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Um olhar sobre o anjo negro na metrópole

A look at the black angel in the metropolis

RESUMO

Esta resenha tece considerações sobre a trajetória do músico e educador Salloma Salomão e suas relações familiares e sociais na cidade de São Paulo. Refletir sobre essa trajetória permitiu compreender como os excluídos sociais forjaram seus modos de vida e arte na metrópole.

PALAVRAS-CHAVE
Salloma Salomão; musicalidade; educação e cultura

ABSTRACT

This review considers the trajectory of the musician and educator Salloma Salomão and his family and social relationships in the city of São Paulo. Reflecting on this trajectory allowed us to understand how the socially excluded forged their ways of life and art in the metropolis.

KEYWORDS
• Salloma Salomão; musicality; education and culture

Se africano fosse, Salloma Salomão poderia ser considerado um sábio nos termos de Odera Oruka2 2 Ver: O pensamento africano sul-saariano: conexões e paralelos com o pensamento latino-americano e o asiático (um esquema) (DEVÉS-VALDÉS, 2008). . Aquele cujo conhecimento sobre música, teatro, história, dança, antropologia e sociologia extrapola abordagens fechadas. Seu estilo é o de quem recusa a clausura intelectual e artística.

Seu livro Pretos, prussianos, índios e caipiras é um ajuste de contas não só com a memória pessoal, mas também com a familiar e a de outras pessoas que atravessaram os caminhos e descaminhos do autor. Memórias de uma gente teimosa. Daquela que driblou esquecimentos e projetos de higienização. Que forjou, via laços familiares, artísticos e de trabalho, uma vida possível e digna. De uma gente que digeriu humilhações diárias com a altivez possível. Movendo-se em esquemas branco-modernos, os negros, mestiços e brancos pobres no livro de Salloma buscaram elaborar outros Brasis. Talvez, aqueles forjados nas relações da vida cotidiana, com seus saberes impregnados de gestos, imaginação e arte herdados dos africanos e africanas.

Aquelas e aqueles que, por um lado, vivenciaram o crime do tráfico e da escravidão contra suas humanidades e, por outro, foram capazes de reinventar modos de vida com relativa altivez por meio da arte, musicalidade e religiosidade. Por saber ser descendente dessa gente, sinto uma alegria enorme em identificar como os negros e as negras no livro de Salloma foram pensadores de suas próprias histórias.

Histórias que se fizeram desde as Minas Gerais com seus laços familiares, que remetem ao período trágico da escravidão, até as migrações de pessoas desse Brasil mineiro para São Paulo, ao longo do século XX - ou, mais precisamente, a partir da década de 1940, quando o fluxo dos nacionais do Nordeste e do Brasil central tomou rumo em direção à cidade, substituindo a antiga migração de estrangeiros europeus.

Na cidade, essas histórias, que pelo prisma da geografia se fizeram nas suas bordas, do ponto de vista social foram centrais por redefinirem vivências e culturas na metrópole. Absolutamente atento a esses modos de vida negros e periféricos, Salloma abre conversa com Milton Santos, esse nosso mais antigo da geografia, para analisar como os excluídos se apropriaram do território para forjar uma cidade que tivesse a sua marca e os seus valores. Tanto Salloma como Milton compreendem como os excluídos são os que nutrem e hidratam uma relação profunda com o território. Caro leitor e cara leitora, essa relação profunda pode ser notada quando Salloma, de modo afetivo e amoroso, e não poderia ser de outra forma, nos conta sobre a dedicação de sua mãe, Donana, com as plantas no quintal.

Desde a urbanização do século XIX, a cidade sempre foi para os excluídos um espaço vital para disseminar suas utopias. Se para as classes abastadas a cidade era a sujeira e a doença, para os excluídos era seu lugar de sonhos e vivências. Bem, nunca é demais lembrar que para os iorubás a cidade não é um complexo burocrático-administrativo, mas, sim, uma experiência orgânica de relação comunitária.

Mas qual é a cidade de Salloma? A periferia sul de São Paulo. Nos termos de jovens rappers, a cidade era a “quebrada”. Nos de Salloma, a “beirada”, as “encostas”, os “bairros do fundo”. Nela há imaginação e arte, música e educação. E, por meio dessas formas de sabedoria, a cultura negra mestiça periférica emerge vibrante e altiva: musicalidades, danças, festivais, encontros, atividades educacionais, ativismo cultural e político, afeto, amizade e relações familiares.

