeação do vice-rei Francisco de Almeida, já havia descoberto territórios no Ocidente, já tinha pronto o mapa da circum-navegação da África e visitado inúmeros países do Oriente. Em 1511, conquistava Malaca e, em 1513, chegaria à China, em missões diplomáticas malogradas. Em outros termos: já havia reconfigurado o mapa do mundo.
Quando, em 1505, Duarte Pacheco Pereira deu início a um dos mais valiosos roteiros de viagem da literatura portuguesa, o Esmeraldo de situ orbis, a precariedade de fontes modernas era patente5 5 Albuquerque (1977, p. 5) propõe definições para os três gêneros que compuseram a literatura de navegação dos séculos XVI e XVII: os guias náuticos, que dizem exclusivamente respeito a regras de astronomia náutica e a pilotagem; os roteiros, com descrições de caráter roteirístico, incluindo áreas terrestres, localizações de portos, conhecenças; e os livros de marinharia, que misturam regras de pilotagem e marinharia náutica com descrições roteirísticas e eventualmente com observações dos pilotos feitas durante uma dada viagem, com registro de acontecimentos. . Conforme evidências deixadas em seu texto, ele manipulou o Guia náutico de Évora e o Guia náutico de Munique, duas edições anônimas que, publicadas no fim do século XV ou início do século XVI (portanto, depois do Almanach Perpetuum Coelestium Motum, do astrólogo judeu Abraão Zacuto, escrito em 1478), apresentavam o regimento da Estrela do Norte e o regimento do Sol como soluções para determinar as latitudes no mar, diante das dificuldades da recém-descoberta navegação astronômica (ALBUQUERQUE, 1991, p. 24). Pereira conheceu também as crônicas portuguesas, especialmente as de Gomes Eanes de Zurara, que, embora precariamente, registraram novos espaços alcançados na costa ocidental da África; e deve ter estudado ainda um breve roteiro para a navegação da Galiza à Fortaleza de São Jorge da Mina (“Este liuro he de rotear...” ou, simplesmente, “Livro de Rotear”), documento quatrocentista que circulou nos primeiros anos de 1500, antes de ser incluído no Manuscrito Valentim Fernandes, cuja primeira edição remonta a 1507. Joaquim Barradas de Carvalho propõe um inventário de pelo menos doze documentos relativos à literatura de viagens portuguesas, nenhum deles publicado em seu tempo, mas não é possível rastrear aquilo que Pacheco Pereira efetivamente conheceu (CARVALHO, 1983, p. 3; AMARAL, 1983, p. 394-395AMARAL, Ilídio do. O Esmeraldo de Situ Orbis, de Duarte Pacheco Pereira, segundo Joaquim Barradas de Carvalho. Finisterra: Revista Portuguesa de Geografia, vol. 18, n. 36, 1983, p. 393-401.).
De toda forma, Duarte Pacheco Pereira era o homem certo para a tarefa gigantesca que se lhe oferecia. Navegador, militar, homem da “nobreza de serviço”, nomeado cavaleiro de D. João II, com relações importantes ligadas à máquina administrativa, nascido c.1455, Pereira pertencia à guarda pessoal de D. Manuel I e conviveu na intimidade com figuras de linhagens expressivas da Casa Real, como Afonso de Albuquerque, futuro governador do Estado da Índia (CARVALHO; PINTO, 2012, p. 225CARVALHO, Andreia Martins de; PINTO, Pedro. Da Caça de Mondragon à Guarda do estreito de Gibraltar (1508-1513): os guardiões da memória de Duarte Pacheco Pereira e a Economia da Mercê nos sécs. XVI-XVII. Anais da História de Além-Mar, n. 13, 2012, p. 221-332.). Dada a sua vasta experiência marítima, Pereira compusera, como homem de confiança de D. João II, o comitê das negociações entre Portugal e Castela, que definiriam os critérios do Tratado de Tordesilhas. Conforme opinião consensual hoje entre historiadores, ele também visitou a costa brasileira em 1498, como chefe de uma expedição enviada por D. Manuel, conforme se lê numa citação contida em seu roteiro de viagem (Esmeraldo I, 2, p. 539)6 6 Os números em romanos referem-se ao livro do roteiro de Pereira, e os números sequenciais, ao capítulo e à página referente à mencionada edição. Para a leitura do presente artigo, foi lida e consultada a edição portuguesa de Joaquim Barradas de Carvalho (1991). Sobre a viagem de Pacheco Pereira ao Brasil, ver Granda (2000); Domingues (2012); e Carvalho e Pinto (2012, p. 225). . Para além da experiência marítima, que lhe oferecia o conhecimento técnico e a pesquisa geográfica e astronômica, a carreira militar acenava a Pereira com grandes promessas, uma vez que pouco antes da redação de seu livro, ele participara de uma armada da Carreira da Índia, entre 1503 e 1504, integrando as forças militares de Francisco de Albuquerque, ao lado do rei de Cochim, para derrotar o Samorim de Calicute, que na época esforçava-se por expulsar os portugueses de seu entreposto político. Fora uma vitória importantíssima para a permanência dos portugueses no Oriente e para a consolidação do Estado da Índia, fundado em 1505 como referência administrativa das fortificações e das futuras colônias ultramarinas.
Pereira voltava a Lisboa no final de 1504, depois de uma expressiva campanha militar, e parece ter alcançado alguma notoriedade entre seus pares, a julgar pelos futuros encargos políticos e militares que o rei lhe concederá. Mas o navegador, pelo menos na primeira década do novo século, ainda que tenha se projetado como membro da Casa Real manuelina e obtido a distinção de cavaleiro-fidalgo do Conselho por parte do rei, com uma tença de 1700 reais de moradia mensal (CARVALHO; PINTO, 2012, p. 226CARVALHO, Andreia Martins de; PINTO, Pedro. Da Caça de Mondragon à Guarda do estreito de Gibraltar (1508-1513): os guardiões da memória de Duarte Pacheco Pereira e a Economia da Mercê nos sécs. XVI-XVII. Anais da História de Além-Mar, n. 13, 2012, p. 221-332.), parece ter se decepcionado com a pouca recompensa que recebeu, já que não obteve nenhum cargo político expressivo e nenhuma participação efetiva na máquina administrativa dos territórios ultramarinos conquistados a duras penas na África e no oriente.
Foi por essa época, no entanto, que granjeou tempo e disposição para redigir o Esmeraldo de situ orbis, cujo propósito era compor um roteiro da viagem de Portugal à Índia, mapeando toda a costa africana. Resultado prático de suas experiências marítimas, o livro alardeava o saber astronômico de seu autor, suas técnicas náuticas e, sobretudo, seu profundo conhecimento da geografia e das rotas de comércio das terras conhecidas pelas navegações portuguesas. No entanto, é difícil compreender o que o teria movido àquele empreendimento: o Esmeraldo de situ orbis pode ter nascido como pretensão de seu autor de cultivar a simpatia e os favores do rei. Afora isso, o livro vinha à luz como um roteiro de viagem ambicioso, destinado a substituir os grandes tratados geográficos da antiguidade, disposto a refutar as autoridades de Aristóteles, Ptolomeu, Pompônio Mela, ainda que o tenha feito de forma a respeitar o prestígio de que os clássicos desfrutavam desde a Idade Média. Pereira compreendeu que as auctoritates antigas e medievais tinham projetado um plano geográfico impreciso e pleno de equívocos, especialmente por conta do desconhecimento sobre técnicas náuticas e navegação astronômica, o que os fizera mapear rotas e portos que jamais tinham visitado: “a qual [a arte da marinharia] eles não escreveram, ou pelo não saberem ou por lhes parecer escusado”, dirá ele na parte inicial de seu livro (Esmeraldo, I, 13, p. 566). Mas a despeito das críticas que move contra os clássicos, o autor acaba por incorporar equívocos geográficos que se arrastavam desde a antiguidade, como postular, conforme Ptolomeu, Homero, Jacob Perez de Valencia, Plínio e o livro do Gênesis, que “tôdalas áuguas são postas no centro da terra, e isso é concrusão que se não deve negar”, numa curiosa mistura de métodos modernos e certificação da autoridade bíblica e clássica. Em outros termos, Pereira acreditou que o mundo era ocupado majoritariamente por terra, com água no centro, como se os oceanos fossem imensas lagoas, e por ironia, evocou a “experiência, madre de todas as coisas” como prova de suas convicções. Num tempo de mapas-múndi notáveis, desenhados na Itália e em Portugal, e de conquistas já consagradas, como o alcance da Índia, é admirável que o navegador português tenha insistido nessa crença.
Pereira vinha, desde muitos anos, reunindo material erudito sobre a geografia clássica e a astronomia antiga. A julgar pelas citações espalhadas ao longo de seu livro, especialmente na primeira parte, em que trata de cosmografia, parece ter mantido certa intimidade com a Bíblia; com a História natural, de Plínio, o Velho; com o De situ orbis, de Pompônio Mela; com a Geografia de Estrabão; e com o Tratado da Esfera, de Johannes de Sacrobosco, a que ele teve acesso por meio de uma tradução portuguesa contida no Regimento de Munique, visto que todos eles são mencionados no corpo de seu texto. Outras referências vieram-lhe por caminhos indiretos: alguma coisa de Homero, Ptolomeu, Vicente de Beauvais e Jacob Perez de Valencia (CARVALHO, 1967, p. 49-86CARVALHO, Joaquim Barradas de. As fontes de Duarte Pacheco Pereira no “Esmeraldo de Situ Orbis”. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1967.).
Algumas dessas fontes eram quase inacessíveis para aquele país ainda medieval, que muito lentamente acompanhava as influências da pesquisa e da erudição humanista. Chegara às mãos de Pereira uma preciosa versão espanhola do De situ orbis de Mela, feita por um certo Juan Faras, identificado como bacharel em artes e medicina, físico e cirurgião da corte manuelina. Talvez tenha sido esta uma das leituras mais disciplinadas de Pereira: Barradas de Carvalho nos mostra que o códice original de Faras, versão espanhola de Mela, pertencera ao próprio Pereira, que anotou 170 observações pessoais à margem do manuscrito, algumas delas propondo correções e emendas ao texto (CARVALHO, 1974CARVALHO, Joaquim Barradas de. La traduction espagnole du “De situ orbis” de Pomponius Mela par maître Joan Fars et les notes marginales de Duarte Pacheco Pereira. Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar, 1974.). Era uma empreitada nobre e dedicada. Do De situ orbis de Mela, o navegador português extrairia inclusive o título de seu livro, com a pretensão de sugerir ao leitor que a cosmografia moderna almejava uma substancial revisão dos conceitos clássicos7 7 Sobre o título do livro de Pacheco, ver Carvalho (1983, p. 118-123). . Mas Pereira foi um homem de ação e de ciência, não um erudito. Frágil humanista, conhecedor inábil do latim, parece ostentar em seu livro certos nomes a que nunca tivera acesso, senão por leitura de terceiros.
