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Ruas, casas e jardins

Streets, houses and gardens

RESUMO

A seção Criação tem por objetivo publicar textos e materiais inéditos de escritores e/ou artistas, fotógrafos, desenhistas, além de documentos inéditos encontrados no Arquivo do IEB/USP. “Ruas, casas e jardins” reúne dois contos sobre a loucura e a morte que exploram a sutil zona de indiferenciação entre a vida subjetiva, transformações urbanas e objetos herdados. Rezende é escritor e professor de Música na Universidade Federal da Integração Latino-Americana. “Um bairro para se perder” se vale de um narrador ao estilo machadiano (SCHWARZ, 2000SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Editora 34, 2000.), aparentemente imparcial, para narrar uma história de amor ambientada em um local em constante transformação, enquanto “O canteiro” elabora livremente a figura da falta com base nas obras de Freud (2011)FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. Tradução, introdução e notas de Marilene Carone. São Paulo: Cosac Naify, 2011. e Lacan (1995)LACAN, Jacques. O seminário. Livro 4: a relação de objeto. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; tradução Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Zahar, 1995..

PALAVRAS-CHAVE
Contos; literatura brasileira; literatura brasileira contemporânea

ABSTRACT

The Creation section has the objective of publish unpublished texts and materials by writers and/or artists, photographers, designers, as well as unpublished documents found in the USP IEB Archive. “Streets, houses, and gardens” brings together two stories about madness and death that explore the subtle zone of indistinctiveness between subjective life, urban transformations, and inherited objects. Rezende is a writer and a Music professor at the Universidade Federal da Integração Latino-Americana. “Um bairro para se perder” employs a narrator in the Machadian style (SCHWARTZ, 2000), apparently impartial, to narrate a love story set in a constantly changing neighborhood, while “O canteiro” freely elaborates on the concept of lack based on the works of Freud (2011)FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. Tradução, introdução e notas de Marilene Carone. São Paulo: Cosac Naify, 2011. and Lacan (1995)LACAN, Jacques. O seminário. Livro 4: a relação de objeto. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; tradução Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Zahar, 1995..

KEYWORDS
Short story; Brazilian literature; contemporary Brazilian literature

Um bairro para se perder

A breve história que lhes contarei em seguida nasceu de um descompromissado desafio, desses que a gente só aceita depois de abrir uma garrafa de vinho. Companheiros de ofício, com os quais compartilho o destino de haver nascido e crescido numa cidade interiorana cercada por oceânica monocultura de trigo, enfeixada por caudalosos rios e adornada por tufos de mata atlântica renitentes, decidiram confrontar o tédio com experiências literárias radicais. Pois nada é mais ousado do que praticar literatura sobre aquilo contra o que a própria escrita serve de fuga. Foi assim que, numa prosaica conjunção de audácia e embriaguez, concordamos em contar a história de nossos próprios bairros. No dia seguinte, com o metabolismo refeito, tive uma percepção mais clara do meu desafio particular. Logo eu, afeito a divagações, deveria me debruçar sobre uma matéria que não dá muita margem à fantasia. É que quando os fatos são demasiado insólitos, paga-se a sua poetificação com a moeda da inteligibilidade, que tem lastro na realidade. Como sou demasiado conservador para investimentos arriscados, fiz um grande esforço para manter-me na trilha dos acontecimentos, permitindo-me apenas pequenas elaborações pessoais em momentos específicos, que, imagino, o leitor saberá identificar. Dada a aridez da matéria, resolvi enlaçá-la com uma história de amor verídica, que pude acompanhar de perto durante as caminhadas noturnas que faço para organizar os pensamentos.

- Que pés bonitos você tem…

Ela acolheu o flerte com um sorriso, e o acomodou com algumas palavras:

- São bem femininos.

