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As polêmicas literárias e o difícil reconhecimento da poesia de Cruz e Sousa

Literary controversies and the difficult recognition of Cruz e Sousa’s poetry

SIMÕES, Alvaro Santos. JUNIOR. Cruz e Sousa na imprensa carioca: do. Missal aos. Últimos sonetos (1893-1905). São Paulo: Edusp, 2022. 312

RESUMO

A resenha apresenta e analisa o livro Cruz e Sousa na imprensa carioca: do Missal aos Últimos sonetos (1893-1905), de Alvaro Santos Simões Junior, destacando o cuidado com que o autor reproduz relevante documentação sobre a obra do poeta simbolista e, principalmente, a amplitude com que estuda o contexto de publicação de sua obra e as primeiras avaliações críticas. Chamam atenção a originalidade do material recolhido, a profusão de aspectos que o autor mobiliza para caracterizar a manifestação do Simbolismo e o conturbado percurso do poeta negro que se tornaria seu principal representante no Brasil.

PALAVRAS-CHAVE
Simbolismo; Cruz e Sousa; polêmicas literárias

ABSTRACT

The review presents and analyzes the book Cruz e Sousa in Rio de Janeiro press: from Missal to Últimos sonetos (1893-1905) by Alvaro Santos Simões Junior, highlighting the care with which the author reproduces relevant documentation about the Simbolist author’s work and, mainly, the amplitude with which he studies the publication context of his work and its first critical evaluations. The originality of the collected material, the wealth of features that the author mobilizes for the manifestation of Simbolism and the troubled path of the Negro poet who would become its main representative in Brazil draw attention.

KEYWORDS
Simbolism; Cruz e Sousa; literary controversies

“Encravado” entre o Realismo e o Modernismo, o Simbolismo costuma ocupar pouco espaço na historiografia literária brasileira e é lembrado geralmente por dois poetas: Cruz e Sousa e Alfphonsus de Guimaraens, cuja produção poética nem sempre recebe a devida atenção. A esse propósito, Alfredo Bosi escreve em sua História concisa da literatura brasileira (1994) que “o Simbolismo não exerceu no Brasil a função relevante que o distinguiu na literatura europeia”. Constituindo uma espécie de “surto epidêmico”, “não pôde romper a crosta da literatura oficial”. E conclui: “Caso o tivesse feito, outro e mais precoce teria sido o nosso Modernismo, cujas tendências para o primitivo e o inconsciente se orientaram numa linha bastante próxima das ramificações irracionalistas do Simbolismo europeu” (BOSI, 1994BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 32. ed. São Paulo: Cultrix, 1994., p. 269). A hipótese levantada aqui por Bosi ainda é atual e merece ser examinada, principalmente neste momento cultural, em que se debatem a originalidade e o pioneirismo do movimento modernista em São Paulo, tal como o faz Francisco Foot Hardman em seu livro A ideologia paulista e os modernistas (2022HARDMAN, Francisco Foot. A ideologia paulista e os modernistas. São Paulo: Editora Unesp, 2022.), no qual questiona mitos e aborda autores que seriam tão ou mais representativos da modernidade do que os consagrados pelo Modernismo. O livro de Alvaro Santos Simões Junior, Cruz e Sousa na imprensa carioca: do Missal aos Últimos sonetos (1893-1905), representa uma relevante contribuição para esse debate, seja para confirmar ou rever a hipótese levantada por Bosi, seja para aferir os influxos da literatura desse período na contemporaneidade.

Para compreender o contexto em que surgiu o Simbolismo no Brasil e especialmente o papel desempenhado por Cruz e Sousa nesse processo, o livro de Simões Junior pode ser considerado desde já uma referência incontornável. Trata-se de volume bem cuidado, tanto do ponto de vista editorial quanto acadêmico, que se divide em duas partes principais: o estudo introdutório “Da nebulosa do Simbolismo à consagração equívoca” e a reprodução de documentos surgidos na imprensa carioca por ocasião do lançamento dos cinco livros de Cruz e Sousa: Missal, Broquéis, Evocações, Faróis e Últimos sonetos. O volume conta ainda com índice onomástico e apresentação minuciosa dos autores e dos periódicos utilizados na pesquisa, configurando, assim, uma fonte segura para o conhecimento das questões relacionadas à estética simbolista e da recepção inicial de seu principal representante no Brasil.