Visivelmente tomado de euforia e entusiasmado com o projeto do livro que ele dedicava a Dom Manuel, Pereira dá início a seu empreendimento com uma linguagem farta de elogios à expansão política e a seus edificadores. No prólogo, expõe o plano da obra: um tratado de “cosmografia e marinharia” (Esmeraldo, Prólogo, p. 534), dividido em cinco livros, cada um deles dedicado à memória dos príncipes benfeitores do Estado: o Infante D. Henrique, D. Afonso V, D. João II e, por fim, D. Manuel I, a cujas obras seriam dedicados os últimos dois livros. Para além das informações náuticas e geográficas, portanto, havia ali uma tímida intenção de compor os rudimentos de uma crônica das navegações. Mas Pereira era tampouco um cronista, e o plano histórico de sua obra fica apenas esboçado de forma grosseira e incompleta, mais como panegírico do que efetivamente como crônica. Havia, no entanto, outras presunções mais arrojadas no projeto de seu livro: por exemplo, o autor prometia ainda, antecipando futuros modelos da literatura renascentista de viagens, a exposição “científica” e sistemática dos povos, dos costumes e do comércio que era possível mapear ao longo das terras de Guiné e da Índia, inteiramente desconhecidas do mundo culto, o que, de resto, parecia fechar o quadro das intenções de um colaborador da corte manuelina, que dava a conhecer um trabalho erudito, mas de utilidade prática para futuros capitães e pilotos e para as estratégias comerciais e militares do Estado Português.
A referida euforia de Pereira nas primeiras páginas de seu livro era o resultado recompensável das investigações que vinham lhe ocupando o tempo e a disciplina nos últimos anos: estava convicto de que apresentava ao mundo culto da Europa um novo cenário cosmográfico, uma nova configuração da imago mundi. E, por certo, orgulhava-se de ser um ator significativo nessa descoberta. Seu livro era a exposição sumária de um mundo inteiramente novo, que muito aos poucos vinha se desenhando desde os fins da Idade Média, seja pela pesquisa erudita dos primeiros humanistas, que redescobriram Ptolomeu, Aristóteles e Mela, seja pelas navegações mediterrâneas dos italianos, seja ainda pela experiência portuguesa oriunda da astronomia náutica. Mela havia sido publicado numa tradução italiana em 1471, antes de chegar à versão espanhola de Juan Faras, e a Geografia de Ptolomeu (traduzida em 1406 como Cosmografia por Jacopo d’Angelo da Scarperia) fora também impressa em 1475, consolidando a ideia de que a totalidade do cosmo aristotélico – o mundus corruptível e elementar e o caelo incorruptível e etéreo – compunha uma única síntese que podia ser matematicamente compreendida. A tradução de Jacopo d’Angelo tinha o mérito de evidenciar a definição ptolomaica de geografia “as both mathematical mapping and a description of lands, seas, and places on the earth’s surface” (COSGROVE, 2007, p. 55COSGROVE, Denis. Images of Renaissance Cosmography, 1450 –1650. In: WOODWARD, David (ed.). The History of Cartography. Vol. 3: Cartography in the European Renaissance. Chicago: The University of Chicago Press, 2007, p. 55-99.).
Até o século XV, a ciência da cosmografia na Europa vinha conquistando progressos significativos, especialmente com o comércio mediterrâneo e com os primeiros traçados das rotas marítimas e comerciais elaborados depois das Cruzadas. Desconhecendo o oriente e as terras posteriores à África subsaariana, uma síntese da erudição patrística e escolástica mantinha a convicção de que o mundo era composto de dois hemisférios, com cinco zonas, das quais apenas duas eram habitáveis, a setentrional e a dos antípodas (a zona tórrida, por exemplo, era tão quente que não era possível alcançá-la); que os habitantes das zonas habitadas não podiam se comunicar; que o paraíso terrestre marcava o último ponto a leste da Ásia, localizável em algum extremo nas proximidades da Índia; e que Jerusalém estava posta no centro do mundo, tendo o inferno como seu extremo oposto (SANTAREM, 1849, p. 142SANTAREM, Le Vicomte. Essai sur l’histoire de la cosmographie pendant le Moyen-Âge et sur le progrès de la géographie après les grandes découvertes du XVe siècle. Paris: Imprimérie Maulde et Renou, 1849 (2 vols.).). Era essa a geografia mítica que Dante usara na Divina Comédia, sem mencionar naturalmente a sua exposição cosmológica8 8 Muito se especulou sobre a existência e a condição de vida dos antípodas, os homens que, do outro lado do mundo, viviam em lugares diametralmente opostos aos dos habitantes da Europa: Alberto Magno supôs a existência de um poder magnético que os firmasse à terra, e Nicolau de Oresme negou-lhes a existência, porque os Evangelhos eram claros ao dizer que a fé de Cristo alcançaria o mundo inteiro (SANTAREM, 1849, p. 142). .
Ainda no tempo de Pacheco Pereira, a cosmografia, definida como “the representation of the imago mundi, which is the description of the Earth within the universe, in written and illustrated form in the late Middle Ages and the Early Modern era” (CATTANEO, 2016, p. 36CATTANEO, Angelo. European Medieval and Renaissance Cosmography: A Story of Multiple Voices. Asian Review of World History, vol. 4, n. 1, 2016, p. 35-81.), provinha de fontes muito heterogêneas, que oscilavam entre a cosmologia cristã (o lugar da terra na criação, conforme a Bíblia), a astronomia de Ptolomeu e a filosofia natural de Aristóteles. Ademais, tarefa inglória era buscar uma síntese para essa multiplicidade de linguagens, especialmente numa época em que os cartógrafos confiavam nas fontes orais dos poucos relatos de viagens de missionários à Ásia, de peregrinos à Terra Santa e de mercadores italianos pelo Mediterrâneo (CATTANEO, 2016, p. 39CATTANEO, Angelo. European Medieval and Renaissance Cosmography: A Story of Multiple Voices. Asian Review of World History, vol. 4, n. 1, 2016, p. 35-81.). A cartografia e a geografia chegavam ao Renascimento como um caleidoscópio de matizes distintas, muitas delas sustentadas em fontes orais, pouco confiáveis, ou em especulações teológicas.
A descoberta, tradução e divulgação dos tratados de Ptolomeu e Mela no século XV deram impulso novo à expansão do conhecimento cosmográfico. Mela praticamente definiu muitas das opções de Pereira, como seu método descritivo de rotas, portos e espaços geográficos, que, somado às observações pessoais ou míticas sobre costumes e povos (como a referência a sátiros e a homens sem cabeça e com rosto no peito no interior da África), bem como a um breve relato historiográfico das terras mencionadas, ofereceu a Pereira uma saborosa mistura entre o pragmático, o factual e o mítico (ROMER, 2001, p. 48ROMER, Frank E. Pomponius Mela’s Description of the World. Ann Arbor: The University of Michigan, 2001.; DESTRO, 2011, p. 43DESTRO, Letícia. A África e os africanos nas fabulações cartográficas. Navigator, vol. 7, n. 13, 2011, p. 36-48.).
O explorador português, no entanto, não se fundamentou apenas nos clássicos que ele vinha lendo e colecionando, mas também em fontes recentes, embora fossem escassas e muito pouco lhe tenha chegado às mãos. Já nos primeiros mapeamentos da costa atlântica da África, traçados por iniciativa do Infante D. Henrique, tanto os roteiros de viagem (muito disseminados no século XVI) quanto os trabalhos cartográficos foram decisivos para a definição de uma nova cosmografia portuguesa. Alguns historiadores sugerem que os primeiros roteiros portugueses, ou mesmo os diários de navegação, bem antes do livro de Pereira, já vinham sendo difundidos em manuscritos quatrocentistas para o uso de pilotos e exploradores da costa africana, mas nenhum deles foi publicado ou sequer sobreviveu em códice, exceto o “Livro de Rotear”, que seria estampado no Manuscrito Valentim Fernandes, conforme já se disse (BOXER, 1934, p. 172BOXER, Charles Ralph. Portuguese Roteiros, 1500-1700. The Mariner’s Mirror, vol. 20, n. 2, 1934, p. 171-186.; KIMBLE, 1937, p. 89KIMBLE, George. The “Esmeraldo de Situ Orbis”: an early Portuguese textbook on cosmography and navigation by Duarte Pacheco. Osiris, vol. 3, 1937, p. 88-102.; COSTA, 1960, p. 379COSTA, Abel Fontoura da. A marinharia dos descobrimentos. Lisboa: Agência Geral das Colónias, 1960.).
O uso de roteiros e de cartas náuticas, modelos práticos destinados à guerra e ao comércio e, portanto, distintos da cartografia dos mapas-múndi, crescia em Portugal na mesma proporção de seu interesse pelas cartas estrangeiras. O mapeamento de parte do Atlântico Sul já oferecia a navegadores portugueses a composição dos primeiros mapas autóctones, muitos deles hoje irremediavelmente perdidos, mas já maduros o suficiente em seu tempo para a futura reconfiguração cosmográfica do século de Pacheco Pereira: “these charts attest to an already mature cartographic tradition with its own stylistic traits, which confirms the existence of earlier Portuguese cartography now lost” (ALEGRIA et al., 2007, p. 983ALEGRIA, Maria Fernanda et al. Portuguese Cartography in the Renaissance. In: WOODWARD, David (ed.). The History of Cartography. Vol. 3: Cartography in the European Renaissance. Chicago: The University of Chicago Press, 2007, p. 975-1068.). A maturidade cartográfica portuguesa nos fins da Idade Média levaria a obras monumentais, como o Planisfério Anônimo de 1502 (dito o “Planisfério de Cantino”), um mapa de representação do globo, evidenciando o conhecimento geográfico português, num de seus momentos mais decisivos, pouco depois das viagens de Vasco da Gama e de Pedro Álvares Cabral – documento cuja cópia teria sido comprada (ou mesmo subornada) de um cartógrafo português por Alberto Cantino, embaixador do Duque de Ferrara, e levada à Itália9 9 O planisfério é um dos mais importantes documentos cartográficos da primeira metade do século XVI, e nele, a África é a figura central, a mais perfeitamente traçada e ricamente iluminada com rubricas, possivelmente em função do levantamento hidrográfico que José Vizinho e Duarte Pacheco Pereira ali fizeram nos tempos de D. João II (ANDRADE, 1972, p. 390-401). A autoria desse documento tem sido discutida, e o nome do cartógrafo português Pedro Reinel vem sendo cogitado como autor (METCALF, 2017, p. 41). Hércules I, duque de Ferrara, que encomendou o mapa, por intermédio de Alberto Cantino, era um homem que representava a perfeita consciência do Renascimento: mantinha importantes nomes da cultura humanista em sua corte e ocupou-se de geografia e cartografia, tendo atribuído a Cantino a missão secreta de obter em Lisboa um mapa com informações atualizadas sobre as descobertas portuguesas, num tempo em que D. Manuel havia imposto a pena de morte a quem expedisse qualquer mapa fora dos territórios nacionais (MILANO, 1991, p. 96). .
