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Se escreve as artes, no feminino e no plural

O número 87 da Revista do Instituto de Estudos Brasileiros apresenta o dossiê “A crítica de arte feita por mulheres e seus desdobramentos institucionais”, coordenado pela pesquisadora Talita Trizoli e Ana Paula Cavalcanti Simioni1 1 A professora Ana Paula, juntamente com Maria de Lourdes Eleutério, organizou outro dossiê, dessa feita sobre a presença feminina no âmbito dos arquivos (SIMIONI; ELEUTÉRIO, 2018). , professora de sociologia da arte do nosso Instituto e professora colaboradora do Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte do Museu de Arte Contemporânea (PGEHA/MAC/USP). O dossiê busca, através de sete artigos, refletir sobre a questão da produção e recepção da crítica de arte feminista, principalmente a partir de meados da década de 1970, quando começam a surgir as discussões sobre a temática arte e gênero, assim como revê historicamente as causas e posições que alijaram muitas mulheres tanto do campo executivo nas artes plásticas quanto do campo teórico, das filosofias e histórias da arte. Se boa parte da reflexão estética escrita desde o final do século XVIII se debruçou sobre questões tais como o que é a obra de arte, como definir se alguém é artista ou não, quem seleciona ou determina o valor de arte às obras etc., sendo essa reflexão majoritariamente produzida por homens, a possibilidade de acolher outras respostas para essas mesmas perguntas dentro do sistema da arte, pensadas exclusivamente por mulheres, teria que tipo de impacto ou consequência para a revisão crítica de todo o sistema? Qual a distinção ofertada por uma crítica de arte feita por mulheres? E como tal crítica afeta a produção no campo executivo, uma vez que historicamente sempre houve uma relação dialética, não meramente ilustrativa, entre a produção artística e a reflexão teórica que se faz a partir dela ou com ela?

Ainda em relação a um olhar curatorial feminino, segue o artigo de fluxo contínuo “Uma história privada através de lentes públicas: a construção do acervo pessoal de Eufrásia Teixeira Leite (1850-1930)”, de Cecília Elisabeth Barbosa Soares, apresentando aos leitores a história por detrás do acervo dessa rica aristocrata da cidade de Vassouras, vivendo entre o período final do Império e as primeiras décadas da República. Cecília descreve as dificuldades de sistematização e manutenção desse acervo em função do caráter encomiástico em torno de uma persona privada, além dos desafios de sua legitimação como material primário para pesquisas, notadamente para pensar a sociedade vassourense e brasileira à época.

Focando os estudos literários sob a égide do modernismo, Leonardo Ferreira Aguiar busca, por sua vez, no artigo de fluxo contínuo “O narrador e a psicanálise nos diários de A consciência de Zeno e Os moedeiros falsos”, fazer uma análise comparativa entre os estilos de Italo Svevo e André Gide. A análise em questão recai no confronto entre dois livros – A consciência de Zeno, de Svevo, e Os moedeiros falsos, de Gide –, nos quais a narrativa sob a forma de diário serve de pretexto para a construção psicanalítica dos personagens, implicando a ativação ou participação dos seus leitores. A estratégia usada por Svevo, descrita pormenorizadamente por Leonardo, muito ajudaria para a abertura de pesquisas em acervos como os de Eufrásia, uma vez que é pela interdisciplinaridade que podemos superar os limites ou convenções por demais enrijecidas no campo das ciências humanas.

Henrique Costa se interessa pela vida como ela é. No artigo de fluxo contínuo “Empreendedorismo popular e a economia moral da vida sem salário”, o autor, aparentemente distante das questões metodológicas das artes, da estética, da museologia e da literatura, busca investigar uma questão muito mais básica, mas fundamental para a vida das pessoas que vivem em lugares ou situações que margeiam a vulnerabilidade social e econômica nos tempos atuais. Henrique volta a sua atenção para trabalhadores da periferia da zonal sul de São Paulo, entendendo-os – ao contrário das interpretações sociológicas dominantes, que os individualizam como empreendedores individuais que se autoconstruíram na perspectiva meritória neoliberal – como agentes locais que contribuem para a formação de uma “economia moral” que se faz a partir da ficcionalização da autonomia das relações formais de trabalho. Como vemos, uma boa parte dos trabalhadores da cultura operam nesse contexto ou sob essas condições (são prestadores de serviços, não assalariados formais), o que sinaliza mudanças em toda a estrutura da cadeia do sistema da cultura e das artes, mas não só.

Na seção Criação, Gabriel Sampaio Souza Lima Rezende traz dois contos inéditos em “Ruas, casas e jardins”. Em ambos (“Um bairro para se perder” e “O canteiro”) Gabriel explora as transformações da vida subjetiva dos personagens pari passu com as transformações urbanas, as mudanças da ambiência local como signos que permitem indagar sobre estados psíquicos complexos, difíceis de serem descritos apenas pelas ciências. Muitas vezes o interior se confunde com o exterior e vice-versa, fazendo ressoar no leitor as relações que guardam com lugares semelhantes ou com os seus lugares de costume, da infância, da vida.

Na seção Documentação, apresentamos uma seleção de livros que se encontram no acervo de Guimarães Rosa versando sobre um tema bastante curioso do universo rosiano: gatos. “Os gatos na vida de Guimarães Rosa: o que os livros registram”, de Denise de Almeida Silva, apresenta observações e comentários sobre os felinos pelos quais o escritor nutria grande afeição e estima. Muitas pessoas, sabendo que Rosa era um “amante de gatos”, mandavam-lhe livros em diversos idiomas, com dedicatórias, nos quais alguma questão sobre o comportamento animal ou sobre sua história pudesse ser sacada. Ao mesmo tempo, o próprio ato de presenteá-lo com livros sobre esse assunto tornava-se um chiste, uma brincadeira entre amigos, algo dos domínios dos bastidores de sua monumental obra literária.

Por fim, Benedito Antunes resenha o livro de Alvaro Santos Simões Junior, Cruz e Sousa na imprensa carioca: do Missal aos Últimos sonetos (1893-1905), o elevando em tempos atuais como um dos mais detalhados trabalhos de pesquisa sobre o poeta negro simbolista, se não o principal representante, no Brasil, desse credo poético-literário.

Como sempre, a RIEB mantém o seu compromisso com a interdisciplinaridade, a diversidade e a expressão de opiniões divergentes; as que constroem debates frutíferos em torno da cultura, das ciências humanas, da arte e do desenvolvimento, por enquanto e no futuro, quiçá, apenas da inteligência humana.

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    A professora Ana Paula, juntamente com Maria de Lourdes Eleutério, organizou outro dossiê, dessa feita sobre a presença feminina no âmbito dos arquivos (SIMIONI; ELEUTÉRIO, 2018SIMIONI, Ana Paula C.; ELEUTERIO, Maria de Lourdes. Dossiê Mulheres, Arquivos e Memórias. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 71, dez. 2018. https://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/152627.
    https://www.revistas.usp.br/rieb/article...
    ).

Referência

  • SIMIONI, Ana Paula C.; ELEUTERIO, Maria de Lourdes. Dossiê Mulheres, Arquivos e Memórias. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 71, dez. 2018. https://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/152627
    » https://www.revistas.usp.br/rieb/article/view/152627

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    06 Maio 2024
  • Aceito
    10 Maio 2024
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