Dos lábios dele, então, outro sorriso se lançou na jovem noite, enlaçando-se com o dela. A luz amarela, dessas antigas e nuançadas que se contrapõem à nudez do branco-hospital, tornava visível o fino tecido da atmosfera que envolvia o lugar. E o encadeamento das pequenas células de ar-luz se assemelhava ao trançado das poucas tiras de couro que abraçavam aqueles pés, evitando o completo desvelamento de sua parte visível. Peito do pé. A linguagem visa o sensual e o abraça com generosa assonância. E fechado, e aberto. A planta do pé mantinha a distância de uma sola, de couro alheio, da grama. Os veios, em desenhos labirínticos, recobriam as superfícies separadas pela sola, que, apesar do privilégio, não reinava sem disputa. Tanto ele quanto a grama também desejavam os pés - ele o peito, ela a planta - e invejavam o couro. Mas a inércia dos adversários o deixava confiante. Era a primeira vez que se encontravam naquela praça. Na verdade, chegaram ali da mesma maneira como passaram por muitas outras áreas verdes do mesmo bairro. A linguagem corrente a chama de casualidade. Mas, quando se passeia pelas ruas como quem se deixa levar pelos pensamentos, qualquer destino é certeiro. Ainda mais num bairro como aquele, afeito às associações. Sua história é curiosa.

É do saber comum que ele nasceu de uma das três ocupações urbanas planejadas para abrigar as famílias dos construtores da famosa pirâmide de cera da cidade. Os carregadores de pedra-de-cera ficaram alojados nos arredores do sítio arqueológico de fachada, criado para insuflá-los com uma autêntica experiência mesopotâmica e, assim, aumentar os índices de produtividade. Aqueles que sucumbiam ao trabalho pesado eram homenageados com hieróglifos na base da pirâmide. Com o passar do tempo, por falta de espaço, os estratos superiores tiveram que ser igualmente ocupados pelas figuras mudas. Habilmente trabalhado pelo setor de marketing da concessionária que venceu a duvidosa licitação para a exploração comercial da réplica extravagante, esse inesperado excedente acabou dotando de certa aura de humanidade a superfície encerada. Terminada a construção, as casas dos carregadores de pedra-de-cera foram soterradas para formar o grande entorno arenoso que, em plena mata atlântica, se abre para receber os milhares de turistas que todos os anos aterrizam na cidade. Nos últimos tempos, o city tour incluiu visitas guiadas pelas casas soterradas que pouco a pouco foram emergindo do terreno arenoso. Equipados com máscaras protetoras e outros que tais, os escafandristas do deserto eram levados a conhecer os vestígios da vida de seus antigos moradores. O efeito de tal imersão era tão intenso que os visitantes frequentemente interpelavam os guias turísticos com perguntas como: “Mas no Egito antigo eles já tiravam fotografias?”.

A alguns quilômetros da pirâmide, num oásis artificial, viviam as famílias dos egiptólogos que planejaram a construção da pirâmide. Inicialmente, era uma estância temporária. Não por uma motivação material, pois o entorno arenoso não ameaçava a integridade das casas protegidas pelo oásis; seus habitantes simplesmente consideravam a cidade sumamente desinteressante. Nem mesmo o foco no trabalho era capaz de compensar o provincianismo. Pois a municipalidade, em parceria com a iniciativa privada, encomendou não apenas uma insípida pirâmide de cera oca. Para explorar o potencial econômico do turismo seletivo, demandara que o interior da colossal construção fosse dividido em diversos ambientes temáticos com valores estratificados para a visitação, entre eles, um parque de dinossauros e uma enorme pista de esqui na neve. De tão esdrúxula, a proposta espantou alguns dos egiptólogos, que preferiram a módica vida de especialista em civilizações antigas ao sacrifício do intelecto. Mas, na maioria deles, o espírito capitulou à comodidade. E, nesse mundo à parte, a seleta comunidade local foi se acostumando a tal ponto com as miragens digitais instaladas nos arredores que passou a pedir a volta de Quéops.