A contribuição estrangeira, no entanto, fora também imprescindível. Importantes mapas-múndi projetados na Itália do século XV – como o de Fra Mauro, desenhado em 1450, no Monastério de São Miguel de Murano, em Veneza – eram do conhecimento de cartógrafos portugueses. Historiadores já suspeitaram que, em 1457, D. Afonso V solicitou uma cópia do precioso mapa, que lhe foi expedido a Lisboa em 1459, embora a possibilidade não tenha sido comprovada10 10 De fato, uma série de anotações dos registros do monastério de Murano autenticam a comissão régia portuguesa no mapa, e efetivamente um mapa-múndi partiu de Veneza a Lisboa em 1459. Inúmeras evidências sugerem que se trata efetivamente do mapa de Fra Mauro, mas não é possível sabê-lo com certeza (FALCHETTA, 2006a, p. 38-42). . O mapa de Fra Mauro era um monumento notável do Humanismo italiano, visto que numa combinação de desenho e rubricas, a carta expunha uma síntese do conhecimento geográfico, histórico e cosmológico de seu tempo, incluindo uma suma do modelo de Ptolomeu (embora lhe faça oposições e correções) e das autoridades teológicas (o número de céus, a posição do paraíso terrestre), bem como informações contidas nos clássicos da geografia antiga (terras distantes da Ásia e do Índico), e por fim, algumas descobertas recentes e informações trazidas das viagens portuguesas, como as terras africanas depois do Bojador e as zonas habitáveis. Suas fontes incluem documentos cartográficos (mapas-múndi e mapas regionais), textos escritos (Marco Polo, Niccolò de Conti) e os relatos orais de viajantes não mais identificáveis (FALCHETTA, 2006b, p. 33FALCHETTA, Piero. Fra Mauro’s World Map: with a Commentary and Translations of the Inscriptions. Turnhout: Brepols, 2006b.).
O plano cartográfico de Fra Mauro, ousado e visionário para a época, era fazer com que a imago mundi fosse transformada numa unidade entre cosmografia e cosmologia (lembre-se que Pereira começa seu livro postulando que o mundo e o céu são uma única coisa: Esmeraldo, I, 1, p. 536). E, para isso, buscava fontes tão díspares quanto complementares, transitando entre modelos medievais de uma geografia mítica e sacra e a exposição de possibilidades efetivas de navegação e mapeamento de terras longínquas. No plano da geografia, por exemplo, Fra Mauro propôs a unificação das três partes do mundo, sugerindo uma ligação dos três pontos comerciais do Índico e do Mediterrâneo, e mais que isso, a possibilidade de circum-navegação da África, ligando Atlântico e Índico, evidenciando rotas marítimas e comerciais (CATTANEO, 2016, p. 67-72CATTANEO, Angelo. European Medieval and Renaissance Cosmography: A Story of Multiple Voices. Asian Review of World History, vol. 4, n. 1, 2016, p. 35-81.). Em síntese, será esse o plano de expansão marítima portuguesa e seu projeto de alcançar a Índia por meio da circum-navegação da África.
Pereira deve ter se beneficiado também da disseminação, em Portugal e Espanha, de textos científicos sobre astronomia e marinharia, ainda que escassos, mantidos entre estudiosos, pilotos e homens importantes da máquina administrativa. A ciência náutica em Portugal e na Espanha, de natureza intuitiva e essencialmente prática, caminhava a passos lentos desde o século XV, e só alcançou certa maturidade científica com a obra de Pedro Nunes, matemático da Universidade de Coimbra, cosmógrafo-mor do reino em 1547, inventor de instrumentos náuticos, tradutor do Tratado da Esfera, de Johannes de Sacrobosco, estudioso da navegação teórica e mentor de nomes importantes como o de D. João de Castro, futuro governador da Índia, autor dos mais importantes roteiros de viagens depois de Pacheco Pereira e de um Tratado da Esfera (CASTRO, 1991, 1882, 1940a, 1940b). Pedro Nunes revelou uma síntese entre a matemática e a astronomia que ainda não existia no tempo de Pereira (VENTURA, 1985, p. 30VENTURA, Manuel Sousa. Vida e obra de Pedro Nunes. Lisboa: Instituto de Cultura e Língua Portuguesa/Ministério da Educação, 1985.; MACHADO, 2010, p. 5-8MACHADO, Cristina de Amorim. A tradução de textos científicos no período da expansão marítima, uma história em construção. Tradução em Revista, vol. 8, 2010, p. 1-19.; NUNES, 2005NUNES, Pedro. Obras. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2005 (3 vols.).), e este, portanto, acabou por beneficiar-se de uma ciência incipiente, buscando com avidez a pouca matéria clássica e erudita que lhe chegava às mãos.
Paralelamente ao trabalho de Pereira, a cosmografia espanhola, nova disciplina fincada nas raízes do Humanismo renascentista e manipulada secretamente nos círculos humanistas e na cultura de corte, também promoveu avanços importantes (PORTUONDO, 2009, p. 11). Na primeira metade do século XVI, os manuais espanhóis de navegação procuraram oferecer respostas a problemas de cosmografia e astronomia, muitos deles influenciados pelos roteiros portugueses. O primeiro deles, publicado em 1519, foi a Summa de geographia que trata largamente del arte de marear, de Martín Fernandes de Enciso, que esteve na América entre 1508-1511. Seu tratado começa com os fundamentos da esfera de Sacrobosco, explica as latitudes usando a Estrela Polar e corrige tábuas de declinação solar, dividindo o mundo não em três partes (Europa, Ásia e África, como os antigos), mas em duas metades: o oriente e o ocidente (PORTUONDO, 2009, p. 50-52). Depois de Enciso, os manuais de navegação mais divulgados na Europa foram El tratado de la esphera y del arte de marear (1535), de Francisco Falero, a Arte de navegar (1545), de Pedro de Medina, e o Breve compendio de la sphera y de la arte de navegar (1551), de Martín Cortés.
Para os homens portugueses e espanhóis que enfrentavam o mar, no entanto, o conhecimento náutico era um saber prático. Pilotos e capitães aprendiam em pleno mar a rotina da navegação. Piero Falchetta chega a sugerir que, mesmo nas navegações italianas do Mediterrâneo na Idade Média, a ars navigandi era uma ciência tão prática, de aprendizagem e vivência tão calcadas no quotidiano, que as cartas náuticas e os famosos portulanos, a julgar pelos frequentes erros de cálculos, eram instrumentos praticamente inúteis e deveriam estar restritos a estudiosos e eruditos (FALCHETTA, 2002FALCHETTA, Piero. Benedetto Cotrugli et son traité De navigatione (1464-1465). The Historical Review, vol. 9, 2002, p. 53-62.)11 11 Diferentemente do proposto por Falchetta, há sugestões de que os portulanos foram instrumentos importantes de navegação, mas mesmo no final do século XVI, a experiência prática dos pilotos era bem mais decisiva (TUCCI, 1958, p. 73-75). . Mas em Portugal, Pereira não fora apenas um aprendiz técnico da marinharia. Antes, era um homem de ciência, um cosmógrafo, e buscou compreender com profundidade a literatura científica sobre as matérias de que era conhecedor. Mais que um homem do mar, era também um homem de letras.
Pacheco Pereira e o plano de sua obra
A considerar tudo isso, era natural que, naqueles princípios do novo século, sob a agitação política e econômica da expansão e das navegações, Pereira mostrasse um entusiasmo notório nas primeiras páginas de seu Esmeraldo de situ orbis: no Prólogo, apresenta seu rei como o novo César da modernidade, e Portugal, como superior a todos os impérios do mundo antigo; evoca a “graça divinal” derramada por Deus nos projetos portugueses; lembra os etíopes como “bestas em semelhança humana, alienados do culto divino, e agora convertidos à santa fé católica” (Esmeraldo, Prólogo, p. 531); faz menção ao grande Alexandre, agora diminuído pelas grandezas portuguesas; projeta a fama do reino aos cantos mais longínquos da terra; e por fim, simula modéstia como a dizer que não terá a habilidade retórica para tão altos empreendimentos, evocando Cícero, Homero e Demóstenes, que, por certo, temeriam escrever feitos de tamanha gravidade (Esmeraldo, Prólogo, p. 535). A linguagem, de tonalidade quase poética e subjetiva, ainda que ele anuncie evitar a subjetividade para se apegar à ciência, aproxima-se do efeito épico de Os Lusíadas, de Camões, poeta que, décadas depois, conhecendo os feitos heroicos do próprio Pereira, chamou-lhe o “Aquiles lusitano”.
Se considerarmos que o Esmeraldo de situ orbis chegou a nós por meio de dois códices distintos, não autógrafos (o manuscrito de Lisboa e o manuscrito de Évora), apresentando leves alterações entre si e possivelmente baseados num manuscrito original hoje perdido12 12 Pelas evidências registradas nos dois códices, é possível sugerir que o manuscrito de Lisboa tenha sido cópia do manuscrito de Évora, mas ambos são documentos não autógrafos que podem ter sofrido corrupções em relação ao códice original (CARVALHO, 1983, p. 134). , é de notar que, a julgar por anotações contidas nos códices não autógrafos (em que aparece inúmeras vezes a expressão “aqui mapa”), o manuscrito original, possivelmente do próprio Pereira, continha um acervo cartográfico de pelo menos vinte e um ou vinte e dois mapas que enriqueciam o texto e conferiam a ele uma pesquisa geográfica bem mais complexa e profunda. O plano textual da obra era apenas parte de seu empreendimento, ornamentada e complementada pela arte de algum cartógrafo do reino.
A ebulição de ideias e propostas do autor dava dimensão extraordinária a um projeto que prometia grandes cortes epistemológicos no conhecimento do mundo. Nos doze capítulos iniciais do livro, o conteúdo tem direcionamento astronômico: o autor compõe um quadro cosmográfico da esfera terrestre; corrige os clássicos sobre a questão das terras habitáveis; expõe, ainda que superficialmente, a existência da quarta parte do mundo, não mencionada pelos antigos; apresenta noções de astronomia, conceituando o zênite e a linha do horizonte, bem como definições astronômicas básicas, como equinócios, solstícios, a posição dos trópicos; corrige latitudes e longitudes das tábuas das declinações ainda vigentes em Portugal (oriundas do Almanach Perpetuum de Zacuto e dos Regimentos de Évora e de Munique); expõe a questão do curso da lua e das marés; e esboça um rápido tratado da “agulha de marear” (bússola), que será também investigada nas décadas posteriores por nomes importantes da marinharia, como João de Lisboa (LISBOA, 1903LISBOA, João de. Livro de marinharia. Tratado da agulha de marear de João de Lisboa. Roteiros, sondas e outros conhecimentos relativos à navegação, copiado e coordenado por Jacinto Ignacio de Brito Rebello. Lisboa: Imprensa de Libâneo da Silva, 1903.).
