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Arte e desfetichização na obra tardia de György Lukács

Art and de-fetishization in the late work of György Lukács

Resumo:

Este trabalho objetiva analisar o papel exercido pelo cárcere e o encarceramento de mulheres considerando as conformações do sistema hetero-patriarcal-racista-capitalista implementado no Brasil. A metodologia consistiu em estudo bibliográfico e documental, sendo que os resultados mostraram que os estabelecimentos prisionais se constituíram em tecnologias repressivas utilizadas para a formação e a consolidação do projeto de nação branca, classista, racista e sexista, como forma de atendimento às demandas de estruturação e desenvolvimento do capitalismo. Em tempos de fragilização dos vínculos trabalhistas e de uberização do trabalho, o cárcere tem assumido um papel proeminente na gestão da pobreza por meio da violência, repressão e segregação, aprofundando as expressões da questão social decorrentes de desemprego, pobreza e insegurança alimentar que afetam mais efetivamente as famílias monoparentais chefiadas por mulheres, sobretudo, mulheres negras moradoras das periferias urbanas.

Palavras-chave:
Estética em Lukács; arte e desfetichização; subjetividade estética

Abstract:

In this article, we should highlight György Lukács' latest aesthetic work, Die Eigenart des Ästhetischen, which determines the social function of art as a reflection of reality aimed at de-fetishizing individuals. As a peculiar reflection of reality, art is determined as an antagonistic force to the degenerative and deforming tendencies arising from the determinations posed by the contradictions of sociability. Aesthetic activity addresses the deepest human needs. It aims to remove the masks that appear as natural forms of life, turning against the disfigurements of the essence of the human; in this way, art reveals the broader dimension of the life of the genre as the foundation and principle of the existence of social being.

Keywords:
Aesthetics in Lukács; art and de-fetishization; aesthetic subjectivity

Introdução

A poesia é ao mesmo tempo o descobrimento do núcleo da vida e a crítica da vida.

(Lukács, 1987LUKÁCS, György. Die Eigenart des Ästhetischen: Band 1. Berlin und Weimar: Aufbau-Verlag, 1987., 740)

O papel da arte no quadro da atividade espiritual do ser social tal como pensado na obra tardia de György Lukács é ainda um tema pouco estudado. Sua obra A peculiaridade do estético [Die Eigenart des Ästhetischen], onde se encontram mais desenvolvidas suas reflexões sobre a questão da arte, é de fato um texto desconhecido pelo grande público — nacional e internacional — uma vez que poucos estudiosos se debruçaram sobre ele, e quando o fizeram se limitaram a abordar temas muito circunscritos1 1 Sob o risco de cometer algumas injustiças, seria oportuno citar exceções, nesse sentido é preciso referir alguns estudiosos que realizaram contribuições importantes tanto para o entendimento quanto para a difusão do pensamento estético de Lukács: Nicolas Terlian, Guido Oldrini, Miguel Vedda. No Brasil vários estudos foram realizados em torno das análises literárias de Lukács e constituem investigações que se inspiraram nas obras lukácsiana anteriores à Peculiaridade do estético. Vale citar os trabalhos de Carlos Nelson Coutinho, José Paulo Netto, Nelson Werneck Sodré, Leandro Konder, Celso Frederico, que realizaram incursões importantes na obra tardia de Lukács, anunciando a necessidade de estudos complementares sobre as reflexões densas e profícuas presentes na Estética lukácsiana. . O desconhecimento da obra não se deve apenas aos aspectos conjunturais impostos pelas filosofias que dominam o campo acadêmico e filosófico, mas pela própria dificuldade dos temas abordados no volumoso livro de Lukács. Não é uma obra de fácil acesso, dado o debate filosófico de grande complexidade nela contido. Os intentos do autor dão provas de que ele imergiu nos mais profundos debates da tradição milenar da filosofia da arte, fato que torna sua obra densa na medida em que exige do leitor um árduo trabalho de se inteirar das questões mais decisivas da estética, além de requerer um conhecimento cultural no campo das artes — literatura, pintura, arquitetura etc. — minimamente diversificado para a compreensão das reflexões feitas pelo pensador húngaro.

A dificuldade da obra impede leituras rápidas e simplificadoras, o que faz com que a velha sanha pragmática da militância ávida por instrumentalizações teóricas para a luta imediata não encontre ali respaldo direto para os seus propósitos. Nesse sentido, a primeira advertência a ser feita é que não se pode tomar a obra de Lukács como uma simples “estética marxista”, no sentido mais corriqueiro em que tal termo costuma ser adotado. Algo como uma espécie peculiar de posicionamento marxista em torno do tema, como por exemplo, a pretensa definição do que vem a ser uma arte revolucionária, próxima aos comuns engessamentos do problema pressupondo a definição de uma arte operária, ou a denúncia da mercantilização da arte pelo capitalismo, ou qualquer coisa próxima a isso. Longe de tais instrumentalizações imediatistas encontramos a reflexão rigorosa sobre aquilo que o autor designa como “o sistema das mediações categoriais do estético”. Há, nesse sentido, debates profundos com as categorias tradicionais do pensamento filosófico, que remontam a Aristóteles, passando por Diderot, Hobbes, Lessing, Schelling, Kant, Hegel, Schiller, Goethe, dentre outros menos referidos, como: Arnold Geller, Klopstock, Fiegler, Riegl etc.

