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A história do Brasil contada por meio do seu próprio nome

[The history of Brazil told through its own name

A renomeação do Brazil: a construção de uma identidade nacional pela ortografia. . GODOY, Thiago do Nascimento. A renomeação do Brazil: a construção de uma identidade nacional pela ortografia. Campinas: Ofícios Terrestres, 2023

RESUMO

O livro A renomeação do Brazil: a construção de uma identidade nacional pela ortografia, por meio de um retorno ao período da Proclamação da República, apresenta questões sobre a grafia do nome “Brasil” ~ “Brazil”. Mais do que mera questão ortográfica, as reflexões sobre essa temática refletiam, naquela época, a busca por uma nova identidade nacional e pela inserção do país no mundo moderno. Para além de trabalhos da área da história, a fundamentação teórica do livro é marcada por trabalhos importantes da história das ideias linguísticas e da história social do português do Brasil.

PALAVRAS-CHAVE
Ortografia; identidade nacional; história social da língua portuguesa

ABSTRACT

The book A renomeação do Brazil: a construção de uma identidade nacional pela ortografia (“The renaming of Brazil: the construction of a national identity through spelling”) revisits the period of the Proclamation of the Republic and raises questions about the spelling of the name “Brasil” ~ “Brazil”. More than just a question of spelling, the reflections on this issue at the time reflected the search for a new national identity and the country’s insertion into the modern world. In addition to works in the field of history, the book’s theoretical foundation is marked by important works from the history of linguistic ideas and the social history of Brazilian portuguese.

KEYWORDS
Orthography; national identity; social history of the Portuguese language

Ao chegarem às costas brasileiras, [...] os portugueses eram o novo Adão. A cada lugar conferiram um nome – atividade propriamente adamica – e a sucessão de nomes era também a crônica de uma gênese que se confundia com a mesma viagem. (Cunha, 2012, p. 8CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil: história, direitos e cidadania. São Paulo: Claro Enigma, 2012.).

Por meio da nomeação, coisas e identidades (de pessoas e de lugares) são criadas. Em se tratando de nomes próprios – aqueles que carregam um traço de definição muito maior que os nomes comuns –, uma questão que inquieta muita gente, sobretudo no Brasil, é como pode ser a grafia desse grupo de palavras. Nesse âmbito, A renomeação do Brazil: a construção de uma identidade nacional pela ortografia traz, nas linhas e entrelinhas, o olhar de um jovem pesquisador sobre o topônimo Brasil e as suas alterações ortográficas ao longo do tempo.

Em se tratando da ortografia (traduzindo do grego antigo, “escrita correta”) da língua portuguesa, há que se destacar que só podemos falar de ortografia oficial a partir do século XX. Antes disso, o que encontramos são sistemas gráficos mais ou menos comuns, ou seja, com níveis de uso e de disseminação diferentes por toda a esfera lusófona. Precisamente em 1910, após anos de estudos e reflexões, o governo português, de forma unilateral, propôs um sistema ortográfico oficial único e simplificado. Posteriormente, os outros países da Comunidade dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) adotaram (mesmo que não na totalidade) as rubricas desse acordo. A norma que temos vigente atualmente já perdeu de vista essas discussões do século XX, mas também é fruto de acordos e desacordos.

O livro de Thiago Godoy, que parte da história social do português do Brasil para explicar algumas questões de variação e mudança ortográfica, é fruto da dissertação de mestrado defendida, em 2021, por ele na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Atualmente, ele é investigador de doutoramento em Linguística na Unicamp e gestor do perfil Questão de Linguagem (PROF. MANGAPROF. MANGA. Thiago (Manga) Godoy. Questão de linguagem (professor de português). Instagram: @ qlinguagem. Disponível em: https://www.instagram.com/qlinguagem. Acesso em: mar. 2024.
https://www.instagram.com/qlinguagem...
, s. d.) no Instagram, que conta com mais de 170k seguidores.

Com quase uma página de texto a cada mil seguidores no perfil Questão de Linguagem, Thiago Godoy dividiu sua obra em oito2 2 Exclui-se dessa contagem a “Introdução”, que na obra é numerada como capítulo 1. esclarecedores e enciclopédicos capítulos. Isso porque cada capítulo apresenta, de forma articulada, informações independentes que convergem para a construção global do livro. Segundo o próprio autor, o seu objetivo principal é “compreender não especificamente a ortografia de um topônimo, mas investigar as questões e circunstâncias que envolveram essa escolha ortográfica” (p. 18).

O capítulo 2 – que aparece após a “Introdução” da obra – é intitulado “Uma polêmica acadêmica” e traz pontos de vista de diferentes autores sobre a grafia do endônimo (ou autônimo para alguns) Brasil. Thiago Godoy faz uma espécie de estado da arte sobre esse assunto e compartilha com o seu leitor resenhas de textos importantes publicados no início do século XX.