Ainda nos capítulos iniciais, Pereira projeta sua exposição cosmográfica e seu roteiro de viagem como motivações científicas para obscurecer politicamente os povos não cristãos. De um lado, desonra a imagem de muçulmanos e gentios (mais aqueles do que estes), definindo-os como gente “viciosa, de pouca paz uns com os outros, e são muitos grandes ladrões e mintirosos, que nunca falam verdade, e grandes bêbados e muito ingratos” (Esmeraldo, I, 27, p. 607); e de outro, não expressa qualquer pudor em revelar a face mais violenta da expansão portuguesa, quando narra, por exemplo, a destruição de povos e monumentos históricos, num episódio em que uma armada de Sua Alteza, em missões destinadas à Índia, andou matando, destruindo e queimando mouros (Esmeraldo, IV, 3, p. 693).
No plano de sua obra, depois dos doze capítulos iniciais dedicados à apresentação cosmográfica da esfera terrestre e às notícias sobre a astronomia de seu tempo, Pereira empreende o segundo objetivo do livro, por certo o mais útil para as navegações e cujo conteúdo tem direcionamento roteirístico: o somatório de suas informações preciosas sobre geografia e marinharia, num misto de crônica, curiosidades, exotismo, mitos, narrativas, informações sobre povos, animais, mercadorias diversas e, mais que isso, muitas descrições precisas sobre terras, rios, montanhas, acidentes geográficos, tudo mapeado pelo controle de latitudes e longitudes. O Esmeraldo de situ orbis é um acervo enciclopédico.
Na composição do segundo objetivo de seu livro, almejando um imenso roteiro de viagem até a Índia, Pereira não consegue cumprir por inteiro seu ambicioso projeto. À medida que se aproxima de uma descrição das terras a oriente, o livro perde fôlego e torna-se desigual na distribuição de suas partes. A África, que ele tão bem conheceu in loco, apresenta-se como a parte mais bem acabada do roteiro, com descrições pormenorizadas e precisas, incluindo não apenas componentes geográficos mas também observações culturais sobre povos nativos.
Na execução roteirística de seu livro, Pereira parte de uma tese polêmica e inovadora, em que propõe o esboço daquilo que, depois da viagem de Colombo, vinha se desenhando aos poucos como a “quarte parte do mundo”, ou o novus mundus, anunciado por Americo Vespucci nas suas cartas latinas e italianas. Sabe o autor do Esmeraldo que os antigos naturalmente não conheceram a quarta parte do mundo, e as geografias antigas desenhavam a esfera em três partes, compreendidas teologicamente conforme as descendências de Noé (Esmeraldo, I, 3, p. 541). Surpreendido com as diversidades étnicas das quatro partes do mundo, Pereira observa que os antigos estavam errados quando diziam que os povos a oriente e a ocidente que estivessem no mesmo grau do sol deveriam apresentar as mesmas particularidades. Comparando os nativos do Brasil e os negros de Guiné, por exemplo, entende que as diferenças são notórias, e se pergunta: “e agora é para saber se todos são da geração d’Adão” (Esmeraldo, II, 11, p. 662).
A distribuição das partes do mundo e a investigação sumária das descendências de Noé acabam por oferecer a Pereira uma fonte razoável de especulação etnográfica (ainda que o termo soe abusivamente anacrônico). Não há um interesse essencialmente antropológico por parte do autor, já que as informações sobre a cultura de povos locais apenas se oferecem na medida das necessidades econômicas de comércio e transporte de escravos. A imensidão territorial da África dá a conhecer a nosso escritor uma complexa variedade de povos e línguas, a que Portugal muito lentamente vinha tendo acesso, por meio de seu contato com gente local.
Do reino de Fez, em Marrocos, até o chifre da África, compondo a imensa circum-navegação do continente, Pereira tem um leque inesgotável de culturas distintas, a que ele dá muita ou pouca atenção conforme interesses econômicos. Pouco afeito ao imaginário dos mitos e bestiários, comum à época das navegações (uma única vez refere-se a homens-cães, quando fala dos povos mandingas, no cap. 29 do livro I), o cosmógrafo prefere o olhar pautado pela ortodoxia católica, atribuindo aos nativos africanos uma gama de heresias e desvios morais, conforme modelos que vinham sendo rigorosamente edificados na Península Ibérica. Tratava-se de proibições motivadas por acontecimentos recentes à época, como a instituição do tribunal do Santo Ofício em Aragão e Castela em 1478, o Édito de Expulsão dos judeus na Espanha no mesmo ano e a conversão dos judeus em Portugal em 1496. O plano de perseguição das heresias seria consolidado ao longo do século, mas já se delineia à época das primeiras grandes navegações.
Pereira, ao compor um rápido e impreciso painel etnográfico dos povos africanos, pincelado aqui e ali por observações pessoais de pouca análise e extensão, porta-se curiosamente como uma espécie de censor das heresias, das idolatrias e dos desvios morais da gente pagã e muçulmana. A mensurar o conjunto de suas reprimendas, será possível entrever ali elementos como magia, idolatria, bestialidade, imoralidade, luxúria, rapinagem, traição, mentira, embriaguez, maldade, nudez imoral e práticas como circuncisão e antropofagia. Esse esboço antropológico, espalhado e fragmentado ao longo de todo o livro, aparentemente sem nenhum plano intencional, move-se por observações que interessam com maior ou menor intensidade a seus critérios colonialistas, pautados por comércio, tributos régios, reinvindicações de rotas e ocupações de terras. Na verdade, toda informação contida no Esmeraldo, em maior ou menor grau, é registrada em função de interesses comerciais e expansionistas.
Portanto, não era apenas um livro de cosmografia e marinharia, mas o mapeamento das conquistas de uma política de expansão. E não é em vão que boa parte das referências geográficas sejam pautadas pelos próprios empreendimentos portugueses. Pereira registra, como pontos de referência dos espaçamentos geográficos, as principais edificações já concluídas, especialmente em terras africanas, como o Castelo Real da Vila do Mogador (construído em 1506 em Marrocos, por Diogo de Azambuja); o Castelo de Santa Cruz no Cabo de Gué, na região de Fez (edificado por João Lopes de Sá); o Castelo da Ilha de Arguim (construído por Soeiro Mendes de Évora); a Fortaleza de Tagarim em Serra Leoa; a Fortaleza de Axem; e a mais importante delas, o Forte de São Jorge da Mina, em Gana, edificado por volta de 1482, o primeiro edifício português construído em terras africanas, ponto central das rotas de comércio e das negociações com escravos, bem como referência para estratégias militares.
Se o método de composição do livro vinha sustentado num esboço de “crônica das navegações”, para além das informações sobre cosmografia e marinharia, Pereira procurou mapear o mundo em função dos interesses econômicos, especialmente a partir das ocupações portuguesas, considerando fortalezas edificadas, terras ocupadas, rotas de comércio, dando a conhecer uma imago mundi que se reconfigurava não por descobertas apenas, mas pelos domínios territoriais da expansão política. Se Pompônio Mela começa e termina sua geografia pelo estreito de Gibraltar por serem ali as proximidades de sua terra natal, Pereira, mais ousado, propõe que o mundo seja não apenas uma nova ordem concebida pelas navegações, mas também uma ordem regida por critérios colonialistas. Seu livro, portanto, não é exatamente, ou tão somente, uma descrição do mundo, mas uma descrição desenhada por interesses comerciais e militares, feita para o uso da máquina administrativa. O rio que ele descreve na sua geografia não é apenas um rio da África, mas o rio que foi descoberto por algum agente da expansão portuguesa. Ao descrever o Rio Senegal, junto ao reino dos povos Jalofo (wolof), por exemplo, faz questão de dizer que “este rio mandou descobrir o virtuoso Infante Dom Anrique por Denis Dias, cavaleiro e criado d’el-Rei Dom João seu padre, e por Lançarote e Alvaro de Freitas, seus cavaleiros e capitães” (Esmeraldo, I, 26, p. 605). Trata-se de uma espécie de legitimação da conquista e de uma revisão da geografia do mundo. Quando descreve os povos mandingas, gente nativa que vive entre o rio dos Barbacins e o rio de Gâmbia, não esconde um interesse notório pelo que há de economicamente atrativo naquela região: mercadorias, comércio de escravos, animais diversos (Esmeraldo, I, 29, p. 613-615). Por outro lado, ao descrever terras de São Tomé e Príncipe, prefere o silêncio sobre lugares sem proveito, desprezando como exótico ou desnecessário aquilo que não interessa às finanças do Estado: “porquanto este rio das Galinhas é sem proveito, não ouso de falar dele” (Esmeraldo, II, 2, p. 632)13 13 O mapeamento de terras economicamente interessantes para a demarcação de rotas comerciais foi também uma estratégia comum usada antes e depois de Pereira: pode ser rastreada, por exemplo, 1) no relato de viagem de Alvise Cadamosto (Viagens... 1988), escrito depois de 1460 e publicado em Milão (1507), na coletânea de opúsculos Paesi Nouamente retrouati, vertida para o latim no ano seguinte, na coleção Itinerarium Portugallensium, e depois para o italiano no Navigazioni e viaggi, de Giambattista Ramusio (a partir de 1550); 2) na “Descripção de Ceuta e norte da África” e na descrição histórico-geográfica das ilhas do Atlântico conquistadas por exploradores portugueses, ambas escritas por Valentim Fernandes (BAIÃO, 1940), tradutor e escritor alemão radicado em Portugal; e 3) e no Livro de Duarte Barbosa, concluído entre 1517-1518, com descrição de inúmeros países do oriente e com informações apresentadas por meio de uma estratégia expansionista, ao estilo de Pereira, incluindo um levantamento de pedras preciosas, indicadores econômicos, presença ou ausência de mouros inimigos, drogarias e até mesmo uma relação de pesos e medidas utilizadas em países do Oriente (BARBOSA, 1992). É o legado de Pacheco Pereira que se evidenciava. .