Isso não significa dizer que o trabalho analítico lukácsiano não tenha respaldo na obra de Marx; pelo contrário, suas elaborações são, de fato, tributárias da inflexão provocada por Marx no campo da filosofia. Embora não se possa encontrar nos clássicos do marxismo uma filosofia da arte pronta e acabada, o pensador magiar insiste em destacar que o

método do materialismo dialético define claramente quais caminhos e como eles devem ser seguidos se se deseja conceituar a realidade objetiva em sua verdadeira objetividade e fundamentar a essência de um campo específico de acordo com sua verdade. Somente realizando e mantendo, por meio de pesquisa própria, esse método, a orientação desses caminhos, é possível encontrar o que se busca, construir corretamente a estética marxista ou, pelo menos, aproximar-se de sua verdadeira essência (Lukács, 1987, pLUKÁCS, György. Die Eigenart des Ästhetischen: Band 1. Berlin und Weimar: Aufbau-Verlag, 1987.. 11–12, 1965a, p. 16)2 2 Todas as citações relativas ao livro Die Eigenart des Ästhetischen foram feitas pelo autor deste artigo. Para facilitar o acesso ao leitor, serão também indicadas as páginas da edição espanhola da estética. .

Elementos importantes são postos em evidência a partir dessa demarcação. De pronto merece destaque a afirmação da historicidade da arte, na medida em que sua obra procura demonstrar o decurso histórico do nascimento e explicitação das categorias propriamente estéticas, trajetória que vai desde as formas mais rudimentares da magia, passando pela religião até a plena conformação do complexo categorial da estética. Contra o idealismo, Lukács demonstra que a arte não é uma dimensão humana desde sempre posta, como uma essência pré-estabelecida imutável e perene, mas trata-se de uma atividade autoproduzida pela humanidade, que cumpre uma função peculiar e necessária no desdobramento do processo de autoconstrução humano. Temos, portanto, dois aspectos importantes que diferenciam as determinações de Lukács das concepções da arte em geral, tanto das estéticas mais relevantes da tradição filosófica, quanto das tendências da contemporaneidade: o problema da gênese e historicidade da arte e a determinação da função social da arte. Para nossos propósitos convém insistir no segundo ponto.

A função social da arte: determinação de sua peculiaridade

A arte tem para Lukács um lugar decisivo na autoconstrução do ser social. É uma das formas do reflexo da realidade, um modo peculiar de apreensão da objetividade social e mundana. A atividade estética cumpre papel decisivo na compreensão da realidade, ela constitui uma das formas do reflexo das reais condições da vida do gênero. Nesse sentido como forma específica da apreensão ideal da realidade é preciso estabelecer sua diferença essencial com as outras formas do reflexo: o pensamento da vida cotidiana e a ciência.

Lukács usa uma analogia bem significativa para explicar o lugar “do comportamento estético na totalidade das atividades humanas” (1987, p. 7, 1965a, p. 11).

se representamos a vida cotidiana como um grande rio, pode-se dizer que a ciência e a arte emergem dela, como formas superiores de recepção e reprodução da realidade, diferenciam-se e desenvolvem-se segundo seus objetivos específicos, alcançam sua forma pura. nessa especificidade — que nasce das necessidades da vida social —, apenas para fluir de volta ao fluxo da vida cotidiana como resultado de seus efeitos, de seu impacto na vida das pessoas. Esta se enriquece constantemente com os resultados mais elevados do espírito humano, assimilando-os às suas necessidades cotidianas e práticas, das quais surgem novos ramos das formas mais elevadas de objetivação como perguntas e repostas.

As formas do reflexo são distintas pois possuem funções diferenciadas no âmbito da vida humana, mas todas elas se direcionam e buscam apreender a realidade com a qual os indivíduos se defrontam nos contextos específicos da atividade empreendida. Nos termos lukácsianos, pode-se dizer que as “as três formas” — pensamento cotidiano, ciência e arte — “refletem a mesma realidade”, porém de forma distinta, pois possuem intencionalidades diferentes. Nessa medida, contra tendências hoje dominantes inorgânicos ou sociais, desenvolvem-se segundo certos nexos causais em certos complexos, com ações recíprocas em seu interior e ações recíprocas de um complexo com relação ao outro” (Lukács, 1965a, pLUKÁCS, György. Estética 1: la peculiaridad de lo estético. Traducción Manuel Sacristán. Barcelona: Grijalbo, 1965a. v. 1.. 71, 1987, p. 61).

Os reflexos na vida cotidiana não são meras ilusões ou simples representações imprecisas e confusas da realidade. A forma pela qual se apreende a realidade implica a relação imediata com as questões práticas da vida, fato que impõe uma relação mais direta e efetiva nas respostas aos problemas da cotidianidade. Lukács insiste em destacar a presença de uma relação imediata entre teoria e prática própria dessa forma do reflexo, uma vez que sua função é operacionalizar a existência do indivíduo. Nesse aspecto, certos “automatismos”, ou nos termos usados por Lukács certos “reflexos condicionados”, se fazem necessários como forma de responder de pronto à realidade com o qual se deparam os indivíduos. Respostas já fixadas pelas tradições, costumes, e até mesmo por princípios morais funcionam como mecanismos que viabilizam a tomada de posição frente a demandas diversificadas postas pela vida. Conforme enfatiza nosso autor, “sem uma série de costumes, tradições, convenções etc., a vida cotidiana não poderia prosseguir facilmente, nem seu pensamento poderia reagir tão rapidamente quanto muitas vezes é necessário à situação no mundo externo” (Lukács; 1965a, pLUKÁCS, György. Estética 1: la peculiaridad de lo estético. Traducción Manuel Sacristán. Barcelona: Grijalbo, 1965a. v. 1.. 63, 1987, p. 54).

