Resumos
Resumo Este artigo analisa as justificativas do Poder Judiciário em suas determinações para as internações compulsórias de pessoas que usam drogas, problematizando a judicialização da saúde, a restrição de liberdade e a abstinência presentes nas decisões judiciais, que expressam características do Estado penal-punitivo. Consiste em pesquisa documental envolvendo processos da Secretaria de Saúde do Estado do Espírito Santo encaminhados pelo judiciário, com medidas que imputam “tratamento” aos usuários de drogas em instituição de internação. Os principais resultados indicaram que em todos os 54 processos estavam presentes o pensamento biomédico, 39 justificativas manifestavam o pensamento jurídico-punitivo; e, apenas três justificativas apresentavam a perspectiva de direitos humanos. Percebe-se que a judicialização, a partir das medidas de internação compulsória, pode contribuir com o processo de exclusão e de violação das garantias fundamentais; conduzindo ao aumento do uso de drogas, que deve ser enfrentado com políticas públicas que reconstruam os direitos sociais.
Palavras-chave: internação compulsória; judicialização da saúde; drogas; saúde mental
Abstract This article analyzes the justifications of the Judiciary in its determinations for the compulsory hospitalization of people who use drugs, problematizing the judicialization of health, the restriction of freedom and abstinence present in judicial decisions, which express characteristics of the penal-punitive State. Documentary research involving processes of the Secretary of Health of the State of Espírito Santo forwarded by the Judiciary, with measures that impute “treatment” to drug users in a detention institution. The main results indicated that in all 54 processes biomedical thinking was present, 39 justifications manifested legal-punitive thinking; and, only 03 justifications presented the perspective of human rights. It is noticed that judicialization, based on compulsory hospitalization measures, can contribute to the process of exclusion and violation of fundamental guarantees; leading to an increase in drug use, which must be faced with public policies that rebuild social rights.
Keywords: compulsory hospitalization; judicialization of health; drugs; mental health
Introdução
Este artigo analisa as justificativas do Poder Judiciário em suas determinações para a internação compulsória de pessoas que usam drogas, problematizando a judicialização da saúde, a restrição de liberdade e a abstinência como elementos presentes nas decisões judiciais, que expressam o avanço do Estado penal-punitivo. Nossas reflexões sobre o tema internações compulsórias são produto das diversas investigações realizadas nos últimos 15 anos sobre a temática saúde mental, drogas e judicialização. A presente pesquisa surgiu de questionamentos sobre o aumento do fenômeno da judicialização no campo da saúde mental no estado do Espírito Santo, por meio dos resultados da pesquisa sobre os gastos com internações compulsórias1, que revela o crescimento da demanda por esta modalidade de internação, dos números de instituições de internações e do impacto nos gastos públicos nos últimos sete anos. Nesse período estudado, o gasto destinado para o pagamento de leitos em instituições privadas aumentou de em torno de R$13 milhões (valor deflacionado em torno de R$19 milhões) para R$39 milhões (valor deflacionado em torno de R$41 milhões) (LEAL et al., 2021).
O ponto de partida para refletirmos sobre esta temática é o entendimento de que a judicialização das políticas sociais, na tentativa de buscar respostas às desigualdades sociais e à efetivação de direitos humanos pela via do Poder Judiciário, contribui para a desresponsabilização dos Poderes Legislativo no seu papel de normatizar e fiscalizar, e, do Executivo, no de executar as políticas públicas, garantindo os direitos da população (AGUINSKY; ALENCASTRO, 2006). Nesse sentido, torna-se fundamental situarmos o Estado a partir das relações de produção e da correlação de forças existente entre as demandas do capital e as demandas provenientes ao mundo do trabalho, buscando capturar o avanço do denominado Estado Penal (WACQUANT, 2007). Para Batista (2012), o aumento do poder punitivo no enfrentamento às drogas ao invés de reduzir o número de doentes e a violência tem como principal resultado o avanço das funções penais do Estado neoliberal, utilizado como estratégia prioritária de enfrentamento à questão social, tendo como consequência, o superencarceramento2, a criminalização dos pobres, a higienização das cidades, a corrupção crescente em várias esferas da atividade pública, especialmente nas polícias, e uma interminável sequência de violações de direitos3.