Conforme explica o autor, o livro representa um “complemento” ao “trabalho pioneiro” de Afrânio Coutinho, Cruz e Sousa (1979COUTINHO, Afrânio (Ed.). Cruz e Sousa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1979. (Fortuna Crítica, v. 4).), que reuniu “textos de inquestionável importância” sobre a obra do poeta, mas não incluiu resenhas e artigos divulgados em jornais e revistas por ocasião da publicação de sua obra. Por isso, o trabalho em questão procura captar “as primeiras reações críticas” da imprensa logo após a publicação de cada um dos livros de Cruz e Sousa, e o faz com grande competência (p. 17). Além do extremo cuidado na transcrição dos textos, em que informa todas as correções do original e explica em notas as referências distantes do leitor de hoje, o autor apresenta um excelente estudo introdutório, resultado de pelo menos uma década de pesquisas, em que contextualiza e comenta as principais reações críticas coletadas. Seu texto é muito bem escrito, com correção e elegância compatíveis com a matéria abordada e com as fontes primárias consultadas, isto é, periódicos de diferentes matizes publicados nos fins do século XIX. Percorre minuciosamente esses periódicos para recriar com riqueza de detalhes o “contexto de informações fragmentárias e posicionamentos hostis ao decadentismo-simbolismo” (p. 51) em que foram publicados, em 1893, Missal e Broquéis, quando o poeta ainda estava vivo, fazendo o mesmo em relação à publicação dos três livros póstumos. Logra, com isso, criar a rara oportunidade para que o leitor acompanhe as reações imediatas às publicações de Cruz e Sousa, algo impossível ou pouco viável de se fazer diretamente, ainda que os periódicos estejam quase todos disponíveis on-line. Serve, assim, de guia ao leitor que queira refazer o percurso do pesquisador e compreender o contexto de produção e divulgação da obra do poeta simbolista.

Sobre os méritos do ensaio introdutório, cabe acrescentar ainda que a simples reprodução dos textos, por mais bem cuidada que seja, se desacompanhada da contextualização e da análise nele contidas, não ofereceria o mesmo resultado para o leitor, ou pelo menos deixaria o material mais difícil de ser compreendido, por ser constituído de informações isoladas e sem referências atualizadas. Por isso, pode-se dizer que se trata de um livro que se lê pelo menos uma vez e meia: primeiro, faz-se a leitura completa do volume, começando-se possivelmente pelo ensaio introdutório, que organiza os textos transcritos a seguir; depois, durante a leitura destes, retoma-se a leitura do ensaio para confrontar, passo a passo, seu conteúdo com a análise crítica que deles faz o autor. Como resultado, experimenta-se uma leitura complexa do volume que permite aprofundar a compreensão do Simbolismo no Brasil por meio da recepção de suas obras mais representativas na imprensa carioca. É, nesse sentido, um volume que, efetivamente, integra divulgação de fontes originais de pesquisa ao seu estudo.

Curiosamente, o ensaio inicia-se com uma hipótese e termina com outra, reforçando a ambiguidade com que foi recebida a obra de Cruz e Sousa. Afirma-se, no início, a título de hipótese, “que, por nenhum grupo, a obra do primeiro poeta simbolista brasileiro foi recebida com a desejável serenidade e isenção de espírito, o que afetou decisivamente o modo com que sua obra foi interpretada de início” (p. 18). E conclui-se, de forma dubitativa, que “o apoio tardio e isolado de Romero não teve o condão de conciliar o antigo líder e ídolo dos novos com as instâncias de consagração literária do Rio de Janeiro”. Em vez disso, “provavelmente contribuiu para retardar por muitos anos o reconhecimento público de seu valor como um dos principais poetas brasileiros de todos os tempos” (p. 108). Entre as duas afirmações, que na verdade são complementares e configuram a hipótese geral do livro, há o estudo do movimento, ou da dança, para antecipar a imagem usada pelo autor no fim do ensaio, que se vai configurando ao longo das matérias jornalísticas. Cada obra de Cruz e Sousa foi recebida de forma dividida por amigos do poeta e apreciadores da nova tendência em confronto com críticos oficiais, que não viam densidade na sua poesia.

Antes, porém, de abordar essa polêmica central, o autor apresenta aquela que parece dar o mote para o que acontecerá com a recepção da obra de Cruz e Sousa. Ao recordar a controvérsia entre “novos” e “velhos”, consegue configurar uma camada significativa do mundo das letras que em geral não vem à tona nos livros publicados, demonstrando que, antes de se tornarem clássicos, os autores superam às vezes um terreno bem pantanoso. Os detalhes desses conflitos podem ser devidamente apreciados no livro. Aqui, cabe apenas chamar atenção para o discernimento crítico que vai sendo elaborado em paralelo a esse nível mais baixo de recepção. O autor apresenta e discute cada apreciação crítica, lançando mão, nos momentos em que a situação o exige, até mesmo de distanciamento irônico.