Esse reflexo implica o reconhecimento efetivo da realidade, uma vez que sua eficácia depende da apreensão correta dos meios que permitem a atuação no próprio curso da vida. Nas palavras de Lukács,

a práxis assim produzida contém o momento que é decisivo para o domínio do homem sobre o mundo que o cerca, ainda que de uma forma que não pode ser plenamente desenvolvida apenas com base nisso, a saber, o princípio correto: a reflexão aproximadamente adequada da realidade objetiva e seus critérios de verificação essenciais, com o teste do conhecimento obtido através da pedra de toque da prática (Lukács, 1965b, pLUKÁCS, György. Estética 1: la peculiaridad de lo estético. Traducción Manuel Sacristán. Barcelona: Grijalbo, 1965b. v. 2.. 13, 1987, p. 334).

A não apreensão dos nexos efetivos da realidade inviabiliza a vida, o indivíduo sempre fracassa quando não é capaz de fazer a seleção adequada da malha causal da realidade objetiva, seja ela de ordem natural (trabalho, ciência) ou social (relações interpessoais, moralidade, tradições etc.). Desse modo, a prática se impõe como critério do reflexo da vida cotidiana, exigindo para o plano da ação uma aproximação minimamente adequada das categorias autênticas da realidade. Tal determinação é fundamental uma vez que o problema do pensamento da vida cotidiana é quase sempre negligenciado na filosofia.

Este ponto é chave na elaboração lukácsiana, pois o indivíduo “da vida cotidiana sempre reage aos objetos de seu ambiente de forma espontaneamente materialista, independentemente de como essas reações do sujeito da prática são posteriormente interpretadas” (Lukács, 1965a, pLUKÁCS, György. Estética 1: la peculiaridad de lo estético. Traducción Manuel Sacristán. Barcelona: Grijalbo, 1965a. v. 1.. 71, 1987, p. 61). Lukács se contrapõe, assim, às tendências hegemônicas do pensamento filosófico, fato que pode ser constatado na crítica que faz à posição de Heidegger, para quem

a cotidianidade é [...] um mundo de impropriedade, de queda, de abandono da propriedade ou autenticidade. O próprio Heidegger chama de queda no precipício a essa "motilidade" do estar em seu próprio ser. O estar se precipita em si mesmo, na falta de solo e na nulidade do cotidiano impróprio. Mas a interpretação pública esconde-lhe esta queda, interpretando-a como ‘ascensão’ e ‘vida concreta’ (Lukács, 1965a, pLUKÁCS, György. Estética 1: la peculiaridad de lo estético. Traducción Manuel Sacristán. Barcelona: Grijalbo, 1965a. v. 1.. 71, 1987, p. 61).

No entanto, as exigências práticas imediatas para os quais o reflexo na vivência cotidiana se dirige, apesar de necessárias, podem engessar elementos mais essenciais da realidade na qual vivem os indivíduos, fazendo com que desse modo sejam necessárias formas distintas de percepção da realidade, como modo de permitir a percepção crítica de seus limites, possibilitando, tanto no âmbito da natural quanto nas questões propriamente humanas, a percepção elementos mais centrais e decisivos do ser social de cada época.

Não se deve, pois, passar por alto o elemento positivo e conservador da vida que existe nessas duas tendências extremas que acabam por inibir a relação com a realidade. Mas em última análise — e isso é essencial à dialética da vida cotidiana e de seu pensamento — a crítica e a correção pela ciência e pela arte, nascidas dessa vida e desse pensamento e sempre em interação com eles, são essenciais para um progresso substancial, mesmo que nunca possam alcançar a liquidação definitiva da rigidez, por um lado, e da imprecisão, por outro (Lukács, 1965a, pLUKÁCS, György. Estética 1: la peculiaridad de lo estético. Traducción Manuel Sacristán. Barcelona: Grijalbo, 1965a. v. 1.. 63, 1987, p. 54).

Ao mesmo tempo que necessária a imediatidade da relação na vida cotidiana apresenta tendências negativas, na medida em que pode vir a promover efeitos inibidores. Todas as respostas mecânicas constituídas foram construídas a partir da justificação e da eficácia necessárias aos momentos específicos para os quais se buscaram soluções práticas. Essas respostas na medida em que são eficazes terminam por se fixar como comportamentos automáticos, para os quais não se necessita de reflexões e análises em seu uso. No decorrer da dinâmica da vida cotidiana, a gênese desses momentos tende a se apagar, a fazer desaparecer os processos de constituição das formações sociais. O apagamento dos processos formativos, seja das tradições, costumes, moralidade, enfim dos chamados automatismos comuns à vida cotidiana podem gerar esquemas que falsificam a dinâmica social, criando falsa concepções de perenidade ou insuperabilidade dos elementos fixados na prática imediata da vida. Além disso, o caráter essencialmente prático dessa forma de reflexo faz com que o indivíduo perceba

a realidade e o modo como ela pode ser oferecida a ele objetivamente nas circunstâncias histórico-sociais dadas. A "naturalidade" dessa imagem do mundo não é, portanto, uma verdade absoluta em si mesma; ela permanece inseparavelmente ligada ao estágio evolutivo da humanidade em cada caso, mas dentro desses limites especificamente determinados atinge uma aproximação máxima da verdadeira objetividade (Lukács, 1965b, pLUKÁCS, György. Estética 1: la peculiaridad de lo estético. Traducción Manuel Sacristán. Barcelona: Grijalbo, 1965b. v. 2.. 429, 1987, p. 706).

