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Democracia e reacionarismo na trajetória brasileira

Democracy and reaction in Brazil's history

Resumos

Resumo

O presente ensaio, de teor fundamentalmente histórico e teórico de natureza qualitativa, busca tematizar sobre a democracia no Brasil, vinculando-o à sua formação socio-histórica. Para isso, retratamos o papel do Estado, das configurações das classes dominantes em suas frações e disputas, bem como a formação dessas últimas. Assim, compreende o reacionarismo como forma particular de atuação para a manutenção da ordem de classes na sociabilidade brasileira, enquanto incursão basilar das classes dominantes em sua relação com o Estado. Objetiva-se, neste ensaio, discorrer sobre as debilidades democráticas presentes na atualidade brasileira, em conexão ao seu passado histórico.

Palavras-chave:
Democracia; Reacionarismo; Estado


Abstract

This essay, which is fundamentally historical and theoretical and qualitative in nature, seeks to discuss democracy in Brazil, linking it to its socio-historical formation. To this end, we portray the role of the state, the configurations of the dominant classes in their fractions and disputes, as well as the formation of the latter. In this way, we understand reactionarism as a particular form of action to maintain the class order in Brazilian sociability, as a basic incursion of the dominant classes in their relationship with the state. The aim of this essay is to discuss the democratic weaknesses present in Brazil today, in relation to its historical past.

Keywords:
Democracy; Reactionarism; State


Introdução

Em 1931, num esboço que contou com pouca circulação nos meios acadêmicos, Pedrosa e Xavier (2019)PEDROSA, M.; XAVIER, L. Esboço de uma análise da situação econômica e social do Brasil. In: PERICÁS, L. B. (org.). Caminhos da revolução brasileira. São Paulo: Boitempo, 2019. retratam a burguesia brasileira como uma fraca burguesia no plano político pela contenção das pressões imperialistas. A burguesia brasileira, deste modo, procurava ilidir tamanha deficiência de força mediante a constante centralização do seu poder político através do Estado. Este sim atuaria como a sua verdadeira força política. O mérito do mencionado esboço, apesar das debilidades contidas e já superadas histórica e teoricamente, é conseguir lançar luz num retrato do perfil burguês brasileiro num momento da trajetória política do país em que essa classe social estivera em formação.

Há consequências na particularidade de desenvolvimento do modo de produção capitalista brasileiro que determinam de sobremaneira a sua classe dominante e seu exercício no poder. A classe dominante, durante sua formação histórica, permaneceu entre as pressões externas imperialistas e, por outro lado, as pressões internas das classes sociais de interesses antagônicos. O que se ressalta, e é preciso sublinhar, é: tanto as classes que representam o capital quanto as que representam o trabalho nas relações sociais são classes em formação no desenrolar socio-histórico1 1 Para a classe representante do capital, Fernandes (1976, p. 220) já apontava semelhante argumento: “a burguesia nunca é sempre a mesma, através da história”, e sua construção teórica sobre a formação da classe antagônica ao capital contou com estudo à parte, contido em Fernandes (2009). e o modo dessa formação corresponde com as determinações específicas de acumulação de cada país.

É pueril, entretanto, acreditar na classe dominante como um bloco monolítico. Existem diversas frações no interior da classe dominante que divergem em seus interesses, resultando, por vezes, em conflitos intraburgueses e interburgueses com rebatimentos diretos para a totalidade da realidade brasileira. Porém, no desenvolvimento histórico-social dessa classe dominante, compreendendo todas as suas frações, os conflitos de interesses terminaram por confluir na centralização no Estado e seu consequente regime imposto politicamente, ainda que jamais consiga descartar as diferenças existentes no seio dessa mesma classe dominante em suas frações. De todo o modo, o exercício de poder do Estado pela classe dominante, como uma união aparente influi diretamente nas formas da vida política brasileira, sobretudo na sua forma de exercício democrático presente na sociedade.