O terceiro conjunto de casas foi destinado aos fabricantes de pedras-de-cera. Suas habitações parecem ter sido construídas a partir de um mesmo molde pré-fabricado, aplicado em terreno delimitado para reproduzir as proporções das pedras. Essas pequenas unidades familiares, por sua vez, se encadeavam de tal maneira que os quarteirões também replicavam, de forma ampliada, as mesmas proporções. Entremeadas por vias principais e secundárias, e intercaladas com áreas verdes, essas macrounidades formavam um bairro que dava às pessoas que nele transitavam a estranha sensação de estar sempre andando no mesmo lugar. Os habitantes se acostumaram, então, a tomar as instalações criadas para atender as necessidades de saúde e lazer da comunidade como pontos de referência auxiliares: morava-se perto do hospital pedra-de-cera, da escola pedra-de-cera, do mercado pedra-de-cera etc.

Originalmente, o espaço estava delimitado por muros que delineavam um grande retângulo, em forma de pedra-de-cera, é claro. Mas, encerrados os trabalhos, a necessária coesão material e espiritual que mantinha o bairro unido à construção da pirâmide foi, aos poucos, se afrouxando. Liberados do feitiço do trabalho céreo-maquinal, os habitantes que decidiram permanecer na localidade começaram a empreender mudanças na estrutura original daquele microcosmo. A primeira providência foi derrubar os muros, fato que começou a atrair pessoas que nada tinham a ver com a construção da pirâmide. Em seguida, de maneira desordenada e irregular, cada qual realizou as alterações que bem entendia, ou que podia, nas células habitacionais. Disso resultou uma miríade de “estilos” que ia desde simples enxertos de alvenaria até palacetes à lá novo-rico estadunidense, espremidos por muros altos e adornados com cercas elétricas e câmeras de vigilância. Os especuladores imobiliários tiveram que esperar até a regulamentação do comércio dos imóveis para espalhar seu capital pela região. Aqui e ali começaram a surgir os pequenos sobrados geminados, que cabiam no que antes era um mesmo terreno. Curiosamente, essa barafunda arquitetônica não desfez a sensação labiríntica das pessoas que caminhavam pelo bairro. Agora, ao invés de dar voltas no mesmo lugar, elas ingressavam numa espiral de repetição e diferença. Isso até que facilitou um pouco a movimentação interessada, que lida com o espaço público como um interregno entre dois pontos de chegada. Mas quem realmente aproveitou a nova configuração foram aqueles que caminhavam sem destino planejado, como é o caso dos aspirantes a casal que deixamos de seguir parágrafos atrás. Eles haviam construído para si um tempo-espaço paralelo, que acessavam sempre que podiam. O ponto de imersão era o próprio bairro. Cada encontro tramava uma nova rota pelas mesmas ruas; cada rota traçava um novo desenho dos mesmos lugares; cada lugar trançava uma nova memória com os mesmos cheiros, as mesmas cores, as mesmas palavras e os mesmos olhares.

Para meu embaraço, só posso narrar os eventos decisivos que se seguiram de maneira aproximada, a partir de comentários e versões parciais escutadas aqui e ali. Acontece que, entre decidir ou não narrar esta história e, uma vez convicto do valor da tarefa, buscar nos labirintos do pensamento as palavras mais adequadas para cumpri-la, acabei perdendo contato com os fatos. Dizem que, numa noite como tantas outras, ele se dirigiu à casa dela, uma das poucas moradias de cera que se mantiveram intactas desde a construção do bairro. Ao chegar, deu de cara com um terreno baldio, coberto com placas de cera despedaçadas. Um cartaz brilhante de alumínio pintado trazia o famoso logo dos Ps entrelaçados e, abaixo dele, em letras pequenas e estilizadas, a marca Pharmacia Pirâmide. Despreparado para tamanha surpresa, aquela visão atingiu-lhe duramente a alma, e ele sentiu seu interior replicar a imagem do terreno vazio com o amontoado de placas quebradas. Alguns afirmam que, pouco tempo antes, houvera uma forte discussão, seguida de juras de nunca mais voltar a vê-lo. Outros contam que ela conseguira trabalho num lugar distante e, aproveitando a oferta da conhecida rede farmacêutica que expandia seus negócios no bairro, vendera a propriedade e acelerara sua partida. Há também quem diga que, num desses passeios noturnos, eles se perderam e, num afã incontrolável, ela agarrou seus poucos pertences e tomou o primeiro ônibus para o litoral. Fato é que, desde esse evento traumático, ele cismava em refazer periodicamente o mesmo trajeto. Nesse insistente retorno cego àquela ausência, lhe foi possível testemunhar cada etapa de construção da farmácia. A partir de então, passou a notar que as filiais se multiplicavam rapidamente pela região, junto com as casas geminadas. Em pouco tempo, o caminho que o ligava à memória dela se tornara irreconhecível, coincidindo com o colapso nervoso que o impediu de seguir transitando pelo bairro.