Os limites práticos da reprodução ideal, da construção da imagem de mundo, afastam os indivíduos das dimensões mais essenciais do gênero humano. Tal incapacidade de figurar no pensamento da vida vivida os elementos dos processos mais centrais do desenvolvimento do gênero humano — e por via de consequências das formas objetivas sobre as quais as individualidades se constituem — colocam a exigência de formas distintas de apreensão da realidade. Apropriando-se e ampliando a categoria proveniente das determinações de Marx, Lukács define esse fenômeno como a fetichização da vida cotidiana. As relações sociais, os processos de formação das tradições, costumes, moral, instituições sociais etc., tomam a feição de coisas independentes, como se existissem desde sempre e por si só, em suma, são postas como fatos naturais mediante o apagamento de sua gênese social.

Se a estrutura do mundo em que vive está separada do próprio homem, o mundo assume o aspecto de uma falsa existência independente, na qual o homem é apenas um hóspede fugaz, um viajante de passagem; e, como contraponto inevitável a essa tendência, o sujeito humano se separa do mundo que o cerca, imagina poder levar uma vida baseada exclusivamente em si mesmo, ou imagina-se simplesmente capaz de tentar: isso basta para que ocorra um duplo fetichismo, tanto na objetividade agora sem alma quanto na interioridade "pura" despojada de todo conteúdo (Lukács, 1965b, pLUKÁCS, György. Estética 1: la peculiaridad de lo estético. Traducción Manuel Sacristán. Barcelona: Grijalbo, 1965b. v. 2.. 429–30, 1987, p. 706).

Tanto a arte como a ciência surgem a partir das necessidades da vida cotidiana, cujas funções centrais consistem em superar suas limitações, porém aparecem como polos distintos no que tange à forma do reflexo que lhes são peculiares. É nesse sentido que se deve compreender a metáfora do rio citada por nós anteriormente.

A compreensão científico-conceitual cumpre a função da desantropomorfização, na medida em que pretende a apreensão das leis que regem a objetividade natural independentemente da consciência, nesse sentido, cumpre o ideal da isenção subjetiva no conhecimento da objetividade. As ciências em geral, particularmente as ciências da natureza, indo além das imputações subjetivas, instrumentalizam a vida humana para tornar mais evidente os elementos e a legalidade que regem de fato os fenômenos naturais e mesmo técnicos da produção material da vida. Por sua vez, nas “ciências sociais esse mundo do homem torna-se simplesmente um objeto, cujo conteúdo consiste nos fatos, relações etc., constituídos pelos próprios homens” (Lukács, 1965c, pLUKÁCS, György. Estética 1: la peculiaridad de lo estético. Traducción Manuel Sacristán. Barcelona: Grijalbo, 1965c. v. 3., 308-9, 1987, p. 281).

A arte, pelo contrário, vai na direção oposta à ciência, tem por base a antropomorfização do conhecimento, é a consideração da realidade sempre em relação ao humano. Há aqui uma distinção importante de ser feita quanto ao objeto da ciência e do trabalho em relação ao objeto criado enquanto obra de arte. Na atividade científica e mesmo do trabalho, o objeto existe independentemente do sujeito, mesmo quando é uma produção dele. Na arte, por sua vez, o objeto somente existe em sua intrínseca relação com um sujeito. Este é, para nosso autor, o único caso em que se pode falar da identidade sujeito-objeto tão decisiva na filosofia de Hegel. Considerando exemplos dados pelo próprio autor, pensemos no caso de um barco ou um martelo e uma estátua. Os primeiros instrumentos, mesmo quando não são utilizados, constituem objetos por si mesmos, pois contém as propriedades necessárias para se tornarem instrumentos para atividade humana. No caso da estátua, a ausência do receptor da fruição estética faz com que ela se ponha apenas como um bloco de pedra. Na arte e apenas na arte: "nenhum objeto sem sujeito", uma vez que a natureza da estética implica provocar evocações na subjetividade (cf. Lukács, 1965b, pLUKÁCS, György. Estética 1: la peculiaridad de lo estético. Traducción Manuel Sacristán. Barcelona: Grijalbo, 1965b. v. 2., 231, 1987, p. 527). Trata-se de uma unidade imprescindível, unidade do diferente, ou identidade entre duas instâncias distintas. É preciso o objeto para evocar e o sujeito acometido pelas evocações provenientes do objeto.

Nesse ponto de nossas considerações convém insistir, conforme já salientado, que toda forma do reflexo guarda relação necessária com a objetividade: “reproduzem sempre a mesma realidade objetiva” (Lukács, 1965a, pLUKÁCS, György. Estética 1: la peculiaridad de lo estético. Traducción Manuel Sacristán. Barcelona: Grijalbo, 1965a. v. 1.. 21, 1987, p. 16), porém dirigem-se para aspectos específicos desta, no intuito de suprir necessidades específicas do ser social. Algo mais fácil de se admitir na ciência, porém mais pleno de mediações na arte. As formações estéticas são também reproduções ideais da realidade objetiva, seu valor autêntico para o humano consiste na capacidade que tem de apreender de maneira correta a realidade, no entanto, como veremos, com a peculiaridade de capturar essa realidade sempre em sua relação com o homem. O elemento mais importante dessa determinação, que nos permite inclusive diferenciar a estética estabelecida por Lukács das tendências contemporâneas, consiste no fato de que a arte não é a mera expressão subjetiva do criador, mas consiste na dinâmica dialética interativa entre a subjetividade do gênero humano umbilicalmente relacionada com a objetividade. Lukács denomina tal relação peculiar entre sujeito-objeto na arte, como o advento da subjetividade estética.