A reflexão que aqui pretendemos realizar é que a judicialização4 da saúde pública caracteriza-se por ações judiciais impetradas contra o Poder Público para o acesso e o financiamento de demandas de saúde. No entanto, esta forma de efetivação de direitos pela via judicial, traz como consequência o descomprometimento do Estado com o enfrentamento da questão social, assim como na despolitização da esfera pública (AGUINSKY; ALENCASTRO, 2006). O número crescente de ações demandadas neste campo e o sucesso dos pacientes nos tribunais provocam impactos sobre o orçamento da saúde, com gasto estimado em um montante de 7 bilhões de reais por ano, especificamente, para o cumprimento de decisões judiciais (CONASEMS, 2021).
Por outro lado, como adverte Bentes (1999), as ações judiciais são fundamentais a para a garantia dos direitos individuais e coletivos, no campo da saúde mental, se constituem em uma via importante de acesso à internação psiquiátrica, nos casos que a mesma for utilizada como uma medida excepcional e nos casos em que o município não apresentar a disponibilidade de serviços para os sujeitos demandantes de dispositivos substitutivos ao hospital na rede de atenção5. No entanto, a grande questão é que, embora essas internações sejam revestidas de discursos de proteção e cuidado, as mesmas vêm sendo utilizadas como mecanismo de controle, punição e aumento das desigualdades sociais desses sujeitos, uma vez que, via de regra, são movidas de forma individual e por um pequeno segmento da população que conhece os seus direitos e que tem condições de acessar o Judiciário (MUSSE, 2018).
Para as autoras Scisleski e Maraschin (2008, p. 459), a ordem judicial cumpre um duplo cargo: “[...] por um lado ela é tomada como uma estratégia de acesso ao serviço de saúde; por outro, ela é utilizada como uma espécie de punição [...]”, uma vez que o encaminhamento serve como um recurso de auxiliar na disciplinarização dos sujeitos, o que acaba constituindo uma relação entre o ato de “medicar” e de “punir”. Esse estudo pretende refletir criticamente as decisões do judiciário como medidas que reforçam práticas de punição e isolamento, que pensávamos já estar superadas pelo processo de Reforma Psiquiátrica brasileira.
Para compreender melhor esse fenômeno, propomos verificar as justificativas judiciais sobre a necessidade de tratamento e de internação contra a vontade das pessoas que usam drogas. Para atingir o objetivo realizamos pesquisa documental utilizando o Sistema On Base, base de dados da Secretaria de Saúde do Espírito Santo (SESA). Nesse sistema encontram-se armazenadas todas as decisões de internação compulsória encaminhadas pelo judiciário à SESA para o cumprimento de medidas judiciais que imputam “tratamento de drogas” em instituição de internação, com designação de custeio para o Fundo Estadual de Saúde. O tamanho amostral considerou os anos de 2014 a 2019, envolvendo 54 processos judiciais. Para análise dos dados qualitativos utilizamos a análise de conteúdo, do tipo temática (BARDIN, 1977). Assim, em cada processo judicial, foram identificadas unidades de análise, que foram agrupadas e caracterizadas, conforme definição proposta por Musse (2018). A pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal do Espírito Santo (Campus Goiabeiras) por meio do parecer nº 53136621.8.0000.5542.
Este trabalho encontra-se estruturado em três partes, além da introdução. Na primeira, discutimos a internação compulsória como uma intervenção que tem sido comumente utilizada para responder às demandas de saúde mental em casos de dependência de álcool e outras drogas. Na segunda parte, apresentamos os resultados destacando em que se sustentam as decisões dos juízes para designar as internações compulsórias no estado do Espírito Santo. E, na terceira parte, seguem as nossas considerações finais.
