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SIM, O GAÚCHO ERA GAY

Resenha do livro: KOCH, Jandiro Adriano. . O gaúcho era gay? Mas bah! (1737-1939) . Porto Alegre: MAR Edições, 2023.

Em um artigo já consagrado, Elias Veras e Joana Pedro (2014VERAS, Elias Ferreira; PEDRO, Joana Maria. Os silêncios de Clio: escrita da história e (in)visibilidade das homossexualidades no Brasil. Tempo e argumento, v. 6, n. 13, 2014. ISSN 2175-1803. Acesso em: 17 set. 2023. doi: doi: https://doi.org/10.5965/2175180306132014090
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) colocaram em questão o regime cis-heteronormativo da historiografia brasileira, observando que a alegada “ausência de fontes” oculta uma dificuldade maior, qual seja, a resistência de uma área ainda conservadora em dedicar-se ao estudo de dissidentes de normas de gênero e sexualidade. A despeito da consolidação de uma rede de Historiadorxs LGBTI+ rica em trocas e discussões e da disputa por seu espaço na Associação Nacional de História, por vezes ainda nos deparamos com interrogações de colegas sobre a existência de documentos. Pois bem: ao menos no caso do Rio Grande do Sul, se é que em algum momento esse questionamento fez sentido, agora ele se desfaz de vez.

Em boa hora vem a público o livro O gaúcho era gay? Mas bah! de Jandiro Adriano Koch. O autor, que escreveu Babá, esse depravado negro que amou (KOCH, 2019KOCH, Jandiro Adriano. Babá, esse depravado negro que amou. Porto Alegre: Libretos, 2019.), foi vencedor do prêmio Açorianos de 2021, pela obra O crush de Álvares de Azevedo (KOCH, 2021KOCH, Jandiro Adriano. O crush de Álvares de Azevedo. Porto Alegre: Libretos , 2021.), como ensaio e livro do ano. Ele já é conhecido, então, do público. Em diálogo, e talvez em resposta, ora a autores que afirmaram a raridade de evidências sobre LGBTQIAPN+ na documentação rio-grandense da virada do século XIX para o XX (TRUSZ, 2004TRUSZ, Alice Dubina. Almofadinhas. Jornal do Nuances. Porto Alegre, 28 de maio 2004. p. 12.), ora a quem afirmou a presença da homossexualidade historicamente nas plagas sulinas, mas sem apoiar-se em fontes documentais (MAESTRI, 2006MAESTRI, Mário. O gaúcho era gay? Quando o arco-íris assombra. Arquipélago - Revista de livros e ideias, Porto Alegre, n. 7, p. 56-59, out. 2006.), Koch realiza um exaustivo e impressionante levantamento de documentos que evidenciam uma ancestralidade sócio-histórica para a comunidade LGBTQIAPN+ do Rio Grande do Sul. O pesquisador, de curiosidade incansável, trabalhou especialmente com fontes de imprensa, mas também levantou autos inquisitoriais, dossiês policiais, documentação judicial, tratados médicos e textos literários desde o século XVIII até o Estado Novo. Com isso, ainda que não empregue o termo “história pública”, propõe-se a “oferecer um conjunto probatório para pautar ações públicas e privadas” (p. 385).

O livro é modesto em seus objetivos explícitos e ambicioso em sua envergadura. O autor afirma pretender “dar relevo às fontes”, compondo “um conjunto indiciário” capaz de constituir um “índice para pesquisadores” (p. 11), evitando a “dissecação pormenorizada e extensa em cada tópico”, mas facultando aos interessados fazê-lo “em artigos específicos, por quem se interessar” (p. 385). Isso evidencia a generosidade de Jandiro, ao descortinar um mundo para a pesquisa acadêmica - um mundo de sodomitas e almofadinhas, de maricas e pirobos, de transformistas e travestis, de ganymedes e adamados, de homens-mulher e uranistas, e muitas outras pessoas - e demonstrar como e onde podem ser encontradas as referências.