O primeiro ato da criação artística autêntica é a superação da subjetividade do criador como condição necessária para apreensão da objetividade, sob a forma específica do reflexo estético. Também nesse caso, Hegel aparece como referência necessária, na medida em que Lukács se vale da determinação da alienação (Entäusserung) e superação (Aufhebung) da alienação. A antropomorfização na arte é a elevação à subjetividade estética, como figuração que sempre apreende a objetividade em sua intrínseca relação com a subjetividade do gênero humano. A subjetividade a ser superada, é aquela restrita ao indivíduo criador, para se elevar da particularidade tacanha do sujeito até à “atalaia” das grandes questões humanas, nesse sentido é sempre a objetividade em vistas aos desdobramentos do humano em sua trajetória histórica de autoconstrução.

A tendência ao desaparecimento da subjetividade em sua alienação, em sua entrega à objetividade-em-si entitiva dos objetos, está destinada a descobrir e dar sentido ao que é importante em cada caso para a humanidade no mundo dos objetos. [...] A contradição frutífera da reflexão estética consiste [...] no fato de que, por um lado, ela se esforça para capturar cada objeto e, sobretudo, a totalidade dos objetos, sempre em conexão inseparável, embora não explicitamente e dito diretamente, com a subjetividade humana [...] e, por outro lado, fixa e dá sentido ao mundo dos objetos não apenas em sua essência, mas também em sua forma de manifestação imediata: a dialética da aparência e da essência se impõe em sua legalidade geral e, além disso, em sua imediatez, tal como aparece ao homem em vida (Lukács, 1965b, pLUKÁCS, György. Estética 1: la peculiaridad de lo estético. Traducción Manuel Sacristán. Barcelona: Grijalbo, 1965b. v. 2.. 237-8 1987, p. 533).

É preciso ultrapassar a subjetividade espontânea, própria da dimensão da vida cotidiana, e para tanto a relação com a objetividade da vida social aparece como elemento chave para a superação da mera particularidade (Partikularität) do indivíduo que na vida pode se colocar como mônada fechada, isolada em si mesmo. A arte autêntica implica a superação da subjetividade do indivíduo, significa o enriquecimento da subjetividade do criador mediante o direcionamento para a objetividade existente independentemente de sua consciência, com vistas à apreensão das questões mais importantes atinentes às individualidades em dada época e em dado contexto social. O de fora, a mundanidade é o critério decisivo da produção estética, significa a capacidade do criador de superar suas concepções, suas convicções pessoais, e inteirar-se das questões centrais da vida, e tão somente nessa medida, voltar a si (Rucknahme que traduziremos aqui por ‘retrocaptação’) e realizar na figuração criada a dação de forma necessária capaz de expressar os conteúdos humanos essenciais. Esse caminho que vai da alienação no mundo ao retorno a si transformado pela experienciação mais fundamental da mundanidade, produz, segundo Lukács, a subjetividade estética. Assim,

a subjetividade tem que ser superada a ponto de desaparecer completamente, a fim de ser um espelho em que todas as determinações importantes do objeto aparecem sem distorção, e deve ao mesmo tempo se intensificar interiormente até o extremo, se é para a refiguração não ser rígida e morta (Lukács, 1965b, pLUKÁCS, György. Estética 1: la peculiaridad de lo estético. Traducción Manuel Sacristán. Barcelona: Grijalbo, 1965b. v. 2.. 468, 1987, p. 743)

Nessa medida:

A entrega do sujeito à realidade em alienação, sua imersão nela, produz desse modo uma objetividade internamente intensificada. Mas esta última – e tal é o sentido da retrocaptação no sujeito – é permeada de subjetividade por todos os seus poros, e é justamente uma subjetividade dada que não é um acréscimo, um comentário, nem mesmo uma atmosfera que envolve os objetos, mas um momento componente construtivo de sua objetividade (Lukács, 1965b, pLUKÁCS, György. Estética 1: la peculiaridad de lo estético. Traducción Manuel Sacristán. Barcelona: Grijalbo, 1965b. v. 2.. 238, 1987, p. 533).

É nesse sentido que Lukács compreende a determinação da alienação e da retrocaptação do criador. A agudeza da percepção do artista consiste na percepção do mundo, na compreensão dos principais problemas humanos (e éticos) de dada sociedade em certos contextos históricos. Em Para uma ontologia do ser social, a mesma determinação é retomada a partir de dois exemplos significativos, deixando claro em que consiste a superação da subjetividade imediata do criador, ao fazer referência a dois importantes escritores:

Assim Balzac, um homem com simpatias reacionárias de cunho monarquista, torna-se o grande crítico sintético da civilização capitalista; assim Tolstoi, um aristocrata que nutre simpatias sentimentais pelos camponeses, torna-se porta-voz de um humanismo democrático-plebeu e, em consequência disso, chega a uma crítica demolidora da sociedade de classes (Lukács, 2013, pLUKÁCS, György. Para uma ontologia do ser social. Tradução: Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2013. v. 2.. 616).

De tais considerações decorre outro problema central da estética lukácsiana: a unidade dialética de forma e conteúdo. A figuração da obra de arte precisa ser a dação de forma adequada capaz de evocar sentimentos, emoções, pensamentos, na vivência do indivíduo receptor que o remetam diretamente aos conteúdos mais essenciais da vida genérica do ser social, deve ser a expressão das questões humanas mais decisivas em dados contexto social e histórico. Lukács determina o conteúdo da arte como a autoconsciência do gênero humano.