Nesse sentido, o plano geral do Esmeraldo de situ orbis, construído sob dois pilares científicos estratégicos (o direcionamento astronômico e o direcionamento roteirístico) ditou o modelo dos roteiros de viagem e descrições de países escritos depois de Pereira. Estaria desenhada ali a fórmula de um dos gêneros mais cultivados pela literatura portuguesa de viagens: o roteiro. Bem mais completo e de visão bem mais panorâmica do que os portulanos medievais, os roteiros portugueses evoluíram extraordinariamente em relação a seus antecessores italianos, não apenas alargando o espaçamento geográfico, mas sobretudo incluindo informações sobre navegação oceânica, dados astronômicos e valores de latitude e declinação magnética (ALBUQUERQUE, 1994, p. 949ALBUQUERQUE, Luís (ed.). Dicionário de História dos Descobrimentos. Lisboa: Círculo de Leitores, 1994 (2 vols.).; MOTA, 1969, p. 31MOTA, Avelino Teixeira da. Evolução dos roteiros portugueses durante o séc. XVI. Revista da Universidade de Coimbra, vol. 24, 1969, p. 1-32.). O Esmeraldo cumpre esse papel já nos primórdios de seu século. Depois dele, tanto os roteiros portugueses quanto os “livros de marinharia” vão traçar planos semelhantes, sempre compondo, a exemplo de sua estrutura, uma parte astronômica e uma parte roteirística. O mais antigo roteiro português anterior a Pereira, o já mencionado manuscrito quatrocentista “Livro de rotear”, que traça a rota de navegação que vai do Cabo Finisterra ao Castelo de São Jorge da Mina, apresenta ainda uma linguagem muito próxima da dos portulanos medievais. A disposição anafórica de suas frases, começando pelas mesmas palavras (“Sabe que...”, como em “Sabe a Berlenga cõ Sanchete jaz noroeste e sueste E há na rota 14 legoas” (BAIÃO, 1940, p. 210BAIÃO, António (ed.). O Manuscrito “Valentim Fernandes”: oferecido à Academia por Joaquim Bensaúde. Lisboa: Academia Portuguesa da História, 1940.)), ainda apresenta estrutura semelhante à da linguagem dos portulanos italianos, com fórmulas recorrentes e repetitivas (como em “Ti faccio ancora sapere...”), típicas da linguagem oral, destinadas a uma espécie de adestramento de grumetes (FALCHETTA, 2009, 41-42FALCHETTA, Piero. Il tratatto De navigatione di Benedetto Cotrugli (1464-1465). Edizione commentata del ms. Schoenberg 473 con il texto del ms. 557 di Yale. Studi Veneziani, vol. 57, 2009, p. 1-67.). Do “Livro de rotear” ao Esmeraldo de situ orbis, há um abismo de grandes conquistas cosmográficas, astronômicas, náuticas e até mesmo linguísticas.
Os diversos livros portugueses de marinharia que circularam em manuscritos no século XVI não alcançaram a erudição nem o estilo literário de Pacheco Pereira. Despretensiosos, anônimos e escritos em pobre língua portuguesa, os sete livros de marinharia conhecidos daquele século (João de Lisboa, André Pires, Manuel Álvares, Gaspar Moreira, Bernardo Fernandes, Francisco Rodrigues e Pero Vaz Fragoso) passavam de mão em mão, sofrendo acréscimos inadvertidos de quem quer que seja, e serviam como manual prático de navegação, tratando, a exemplo do próprio livro de Pereira, de dois quadros temáticos essenciais, astronomia e roteiro, o que poderia se desdobrar em regimentos (do Sol, da Estrela Polar, do Cruzeiro do Sul), descrições geográficas, regras de navegação e muito eventualmente em descrições de costumes e observações pessoais14 14 Ver Albuquerque (1963, 1969, 1977); Bourdon e Albuquerque (1977); Costa (1960); Lisboa (1903). O livro de Marinharia de Pero Vaz Fragoso, por exemplo, é um dos raros livros de marinharia a expor uma nota pessoal, em que o piloto (nesse caso, o próprio Fragoso) diz ter sido salvo de uma tribulação marítima em Mottama, Myanmar (antiga Birmânia), por uma ação de Nossa Senhora (ALBUQUERQUE, 1977, p. 33). . A considerar a simplicidade e a despretensão dos livros de marinharia, incultos como cadernos riscados de pilotos e navegadores destinados a informações básicas de interesse náutico (tábuas de declinações solares, direção de ventos, regras de navegação, calendários de marés etc.), o Esmeraldo de situ orbis, essa notável composição de Pacheco Pereira, foi o maior empreendimento da literatura de marinharia de seu tempo. No entanto, permaneceu inacabado por séculos, vendo sua primeira edição apenas em 1892.
Um projeto inacabado
O livro de Pereira parece lhe ter consumido o tempo e as forças por pelo menos três anos, entre 1505 e 1508, depois que o autor voltava de expedições militares na Índia, conforme já aqui se disse (CARVALHO, 1983, p. 118). Não se sabe ao certo a que outras tarefas o autor vinha se dedicando à época em que escrevia o seu livro, mas tudo indica que Pereira fora poupado de outras ações militares e administrativas por esse tempo e que sua vida convergia para os estudos.
No entanto, se o livro fora uma encomenda do rei (informação de que não dispomos), certo é que o resultado não foi entregue, pelo menos não em sua totalidade. Pereira não teve fôlego, ou tempo, para terminar o ambicioso empreendimento. A grandeza da obra logo perde ritmo, e ao autor, vieram-lhe os percalços. O entusiasmo de suas primeiras páginas, elogiosas à expansão marítima e a seus benfeitores, vai perdendo força à medida que os capítulos avançam. Pereira não mantém a regularidade de trabalho, já que a extensão de cada um dos cinco livros projetados no prólogo vai minguando, de tal forma a que as partes se tornem bastante desiguais. Os quatro capítulos curtos do livro IV não são capazes de ombrear com o alcance informativo nem literário dos trinta e três capítulos do livro I. O quinto livro, prometido como a segunda parte das conquistas manuelinas, sequer foi iniciado. No primeiro parágrafo do oitavo capítulo do livro II, o autor começa a dar sinais de cansaço e ousa expor queixas pessoais sobre a paga injusta de seus trabalhos:
Ainda que dous agravos tenhamos recebidos na descrição desta Etiópia, dos quais o primeiro é o tempo em que gastamos na prática destas províncias e terras que tantas enfermidades e trabalhos mal pagos nos têm custado, nem por isso leixaremos de dizer o segundo agravo que cabe no compor desta obra acerca do que nestas terras vimos, que sem muita fadiga se não pode deixar de fazer (Esmeraldo, II, 8, p. 652).
A decepção com a pouca recompensa por seus empreendimentos militares, e agora intelectuais, parecia evidenciar-se. Embora Carvalho e Pinto (2012, p. 225-226)CARVALHO, Andreia Martins de; PINTO, Pedro. Da Caça de Mondragon à Guarda do estreito de Gibraltar (1508-1513): os guardiões da memória de Duarte Pacheco Pereira e a Economia da Mercê nos sécs. XVI-XVII. Anais da História de Além-Mar, n. 13, 2012, p. 221-332. se refiram a um período manuelino de Pereira como fase promissora da sua carreira (sua decadência viria com a ascensão de D. João III), a expressão “trabalhos mal pagos” sugere que o autor e explorador português esperava favores mais generosos do rei.
Ainda que os demais livros promovam o elogio das conquistas marítimas e das grandezas de seus monarcas, a tonalidade dos capítulos finais é bem mais comedida. No livro IV, D. Manuel, que fora exaltado como o novo César nas páginas iniciais do prólogo, é agora lembrado como o “sábio e sereníssimo” e como o monarca que solicitou ao Papa Alexandre VI a isenção do voto de castidade aos cavaleiros da Ordem de São Bento (Esmeraldo, prólogo, p. 688). Curiosa e enigmática lembrança para um rei de natureza ferozmente expansionista que dilatou suas influências políticas e comerciais aos limites extremos da Ásia, enviando embaixadores às remotas ilhas do Índico e até mesmo à China. Poucas páginas depois de suas queixas contra os maus pagamentos, Pereira volta a dar sinais de cansaço com a obra e a lamentar o peso da carga intelectual, em nota profundamente subjetiva, agora contra certos detratores e inimigos não nomeados que, pelo visto, conspiravam contra sua posição e talvez contra a credibilidade de seu livro que desmantelava verdades teológicas:
Pois tomamos tão pesada carga em escrevermos quanto benefício aos Príncipes passados têm feito aos Reinos de Portugal no descobrimento desta Etiópia, que dantes a nós era de todo incógnita, que esta mesma razão nos obriga a darmos fim à obra começada, ainda que os murmuradores, mordedores e maldizentes não cessem seguir seus danados costumes, os quais são prasmadores do bem feito e nenhũa cousa boa sabem fazer; mas nós seguiremos nossa obra e eles de sua inveja ficarão quebrantados” (Esmeraldo, II, 9, p. 656).
Certamente, outras queixas e lamentos virão. No capítulo seis do livro III, Pereira, ponderando sobre a sua fadiga, admite que o tempo e o saber para concluir a obra que iniciara só poderiam vir de Deus, “de que todo o bem procede”. Para cumprir com a promessa, busca empenho além das forças. Certo desânimo parece abater-lhe a crença nos próprios elogios políticos de que se servira por toda a obra para ganhar os favores do rei. O gigantismo das conquistas já lhe soa quase um despropósito. A certa altura, sua voz parece a do Velho do Restelo, aquele personagem severo e anticolonialista que aparece no final do canto IV de Os Lusíadas: “Muitas mortes de homens e grandes despesas tem custado o descobrimento destas Etiópias ao Infante Dom Anrique, primeiro inventor destas cousas, de tal calidade que devamos notar; nem por isso leixaremos de escrever toda esta terra com seus portos, angras, rotas e grãos” (Esmeraldo, III, 3, p. 671). O custo das empreitadas do Estado Português soa-lhe um excesso. Quando lembra a memorável viagem de Vasco da Gama à Índia, por exemplo, sugere que o projeto consumira em demasia os recursos do Estado, seja por conta dos pilotos e sabedores da arte da marinharia, “tão bem pagos”, seja por conta das naus que “fizeram tantas e tão grossas despesas [...] que, por não parecerem graves d’ouvir e crer, o leixo de dizer pelo meudo” (Esmeraldo, IV, 2, p. 692). A reprimenda tem caráter notoriamente subjetivo, como a lembrar, uma vez mais, a decepção com os encargos mal remunerados e mal retribuídos.
Em 1508, Pereira abandonou a obra no capítulo seis do livro IV, quando anunciava informações sobre as terras da costa oriental da África, da Arábia, da Pérsia e dos “opulentíssimos reinos da Índia”. Pode-se dizer que o livro vinha definhando porque o autor precisava mapear e esmiuçar territórios pouco conhecidos de sua experiência marítima, já que a costa africana do Atlântico Sul era espaço com que ele tinha bem mais intimidade. De toda forma, o navegador ainda redigia seu livro quando D. Manuel o convocou para uma ação militar: Pereira deveria combater e destruir Pierre de Mondragon, um temido corsário francês que vinha saqueando navios portugueses e espanhóis na costa ibérica, à época em que Portugal procurava manter seu domínio em Marrocos. O militar partiu contra o francês em janeiro de 1509, pouco depois que este saqueara o navio português de Job Queimado e vendera as mercadorias do roubo (CARVALHO; PINTO, 2012, p. 232, 242CARVALHO, Andreia Martins de; PINTO, Pedro. Da Caça de Mondragon à Guarda do estreito de Gibraltar (1508-1513): os guardiões da memória de Duarte Pacheco Pereira e a Economia da Mercê nos sécs. XVI-XVII. Anais da História de Além-Mar, n. 13, 2012, p. 221-332.).