No interesse de desvelar as características da democracia brasileira é que nos valemos da compreensão da trajetória histórica da classe dominante em suas determinações particulares e sua relação com o Estado, na medida em que direcionam e dão as características fulcrais do regime político brasileiro — permanecido na sua contemporaneidade em seu caráter de formação ininterrupto. Portanto, não se se trata de construir a priori um tipo ideal de democracia, mas sinalizar, pela análise, o seu ser-precisamente-assim.

A formação das classes dominantes: da conscrição ao trabalho à contenção do trabalho2 2 As interpretações sobre o desenvolvimento histórico brasileiro e o significado de seus momentos fundamentais determinantes são, sem sombra de dúvidas, objeto das mais variadas controvérsias e perspectivas. Não é casual que assim o seja, tendo em vista que as personagens históricas do ontem prevalecem, ainda que metamorfoseadas, no hic et nunc histórico brasileiro. Portanto, há assim, sempre uma visão interpretativa dos fatos históricos que não legam espaço para uma neutralidade axiológica – tão proclamada pelos arautos de um conhecimento científico “verdadeiro”. Disso se deve de que a história jamais repousa como “coleção de fatos mortos” (Marx; Engels, 2007, p. 94), mas um todo vivo e determinante. Posto isso, das interpretações que se seguem no presente artigo buscamos sempre sinalizar os autores de onde provieram a perspectiva assinalada em nossa interpretação, sem, contudo, significar a total adesão à integralidade de sua obra.

A constituição da república brasileira, alicerçada em 1889, remonta à gênese da manifestação de crise política expressa no ordenamento das classes dominantes. O paulatino crescimento do movimento abolicionista, observado a partir das últimas duas décadas finais do escravismo, colocou em xeque as formas de organização social da realidade brasileira e reclamava a participação social das massas durante todo o processo, culminando na abolição formal subscrita em maio de 1888 (Gorender, 2016GORENDER, J. A escravidão reabilitada. São Paulo: Expressão Popular, 2016.; Costa, 2010COSTA, E. V. da. Da senzala à colônia. São Paulo: UNESP, 2010.). Os antecedentes deste episódio se plasmaram na concepção das classes dominantes vigentes de então, hegemonicamente disposta nos fazendeiros cafeicultores, como uma crise de força de trabalho, a grande problemática a ser resolvida no fim do século. A concepção dominante das transformações ocorridas enquanto crise de força de trabalho não passara de justificativa ideológica que concorria para a continuidade efetiva de acumulação de capital, ganhando sua devida força à medida em que as sublevações, fugas e decréscimo da população escravizada engrossavam semelhante interpretação em que a classes dominantes encaravam o conflito.

As classes dominantes conseguiram solver a problemática em que estavam imbuídas enquadrando as requisições que o tempo histórico impunha, livrando-se de consequências que poderiam tirar-lhes sua força econômica de classe. O modo em que efetivaram sua ação fora dos mais diversos: seja pela ideologia da vadiagem (Kowarick, 2019KOWARICK, L. Trabalho e vadiagem: a origem do trabalho livre no Brasil. São Paulo: Editora 34, 2019.) posta, igualmente, como ideologia do trabalho (Chalhoub, 2012CHALHOUB, S. Trabalho, lar e botequim: o cotidiano dos trabalhadores no Rio de Janeiro da belle époque. Campinas: Unicamp, 2012.) ou pela política imigrantista, uma verdadeira “empresa industrial” (Pedrosa; Xavier, 2019, pPEDROSA, M.; XAVIER, L. Esboço de uma análise da situação econômica e social do Brasil. In: PERICÁS, L. B. (org.). Caminhos da revolução brasileira. São Paulo: Boitempo, 2019.. 118), de que Clóvis Moura (2019, pMOURA, C. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Perspectiva, 2019.. 129) cunhou como “segundo tráfico”. As ações intentavam uma conscrição ao trabalho em nível material e ideológico, que alcançavam tanto mais efetividade conforme a Proclamação da República, num só golpe, constituiu o poder hegemônico da classe dominante paulista ligada à produção agrícola cafeeira. Bastaria sinalizar, para ilustrarmos como essas ações concorriam para a continuidade de acumulação e reprodução de capital das classes dominantes — matrizadas pela conscrição ao trabalho —, as leis de locação de serviços que imprimiam a forma compulsória de trabalho no campo mesmo após o fim do escravismo3 3 Sobre as leis de locação de serviços, o trabalho de maior envergadura é, certamente, o de Lamounier (1986). de que só tivera alteração formal nos anos de 1960, e o código penal instituído em 1890.