O sujeito ao se entregar à realidade em sua alienação, em sua imersão na realidade, imprime na forma do objeto artístico uma objetividade internamente intensificada. É, pois, mister evidenciar que a forma do objeto artístico é a expressão de um conteúdo em cujo

reflexo estético exprime sempre uma verdade da vida, [...] sua essência particular consiste em referir essa verdade e sua estrutura objetiva ao homem, ou seja, em ordenar o que é dado e importante para o desenvolvimento da humanidade de tal forma que este momento seja dominante, tanto no que diz respeito ao conteúdo que concentra o que está disperso na vida, que resume o jogo, aparentemente desordenado nas singularidades da vida, entre acaso e necessidade, faticidade e significação, numa harmonia concretamente contraditória e às vezes trágica, quanto trata-se da forma, que cresce para se tornar o princípio norteador de cada um desses microcosmos concretamente locais e únicos (Lukács, 1965b, pLUKÁCS, György. Estética 1: la peculiaridad de lo estético. Traducción Manuel Sacristán. Barcelona: Grijalbo, 1965b. v. 2.. 528-9).

A antropomorfização na arte não pode prescindir de ser a apreensão dos elementos nodais da essência histórica do humano. A arte se dirige para os aspectos mais essenciais da autoconsciência do gênero, e ao apreender esses elementos produz a sensação catártica típica dessa apreensão: a vergonha pela mediocridade da própria vida, e a satisfação em alcançar aspectos superiores pertinentes ao gênero.

A figuração estética que de fato cumpre os princípios dessa atividade espiritual peculiar humana, dada a dação de forma substancial nela presente evoca no receptor um chamamento à substancialidade da vida e à própria substancialidade do indivíduo, e nessa medida sublinha por meio da evocação a percepção da distância que separa internamente o indivíduo dessa substancialidade (Lukács, 1967b, p. 478, 1987, p. 752). Quer sempre ser uma “sacudida tal da subjetividade do receptor que suas paixões vitalmente ativas assumam um novo conteúdo, uma nova direção e, assim purificadas, tornam-se a base psíquica das ‘disposições virtuosas’” (Lukács, 1967b, p. 508, 1987a, p. 779).

Lukács retoma seu diálogo com o pensamento de Aristóteles, acentuando a categoria da catarse como um dos elementos centrais da evocação estética. Acrescenta a ela determinações próprias que especificam ainda mais seus aspectos no interior do sistema das mediações categoriais da arte. A

catarse que a obra produz [no indivíduo] não se reduz, portanto, a mostrar novos fatos da vida, ou a iluminar com novas luzes fatos já conhecidos pelo receptor; mas a novidade qualitativa da visão que assim nasce altera a percepção e a capacidade, e a torna apta para a percepção de coisas novas, de objetos já habituais em uma nova iluminação, de novas conexões e de novas relações de todas estas coisas para si mesma (Lukács, 1967b, p. 528, 1987, p. 798).

O poder evocador e orientador da obra de arte

penetra na vida mental do receptor, subjuga sua maneira habitual de ver o mundo, impõe-lhe sobretudo um novo "mundo", enche-o de novos conteúdos ou visto de uma nova maneira e assim o move a receber esse "mundo", com significados e pensamentos rejuvenescidos, renovados. A transformação do homem por inteiro no homem inteiramente atua aqui, assim, como uma extensão e um enriquecimento de conteúdo e de forma, efetivo e potencial, de sua psique. Novo conteúdo vem a ele que aumenta seu tesouro experiencial. O meio homogêneo o orienta a recebê-lo, a apropriar-se do novo do ponto de vista do conteúdo e, assim, desenvolve simultaneamente sua capacidade perceptiva, sua capacidade de reconhecer e desfrutar como tais novas formas objetivas, novas relações etc. (Lukács, 1967b, p. 496, 1987a, p. 768).

E por fim, para ainda nos atermos às palavras eloquentes do pensador húngaro

De imediato, o choque do receptor pela novidade que cada obra individual provoca nele se mistura a um sentimento negativo concomitante, um arrependimento, uma espécie de vergonha por nunca ter percebido na realidade, em sua própria vida, o que ele tão «naturalmente» é oferecido na conformação artística. Acreditamos que não será mais necessário expor como nesse contraste e nessa comoção está contida uma prévia contemplação fetichizante do mundo, sua destruição pela própria imagem desfetichizada na obra de arte e a autocrítica da subjetividade (Lukács, 1967b, p. 507, 1987, p. 779).

Em síntese, a arte aparece como possibilidade e ao mesmo tempo como a exigência: “tens que mudar de vida” (Lukács, 1967b, p. 508, 1987, p. 780). Embora nunca se volte diretamente para a ação prática — dirige-se sempre a interioridade do sujeito —, o processo de transformação do sujeito aparece como pressuposto da transformação social; mesmo sem se reportar de maneira direta às questões mais imediatas da vida, por exemplo, aos conflitos mais candentes de dada situação social, a arte cumpre a função de retirar o indivíduo de seu ensimesmamento e procura elevá-lo aos aspectos mais decisivos da relação entre os sujeitos historicamente constituídos diante dos desdobramentos da dinâmica humana em seu processo de autoconstrução.