Nos anos seguintes, veremos Pacheco Pereira liderando a capitania da armada que patrulhava o estreito de Gibraltar, pelo menos até 1513, já que a captura do corsário não fora um sucesso. Seu livro agora ficava em segundo plano, e é possível que o militar da “nobreza de serviço” manuelina não tenha voltado a se debruçar mais sobre os seus estudos, porque o rei ocupava-lhe o tempo e as forças em empreendimentos militares e administrativos bem mais urgentes. Em 1519, Pereira foi nomeado capitão e governador da Fortaleza de São Jorge da Mina, e deverá ficar até 1522. Não era cargo de pouca monta. O castelo de São Jorge da Mina, edificado em Elmina (Gana), na costa ocidental da África, por Diogo de Azambuja ainda no século XV, era a mais importante feitoria portuguesa de seu tempo e representou por longas décadas uma rota de comércio e um estabelecimento de referência militar e econômica decisivo para alimentar as finanças de Portugal antes da carreira da Índia. O autor do Esmeraldo voltaria a Lisboa em 1522, em circunstância obscura: preso sob ordens do recém-coroado D. João III, e com acusações que nunca foram esclarecidas. Lembre-se que, desde os tempos da redação de seu livro, Pereira vinha se queixando de detratores e maldizentes de toda espécie, mas não é possível identificar seu encarceramento com as lamentações antigas. Lendas posteriores o colocam numa extrema situação de pobreza em Lisboa depois da liberdade, mas o fato parece não coincidir com a documentação sobre o autor, que ainda teria de volta o prestígio e certa recompensa financeira (CARVALHO, 1983, p. 83). Antes de sua morte, por volta de 1533, é quase certo que Pereira não tenha retomado a sua obra que, apesar dos ares inovadores à época em que fora iniciada, envelhecia com o tempo e perdia o seu frescor, e ainda, depois da viagem de circum-navegação de Fernão de Magalhães em 1519, já não era possível mais afirmar que o mundo era ocupado por terra de todos os lados, com água no centro, como se os oceanos fossem lagoas imensas. É razoável supor que Pereira tenha reconsiderado essas questões, mas não pensou em corrigi-las em seu livro. O projeto que nascera pleno de autoconfiança foi sendo abandonado aos poucos, em meio ao cansaço e ao desânimo, até ficar irremediavelmente inacabado.
O novo modelo de cosmografia
No alvorecer do mundo moderno, Duarte Pacheco Pereira é uma voz igualmente moderna. As esferas cosmológicas do mundo incorruptível de Aristóteles e os espaços sagrados da criação e da salvação humana, exaustivamente descritos pela cosmografia medieval, não recebem espaço no seu projeto descritivo, alheio às especulações teológicas, nem mesmo para justificar religiosamente a expansão materialista dos domínios políticos de Portugal. Seu modelo, “científico” e materialista, é um marco na história das representações cosmográficas.
Mas para compreender as novidades metodológicas do livro de Pereira, é preciso retroceder pelo menos três séculos antes dele. A cosmografia, desde o fim da Idade Média, vinha passando por modificações substanciais, desde que a Europa saíra para as Cruzadas e para o comércio marítimo no Mediterrâneo, quando novos mundos se lhe abriam à consciência. Elena Bellomo (2008, p. 215)BELLOMO, Elena. Sapere nautico e geografia sacra alle radici dei portolani medievali (secoli XII-XIII). Quaderni di Storia Religiosa, vol. 15, 2008, p. 215-241. sugere que as Cruzadas e as peregrinações à Terra Santa tiveram considerável importância para o desenvolvimento de cartas marítimas e portulanos a partir do século XII15 15 Cartas portulanas são mapas náuticos, também chamadas de “cartas de navegar” ou “cartas de marear”; e portulanos são descrições textuais, sem mapas, de espaçamentos geográficos especialmente do Mediterrâneo, incluindo portos, rotas, distâncias etc. Ver Rosselló I Verga (2011, p. 56). . Naquele contexto, a cosmografia era uma ciência incipiente, matéria de teólogos, e misturava-se às convicções reveladas pela tradição bíblica, patrística e escolástica. Não era apenas o mapeamento de espaços, mas a sacra expositio de crenças e de planos imaginários destinados ao teatro da salvação humana concebido pela criação divina.
A cosmografia começava a dar os primeiros sinais de reviravolta quando Jerusalém se descortinou aos interesses políticos e religiosos da Europa. Por volta de 1155-56, à época em que Gênova via-se numa disputa com o Reino de Jerusalém, Caffaro di Rustico da Caschifellone, ou simplesmente Caffaro, nobre, historiador e diplomata genovês, escreveu o seu De liberatione civitatum orientis liber, um roteiro geográfico que expunha pela primeira vez as rotas e distâncias até a Terra Santa, numa perspectiva essencialmente religiosa, sustentada por um plano de “geografia sacra”, mantida pela intelectualidade ao longo de toda a Idade Média (BELLOMO, 2008, p. 219BELLOMO, Elena. Sapere nautico e geografia sacra alle radici dei portolani medievali (secoli XII-XIII). Quaderni di Storia Religiosa, vol. 15, 2008, p. 215-241.). Dois séculos mais tarde, Sir John Mandeville finalizava entre 1356-57 uma coletânea de descrições e roteiros de viagens, publicada alguns anos depois e cujo itinerário vai à Terra Santa. O monge inglês alcançou extraordinária popularidade, talvez porque, jamais tendo conhecido in loco os roteiros que descreve, pinta-os como lugares maravilhosos e mistura a geografia dos espaços físicos com elementos do imaginário e dos mirabilia que andavam à solta pelos livros medievais de cartografia. Mandeville, considerado fraudulento e plagiário por gerações seguintes, soube manipular recursos literários e maravilhosos. Embora afirme que não tenha visitado o paraíso terrestre, por exemplo, é capaz de revelar detalhes de sua arquitetura, como a existência de uma muralha, a altura da montanha, a entrada com fogo ardente, ou a natureza dos quatro rios que descem de sua estrutura (MANDEVILLE, 1915, p. 200-201MANDEVILLE, Sir John. The travels of Sir John Mandeville. Ed. A. W. Pollard. Londres: Macmillan and Company, 1915.).
A “geografia sacra”, motivada pelas Cruzadas e por peregrinações a Jerusalém, tornou-se uma representação cosmográfica tipicamente medieval. O caso do Liber de existencia riveriarum et forma maris nostri Mediterranei é bastante sugestivo. Manuscrito anônimo do século XII, o Liber de existencia é um roteiro de viagem pelo Mediterrâneo, contendo direcionamentos, rotas terrestres e descrições, escrito provavelmente em Pisa para uso da navegação comercial. Dalché explica que o autor anônimo teria escrito o portulano conforme um suposto mapa-múndi que ele mesmo compôs e de que ele mesmo se serviu para o cálculo das distâncias entre lugares que são enumerados no texto (GAUTIER DALCHÉ, 1995, p. 19-20GAUTIER DALCHÉ, Patrick. Carte marine et portulan au XIIe siècle: Le Liber de existencia riveriarum et forma maris nostri mediterranei (Pise, circa 1200). Paris: École Française de Rome, 1995.). Mas longe de ser um roteiro exclusivamente comercial, o Liber de existencia é um portulano que vai além das descrições costeiras típicas da geografia medieval, e oscila entre fontes técnicas, literárias e bíblicas, numa estratégia que reconhece tanto os anseios práticos e comerciais, quanto a exposição dos lugares e dos episódios sagrados da história da cristandade16 16 Embora os propósitos do autor anônimo sugiram que ele tenha mantido ligações com o comércio marítimo, seu livro parece ter sofrido acréscimos de fontes tradicionais a pedido de um cônego, igualmente anônimo, que teria conduzido o trabalho para um direcionamento mais religioso. Ver Gautier Dalché (1995, p. 97). É preciso considerar ainda que o Liber, para além de seu plano sustentado pela geografia sacra, mantém um curioso trânsito entre a cultura técnica e a cultura clerical, expondo a imago mundi como uma espécie de teatro dos acontecimentos da salvação. Ver também Bellomo (2008, p. 224). .
Esta era a natureza das geografias sacras que se expandiram pela Idade Média: os espaçamentos geográficos, mesmo para uso comercial, eram pretexto para a revelação da criação e da salvação humana. O roteiro De viis maris et de cognitione terrarum et montium et de periculis diversis in eisdem, obra também do fim do século XII, preservada em dois manuscritos, juntamente com dois outros textos, a Expositio mappe mundi e um Liber nautarum, revela-se uma exaustiva descrição da geografia naval de uma viagem entre a Inglaterra e a Terra Santa, passando pelo Atlântico e pelo Mediterrâneo, estendendo-se até mesmo à Índia, acompanhada dos perigos marítimos que lhe são inerentes. Ainda que na descrição da Terra promissionis o autor não faça referência direta às Escrituras ou aos lugares santos, o teor é religioso, de cariz eclesiástico, mencionando monastérios e igrejas que serviriam de apoio espiritual aos peregrinos: “La loro presenza [dos mosteiros] non è unicamente ricordata quando essi possono mostrarsi utili per l’orientamento dei naviganti, ma anche quando essi si trovano solo nelle vicinanze delle località citate o della costa” (BELLOMO, 2008, p. 226BELLOMO, Elena. Sapere nautico e geografia sacra alle radici dei portolani medievali (secoli XII-XIII). Quaderni di Storia Religiosa, vol. 15, 2008, p. 215-241.).
Em síntese, mesmo diante de uma geografia prática para uso de mercadores, os portulanos e as cartas marítimas medievais, de inspiração ptolomaica e bíblica, compuseram uma cartografia que ajudava a compreender a história da criação e da salvação pela representação dos espaços. De certa forma continuando a tradição medieval de Alberto Magno (De caelo et mundo) ou de Pierre d’Ailly (Imago mundi), nomes do Renascimento ainda buscavam uma conciliação entre geografia e cosmologia teológica, mas essa aproximação vai se tornando cada vez menos harmoniosa. Por exemplo, na segunda metade do século XVI, Abraão Ortelius desenha o seu famoso Theatrum orbis terrarum (1570) sem as esferas celestiais, e nomes como Mercator, mas principalmente André Thévet (Cosmographie universelle, 1575) e Theodore de Bry (America, 1596), não sustentam mais a cosmologia clássica e clamam pela veracidade ocular da cosmografia (COSGROVE, 2007, p. 69-70COSGROVE, Denis. Images of Renaissance Cosmography, 1450 –1650. In: WOODWARD, David (ed.). The History of Cartography. Vol. 3: Cartography in the European Renaissance. Chicago: The University of Chicago Press, 2007, p. 55-99.).