De que a Proclamação da República significou tão-somente uma medida de precaução política da classe dominante paulista o comprovam o estudo de Boehrer (2000)BOEHRER, G. C. A. Da monarquia à república: história do Partido Republicano do Brasil – (1870–1889). Belo Horizonte: Itatiaia, 2000. do Partido Republicano, bem como a pesquisa documental de Conrad (1978, pCONRAD, R. Os últimos anos da escravatura no Brasil: 1850–1888. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1978.. 290–319) que aponta para o fato de boa parcela dos fazendeiros paulistas não só aderirem ao abolicionismo às vésperas da abolição, mas também libertarem os escravizados através de prestação de serviços de dois anos, ficando parcela deles presos ao domínio do ex-senhor até 1890. Esses fatos são suficientes para demonstrar o quão pouco qualitativamente se operou de mudanças na realidade brasileira, refletindo o nascimento de uma república pouco republicana, sem qualquer lastro de oxigenação democrática que não passasse antes pelos potentados agrícolas4 4 Na esteira dessa interpretação, a fórmula das “ideias fora do lugar” de Schwarz (2012) para o período e ideais do Partido Republicano detém sua validade. . A nulidade de uma sociedade verdadeiramente democrática reteve seus piores efeitos sobre a população negra ex-escravizada, que se viu duplamente alienada no pós-abolição na sua condição de cidadania e de classe (Ianni, 1978IANNI, O. Escravidão e racismo. São Paulo: Editora Hucitec, 1978.).

Ao trazer hegemonia política para os cafeicultores paulistas que já estavam em posição de hegemonia econômica perante as outras atividades de exploração da nação, entretanto, a vitória do Partido Republicano não conseguiu estruturar uma coalizão dominante. O desenvolvimento econômico desigual das regiões brasileiras, fruto da exploração monocultora colonial, dificultara uma unidade de ação política das classes dominantes. A unidade nacional conquistada com a instauração da república acabara por centralizar regionalmente o poder despótico dos cafeicultores no comando do Estado, fazendo com que essa unidade nacional fosse “antes uma conquista política do que uma consequência econômica” (Pedrosa; Xavier, 2019, pPEDROSA, M.; XAVIER, L. Esboço de uma análise da situação econômica e social do Brasil. In: PERICÁS, L. B. (org.). Caminhos da revolução brasileira. São Paulo: Boitempo, 2019.. 123)5 5 Para além do predomínio na política imigrantista subvencionada, a expressão que figura a centralização política no poder do Estado pelos cafeicultores está inscrita no Convênio de Taubaté de 1906, sinalizando em que medida o Estado intervinha diretamente para servir aos interesses da classe dominante hegemônica. . Tamanha disparidade econômica e política fora decisivo para construir cisões no interior das classes dominantes, com distintos interesses. Todavia, o modo de resolução desses conflitos era, neste primeiro momento da república, de caráter intraburguês, pois não colidiam aí com as disputas de distintas frações da classe dominante, e sim conflitos no interior de uma mesma fração da classe dominante — incidindo fortemente na disparidade regional. O desenvolvimento econômico assinalado na aurora do século XX colocou novas personagens que passaram a compor novas frações dentro da classe dominante, donde seus distintos interesses imediatos configuram-se como conflitos interburguês. Na longa trajetória histórica do desenvolvimento político da classe dominante brasileira, jamais cessou o conflito intraburguês, mas a ele somou-se o caráter interburgueses da disputa ao passo que complexificava-se a sociedade.