Vale ainda insistir nas palavras de Lukács a esse propósito: na arte

o processo evolutivo da humanidade se refere imediatamente a cada homem individual. Pois a evocação artística propõe sobretudo que o receptor viva como sua a refiguração do mundo objetivo dos homens. O indivíduo deve encontrar-se — seu próprio passado ou presente — nesse mundo e, assim, tomar consciência de si mesmo como parte da humanidade e de sua evolução. O trabalho é capaz de despertar e desenvolver a autoconsciência do indivíduo no sentido mais elevado da palavra (Lukács, 1965c, pLUKÁCS, György. Estética 1: la peculiaridad de lo estético. Traducción Manuel Sacristán. Barcelona: Grijalbo, 1965c. v. 3.. 308-9, 1987aLUKÁCS, György. Die Eigenart des Ästhetischen: Band 2. Berlin und Weimar: Aufbau-Verlag, 1987a., p. 281).

E preciso constar que diante dos limites da vida cotidiana a missão desfetichizadora da arte consiste no fato de que

as obras de arte apresentam sensível e significativamente aos homens seu mundo circundante e seu mundo interno “natural” com o qual [...] destroem a fetichização da cotidianidade e do pensamento, põe a descoberto ao homem a realidade tal como esta se lhe oferece em cada caso, e a convertem em propriedade dos sentidos, suas impressões e seu pensamento (Lukács, 1967b, p. 428, 1987, p. 706).

Lukács retoma tais considerações em sua obra posterior, Para uma ontologia do ser social, onde estabelece de maneira mais evidente ainda a relação entre as formas estéticas e a superação dos estranhamentos:

a obra de arte, quando realmente se trata de uma, possui um direcionamento permanente, imanente contra o estranhamento. [...] Foi e é a tarefa da arte ir em busca dos caminhos para chegar à desfetichização; [...] quando o artista contempla o mundo com os olhos da autêntica individualidade, que engloba uma profunda e enérgica intenção voltada para a generidade para si, para o homem e seu mundo, pode surgir de sua mera existência, na mimese artística, um mundo que combate o estranhamento e um mundo libertado dele, de modo totalmente independente das concepções subjetivo-particulares do próprio artista (Lukács, 2013, pLUKÁCS, György. Para uma ontologia do ser social. Tradução: Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2013. v. 2.. 615).

Em síntese, para além dos aspectos próprios de um conteúdo que se coloque de maneira imediata como crítica social – algo mais peculiar à esfera da política – a arte percorre caminhos mais amplos, buscando tomar os indivíduos inteiramente, e nessa medida aparece como crítica da vida. Não é a remissão ao indivíduo apenas aos aspectos da sua razão, a seu pensamento imediato sobre a vida, a mecanismos que visam a persuasão das consciências, mas toma os indivíduos em sua inteireza, mobiliza nele, pensamentos, sentimentos e emoções que por meio da forma adequada expressam os conteúdos mais importantes da vida, seus aspectos negativos e até mesmo as potencialidades ainda imperceptíveis para ele. Nesse sentido, carece fazer uma advertência decisiva: Lukács considera a catarse no interior desse complexo em que o indivíduo pode alçar-se à autoconsciência do gênero, não sendo de modo algum o simples provocar de profundas comoções. A catarse como mera provocadora de comoções pode de fato cumprir o exato papel oposto — como bem adverte Bertold Brecht3 — de manipulação das emoções como forma de reificação da vida. Portanto, na arte a forma implica a expressão de determinados conteúdos que de fato permitam sair das tacanhas vivencialidades da particularidade (Partikularität) espontânea como forma de apreender os traços mais essenciais da trajetória humana da produção histórica de si.

São muitas as análises literárias feitas pelo autor que evidenciam os aspectos essenciais da arte. Para ilustrar com um deles cumpre transcrever parte de suas considerações acerca do Sofrimento do Jovem Werther, de Goethe.

A oposição entre personalidade e sociedade é entendida de modo muito amplo e complexo pelo jovem Goethe. Ele não se limita a evidenciar os inibidores diretamente sociais do desenvolvimento da personalidade. Claramente a eles é dedicada uma parte ampla e essencial de sua exposição. Goethe considera a estratificação feudal em estamentos, o isolamento feudal dos estamentos entre si, um obstáculo direto e essencial ao desenvolvimento da personalidade humana e, de modo correspondente, critica a ordem social por meio de uma sátira ácida.

Porém, ao mesmo tempo, ele vê que a sociedade burguesa, cujo evolver trouxe propriamente para o primeiro plano com toda essa veemência o problema do desenvolvimento da personalidade, ininterruptamente opõe obstáculos a ele. As mesmas leis, instituições etc. que servem a tal desenvolvimento no sentido classista estrito da burguesia, que produzem a liberdade do laisser faire, constituem simultaneamente os estranguladores impiedosos da personalidade que de fato se desenvolve. A divisão capitalista do trabalho, sobre cujo fundamento unicamente pode se dar aquele desenvolvimento das forças produtivas que constituem a base material da personalidade desenvolvida, simultaneamente submete a si o homem, fragmenta sua personalidade em uma especialização sem vida etc. (Lukács, 2021, pLUKÁCS, György. Goethe e seu tempo. Tradução: Nélio Schneider e Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2021.. 49).

Sem se limitar a ser uma mera crítica da sociabilidade do capital, a questão central em Werther é o problema da possibilidade do “desenvolvimento livre da personalidade humana”. A consideração da condição humana no período de transição de uma forma de sociabilidade para outra é a figuração das questões mais decisivas do período e, nessa medida, reporta-se ao processo de desenvolvimento da humanidade. A figuração estética visa trazer à consciência os elementos cruciais das etapas do desdobramento humano, sempre tendo como centro do reflexo estético o indivíduo em sua relação de possibilidade de ascenso à autoconsciência humana.