Muitos anos mais tarde, conta ele, voltaram a se escrever. Ela estaria de passagem pela cidade, e queria vê-lo. Combinaram de se encontrar na mesma praça, uma última vez. O lugar, de fato, ainda existia, mas nesse meio-tempo o bairro se tornara inteligente. No caminho de ida, ele foi saudado por pelo menos três semáforos que, pela refração de seu suor, lhe aconselharam a repor o magnésio. Assistiu também à prisão preventiva de dois homens efetuada a partir de dados biométricos obtidos pelas câmeras de vigilância que se espalhavam pelas ruas. Próximo à área verde, lhe chamou a atenção uma casa de cera, igual às que a sua memória ainda conservava. Era uma loja de antiguidades, e ele não soube dizer se a construção era original ou se se tratava de uma simples réplica de cera, dessas que se colocam em museu.

Ao entrar na praça, seus olhos sorriam pela primeira vez em muitos anos. Ali estava ela, de costas, assistindo a uma partida de futebol dos vizinhos em numa quadra de realidade aumentada. Pressentindo a sua chegada, ela se virou e o encarou sem exibir um único gesto de surpresa. Era como se nada tivesse acontecido; como se o tempo não houvesse passado.

Caminharam silenciosamente para o mesmo lugar onde se sentaram pela primeira vez. O tecido atmosférico reluzia pelo contato da nova iluminação com as partículas de cera que, pela discreta e progressiva deterioração da pirâmide, se espraiavam pela cidade, criando um efeito onírico aconchegante para a visão. Os pés dela, escondidos no sapato fechado, se apoiavam sobre a grama sintética. Ele só pôde erguer a cabeça e olhá-la nos olhos depois de passar por eles. Viu-se, então, refletido em suas pupilas negras. Imediatamente seus lábios arquearam um generoso sorriso que tinha a curvatura do peito do pé ainda viva em sua memória. Em seguida, sentiu o exato instante em que o sorriso dela abraçou o seu. Assim, com todos os sentidos investidos na percepção da mais sutil e precisa alucinação, morreu em sua morada mais íntima. E a luz branco-hospital da ala psiquiátrica se apagou pela última vez.