Erigido sobre o capital comercial externo, ente mediador de efetivação da produção escravista interna e do capital industrial externo já consolidado, o Brasil independente do século XIX levantava nessa época determinações que seriam recobradas no século ulterior. Livrado do esbulho colonial ibérico e adentrado ao ciclo do capital industrial externo, a vida brasileira compreenderia um desenvolvimento econômico e social sem precedentes, deixando intacta as suas formas de exploração do trabalho calcadas na escravização (Saes, 1985SAES, D. A formação do estado burguês no Brasil: 1888–1891. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1985.). No eixo da produção cafeicultora a acumulação de capital propiciou a alavancada de alguns fazendeiros, distando magnitudes quantitativas do capital cafeeiro, formando uma parcela do grande capital cafeeiro que pode transmutar-se em capital comercial. Reservado quase que estritamente ao polo de produção paulista, o grande fazendeiro de café, disposto igualmente como capitalista comercial, coadunou os interesses de suas atividades de investimento. Fora suficiente essa disparidade de acumulação para conduzir a distintos interesses no interior da mesma classe dominante, levadas a efeito já na propagada crise de força de trabalho oitocentista. O fazendeiro metamorfoseado em capitalista comercial pela concentração de capital concorria não somente com seus confrades cafeicultores menores (Silva, 1981SILVA, S. Expansão cafeeira e origens da indústria no Brasil. São Paulo: Alfa-Ômega, 1981.), porém ao se realizar como capitalista comercial precisou disputar, igualmente, com os capitalistas comerciais externos que marcavam sua presença interna. A resolução arranjada fora a centralização do seu poder, consertado regionalmente.

A relevância deste desenvolvimento se deve ao papel de mediador que o capital comercial, principalmente na sua forma de comércio de dinheiro ou capital bancário, deteve para efetivar a consolidação de um capital industrial interno (Gorender, 1981GORENDER, J. A burguesia brasileira. São Paulo: Brasiliense, 1981.). O capital agrícola, alinhado com o capital comercial e o incipiente capital industrial, construíam uma diversidade de frações de classes detentoras de capital. Por ter saído de uma formação social clivada na escravização, não é casual que a origem das primeiras indústrias brasileiras se afirmaria na produção de meios de subsistência: ao surgir em cena o proletariado na vida econômica do Brasil, a forma-salário requisitava a composição de um mercado interno que pudesse reproduzir essa nova forma de força de trabalho. Será no ordenamento de uma parcela da classe dominante produzindo exclusivamente ao mercado externo e outra parcela que destinava sua produção ao mercado interno que se fará sentir as primeiras fissuras na centralização do poder político da oligarquia cafeeira.

O golpe de 1930 instado pela Aliança Liberal sobrevêm como reflexo dessa fissura. O episódio, contudo, não se deve apenas a esse caráter de disposição da produção entre mercado interno e mercado externo das classes dominantes. No decorrer do desenvolvimento econômico, observado com mais força a partir do século XX, as contradições entre capital e trabalho tiveram relevante papel na culminação do evento de 1930. As insatisfações das novas classes que adentraram no terreno histórico, bem como a efervescência política das massas trabalhadoras a partir da segunda metade da década de 1910, apesar da ausência de um conteúdo e materiais verdadeiramente republicanos e democráticos no período considerado para a sociedade brasileira, influíram decisivamente. Ainda assim, no que concerne às disputas intraburguesas, é coerente assinalar a divergência de interesses da oligarquia latifundiária ligada ao mercado interno, da qual Getúlio Vargas era seu representante (Santos, 2021, pSANTOS, T. dos. Evolução histórica do Brasil: da colônia à crise da “Nova República”. São Paulo: Expressão Popular, 2021.. 75), enquanto prosseguia a centralização política de uma parcela diminuta do grande capital cafeeiro e comercial, voltada ao mercado externo, e o desenvolvimento regional desigual — soma-se a isso, evidentemente, a prenunciada crise da cafeicultura que demonstrara claros sinais desde o Convênio de Taubaté e a impossibilidade de prosseguir com o modelo econômico de exportação frente à crise mundial de 1929. Se 1889 foi a conquista do Estado enquanto poder político, 1930 sinalizou a disputa do Estado enquanto ente econômico.