A internação compulsória no campo da saúde mental
Nossas reflexões neste artigo têm como ponto de partida a necessidade de uma crítica histórica, social, política e econômica sobre o fenômeno da internação compulsória de pessoas que usam drogas. Concordamos com Bokany (2015, p. 09) quando afirma que é “[...] necessário desenvolver estratégias diferenciadas por parte das instituições governamentais para lidar com os diferentes casos. Somente as medidas como a internação pela via da judicialização não protegem nem tratam os usuários, apenas os punem. A análise que aqui pretendemos realizar considera importante a compreensão do contexto histórico de desmonte do Estado de bem-estar social nos Estados Unidos e alguns países da Europa, que veio acompanhado do aumento do poder punitivo do Estado (WACQUANT, 2007). A adoção da política proibicionista e punitiva de drogas no Brasil faz parte dos arranjos geopolítico e geoeconômico no contexto das disputas entre as nações imperialistas, que tiveram início no final do século XIX (LIMA, 2009). Esse perspectiva que passou a ser adotada no campo da política de drogas, ao invés de reduzir o número de doentes e a violência teve como principal resultado o avanço das funções penais do Estado neoliberal, como estratégia prioritária de enfrentamento à questão social, tendo como consequência, o superencarceramento, a criminalização dos pobres, a higienização das cidades, a corrupção crescente em várias esferas da atividade pública, especialmente nas polícias, e uma interminável sequência de violações de direitos (BATISTA, 2012). Observa-se ainda que a compreensão pragmática e a-histórica sobre a temática resulta no aparecimento cotidiano de manifestações ideopolíticas, que acabam por legitimar a intervenção estatal por meio das suas instâncias repressivas.
Somado a esse quadro, no campo da política de saúde mental verifica-se que o impacto dessa conjuntura neoliberal sobre o Sistema Único de Saúde, tem sido o desfinanciamento e mercantilização das políticas sociais. No contexto atual, verifica-se que a rede de atenção que já apresentava dificuldades para ser implantada no país, vem sendo acompanhada do processo de “contrarreforma psiquiátrica”, apontando para o retorno do modelo manicomial que reforça a abordagem proibicionista e punitivista das questões provenientes ao uso de drogas e também, do adoecimento mental (VASCONCELOS, 2016; CRUZ; GONÇALVES; DELGADO, 2020).
Nessa conjuntura de mudanças nos rumos da política de saúde mental brasileira, verifica-se também o aumento da busca por respostas das demandas da população pela via da judicialização. Nessa área, as internações compulsórias relacionadas às drogas e ao campo da saúde mental apresentam crescimento importante (LEAL et al., 2021).
As internações compulsórias estão previstas na Lei nº 10.216/20016. No parágrafo único do artigo 6º a normativa prevê três tipos de internação psiquiátrica: 1) Voluntária, solicitada pelo paciente; 2) Involuntária, pedida por terceiro; e, 3) Compulsória, “aquela determinada pela Justiça”, sempre avaliada por médico (laudo médico) (BRASIL, 2001). Sobre a internação involuntária e a compulsória ambas são caracterizadas como internações forçadas ou não consentidas. No caso da internação involuntária, esta não demanda a atuação do Poder Judiciário, ao ser realizada contra a vontade ou sem o consentimento do sujeito. Será analisada a partir de pedido de terceiro(s), podendo ser um familiar ou um profissional responsável pelo seu tratamento (MUSSE, 2018).
O pedido de internação involuntária (feito por terceiro), deve ser requerido administrativamente junto à instituição e/ou estabelecimento de internação, público ou privado, no caso do Sistema Único de Saúde (SUS) via regulação. Para esse tipo de internação, não há necessidade de intervenção Judicial ou do Ministério Público, apenas é exigido do estabelecimento hospitalar que comunique à internação ao Ministério Público, em 72 horas, na forma da referida Lei nº 10.216/2001 (BRASIL, 2001). Frente a essa exigência presente na normativa, a estratégia utilizada pelos familiares para garantir a internação, que deveria ser caracterizada como involuntária, passa a ser requerida por medida compulsória, visto que, por ordem judicial, tanto o usuário quanto o poder público se submetem a garantir a internação (MUSSE, 2018). Sabemos que esse mecanismo, além de desrespeitar a regulação do SUS, desorganiza a sua lógica de funcionamento.
Na Lei nº 10.216/2001, a internação compulsória é prevista para situações em que não há solicitação de familiar para a internação, cabendo, intervenção estatal. Nestes casos, o Ministério Público e os serviços de saúde pública podem formular ao Judiciário o pedido de internação compulsória direcionado ao Juiz da Vara de Família, o que impossibilita o sujeito de, momentaneamente, decidir sobre sua saúde. Entretanto, a medida se deve em caráter emergencial e temporária, deferida sempre no intuito de proteger o interesse do usuário. Caberá ao especialista responsável pelo tratamento decidir sobre o término da internação (BRASIL, 2001; VASCONCELOS, 2014).