O canteiro

Em algum momento de minha infância, recebi um canteiro. Naquele então, não cheguei a estranhar, como o fiz muito tempo depois, e como imagino acontecer com quem deu atenção à frase inicial deste breve relato, o aspecto ligeiramente insólito da situação. Mas também não dei maior importância ao fato, e o objeto recebido passou a me acompanhar ao longo das inúmeras mudanças de residência que brotam naturalmente em uma vida errática. O primeiro estranhamento, portanto, não veio propriamente do fato de ter, ainda criança, herdado um canteiro, mas da dificuldade que sentia em me livrar dele nos momentos mais agudos dessas mudanças. É certo que carrego em mim um forte apego a objetos que perderam sua razão de existir: toalha de banho esburacada, álbum de figurinha completo, cartas de amores vencidos, como se tivesse a necessidade de deixar algum rastro para não esquecer de mim mesmo. Com aquele canteiro era diferente, pois, apesar de saber que ele sempre estivera ali, nunca me senti refletido nele. E estranhava mais ainda meu apego àquele objeto inexpressivo, pois suas grandes proporções dificultavam imensamente as trocas de residência. Com o tempo, deixei de lutar contra o impulso de abandoná-lo e aceitei sua companhia muda. Mas foi essa decisão que me fez passar a estranhar aquela companhia. Pois nunca soubera ao certo o porquê de sua existência e, menos ainda, como ele me havia sido delegado. Apesar de sua visível antiguidade, que combina uma monolítica estrutura pétrea insondável à percepção visual do tempo com marcas de evidente desgaste de uma inscrição hieroglífica, não há sinais de que, em algum momento de sua existência, ele tenha cumprido o seu propósito. O vazio interior, que lhe dá forma, não carrega qualquer marca de terra ou coisa que o valha. Isso aumenta o estranhamento de ter feito dele uma companhia. Não tenho ideia de como me tornei dono desse vazio murado. Sua origem e sua história na família são perguntas que, uma vez convertidas em algo significativo para mim, nunca encontraram resposta. Conta-se apenas que o objeto vem do lado materno e que, tradicionalmente, era passado às crianças quando elas começavam a falar, mas nunca souberam me explicar a finalidade desse ritual. Minha mãe não dava atenção a essa tradição, vazia como o próprio canteiro, mas também nada fez para impedir a sua continuidade. Eu, pelo contrário, sempre fui avesso a crendices, ainda mais a essa, à qual lhe faltava uma crença propriamente dita e que, sendo assim, se reproduzia pela força de um não sei que travestido de hábito. Casei, tive filhos, me separei, voltei a casar, sem nunca me desfazer do objeto. No dia em que minha primogênita pronunciou sua primeira palavra, decidi presentear o canteiro com sua primeira pá de terra. E foi quando senti que o estranhamento deixou de habitar o vazio do objeto e, aos poucos, encontrou em mim uma nova morada. Daí em diante, me dediquei paciente e cuidadosamente a cultivar aquele canteiro.

Não sei dizer exatamente quanto tempo passou até que, finalmente, ele estivesse quase completo, mas sei que foi o bastante para que eu me sentisse cansado. Num entardecer, depois de ajeitar uma muda de gerânio que comprara por causa de um sonho com uma pequena floreira suspensa que havia na casa da minha avó, me senti extasiado com uma visão de conjunto que me atingiu com a força de uma revelação. Havia de tudo ali: flores das mais diversas espécies, pequenos arbustos frutíferos, delicadas suculentas, alguns cactos espinhosos e até mesmo pequenas árvores adaptadas para a vida em dimensões restritas. E somente então me chamou a atenção o fato de que a oposição entre a estrutura impermeável de pedra e os hieróglifos nela talhados amoleceu, de modo que a pedra se fez mais porosa, e a inscrição, mais delimitada. Atribuí esse fenômeno à umidade da terra cultivada, que, muito lentamente, penetrou pelos microporos da pedra esculpida, resistente a se acostumar à situação para a qual fora criada. Apesar de não entender a palavra que agora se enunciava e que sempre considerara um ornamento supérfluo talhado para satisfazer um fascínio romântico pelo exótico, senti que a compreendia, e só então reparei que todo estranhamento que me habitava fora lentamente se dissolvendo em familiaridade. No interior do canteiro, a face da qual se projetava a protuberância da palavra correspondia ao pequeno espaço que faltava preencher para completar o objeto destinado ao vazio. Só percebi que a parte faltante era exatamente do meu tamanho quando nela caí, em estado de semivida. Mas estava vivo o bastante para sentir as raízes das plantas substituírem as minhas veias, minha pele enrugada se dissolver na terra, meu cabelo branco florescer colorido e a palavra muda abraçar meu coração, redimindo o vazio que herdei ao nascer. Eu, finalmente, me tornei o canteiro.

Referências

  • FREUD, Sigmund. Luto e melancolia Tradução, introdução e notas de Marilene Carone. São Paulo: Cosac Naify, 2011.
  • LACAN, Jacques. O seminário. Livro 4: a relação de objeto. Texto estabelecido por Jacques-Alain Miller; tradução Dulce Duque Estrada. Rio de Janeiro: Zahar, 1995.
  • SCHWARZ, Roberto. Um mestre na periferia do capitalismo: Machado de Assis. São Paulo: Editora 34, 2000.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    13 Nov 2023
  • Aceito
    30 Nov 2023
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