Trata-se, no golpe de 1930, grosso modo, de um conflito intraburguês e interburguês. Os demais elementos, como a insatisfação e efervescência popular, a centralização política tanto do poder quanto regionalmente e o desigual desenvolvimento das regiões confluíram para a tomada de poder da Aliança Liberal. A revolução constitucionalista de 1932 demonstra até que ponto a classe dominante paulista iria para tentar reestabelecer a sua centralização política e regional. A efetivação do poder político da Aliança Liberal corresponde, portanto, a efetivação das classes dominantes expurgadas anteriormente do poder do Estado, ou seja, representou a vitória da burguesia industrial e dos proprietários fundiários ligados ao mercado interno. A centralização política não fora destituída, substituiu-a por novas forças hegemônicas.

Não tardou para que o novo governo de 1930 redundasse num pacto de aliança das classes dominantes. O ânimo das tendências progressistas — para utilizarmos uma acepção de Lukács (2020)LUKÁCS, G. A destruição da razão. São Paulo: Instituto Lukács, 2020. — que ascendiam nacionalmente, da qual a mais importante refere-se à Aliança Nacional Libertadora, forçou uma coalização dominante das classes possuidoras, da qual o símbolo máximo é a instauração do Estado Novo. A burguesia industrial e a oligarquia fundiária ligada ao mercado interno tiveram de capitular aos interesses das antigas classes. Evidencia-se após 1930 a tentativa reacionária, tal qual disposto desde a contrarrevolução vitoriosa da primeira república, de enquadrar todas as tendências progressistas que passavam ao largo do Estado centralizado para manter a estabilidade política e econômica do capital. A atitude de oposição desvairada da primeira república a toda a tendência ligada ao mundo do trabalho, transformou-se em atitude de incorporação aos ditames despóticos do Estado, vide o sindicalismo oficial, visando enclausurar a oposição das forças antagônicas ao capital. A incorporação legislatória do mundo do trabalho vigorava, então, como medida de contenção do trabalho. Abre-se um cômodo governo para o desenvolvimento lucrativo e expansão industrial no Brasil, a reação dominante consolida um momentâneo pacto de aliança para as classes dominantes e, ainda que dispostos avanços regulatórios ligados ao mundo do trabalho, a participação política democrática não consegue se valer substancialmente, apesar dos móveis de desenvolvimento de uma sociedade civil assinta pelo desenvolvimento capitalista brasileiro (Coutinho, 2011, pCOUTINHO, C. N. Cultura e sociedade no Brasil: ensaios sobre ideias e formas. São Paulo: Expressão Popular, 2011.. 25).

Influxos do reacionarismo: consolidação da autocracia burguesa e distensão democrática

O pacto de alianças formado em 1937, como reação às forças progressistas que se desenvolviam, fora aquebrantado pela especificidade das classes que compunham essa mesma aliança. As perturbações da década de 1950 no poder político são reflexos dos conflitos interburgueses e intraburgueses — que se acentuaram com a entrada do capital estrangeiro no seio do conflito. Contudo, as divergências não pesaram para uma transformação na composição do poder do Estado. Refletia, antes, as problemáticas referentes ao curso de desenvolvimento que seguia fluxo contínuo na sociedade brasileira, sem abandonar as antigas divergências de desenvolvimento capitalista regional. Complexificava-se a sociedade e, consequentemente, as classes sociais em ação. Posta essa dinâmica societária, os conflitos dominantes passariam a se orientar mais em sua direção interburguesa do que intraburguesa — este último aparece como objeto daquelas disparidades regionais de desenvolvimento e a diferença de grandeza dos capitais6 6 Ao que nos interessa aqui das classes dominantes e suas frações no interior do poder do Estado, cabe apontar da vacilação predisposta que a burguesia comercial representa, efetivando quase sempre um conflito intraburguês. Tendencialmente atuam no sentido de defesa de interesses a realização do lucro a qual suas mercadorias estão vinculadas. . De qualquer maneira, a aliança representada fundamentalmente pela burguesia latifundiária e industrial passa sem grandes problemas no referido momento. A razão disso deve-se a situação favorável da conjuntura econômica, que não efetiva as existentes divergências em conflitos de fato, tendo resvalamento direto no perfil democrático da sociedade brasileira registrado até a contrarrevolução de 1964.