Para além dessas vivências, o autor também versa sobre ativismo e intelectualidade negra. Reconhecendo ser resultado de um processo de escolarização que, aliás, coincide com sua própria vida escolar, versa sobre o letramento coletivo negro. Identifica, e com razão, serem esses agentes letrados donos de uma interpretação alternativa ao pensamento social brasileiro hegemônico. Filia-se à linha do pensamento social negro que critica o racismo made in Brazil, bem como o colonialismo e outras formas de tecnologias totalitárias. O leitor e a leitora são convidados a pensar o Brasil por esse prisma. A partir dele, é possível compreender que a nação foi não só ingrata, mas buscou fazer sucumbir a humanidade dos negros mestiços nos bolsões de pobreza e apartá-los nas cidades. Vislumbra-se, no entanto, que a plena democracia social só será possível com a cidadania e a reparação étnica a favor dos negros mestiços.

Outra importante questão tratada pelo autor diz respeito às memórias e às heranças dos centro-africanos no Brasil. Sem cair na armadilha da contraposição entre iorubás e congo-angolas, o autor busca fazer um ajuste de contas historiográfico. Salloma não é o primeiro a fazê-lo. Desde Edison Carneiro, Nei Lopes e Spirito Santo, as indagações sobre a memória e os costumes dos centro-africanos estavam no radar dos pesquisadores. No final da década de 1970, Nei e Spirito Santo se inquietavam com essa parte da África e suas repercussões no Brasil. Salloma segue esse prisma e torna ainda mais robusta tal tendência de análise ao se debruçar sobre a história de sua própria família.

Sobre os tais “prussianos” mencionados pelo autor, trata-se de brancos pobres descendentes de europeus, convivendo lado a lado com negros, nordestinos e outros mestiços pobres da metrópole. A partir dessas relações intergrupais e étnicas nos bairros da zona sul, avalia ser a miscigenação bem como o racismo antinegro traços incontestáveis da sociedade brasileira.

Não menos importante, o autor tratará de sua relação com a música. Suas andanças indicam uma vasta experiência de engajamento em coletivos e bandas como Grupo Fé, Na Corda Bamba, Tribbu e Vândalos de Chocolate. Tais vivências são consideradas pelo autor como parte de uma “contracultura” jovem e periférica. Salloma parece sugerir, com o termo contracultura, a difusão de ideias, histórias, éticas, estéticas deslocadas da cultura branca hegemônica. E o autor/músico faz isso muito bem, como está registrado em sete CDs, três DVDs e diversas publicações acadêmicas.

Merece também comentário o projeto musical nomeado pelo autor 3 mil tons, que deixou revelar sua admiração por Milton Nascimento, Milton Santos e Milton Gonçalves. O músico, o geógrafo e o ator provocaram em Salloma indagações em torno de três homens negros que se destacaram em suas respectivas áreas. Considerando ter assistido a em torno de uma dezena de seus shows, me parece ter sido esse o mais belo projeto.

Ciente das dificuldades de ganhar o pão como músico, o autor embrenhou-se também no mundo da alfaiataria e docência escolar, na rede pública e privada. Talvez seja apropriado dizer que sua trajetória se fez enquanto um artista-educador. Nessa trilha da vida escolar, Salloma se fez um historiador com títulos de graduação, mestrado e doutorado pela PUC-SP (SILVA, 2005SILVA, “Salloma” Salomão Jovino da. Memórias sonoras da noite: musicalidades africanas no Brasil oitocentista. 431 f. Tese (Doutorado em História). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2005.). Durante sua vida de estudos, fez imersões de pesquisa buscando investigar musicalidades negras urbanas nos séculos XIX e XX. Investigador meticuloso, seus estudos revelam modos de vida e uma perspectiva negra que, aliás, moldou o Brasil das culturas populares e orais, bem como o mundo letrado - basta acompanhar sua própria trajetória enquanto escritor, dramaturgo, músico, historiador e ator. Ressalte-se também que essa perspectiva negra rejeita visões derrotistas e distópicas. Perspectiva de uma gente negra mestiça que buscou, por meio das artes, musicalidades e religiosidades, elaborar uma resposta ao racismo e ao perecimento.

  • 2
    Ver: O pensamento africano sul-saariano: conexões e paralelos com o pensamento latino-americano e o asiático (um esquema) (DEVÉS-VALDÉS, 2008DEVÉS-VALDÉS, Eduardo. O pensamento africano sul-saariano: conexões e paralelos com o pensamento latino-americano e o asiático (um esquema). Rio de Janeiro: Educam, Clacso, 2008.).

REFERÊNCIAS

  • SILVA, “Salloma” Salomão Jovino da. Memórias sonoras da noite: musicalidades africanas no Brasil oitocentista. 431 f. Tese (Doutorado em História). Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2005.
  • DEVÉS-VALDÉS, Eduardo. O pensamento africano sul-saariano: conexões e paralelos com o pensamento latino-americano e o asiático (um esquema). Rio de Janeiro: Educam, Clacso, 2008.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Maio 2022
  • Data do Fascículo
    Abr 2022

Histórico

  • Recebido
    15 Mar 2022
  • Aceito
    01 Abr 2022
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