No entanto, o cenário político cada vez mais favorável a utilização equivocada do dispositivo legal das internações compulsórias, se abriu desde o ano de 2010, por meio do recolhimento contra a vontade de pessoas em situação de rua, iniciado em São Paulo e, logo após, expandido para outras capitais do país. Mesmo período quando o Governo Federal, pressionado pela disputa eleitoral, lança os planos de enfrentamento ao crack. Essas ações colaboraram com a aglutinação das forças políticas no Congresso nacional, que colaboraram para a aprovação da Lei nº 13.840/20197, que reverte a orientação do modelo psicossocial construído no horizonte da Reforma Psiquiátrica, com a inclusão de hospitais psiquiátricos e de comunidades terapêuticas como equipamentos constituintes da rede de atenção.
Como afirmam Cruz, Gonçalves e Delgado (2020), a grande marca deste texto normativo é que ele questiona frontalmente a efetividade do modelo em vigor até 2017 e a direção de uma política pautada no cuidado comunitário, afirma a necessidade de aumento do número de leitos psiquiátricos e repudia a ideia de fechar hospitais. Como já apontado em produção anterior (DENADAI; BERNARDES, 2018), essas mudanças foram acompanhadas de ampla mobilização de entidades, associações e serviços de saúde coletiva e saúde mental do Brasil inteiro, que foram completamente impedidos de participar das discussões (CRUZ; GONÇALVES; DELGADO, 2020).
Nesse quadro, Musse (2018) assinala que os contrários à internação compulsória alegam ser esta uma medida que priva os sujeitos de sua liberdade e escolha. Uma medida autoritária por não permitir que o usuário decida sobre sua saúde e, ao mesmo tempo, uma medida higienista por retirar a população usuária de drogas dos espaços públicos urbanos onde transitam a população residente e ocorre o comércio de mercadorias nesses locais. Para este grupo, o Estado deve garantir uma rede de apoio para o tratamento desses sujeitos de base territorial, garantindo o cuidado aos usuários, o que não significa o foco na abstinência ao uso das drogas e sim no sujeito. Em contrapartida, os favoráveis à internação compulsória partem da compreensão de que, se os usuários não mostram vontade e interesse de passar por um “tratamento” (deixar de usar as drogas8), logo, o Estado deve intervir com medidas coercitivas obrigando-os a se “tratarem”. Prevalece, nessa visão, o juízo de valor que atribui aos usuários o status de perturbadores da ordem social cometedores de furtos para alimentar “o vício” e causadores de violência urbana (COLEMAN, 2000). Nessa interpretação, os usuários são vistos como um risco a si e a outros na sociedade.
Diante dessas controvérsias em torno das ações de internação compulsória, Musse (2018) adverte que as medidas judiciais não podem jamais ser consideradas como política pública. Diante do exposto, é fundamental avaliar as consequências da judicialização promovida pelas atuais práticas de internação compulsória, visto que o direito de acesso aos serviços de saúde mental demanda “[...] um conjunto de respostas políticas e ações governamentais mais amplas, e não meramente formais e restritas às ordens judiciais” (VENTURA et al., 2010, p. 77). Nesse artigo, propomos a analisar as justificativas utilizadas pelo Judiciário para determinar as internações compulsórias no estado do Espírito Santo.
Resultados
As justificativas encontradas nos 54 processos foram categorizadas com base nas três perspectivas, definidas por Musse (2018), a saber: a jurídica-punitiva, que forja a ideia de risco/perigo social, o que justifica a restrição à liberdade do sujeito; a biomédica, que compreende o sujeito como doente que precisa ser tratado com base em um referencial técnico-instrumental das biociências; e, a de direitos humanos, que compreende o usuário ou dependente de drogas como detentor de direitos que lhe assegurem a cidadania e que devem ser respeitados por todos. Os 54 processos analisados apresentavam nas suas justificativas mais de um dos três paradigmas apontados por Musse (2018) e, em 100% estava presente o paradigma biomédico, sendo que 39 justificativas manifestavam o pensamento do modelo jurídico-punitivo e apenas três justificativas apresentavam o paradigma de direitos humanos (Quadro 1).