A tranquilidade econômica perdurou até o momento em que o capital reclamava sua necessária estagnação e sua concomitante sana lucrativa. O que o ciclo da década de 1940 e 1950 no governo político do Estado criou, como mecanismos de investimentos, uma estrutura industrial e chamamento para o investimento externo, permitiu uma reprodução ampliada de capital conjuntamente com um desenvolvimento do setor I de produção, que acabou, ao fim, culminando na intransigente defesa reacionária pela ampliação do lucro, atingido pelo novo ciclo ditatorial irrompido em 19647 7 Se em 1956 “pela primeira vez a renda do setor industrial superará o da agricultura” (Oliveira, 2013, p. 35), este teve breve período de pódio econômico, quando em 1962 começa a tergiversar e mostrar sinais declinantes em sua taxa de investimento e uma estagnação da sua expansão (Marini, 2017, p. 97), cabendo ainda um crescimento inflacionário no triênio que inaugura a década de 1960, inferindo somente para o período um aumento no custo de vida de 57% (Marini, 2017, p. 89). . Daí que se destacam as orientações desnacionalizantes e maior incentivo de captação externo do lucro pela extorsão do mais-valor interno que marcaram o ciclo ditatorial burguês, tendo seu pleno curso na encampada política econômica neoliberal adotada após o fim do processo de redemocratização. O desenvolvimento desigual entre a burguesia industrial e latifundiária desde o fim da segunda metade da década de 1950 influiu na efervescência política desperta a partir de 1960. A fim de não mensurar a diferença quantitativa em diferença qualitativa enquanto disputa, preferiram selar o predisposto pacto de aliança como reação diante do avanço das forças progressistas — apesar das debilidades estratégicas postas para essas últimas.

Incidência decisiva deteve a longa ausência de um perfil democrático na sociedade e o desenvolvimento “hipertardio” (Chasin, 1978CHASIN, J. O integralismo de Plínio Salgado: formas de regressividade no capitalismo hiper-tardio. São Paulo: Ciências Humanas, 1978.) e particular da formação capitalista brasileira, que fizera do reboquismo a política central das tendências progressistas atuantes de então, desmanteladas nessa estratégia pela condução contrarrevolucionária de 1964, revolvendo o traço autocrático dominante que assegurasse intactas as formas prevalecentes de acumulação. Ademais, o processo contrarrevolucionário aberto em abril de 1964, e reafirmado em 19688 8 “Se já houve, alguma vez, um ‘paraíso burguês’, este existe no Brasil, pelo menos depois de 1968” (Fernandes, 1976, p. 359). , despertou novas configurações no jogo de forças econômicas e políticas: encastelou a dominação exógena imperialista nos intestinos da sociabilidade brasileira e preparou, economicamente, o terreno necessário para o novo ciclo de reprodução do capital que se exigia em termos mundiais. Nestes termos, a abertura franca da autocracia burguesa em 1964 preconiza a entrada intensiva do capital externo sob as mais diversas formas no Brasil, apoiado politicamente, no interior do Estado, pelas forças e agentes políticos reacionários9 9 A insaciável sana pelo poder político pela ala das forças militares, enquanto dirigentes do processo reacionário que viabilizava o poder do grande capital interno e externo, pode ser auferia no curioso episódio descrito por Gorender (2014, p. 189–191). , que reafirmam o pacto de alianças composto em 1937 com a adesão ao capital externo.