Nate Probasco, em artigo sobre a viagem de Sir Humphrey Gilbert à América do Norte em 1583, explica que ao longo dos séculos do Renascimento, os mapas vão adquirindo tonalidades mais políticas e constituindo modelos de autoridade nos meios coloniais, ao mesmo tempo em que vão assumindo contornos menos simbólicos e mais funcionais (PROBASCO, 2014, p. 426PROBASCO, Nate. Cartography as a Tool of Colonization: Sir Humphrey Gilbert’s 1583 Voyage to North America. Renaissance Quarterly, vol. 67, 2014, p. 425–72.). Muitas cartas portulanas medievais vinham aos poucos, pelo menos desde o século XIII, se desobrigando das representações cosmológicas e sacras, em função de planos mais práticos e utilitários, especialmente destinados à navegação comercial mediterrânea. A geografia sacra vinha cedendo espaço a uma geografia mercantilista, e esse modelo terá acolhida entre os roteiros portugueses, tidos por alguns como sucessores dos portulanos italianos (MOTA, 1969, p. 31MOTA, Avelino Teixeira da. Evolução dos roteiros portugueses durante o séc. XVI. Revista da Universidade de Coimbra, vol. 24, 1969, p. 1-32.; BOXER, 1934, p. 171BOXER, Charles Ralph. Portuguese Roteiros, 1500-1700. The Mariner’s Mirror, vol. 20, n. 2, 1934, p. 171-186.). O caso do Lo compasso da navegare (manuscrito anônimo de cópia única pertencente ao códice Berlin, Staatsbibl., Hamilton 396, de 1296), é revelador para esse processo, porque, servindo exclusivamente como guia de navegação, perde por inteiro o caráter religioso que identificou boa parte da cartografia medieval, aproximando-se dos livros de marinharia portugueses do século XVI (BELLOMO, 2008, p. 229BELLOMO, Elena. Sapere nautico e geografia sacra alle radici dei portolani medievali (secoli XII-XIII). Quaderni di Storia Religiosa, vol. 15, 2008, p. 215-241.; DEBANNE, 2011DEBANNE, Alessandra (ed.). Lo Compasso de Navegare: edizione del Codice Hamilton 396 con commento linguistico e glossario. Bruxelas: Peter Lang, 2011.).
Algumas décadas antes de Pacheco Pereira compor o seu livro de cosmografia e marinharia, Benedetto Cotrugli, membro de uma importante família de mercadores e humanistas de Ragusa, escrevia o seu De navigatione por volta de 1464-65, um tratado da arte de navegar que pretendia ambiciosamente alcançar todos os limites temáticos da questão, numa rara exposição de práticas náuticas tanto quanto de erudição humanista. Falchetta apresenta uma farta tradição de manuscritos italianos que antecederam Cotrugli (o Zibaldone da Canal; a Arte veneziana del navigare, com calendário e cálculos astronômicos; as compilações náuticas de Miguel de Rodes, ou a ele atribuídas, com instruções náuticas e problemas matemáticos úteis para atividades comerciais; o Raxion de’ marineri, com informações astronômicas, entre outros), mas nenhum alcançou a dimensão literária e a unidade temática de Cotrugli (FALCHETTA, 2009, p. 34-37FALCHETTA, Piero. Il tratatto De navigatione di Benedetto Cotrugli (1464-1465). Edizione commentata del ms. Schoenberg 473 con il texto del ms. 557 di Yale. Studi Veneziani, vol. 57, 2009, p. 1-67.). O De navigatione é uma imensa teoria náutica de seu tempo, oferecendo informações tão práticas quanto eruditas: uma meditação filosófica sobre as águas e o mar; um histórico da navegação, desde Moisés; um pequeno estudo sobre a arte de navegar, incluindo questões como bússola, ventos, fenômenos naturais; e uma breve composição cosmográfica, incluindo uma geografia do Mediterrâneo até alguma informação sobre as ilhas do Atlântico (FALCHETTA, 2009, p. 266-333FALCHETTA, Piero. Il tratatto De navigatione di Benedetto Cotrugli (1464-1465). Edizione commentata del ms. Schoenberg 473 con il texto del ms. 557 di Yale. Studi Veneziani, vol. 57, 2009, p. 1-67.). Com proêmio escrito em latim, Cotrugli ambicionava dar dignidade humanista à arte de navegar e, ao mesmo tempo, conquistar a simpatia dos nobres e cultos da Europa de seu tempo. Era o encontro da linguagem técnica com a linguagem poética e especulativa (FALCHETTA, 2002, p. 61FALCHETTA, Piero. Benedetto Cotrugli et son traité De navigatione (1464-1465). The Historical Review, vol. 9, 2002, p. 53-62.). Mas o tratado permaneceu inédito, e o impacto de seu pensamento não ofereceu continuidade em livros do gênero.
Embora seja improvável que Pacheco Pereira tenha lido qualquer um dos portulanos e tratados acima mencionados, o autor do Esmeraldo é um herdeiro direto do Zeitgeist de todos eles. Lembre-se, por exemplo, a participação italiana nos empreendimentos marítimos portugueses, incluindo a arte da navegação, a perícia na construção de navios e os desenhos de mapas, numa época em que a cosmografia mediterrânica abandonava seus princípios teológicos e procurava investir na representação prática dos espaços comerciais conhecidos (NEWITT, 2010, p. 6-7NEWITT, Malyn (ed.). The Portuguese in West Africa, 1415-1670. Cambridge: Cambridge University Press, 2010.). Muitos dos manuscritos portugueses relativos às viagens no século XV (roteiros, diários de bordo, guias náuticos) perderam-se com o tempo, e é difícil supor o que pode ter sido efetivamente produzido nessa época. A Itália, no entanto, país que mais se interessou pelas viagens portuguesas (a ponto, inclusive, de banqueiros italianos financiarem algumas das expedições), preservou em manuscritos muitas de suas contribuições sobre a cosmografia e a marinharia. A precariedade de fontes modernas portuguesas no tempo de Pereira, contudo, era irremediável. Isso torna o explorador uma figura única em seu tempo.
Considerações finais
O Esmeraldo, conforme se viu, representou um salto expressivo na qualidade dos roteiros de viagem naqueles primórdios do mundo moderno, mas contou com poucos continuadores na primeira metade do século XVI, seja porque permaneceu inédito, seja porque em Portugal não surgira outro nome potencialmente capaz de dar continuidade à grandeza literária de seu projeto, à exceção de D. João de Castro17 17 Na segunda metade do século XVI, os roteiros portugueses alcançam maturidade e dimensão internacional. No Itinerario (1596), a conhecida obra do explorador holandês Jan Huygen van Linschoten, pode-se contar cerca de cento e trinta e sete páginas de tradução de roteiros portugueses, ao lado de apenas dezoito de roteiros espanhóis. Ver Mota (1969, p. 28). . Oscilando entre o elogio das conquistas e de seus monarcas e o lamento pela própria sorte e pelas dificuldades humanas e financeiras das conquistas, Pereira dá um passo adiante na composição das cosmografias de seu tempo: abandona o modelo da geografia sacra, de tradição medieval, e da geografia mercantilista, de inspiração italiana, para inaugurar uma geografia expansionista, em que os espaços cosmográficos são registrados por uma ordem hierárquica e política. Seu livro expõe o mundo não conforme ele se dá a conhecer pelas descobertas, mas conforme ele se reconfigura por meio das mudanças operadas pelo domínio político português. Sua sentença no prólogo do livro é reveladora: “e agora, por ua virtude divinal e graça especial, Vossa Alteza manda tudo, sendo o caminho de vossos cavaleiros posto tanto avante pelas terras e Índicos mares e Asiáticas ribeiras, como onde reluziram os feitos do grande Alexandre” (Esmeraldo, Prólogo, p. 533). Vossa Alteza manda tudo: o universo se abre a suas mãos, para que o homem desfrute de seus bens.
Diferentemente dos portulanos italianos, Pacheco Pereira não voltou os olhos para a cosmologia clássica. O mundo incorruptível de Aristóteles não lhe teria sido útil aos propósitos expansionistas. Pode-se afirmar que, à sua época, a cosmologia ainda não havia tomado forma sólida em Portugal, o que apenas em parte é verdadeiro. De qualquer forma, mesmo conhecendo os modelos cosmológicos disseminados em Portugal no seu tempo e mesmo tendo presumivelmente lido o Tratado da Esfera de Sacrobosco, que ele conheceu numa tradução portuguesa contida no Regimento de Munique (CARVALHO, 1967, 58CARVALHO, Joaquim Barradas de. As fontes de Duarte Pacheco Pereira no “Esmeraldo de Situ Orbis”. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1967.), Pereira mostra-se alheio à discussão cosmológica. O universo que lhe interessa é a geografia das conquistas e a ciência prática que se presta às facilidades da navegação astronômica.
Fraco humanista, pouco conhecedor das línguas clássicas, dono de uma erudição incipiente, Duarte Pacheco Pereira tem, no entanto, outros méritos: é militar de conquistas importantes, é homem das práticas de navegação, mas também é o pesquisador inquieto da cosmografia e da história do reino que ele ajudou a edificar. Não foi apenas um técnico da marinharia. Mais que isso, foi homem de ciência, cosmógrafo e homem de letras.
O Esmeraldo de situ orbis é o primeiro roteiro de viagem moderno escrito exclusivamente aos propósitos de uma política de expansão e de conquistas, a desenhar a imago mundi conforme os critérios de seu jugo político. Um rio da África não é apenas um rio da África, mas um rio que foi descoberto por certo nobre da máquina administrativa portuguesa que o batizou com nome cristão. No Esmeraldo, não há menção ao paraíso terrestre, nem aos lugares santos, nem aos milagres dos apóstolos18 18 Em Esmeraldo, IV, 3, p. 694, há uma rápida menção ao apóstolo Tomé, quando se trata da evangelização da Índia, conforme tradição medieval. , nem à cosmologia teológica, nem às esferas celestes, nem à representação da criação e da salvação humana. Mas o livro também não se limita a uma descrição de terras, postos comerciais, culturas e animais, como o fizeram Cotrugli e os autores anônimos dos portulanos. Embora seja também uma descrição de tudo isso, o livro sustenta a retórica de que o espaçamento geográfico representado está circunscrito a uma sujeição imposta pela força e pela autoridade política de uma máquina administrativa expansionista. A nova cosmografia só existe porque a expansão marítima portuguesa a reinventou.
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3
As edições modernas, entretanto, estampam nomes de autores (O livro de marinharia de André Pires, por exemplo), apenas para sugerir que aquele nome aparece em algum momento do livro, o que não quer dizer que ele tenha redigido o texto, mas é certo que tenha interferido de alguma maneira na obra. Ver, por exemplo, Albuquerque (1977, p. 6)ALBUQUERQUE, Luís (ed.). O Livro de Marinharia de Pero Vaz Fragoso. Lisboa: Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1977..
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Sobre o problema das migrações, Malyn Newitt (2010, p. 2-3)NEWITT, Malyn (ed.). The Portuguese in West Africa, 1415-1670. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. aponta pelo menos três tipos de diásporas como consequência da expansão portuguesa nesse período: a diáspora portuguesa propriamente (camponeses que se arriscaram na vida marítima); a diáspora judaica, à época em que judeus foram expulsos da Península Ibérica; e a diáspora de africanos, trazidos de suas terras como escravizados.
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Albuquerque (1977, p. 5)ALBUQUERQUE, Luís (ed.). O Livro de Marinharia de Pero Vaz Fragoso. Lisboa: Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1977. propõe definições para os três gêneros que compuseram a literatura de navegação dos séculos XVI e XVII: os guias náuticos, que dizem exclusivamente respeito a regras de astronomia náutica e a pilotagem; os roteiros, com descrições de caráter roteirístico, incluindo áreas terrestres, localizações de portos, conhecenças; e os livros de marinharia, que misturam regras de pilotagem e marinharia náutica com descrições roteirísticas e eventualmente com observações dos pilotos feitas durante uma dada viagem, com registro de acontecimentos.