O discurso biomédico, presente em 100% das decisões judiciais, justifica-se pelo fato de que quaisquer internações (involuntárias ou compulsórias) só podem ser realizadas com base em laudo de médico especialista (psiquiatra), como regra a Lei da Saúde Mental. Assim, a justificativa do juiz se baseia no parecer médico, sustentado pelo discurso biomédico. Tal discurso considera o uso abusivo de substâncias psicoativas como doença (desvio da normalidade), que precisa ser tratada e curada. Nessa concepção, o médico deve propiciar o tratamento adequado para o sujeito que não consegue largar o ‘vício’, que não adere ao tratamento ambulatorial e não apresenta resposta terapêutica eficaz. Esse sujeito é tido como alguém que não tem consciência da gravidade do quadro e é incapaz de discernir sobre os cuidados. Aqui se sustenta a visão biológica e mecanicista do ser humano e a abordagem curativa da doença que delega ao médico o poder de tutelar esse sujeito que não quer se submeter ao tratamento, o que justifica sequestrar-lhe a autonomia (MUSSE, 2018).
É importante lembrar que a dependência de drogas é mundialmente classificada entre os transtornos psiquiátricos, sendo considerada como uma doença crônica que deve ser tratada simultaneamente como um problema social (WORLD HEALTH ORGANIZATION, 2002). Ou seja, uma doença que acompanha o indivíduo por toda a sua vida, mas que pode ser controlada. Contudo, como controlar a doença se o sujeito “não têm consciência da gravidade de seu problema, é refém do vício, não consegue ter a lucidez suficiente para buscar ajuda médica, se recusa a submeter-se ao tratamento médico”? Essas são justificativas apresentadas nos processos as quais testificam que a forma de conceber o processo saúde/doença; normalidade/anormalidade, define e valida as formas de tratamento impostas a esses sujeitos. A concepção do doente (dependente químico) ancorada no paradigma biomédico reforça a exclusão e a manutenção do estigma social dos usuários e lhe impõe a abstinência como forma de tratamento: “É preciso garantir que esses sujeitos com alto grau de dependência química parem de beber”.
A perda do controle sobre a vontade e sobre os próprios atos requer, nessa linha, que alguém “substitua a vontade” do usuário ou dependente de drogas, tutelando suas ações. Esse substituto pode ser um familiar ou responsável, um profissional da saúde, especialmente o médico, e, em última instância, o próprio Estado, que, em nome da vida e da saúde desses indivíduos — singular ou coletivamente considerados — pode determinar sua internação forçada. “Ambos requerem o sacrifício da autonomia dessas pessoas e a consequente intervenção de terceiros (familiares, profissionais da saúde e/ou do direito ou do Poder Executivo)” (MUSSE, 2018, p. 191-192).
Foi identificado que 39 justificativas, 72% dos processos, projetam o modelo biomédico atrelado ao discurso jurídico-punitivo, ao colocar os sujeitos usuários na condição de uso abusivo de substâncias psicoativas. Musse (2018) define o paradigma jurídico-punitivo como aquele que legitima as internações forçadas, por considerar as pessoas que fazem o uso abusivo e/ou com alto grau de dependência de drogas são um risco social por ameaçarem suas vidas e a de terceiros, o que justifica a privação da liberdade desses sujeitos. A conduta desses usuários considerados desviantes e criminosos não pode ser tolerada no convívio social, o que justifica a segregação. Com a atuação do judiciário, recupera-se a disputa materializada com o uso da força punitiva do Estado, os mecanismos de controle justificados pelo combate às drogas são próprios do Estado neoliberal de cunho penal (ROCHA; LIMA; FERRUGEM, 2021).
A punição para esses usuários utilizada pelas regras do direito é tomar medidas de controle desses sujeitos, a fim de oferecer a melhor e mais adequada punição que ganha a ideia de regeneração dos usuários de drogas, por meio da internação. A punição deve resultar na cura desses usuários (CHEIBUB, 2006). A prática do judiciário se mistura à prática médica para juntos lidarem com o considerado socialmente criminoso/delinquente. De modo que se estabelece uma indistinção entre viciado e criminoso que coloca a problemática do uso de drogas no campo da Justiça e da Medicina. Cabe aos médicos diagnosticar e prescrever o “tratamento” (internação), com tempo de duração necessário e aos juízes reconhecer o normal e o anormal, avaliar e decretar a necessidade da cura ou a readaptação para que seja possível retornar à sociedade (CHEIBUB, 2006).