Em linhas gerais, observa-se que os críticos do Simbolismo viam com desconfiança os chamados novos, que procurariam praticar no Brasil uma literatura cansada do Naturalismo e ansiosa por novos caminhos, entendendo, ademais, que se tratava de uma importação indireta da tendência, que passava antes por Portugal. No tocante à poesia de Cruz e Sousa, era quase unanimidade considerá-la vazia de ideias ou feita de imagens incompreensíveis, cuja função era sobretudo explorar a musicalidade das palavras, independentemente de seus possíveis sentidos. Isso quando não se associava esse recurso às suas origens africanas e se sugeria um primitivismo inato que privilegiava mais a batida de instrumentos de percussão do que ritmos cadenciados e variados. Em meio ao emaranhado dessas manifestações favoráveis e contrárias, o autor vai delineando a produção que realmente conta para representar a forma contraditória com que foi recebida a poesia de Cruz e Sousa. Avulta inicialmente nesse sentido a crítica de Adolfo Caminha que, após a publicação de Broquéis, considerou Cruz e Sousa “o artista mais bem dotado entre os que formam a nova geração brasileira” (p. 64). Dessa forma, Caminha reconhece “francamente os méritos de Cruz e Sousa”, conforme observa o autor (p. 65). Em contraposição, de acordo com Simões Junior, Araripe Jr. questiona, entre outras coisas, a incongruência de um poeta negro praticar uma poesia que lhe seria estranha, “que resultava do impacto mal assimilado da cidade moderna sobre seu espírito de primitivo e da imitação servil - servil por não ser guiada pela razão - de seus amados mestres” (p. 67). Assim, conforme resume o autor, “[e]m lugar do artista consciencioso e lúcido retratado por Caminha, Araripe Jr. vê em Cruz e Sousa o primitivo ‘maravilhado’ que sorri bestificado diante das supostas belezas da civilização” (p. 67-68).

Apesar desse juízo de Araripe Jr., aparentemente cheio de preconceitos, o autor considera sua apreciação crítica “um marco na recepção do poeta negro” (p. 68), ao lado da resenha de Carlos Magalhães de Azeredo sobre Missal. Divulgada quando Cruz e Sousa já havia publicado Broquéis, essa apreciação aponta fragilidades no livro anterior e filia seu autor ao grupo dos decadentes, o que, segundo Simões Junior, “talvez representasse uma clara tomada de posição do grupo de escritores próximos a Machado de Assis a respeito da renovação literária proposta pelos novos” (p. 56). Apesar disso, o autor admite a possibilidade de “que a crítica desassombrada de Carlos Magalhães de Azeredo ao Missal tenha desempenhado um papel fundamental na recepção crítica do poeta” (p. 62).

Ao longo do ensaio, o autor tem o cuidado de quase sempre contrapor a um juízo negativo uma apreciação positiva, que destaca a qualidade e a originalidade da poesia de Cruz e Sousa, procurando demonstrar as contraditórias maneiras como foram recebidos todos os seus livros. Daí que a imagem apresentada no fim do ensaio, a de uma quadrilha em que se troca de par durante a dança, representa de forma sugestiva a relação de aceitação e recusa vivida pelo poeta durante a vida e após a morte:

Talvez fosse possível vislumbrar, no campo literário carioca, uma verdadeira quadrilha em que os pares se iam formando e desfazendo, ao mesmo tempo que se confrontavam com pares presuntivamente antagônicos. Dos pares Tobias Barreto/Sílvio Romero e Cruz e Sousa/Nestor Vitor, formou-se o par Sílvio Romero/Nestor Vitor. Do outro lado do salão, colocavam-se os pares Machado de Assis/Carlos Magalhães de Azeredo e Machado de Assis/José Veríssimo, além de outros pares efêmeros. (p. 108).

Do ponto de vista crítico, porém, a contraposição mais expressiva ou que pode ter dado maior visibilidade ao poeta talvez tenha sido a protagonizada por Sílvio Romero e José Veríssimo, cujas divergências são abordadas no último tópico do ensaio. Romero, revendo posições assumidas anteriormente, considera Cruz e Sousa “o melhor poeta” (p. 93) da história do Brasil. A essa avaliação se contrapõe Veríssimo, “pondo [...] em dúvida os critérios, a isenção e a objetividade do historiador [...] que, três anos antes, fizera críticas desassombradas a Machado de Assis” (p. 95-96). Na resenha que escreve sobre Últimos sonetos, embora valorize determinados aspectos da poesia de Cruz e Sousa, Veríssimo conclui afirmando que pretender fazer dele um chefe do Simbolismo decorria da incompreensão de seus amigos e admiradores, “pois Cruz e Sousa não passaria de ‘um negro bom, sentimental, ignorante, de uma esquisita sensibilidade, cujos choques com o ambiente social resultaram em poesia’” (p. 101).

Essa divergência pode não ter contribuído para uma apreciação crítica equilibrada da poesia de Cruz e Sousa, mas certamente serviu para mobilizar intelectuais a defenderem o poeta, especialmente Nestor Vítor, apontado como responsável pela revisão da posição crítica de Sílvio Romero. Assim, cabe um convite à leitura do livro de Alvaro Santos Simões Junior para refletir sobre a hipótese levantada por ele no fim do ensaio: Sílvio Romero ajudou ou atrapalhou “o reconhecimento público [de Cruz e Sousa] como um dos principais poetas brasileiros de todos os tempos” (p. 108)?.

Referências

  • BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira 32. ed. São Paulo: Cultrix, 1994.
  • COUTINHO, Afrânio (Ed.). Cruz e Sousa Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Brasília: INL, 1979. (Fortuna Crítica, v. 4).
  • HARDMAN, Francisco Foot. A ideologia paulista e os modernistas São Paulo: Editora Unesp, 2022.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    01 Mar 2024
  • Aceito
    06 Mar 2024
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