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Os números em romanos referem-se ao livro do roteiro de Pereira, e os números sequenciais, ao capítulo e à página referente à mencionada edição. Para a leitura do presente artigo, foi lida e consultada a edição portuguesa de Joaquim Barradas de Carvalho (1991)CARVALHO, Joaquim Barradas de. Esmeraldo de situ orbis de Duarte Pacheco Pereira: édition critique et commentée. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 1991.. Sobre a viagem de Pacheco Pereira ao Brasil, ver Granda (2000)GRANDA, Edgar Ávila; SILVEIRA, Marcos Borges. A viagem de Duarte Pacheco Pereira. Biblos, vol. 12, 2000, p. 65-73.; Domingues (2012)DOMINGUES, Francisco Contente. A travessia do mar oceano: a viagem ao Brasil de Duarte Pacheco Pereira em 1498. Parede: Tribuna, 2012.; e Carvalho e Pinto (2012, p. 225)CARVALHO, Andreia Martins de; PINTO, Pedro. Da Caça de Mondragon à Guarda do estreito de Gibraltar (1508-1513): os guardiões da memória de Duarte Pacheco Pereira e a Economia da Mercê nos sécs. XVI-XVII. Anais da História de Além-Mar, n. 13, 2012, p. 221-332..
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Sobre o título do livro de Pacheco, ver Carvalho (1983, p. 118-123).
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Muito se especulou sobre a existência e a condição de vida dos antípodas, os homens que, do outro lado do mundo, viviam em lugares diametralmente opostos aos dos habitantes da Europa: Alberto Magno supôs a existência de um poder magnético que os firmasse à terra, e Nicolau de Oresme negou-lhes a existência, porque os Evangelhos eram claros ao dizer que a fé de Cristo alcançaria o mundo inteiro (SANTAREM, 1849, p. 142SANTAREM, Le Vicomte. Essai sur l’histoire de la cosmographie pendant le Moyen-Âge et sur le progrès de la géographie après les grandes découvertes du XVe siècle. Paris: Imprimérie Maulde et Renou, 1849 (2 vols.).).
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O planisfério é um dos mais importantes documentos cartográficos da primeira metade do século XVI, e nele, a África é a figura central, a mais perfeitamente traçada e ricamente iluminada com rubricas, possivelmente em função do levantamento hidrográfico que José Vizinho e Duarte Pacheco Pereira ali fizeram nos tempos de D. João II (ANDRADE, 1972, p. 390-401ANDRADE, António Alberto Banha de. Mundos novos do mundo: panorama da difusão, pela Europa, de notícias dos Descobrimentos Geográficos Portugueses. Lisboa: Junta de Investigações do Ultramar, 1972.). A autoria desse documento tem sido discutida, e o nome do cartógrafo português Pedro Reinel vem sendo cogitado como autor (METCALF, 2017, p. 41METCALF, Alida C. Who Cares Who Made the Map? La Carta del Cantino and its anonymous maker. e-Perimetron, vol. 12, n. 1, 2017, p. 1-23.). Hércules I, duque de Ferrara, que encomendou o mapa, por intermédio de Alberto Cantino, era um homem que representava a perfeita consciência do Renascimento: mantinha importantes nomes da cultura humanista em sua corte e ocupou-se de geografia e cartografia, tendo atribuído a Cantino a missão secreta de obter em Lisboa um mapa com informações atualizadas sobre as descobertas portuguesas, num tempo em que D. Manuel havia imposto a pena de morte a quem expedisse qualquer mapa fora dos territórios nacionais (MILANO, 1991, p. 96MILANO, Ernesto. La carta del Cantino e la rappresentazione della Terra nei codici e nei libri a stampa della Biblioteca Estense e Universitaria. Modena: Il Bulino, 1991.).
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De fato, uma série de anotações dos registros do monastério de Murano autenticam a comissão régia portuguesa no mapa, e efetivamente um mapa-múndi partiu de Veneza a Lisboa em 1459. Inúmeras evidências sugerem que se trata efetivamente do mapa de Fra Mauro, mas não é possível sabê-lo com certeza (FALCHETTA, 2006a, p. 38-42FALCHETTA, Piero. Storia del Mappamondo di Fra’ Mauro con la trascrizione integrale del testo. Rimini: Imago SRL, 2006a.).
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Diferentemente do proposto por Falchetta, há sugestões de que os portulanos foram instrumentos importantes de navegação, mas mesmo no final do século XVI, a experiência prática dos pilotos era bem mais decisiva (TUCCI, 1958, p. 73-75TUCCI, Ugo. Sur la pratique vénitienne de la navigation au XVIe siècle: quelques remarques. Annales, n. 1, 1958, p. 72-86.).
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Pelas evidências registradas nos dois códices, é possível sugerir que o manuscrito de Lisboa tenha sido cópia do manuscrito de Évora, mas ambos são documentos não autógrafos que podem ter sofrido corrupções em relação ao códice original (CARVALHO, 1983, p. 134).
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O mapeamento de terras economicamente interessantes para a demarcação de rotas comerciais foi também uma estratégia comum usada antes e depois de Pereira: pode ser rastreada, por exemplo, 1) no relato de viagem de Alvise Cadamosto (Viagens... 1988VIAGENS de Luís de Cadamosto e de Pedro de Sintra. Lisboa: Academia Portuguesa de História, 1988.), escrito depois de 1460 e publicado em Milão (1507), na coletânea de opúsculos Paesi Nouamente retrouati, vertida para o latim no ano seguinte, na coleção Itinerarium Portugallensium, e depois para o italiano no Navigazioni e viaggi, de Giambattista Ramusio (a partir de 1550); 2) na “Descripção de Ceuta e norte da África” e na descrição histórico-geográfica das ilhas do Atlântico conquistadas por exploradores portugueses, ambas escritas por Valentim Fernandes (BAIÃO, 1940BAIÃO, António (ed.). O Manuscrito “Valentim Fernandes”: oferecido à Academia por Joaquim Bensaúde. Lisboa: Academia Portuguesa da História, 1940.), tradutor e escritor alemão radicado em Portugal; e 3) e no Livro de Duarte Barbosa, concluído entre 1517-1518, com descrição de inúmeros países do oriente e com informações apresentadas por meio de uma estratégia expansionista, ao estilo de Pereira, incluindo um levantamento de pedras preciosas, indicadores econômicos, presença ou ausência de mouros inimigos, drogarias e até mesmo uma relação de pesos e medidas utilizadas em países do Oriente (BARBOSA, 1992BARBOSA, Duarte. O livro de Duarte Barbosa. Ed. Águas Neves. Lisboa: Publicações Europa-América, 1992.). É o legado de Pacheco Pereira que se evidenciava.
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Ver Albuquerque (1963ALBUQUERQUE, Luís (ed.). O Livro de Marinharia de André Pires. Lisboa: Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1963., 1969, 1977); Bourdon e Albuquerque (1977)BOURDON, Léon; ALBUQUERQUE, Luís (ed.). Le “Livro de Marinharia” de Gaspar Moreira. Lisboa: Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1977.; Costa (1960)COSTA, Abel Fontoura da. A marinharia dos descobrimentos. Lisboa: Agência Geral das Colónias, 1960.; Lisboa (1903)LISBOA, João de. Livro de marinharia. Tratado da agulha de marear de João de Lisboa. Roteiros, sondas e outros conhecimentos relativos à navegação, copiado e coordenado por Jacinto Ignacio de Brito Rebello. Lisboa: Imprensa de Libâneo da Silva, 1903.. O livro de Marinharia de Pero Vaz Fragoso, por exemplo, é um dos raros livros de marinharia a expor uma nota pessoal, em que o piloto (nesse caso, o próprio Fragoso) diz ter sido salvo de uma tribulação marítima em Mottama, Myanmar (antiga Birmânia), por uma ação de Nossa Senhora (ALBUQUERQUE, 1977, p. 33ALBUQUERQUE, Luís (ed.). O Livro de Marinharia de Pero Vaz Fragoso. Lisboa: Junta de Investigações Científicas do Ultramar, 1977.).
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Cartas portulanas são mapas náuticos, também chamadas de “cartas de navegar” ou “cartas de marear”; e portulanos são descrições textuais, sem mapas, de espaçamentos geográficos especialmente do Mediterrâneo, incluindo portos, rotas, distâncias etc. Ver Rosselló I Verga (2011, p. 56)ROSSELLÓ I VERGER, Vicenço. La carta de navegar: un instrumento mediterráneo de amplia difusión. Medievalismo, vol. 21, 2011, p. 55-79..
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Embora os propósitos do autor anônimo sugiram que ele tenha mantido ligações com o comércio marítimo, seu livro parece ter sofrido acréscimos de fontes tradicionais a pedido de um cônego, igualmente anônimo, que teria conduzido o trabalho para um direcionamento mais religioso. Ver Gautier Dalché (1995, p. 97)GAUTIER DALCHÉ, Patrick. Carte marine et portulan au XIIe siècle: Le Liber de existencia riveriarum et forma maris nostri mediterranei (Pise, circa 1200). Paris: École Française de Rome, 1995.. É preciso considerar ainda que o Liber, para além de seu plano sustentado pela geografia sacra, mantém um curioso trânsito entre a cultura técnica e a cultura clerical, expondo a imago mundi como uma espécie de teatro dos acontecimentos da salvação. Ver também Bellomo (2008, p. 224)BELLOMO, Elena. Sapere nautico e geografia sacra alle radici dei portolani medievali (secoli XII-XIII). Quaderni di Storia Religiosa, vol. 15, 2008, p. 215-241..
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Na segunda metade do século XVI, os roteiros portugueses alcançam maturidade e dimensão internacional. No Itinerario (1596), a conhecida obra do explorador holandês Jan Huygen van Linschoten, pode-se contar cerca de cento e trinta e sete páginas de tradução de roteiros portugueses, ao lado de apenas dezoito de roteiros espanhóis. Ver Mota (1969, p. 28)MOTA, Avelino Teixeira da. Evolução dos roteiros portugueses durante o séc. XVI. Revista da Universidade de Coimbra, vol. 24, 1969, p. 1-32..
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Em Esmeraldo, IV, 3, p. 694, há uma rápida menção ao apóstolo Tomé, quando se trata da evangelização da Índia, conforme tradição medieval.
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Artigo não publicado em plataforma preprint. Todas as fontes e bibliografia utilizadas são referenciadas no artigo. O autor agradece os pareceristas anônimos da Revista de História, bem como o Centro Universitário de Patos de Minas (UNIPAM), especialmente o Prof. Milton Roberto de Castro Teixeira, pelo apoio financeiro que possibilitou a realização desta pesquisa.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
20 Ago 2021 -
Data do Fascículo
2021
Histórico
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Recebido
28 Mar 2020 -
Aceito
08 Dez 2020