Engana-se, porém, quem acreditar estar diante de um mero compilado de documentos. O livro de Koch entrega muito mais do que promete. Ainda que se centre nas homossexualidades masculinas e no caso rio-grandense, quem estudar lesbianidades ou a repercussão no estado de episódios ocorridos em outros lugares também encontrará referências valiosas. Como qualquer estudo histórico sobre LGBTQIAPN+, algumas questões teóricas e metodológicas se impuseram, e o autor não hesitou em se posicionar, às vezes de forma incisiva, em relação a elas. Refiro-me a aspectos como a utilização de termos anacrônicos como gay e gaúcho - que ele resolve por meio do emprego do itálico, em um “emprego didático” (p. 211), como “marca de licença” de fins de “recurso explicativo” voltado ao público não acadêmico (p. 12) -, do uso de pronomes e adjetivos flexionados tal como registrados na documentação - em que afirma desconhecer a autorrepresentação dos sujeitos históricos -, e da questão, que sempre volta, do anacronismo no estudo das dissidências de gênero e sexualidade - e que, a meu ver, não tem uma fórmula que possa servir como panaceia, mas depende do talento empregado por cada historiador ao estudar casos particulares. Talento não falta a Jandiro, e o mais bacana é que o autor oferece instrumentos para interpretação histórica, inclusive para quem discordar de suas opções teóricas. Não sei se concordo com todas: por exemplo, já tenho minhas dúvidas se o anacronismo ainda é o “fantasma do historiador” (p. 383), desde que cuidadosamente controlado, metodologicamente refletido e devidamente explicitado.

O trabalho do autor vincula-se a um projeto historiográfico nítido, qual seja: “fornecer fundamento para as reflexões sobre quem, como e onde, no RS, foram, agiram e estiveram os LGBTQIA+” (p. 382) e ainda “afastar aquela quase máxima de que não é possível localizar dados sobre LGBTQIA+, porque teriam sido invisibilizados e silenciados” (p. 384). Recusa-se, então, o autor a entender seu livro como coleção de “exceções” (p. 381). O levantamento é sólido e demonstra um Rio Grande do Sul que não se reduz à masculinidade cisgênera trazida por um regionalismo que procurou solapar experiências não normativas, como aventa o autor (p. 386).

Isso implica dar relevo aos protagonistas. O texto é dividido em seções temáticas e em subseções, de diferentes dimensões, intituladas com o nome das pessoas cuja história conta. Jandiro Koch é particularmente cioso em evitar imputar identidades sociais e cauteloso em deduzir sexualidades dissidentes, necessariamente, de performances de gênero inconformes com a norma. O historiador não está preocupado com “inscrições conclusivas de sujeitos e de práticas sexuais em outros tempos em categorias inexistentes então”, colocando tal exercício como impossível e indesejável (p. 48). Assim, fica em suspenso, por exemplo, a homo/heterossexualidade de almofadinhas, transformistas ou demais sujeitos de “modos afeminados”, já que insinuações eram utilizadas para “desancar rivais em disputas amorosas” (p. 47). A pergunta que poderia ser feita é se o reconhecimento da existência de uma heterossexualidade compulsória, no caso, da disseminação de casamentos heterossexuais “de fachada”, como bem reconhece o autor (p. 208), não permitiria inferências mais ousadas sobre sexualidades dissidentes em uma sociedade opressora.

Seu livro é particularmente cuidadoso com a forma literária e tem uma prosa deliciosa, mérito infelizmente raro no métier. Isso ocorre em virtude do fato de Jandiro dirigir-se, de uma vez só, a interlocutores acadêmicos e ao grande público leitor de fora das universidades. Ele, entretanto, o faz sem ceder em nada em relação às regras da arte, aos deveres de ofício, ao rigor no emprego das fontes. A coloquialidade da escrita não implica um texto menos científico. Atender a ambos os públicos, reconhece o autor, “não é nada fácil” (p. 385). Todavia, creio que aqui está a origem da única limitação que identifico na obra, ou seja, a escassez de discussão historiográfica e de diálogo com a bibliografia especializada. Não é que o autor não traga à sua obra o apoio de livros de seus pares, mas nem sempre fica clara a razão e o critério dos recortes adotados. Certamente isso se deve à opção consciente por escrever um texto menos truncado de academicismos, e poderá ser feito nos artigos que Jandiro nos convida a escrever. Ainda assim, a leitura estimula algumas conexões bibliográficas cuja omissão pode incomodar o leitor universitário - a exemplo do artigo cuja citação dá início a esta resenha.

O autor tem o desplante de afirmar que não foi adiante por “falta de fôlego” (p. 381). Ora, as páginas que temos o prazer de ler terão o efeito de multiplicar pesquisas e possibilitar novas abordagens e aprofundamentos. O que não falta ao livro é fôlego, mas, de qualquer forma, esperamos com ansiedade a possível continuação desse fim “temporário”, como promete o autor: “isso é assunto para outros livros ou para uma segunda edição ampliada” (p. 386).