Consideramos que apenas três (5,5%) das justificativas contidas nos processos analisados sustentavam o paradigma de direitos humanos, que parte da compreensão do usuário ou dependente de drogas como detentor de direitos individuais (MUSSE, 2018). Nesses casos, foi possível perceber a despeito do jurista trazer argumentação que enfatiza a necessidade do tratamento em virtude de quadro de doença, também a sua preocupação a com o direito à cidadania do usuário uma vez que a indicação da internação compulsória foi apontada como medida extrema diante da inexistência de dispositivos assistenciais, com apoio de uma equipe multiprofissional para desintoxicação. Nessa mesma linha, também foi apontado por um jurista a preocupação com ausência de suporte familiar para acompanhamento do usuário, ao trazer para os seus argumentos as reflexões presentes no laudo psicossocial produzido por uma profissional de Serviço Social. E, em um último processo verificamos que o jurista entendia a internação como uma medida extrema, imediata, mas necessária no caso em questão, ao considerar os apontamentos da Lei nº 10.216/2001 e a preocupação da suspensão da liberdade do sujeito como algo que deve ser questionado.
Destacamos aqui que o direito à saúde está incorporado ao conceito de direitos humanos9, por ser um direito universal e uma responsabilidade do Estado prover, no qual a saúde mental encontra-se incluída. Assim, destacamos o direito dos usuários de substâncias psicoativas a acessarem serviços de saúde que lhes afirmam os Direitos Humanos. Nessa perspectiva resultante da luta pela Reforma Psiquiátrica, instituiu-se a proposta de construção da Rede de Atenção Psicossocial, voltada ao redirecionamento do modelo de assistência aos sujeitos no campo da saúde mental, com uso de novas formas de tratamento em rede de serviços substitutivos aos hospitais psiquiátricos. Tal proposta, apesar de implementada ao longo de mais de 20 anos, não se consolidou satisfatoriamente, em especial para os usuários de substâncias psicoativas. Além da carência no quantitativo de serviços implantados, o modelo assistencial não deu conta de reinventar estratégias de cuidado que superem a proposta de abstinência do uso das drogas.
Considerações finais
A análise das justificativas inscritas nos processos designando internação compulsória para os usuários de álcool e outras drogas, em regime de internação forçada, nos possibilitou compreender melhor o fenômeno da judicialização na saúde mental, que vem crescendo. Evidenciamos o debate de autores que denunciam a forma que vem sendo requerida a internação compulsória, afirmando que se constitui numa violação frontal aos princípios constitucionais da dignidade da pessoa humana e da saúde, direitos humanos e fundamentais, inscritos na Constituição Federal de 1988.
Para os autores, a Internação Compulsória de dependentes químicos resulta da interpretação equivocada da Lei da Reforma Psiquiátrica (nº 10.216/2001), que trata da internação involuntária e a compulsória para usuários em sofrimento psíquico. O que se tem observado é o uso dessas modalidades de internação, em especial a compulsória, voltada para o dependente químico, que, segundo os autores, não possui o mesmo status diagnóstico do usuário com transtorno mental. Ao que parece, é que o uso da internação compulsória tem sido utilizado como estratégia de higienismo social, a fim de retirar dos espaços urbanos populações sobrantes, marginalizadas, resultando em segregação inconstitucional (COELHO; OLIVEIRA, 2014).
A partir desse panorama analisado nos processos judiciais evidencia-se a manutenção do discurso hegemônico de guerra às drogas, como principal forma de enfrentar as demandas dos usuários. Para tanto, no discurso médico, patologizante, medicalizante que integram as justificativas trazem elementos que conclamam a preocupação pela saúde pública, e, ao mesmo tempo, privilegia ações, de “tratamento” atrelada à noção de castigos ou penas provenientes de um ideal normativo que não admite a transgressão como parte de um devir humano (BRITES, 2015). Em contrapartida, não valoriza outras possibilidades de intervenções. A exemplo da redução de danos que prioriza outras possibilidades de tratamento na perspectiva dos direitos humanos, da liberdade e do cuidado.