Na sequência o autor aborda a história da ortografia portuguesa desde a sua origem até o século XIX. Para isso, ele vai consultar obras seminais da área, como os trabalhos de Gladstone Chaves de Melo, que contextualizam a polêmica sobre a grafia do nome “Brasil”. Godoy também analisa, no capítulo “A questão ortográfica na língua portuguesa”, alguns textos que apontam para a variação ortográfica característica do século XIX e a solução proposta por Gonçalves Viana em Portugal.

O quarto capítulo, “Companheiros sul-americanos”, levanta as reformas ortográficas que aconteceram na América Latina durante o século XIX. Por meio da bibliografia de Gonçalves Viana, Thiago Godoy faz análises das mudanças que aconteceram em diferentes países, destacando personagens importantes como Andrés Bello, Juan García del Río, Miguel Lemos, Paranhos da Silva e Rodolfo Lenz. Ao analisar as propostas de reforma ortográfica de algumas ex-colônias e de antigas metrópoles, o autor contribui para uma melhor compreensão das relações de poder e da construção de identidades nacionais nesse período.

Intitulado “A caminho de uma reforma brasileira”, no capítulo cinco é apresentado o papel fundamental que a Academia Brasileira de Letras (ABL) teve nas discussões sobre a ortografia da língua portuguesa (sobretudo no Brasil). Para nos fazer entender melhor o contexto histórico e os protagonistas envolvidos, Godoy investiga os símbolos nacionais e as disputas ideológicas que permeavam a sociedade brasileira nos primeiros anos da República.

“Nacionalismos conflitantes” – o sexto capítulo do livro – aborda a proposta de reforma ortográfica da ABL de 1907, elaborada por Medeiros e Albuquerque, que gerou debates e reações dentro e fora da Academia, revelando a disputa entre duas propostas nacionalistas que competiram pela hegemonia na língua portuguesa. A análise – que aborda também textos humorísticos da época para tentar captar como a sociedade estava se posicionando sobre essas questões – revela que, para além de projetos ortográficos distintos, os nacionalismos divergiam na visão de língua e de identidade nacional.

O sétimo capítulo, “A questão ortográfica na língua portuguesa”, mostra como a reforma ortográfica da ABL dividiu a opinião pública entre os “reformistas” e os “antirreformistas” e também explora, trazendo informações sobre a Revolta da Vacina de 1904, como o Estado fez uso do discurso científico para tentar legitimar a reforma. A linguagem é utilizada com o intuito de dar legitimidade e de mobilizar a sociedade, revelando, assim, diferentes visões sobre a língua, a identidade nacional e sobre o papel do Estado diante dessas questões.

Com o objetivo de considerar as reações que os cientistas portugueses tiveram em relação à reforma ortográfica brasileira de 1907, o capítulo “Estaca zero” demonstra que,embora alguns tivessem tecido elogios à proposta, outros, como Cândido de Figueiredo e Gonçalves Viana, criticam-na por considerá-la pouco científica. Assim, a primeira tentativa de conciliar as reformas ortográficas do Brasil e de Portugal, por meio da criação de um texto comum, não obteve sucesso. Isso também aconteceu com tentativas posteriores dessa década.

O último capítulo, que tem um título bastante poético, “Nada do que foi será”, analisa o papel da urbanização que ocorreu nas primeiras décadas do século XX e o surgimento de novas figuras que influenciaram algumas escolhas ortográficas. Analisando também os primeiros acordos e “desacordos” ortográficos entre Brasil e Portugal entre 1915 e 1931, com foco na grafia do nome “Brasil”, Godoy demonstra como as mudanças sociais e políticas de cada época influenciaram (e ainda influenciam) a ortografia da língua portuguesa no/do Brasil.

Como se pode perceber, o livro A renomeação do Brazil: a construção de uma identidade nacional pela ortografia é uma obra enciclopédica sobre o topônimo “Brasil”, sobre alguns acordos ortográficos de língua portuguesa e sobre a história social que permeia essas questões. Além disso, qual a importância desse livro?

A fim de compreender um pouco sobre as diferenças linguísticas existentes entre as comunidades falantes de língua portuguesa, podemos considerar a perspectiva do relativismo linguístico. Essa corrente de pensamento, defendida por Sapir ([1949]2017)SAPIR, Edward. (1949). Cultura, linguagem e personalidade. São Paulo: Perspectiva, 2017. e Whorf (1956)WHORF, Benjamin Lee. Language, thought, and reality. Selected writings of Benjamin Lee Whorf. Ed.: John B. Carroll. Cambridge, MA: The MIT Press, 1956., propõe que as línguas divergem porque refletem diferentes visões de mundo. Dessa forma, cada língua modela a maneira como seus falantes percebem e categorizam a realidade, criando, assim, variações no léxico, na gramática e em outras estruturas.

Desde o século XVI, com a chegada das caravelas portuguesas em terras povoadas pelos povos originários, a língua trazida pelos nossos colonizadores se instalou em nosso território (claro que de forma nada pacífica), deixando testemunhos em documentos de diversos gêneros. É esse português, fruto de séculos de transformações, de adaptações e de muitos contatos, que se torna foco de estudo para quem deseja fazer história da língua portuguesa do Brasil.