O trabalho inscreve-se em um processo mais amplo, dinamizado pela já mencionada Rede de Historiadorxs, de “descoberta” pela Academia de temáticas há muito exploradas pelos movimentos sociais, expandindo-a para além das grandes capitais do Sudeste. Recentemente foram publicadas obras coletivas reunindo pesquisas sobre o assunto no Rio Grande do Sul (SCHMIDT; WEIMER, 2022SCHMIDT, Benito Bisso; WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Histórias lesbitransviadas do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Taverna , 2022.) - inclusive com texto de Koch (2022KOCH, Jandiro Adriano. A extraordinária vida de Walter Bank. In: SCHMIDT, Benito Bisso; WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Histórias lesbitransviadas do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Taverna, 2022.) - e no país de uma forma mais geral (RODRIGUES; VERAS; SCHMIDT, 2021RODRIGUES, Rita de Cássia Colaço; VERAS, Elias Ferreira; SCHMIDT, Benito Bisso. Clio sai do armário: historiografia LGBTQIA+. São Paulo: Letra e Voz, 2021.; SOUTO MAIOR; QUINALHA, 2023SOUTO MAIOR, Paulo; QUINALHA, Renan. Novas fronteiras da história LGBTI+ no Brasil. São Paulo: Elefante, 2023.; VERAS; PEDRO; SCHMIDT, 2023VERAS, Elias Ferreira; PEDRO, Joana Maria; SCHMIDT, Benito Bisso. (Re)existências LGBTQIA+ e feminismo na ditadura civil-militar e na redemocratização do Brasil. Maceió: Edufal, 2023.). Nesse sentido, o trabalho aqui resenhado não apenas integra um esforço historiográfico coletivo, mas também o estimula em todas as possibilidades de pesquisa que descortina.

Por fim: o livro de Jandiro Adriano Koch marca de forma decisiva a historiografia brasileira sobre pessoas LGBTQIAPN+? Mas bah!

Referências bibliográficas

  • KOCH, Jandiro Adriano. Babá, esse depravado negro que amou. Porto Alegre: Libretos, 2019.
  • KOCH, Jandiro Adriano. O crush de Álvares de Azevedo. Porto Alegre: Libretos , 2021.
  • KOCH, Jandiro Adriano. A extraordinária vida de Walter Bank. In: SCHMIDT, Benito Bisso; WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Histórias lesbitransviadas do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Taverna, 2022.
  • MAESTRI, Mário. O gaúcho era gay? Quando o arco-íris assombra. Arquipélago - Revista de livros e ideias, Porto Alegre, n. 7, p. 56-59, out. 2006.
  • TRUSZ, Alice Dubina. Almofadinhas. Jornal do Nuances. Porto Alegre, 28 de maio 2004. p. 12.
  • RODRIGUES, Rita de Cássia Colaço; VERAS, Elias Ferreira; SCHMIDT, Benito Bisso. Clio sai do armário: historiografia LGBTQIA+. São Paulo: Letra e Voz, 2021.
  • SCHMIDT, Benito Bisso; WEIMER, Rodrigo de Azevedo. Histórias lesbitransviadas do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: Taverna , 2022.
  • SOUTO MAIOR, Paulo; QUINALHA, Renan. Novas fronteiras da história LGBTI+ no Brasil. São Paulo: Elefante, 2023.
  • VERAS, Elias Ferreira; PEDRO, Joana Maria. Os silêncios de Clio: escrita da história e (in)visibilidade das homossexualidades no Brasil. Tempo e argumento, v. 6, n. 13, 2014. ISSN 2175-1803. Acesso em: 17 set. 2023. doi: doi: https://doi.org/10.5965/2175180306132014090
    » https://doi.org/10.5965/2175180306132014090
  • VERAS, Elias Ferreira; PEDRO, Joana Maria; SCHMIDT, Benito Bisso. (Re)existências LGBTQIA+ e feminismo na ditadura civil-militar e na redemocratização do Brasil. Maceió: Edufal, 2023.

Editado por

Editores Responsáveis

Miguel Palmeira e Stella Maris Scatena Franco

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Ago 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    19 Out 2023
  • Aceito
    25 Mar 2024
Universidade de São Paulo, Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Departamento de História Av. Prof. Lineu Prestes, 338, 01305-000 São Paulo/SP Brasil, Tel.: (55 11) 3091-3701 - São Paulo - SP - Brazil
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