Compreendemos que o movimento do judiciário deveria ser na direção do direito constitucional desses cidadãos, com base no seguinte questionamento: que tipo de enfrentamento deve ser feito pelo Estado frente à grave condição na qual se encontram as pessoas com dependência química? A resposta, que deve ser resguardada na perspectiva dos direitos humanos, não escaparia da declaração e defesa de políticas públicas que garantam a inclusão social desses sujeitos.
Portanto, compreendemos que as medidas de internações compulsórias, amplamente utilizadas pelo judiciário brasileiro como estratégia no controle do uso de drogas, podem contribuir com o processo de exclusão e violação das garantias institucionais, reduzindo o tratamento desses cidadãos a uma medida que produz violação de direitos humanos e favorece o processo de exclusão (ROCHA; LIMA; FERRUGEM, 2021).
Agradecimentos
Agradecemos à Secretaria de Saúde do Estado Espírito Santo (SESA), por meio dos setores de: Judicialização, Coordenação Técnica em Saúde Mental e Núcleo Especial Regulação Internação que colaboraram para acesso às informações.
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1
Ao analisar os gastos que resultam das medidas judiciais para internações compulsórias no estado do Espírito Santo, constatamos que entre os anos de 2014 e 2019, o valor custeado pelo governo foi de R$ 187.561.059,90 (cento e oitenta e sete milhões, quinhentos e sessenta e um mil, cinquenta e nove reais e noventa centavos) (LEAL et al., 2021).
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2
Dados do Infopen indicam que, em 2019, eram 773.151 presos, demonstrando um aumento de 160% em relação à aprovação da Lei n. 11.343/2006.
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3
Uma inspeção nacional da Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), do Ministério Público Federal e do Conselho Federal de Psicologia (CFP), realizada no ano de 2017, denunciou irregularidades em comunidades terapêuticas em diversos estados, como trabalho forçado, inexistência de laudo médico, privação de liberdade e falta de acesso à escola para menores de dezoito anos (RELATÓRIO..., 2018).
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4
Considerando que o número de ações judiciais tem crescido exponencialmente nos últimos anos em nível municipal, estadual e federal, por diversas demandas, incluindo medicamentos, órteses/próteses, consultas médicas, cirurgias, tratamentos no exterior, leitos de internações, entre outras, atualmente, esse é um dos temas mais importantes para os gestores do Sistema Único de Saúde (SUS) (CONASEMS, 2021).
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5
Neste artigo, consideramos o termo rede de atenção na perspectiva defendida e pensada nos marcos da Reforma Psiquiátrica brasileira.
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6
Esta normativa foi resultado do movimento de reforma psiquiátrica ocorrido no Brasil, que assegurou a proteção e os direitos das pessoas com transtornos mentais, cujo objetivo foi redirecionar o modelo assistencial em saúde mental outrora vigente, erradicar o tratamento baseado na internação e fomentar a reinserção do usuário/dependente no seio da sociedade.
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7
Esta normativa dispõe sobre o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas, as condições de atenção aos usuários ou dependentes de drogas e o financiamento das políticas relativas à internação involuntária dos usuários e dependentes de substâncias químicas entorpecentes.
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8
Vale lembrar, tal como aponta Boiteux (2006, p. 46), que a maioria das drogas que hoje são proibidas ao consumo “[...] já foram usadas livremente, tendo sido proibidas a partir de um determinado momento, ao mesmo tempo em que substâncias hoje livremente consumidas já foram objetos de proibições anteriores [...]” (tais como o álcool e o tabaco), mas não mais são submetidas a tal modelo.
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9
São direitos voltados para o ser humano independentemente de sua condição social, econômica, raça/cor/etnia, gênero, ou qualquer outra, sendo garantias essenciais à construção de sua dignidade enquanto pessoa.
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Agência financiadora Pesquisa financiada pela Fundação de Amparo à Pesquisa e Inovação do Espírito Santo (FAPES), por meio do Edital CNPq/FAPES N° 22/2018 - Programa Primeiros Projetos.
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Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participação Comitê de Ética da UFES sob o nº 53136621.8.0000.5542Consentimento para publicação Consentimos a publicação do artigo.
Referências
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
24 Jul 2023 -
Data do Fascículo
May-Aug 2023
Histórico
-
Recebido
01 Nov 2022 -
Aceito
28 Mar 2023 -
Revisado
03 Maio 2023