Ao ler a obra A renomeação do Brazil: a construção de uma identidade nacional pela ortografia, atentos às diversas fases da ortografia de língua portuguesa e às diferentes leis que tentaram normatizar esse aspecto, podemos nos questionar se a língua pode ser regulada por um decreto e qual o nível de controle que um decreto pode ter sobre determinada língua. Fato é que, no Brasil pós-Proclamação da República, todas as tentativas de regulamentação ortográfica foram marcadas por ideais nacionalistas que estavam borbulhando nesse período.

Sobre o nome “Brasil”, é válido reconhecer que, antes de ser um mero nome, ele se entrelaça com a história e com a identidade do povo brasileiro. Isso porque, segundo Dick (1990, p. 4)DICK, Maria Vicentina de Paula do Amaral. Toponímia e antroponímia no Brasil: coletânea de estudos. 2. ed. São Paulo: FFLCH/USP, 1990., “o topônimo não é algo estranho ou alheio ao contexto histórico-político da comunidade. Sua carga significativa guarda estreita ligação com o solo, o clima, a vegetação abundante ou pobre e as próprias feições culturais de uma região em suas diversas manifestações de vida”. Por toda a obra, fica muito claro que a grafia do nome “Brasil” passou por diferentes alterações ao longo do tempo. Desde a sua origem com o termo tupi3 3 Há que se destacar, no entanto, que a noção de país (Estado) é intrinsecamente eurocêntrica e surgiu no período da Revolução Francesa. Assim, os povos originários brasileiros não se organizavam geograficamente de modo a reconhecer a totalidade territorial, ora mais ora menos unificado (do ponto de vista histórico), do que hoje conhecemos como Brasil. “ibirapitanga” ou “pau-brasil”, passando pela adaptação portuguesa “Brazil” até a forma atual “Brasil”, a grafia do nome está diretamente relacionada com a própria história deste país continental.

Outra informação relevante é que entre os diferentes elementos que são mobilizados na construção daquilo que chamamos de identidade nacional está a língua. Prova disso é que desde 2003, por meio da Convenção para a salvaguarda do patrimonio cultural imaterial, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) reconhece as línguas como patrimônio cultural imaterial. A obra que aqui resenhamos vai totalmente ao encontro dessa proposta de reconhecimento que, ano passado, completou 20 anos de publicação pela Unesco.

Por fim, é verdade que Thiago Godoy não escreve em sua obra ideias novas. Afinal, o que chamamos de “novo” muitas vezes é apenas um “renovado”, algo já dito ou experimentado por outros em diferentes contextos e tempos. As informações do passado, por motivos variados, chegam até nós por meio de registros feitos por aqueles que dedicaram tempo para documentar, cada um em sua época e maneira, suas “verdades” e “novidades”. Julgamos que a principal novidade desse livro está no fato de estabelecer uma historiografia do assunto de forma bastante completa – que muito bem relaciona fontes primárias e secundárias – por meio de uma linguagem, ao mesmo tempo, científica e acessível.

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    Exclui-se dessa contagem a “Introdução”, que na obra é numerada como capítulo 1.
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    Há que se destacar, no entanto, que a noção de país (Estado) é intrinsecamente eurocêntrica e surgiu no período da Revolução Francesa. Assim, os povos originários brasileiros não se organizavam geograficamente de modo a reconhecer a totalidade territorial, ora mais ora menos unificado (do ponto de vista histórico), do que hoje conhecemos como Brasil.

REFERÊNCIAS

  • CUNHA, Manuela Carneiro da. Índios no Brasil: história, direitos e cidadania. São Paulo: Claro Enigma, 2012.
  • DICK, Maria Vicentina de Paula do Amaral. Toponímia e antroponímia no Brasil: coletânea de estudos. 2. ed. São Paulo: FFLCH/USP, 1990.
  • PROF. MANGA. Thiago (Manga) Godoy. Questão de linguagem (professor de português). Instagram: @ qlinguagem. Disponível em: https://www.instagram.com/qlinguagem Acesso em: mar. 2024.
    » https://www.instagram.com/qlinguagem
  • SAPIR, Edward. (1949). Cultura, linguagem e personalidade São Paulo: Perspectiva, 2017.
  • UNESCO – Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura. Convenção para a salvaguarda do patrimonio cultural imaterial Paris, 17 de outubro de 2003. (Tradução feita pelo Ministério das Relações Exteriores, Brasília, 2006). Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001325/132540por.pdf Acesso em: mar. 2024.
    » http://unesdoc.unesco.org/images/0013/001325/132540por.pdf
  • WHORF, Benjamin Lee. Language, thought, and reality Selected writings of Benjamin Lee Whorf. Ed.: John B. Carroll. Cambridge, MA: The MIT Press, 1956.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    20 Mar 2024
  • Aceito
    25 Mar 2024
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