Por fim

Embora não se volte a ação imediata, a arte não pode deixar de ser fator decisivo que orienta à transformação da vida, e, nessa medida, da sociabilidade. Como crítica da vida, a arte autêntica se volta contra a fetichização do mundo humano, põe-se em litígio frontal com o “sistema irracional de poderes absurdos e anti-humanos” próprios da sociabilidade de nossos dias. O modo da produção da vida no capital é fortemente caracterizado pela prevalência da “fetichização da interioridade humana”, induz à conformação das individualidades à condição de mônodas sem janelas, hermeticamente fechadas e encerradas em si, cuja manifestação tem que ser compreendida de maneira inadequada por todos os homens. Desse modo, reduzida aos limites da falsa subjetividade hipertrofiada, a arte sob tal critério deformador, fetichizador, “empobrece o conteúdo e desfigura as formas de tal modo que resulta, inclusive, impossível expressar artisticamente [...] a anti-humanidade do capitalismo contemporâneo, o total absurdo da vida humana nele” (Lukács, 1967b, p. 484, 1987, p. 757).

A arte é uma força antagônica às tendências degenerativas, aparece como resistência às deformações provenientes da vida e das determinações postas pelas contradições da sociabilidade. A atividade estética se dirige às necessidades mais profundas do humano. Visa remover as máscaras que aparecem como formas naturais da vida, se volta contra as desfigurações da essência do humano; desse modo, revela a dimensão mais ampla da vida do gênero como fundamento e princípio da existência do ser social. (cf. Lukács, 1967b, p. 430ss, 1987, p. 706ss). A transformação interna dos indivíduos aparece como parâmetro e condição para a transformação da vida, constitui a exigência que, ao criticar as formas concretas da vida, ao indagar sobre se “essa é de fato uma vida adequada” ao humano, não mais permite que os indivíduos permaneçam incólumes frente às contradições de seu mundo e aos desafios de seu tempo. Leva-os assumirem posições que visam a transformação da realidade social, como maneira de construir uma vida mais adequada à humanidade. A arte é sempre a exortação à tarefa fundamental da emancipação humana.

Agradecimentos

Não se aplica.

  • 1
    Sob o risco de cometer algumas injustiças, seria oportuno citar exceções, nesse sentido é preciso referir alguns estudiosos que realizaram contribuições importantes tanto para o entendimento quanto para a difusão do pensamento estético de Lukács: Nicolas Terlian, Guido Oldrini, Miguel Vedda. No Brasil vários estudos foram realizados em torno das análises literárias de Lukács e constituem investigações que se inspiraram nas obras lukácsiana anteriores à Peculiaridade do estético. Vale citar os trabalhos de Carlos Nelson Coutinho, José Paulo Netto, Nelson Werneck Sodré, Leandro Konder, Celso Frederico, que realizaram incursões importantes na obra tardia de Lukács, anunciando a necessidade de estudos complementares sobre as reflexões densas e profícuas presentes na Estética lukácsiana.
  • 2
    Todas as citações relativas ao livro Die Eigenart des Ästhetischen foram feitas pelo autor deste artigo. Para facilitar o acesso ao leitor, serão também indicadas as páginas da edição espanhola da estética.
  • 3
    A discussão sobre o problema da catarse tais como a definem Lukács e Bertold Brecht é descrita de modo bastante esclarecedor no artigo de Nicolas Tertulian, “Distanciamento ou catarse? (sobre as divergências entre Brecht e Lukács)” (cf. Tertulian, 2016, pTERTULIAN, Nicolas. Lukács e seus contemporâneos. Tradução Pedro C. A. Corgozinho. São Paulo: Perspectiva, 2016.. 275–96).
  • Agência financiadoraBolsa PBIC – Universidade Federal de Juiz de Fora.
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participação

    Não se aplica.
  • Consentimento para publicação

    Autorizo a publicação do presente artigo.

Referências

  • LUKÁCS, György. Die Eigenart des Ästhetischen: Band 1. Berlin und Weimar: Aufbau-Verlag, 1987.
  • LUKÁCS, György. Die Eigenart des Ästhetischen: Band 2. Berlin und Weimar: Aufbau-Verlag, 1987a.
  • LUKÁCS, György. Estética 1: la peculiaridad de lo estético. Traducción Manuel Sacristán. Barcelona: Grijalbo, 1965a. v. 1.
  • LUKÁCS, György. Estética 1: la peculiaridad de lo estético. Traducción Manuel Sacristán. Barcelona: Grijalbo, 1965b. v. 2.
  • LUKÁCS, György. Estética 1: la peculiaridad de lo estético. Traducción Manuel Sacristán. Barcelona: Grijalbo, 1965c. v. 3.
  • LUKÁCS, György. Estética 1: la peculiaridad de lo estético. Traducción Manuel Sacristán. Barcelona: Grijalbo, 1965d. v. 4.
  • LUKÁCS, György. Goethe e seu tempo Tradução: Nélio Schneider e Ronaldo Vielmi Fortes. São Paulo: Boitempo, 2021.
  • LUKÁCS, György. Para uma ontologia do ser social. Tradução: Nélio Schneider. São Paulo: Boitempo, 2013. v. 2.
  • TERTULIAN, Nicolas. Lukács e seus contemporâneos Tradução Pedro C. A. Corgozinho. São Paulo: Perspectiva, 2016.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jul 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    03 Ago 2023
  • Aceito
    07 Nov 2023
  • Revisado
    03 Maio 2024
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