A supressão dos direitos civis e sociais que acompanhou a contrarrevolução do capital de 1964 reafirmou a característica débil da democracia brasileira, abortada antes mesmo de uma completa oxigenação e realização. Recapitulava-se à centralização política no Estado. Disso não se depreende que as lutas sociais desenvolvidas no entorno do Estado sejam dirimidas. Em verdade engrossam à medida de expansão e desenvolvimento societário ordenado pelo capital como sua consequência resoluta — eis o motivo das massas conseguirem importante atuação assim que o ciclo ditatorial com seu modelo econômico mostrava sinais de esgotamento. Juntava-se a isso outro problema determinante ligado à forma particular de desenvolvimento brasileiro.

À época da industrialização, a democracia viu-se embainhada em problemáticas particulares de sua formação social. A conscrição ao trabalho, como coerção e dominação das classes possuidoras, nunca pretendeu ser inteira e completa para a massa da força de trabalho disponível no Brasil. Antes, essa coerção teve funcionalidade de caráter mais moralizante e ideológico do que efetivo de integração forçada ao mundo do trabalho. O capital brasileiro, anêmico por sua formação, nas malhas das relações dispostas em sua subordinação ao imperialismo, sempre operou com larga margem de “excluídos”, que serviram para o rebaixamento salarial da força de trabalho como meio de compensação à usual transferência de valor. No plano político esse corpo de “excluídos” — representado sobretudo pelos ex-escravizados e seus descendentes — viu-se obliterado sua capacidade de participação social, ainda que integrados na sociabilidade do particular capital formado. Disso se deve à política social e ao direito social intrincadamente identificadas com o espaço da força de trabalho ocupada formalmente — resultando em prejuízos maiores para a população negra, excluída duplamente por essa identidade entre ocupação formal e objetivação do ser político perpassado pela institucionalidade.

Quaisquer que fossem os posteriores rumos que a participação política viria a sofrer, desvinculada da ocupação salarial formal, o eixo dinamizador premente que impõe uma agressiva população no ambiente da exclusão como requerimento da reprodução social do capital brasileiro, não conseguiria alterar suas bases, redundando numa ampliação democrática formal sem sua correlata condição material de participação10 10 O fato da Nova República, inaugurada após exaurimento da longa noite contrarrevolucionária ditatorial – inicialmente provisória –, abrir uma margem mais universalizante às políticas e direitos sociais deve-se tanto às lutas sociais reivindicatórias, como igualmente (e de igual relevância) ao novo ciclo de reprodução do capital que se abria, abandonando o antigo quadro de ocupação formal da força de trabalho e reclamando, assim, uma via mais abrangente de acesso das massas à medida em que a população excluída tendia a aumentar. . Portanto, no grosso da evolução, o conteúdo político se mantém, como dominação autocrática das classes no poder, distando assim a política frente à miséria das massas sob ordenamento particular do capital.

Não se constrói, a partir de 1964, nenhuma divergência política intraburguesa e interburguesa no interior do Estado, a dominação burguesa com suas classes ressalva-se nas suas matizes autocráticas de defesa da ordem posta através da aliança. Porém, destaca-se a disputa econômica no interior do Estado pela apropriação do valor total distribuído, isto é, enquanto não há uma dissidência política na dominação burguesa estatal tem-se, por outro lado, a disputa no interior desta dominação burguesa pelo Estado enquanto ente econômico. Resolvidas no proceder histórico a inserção das classes dominantes no poder do Estado, anulam-se os conflitos políticos de interesses, sem cessar as suas disputas econômicas de caráter imediato. Do esgotamento político e econômico do período contrarrevolucionário aberto em 1964, tem-se velho comportamento das classes dominantes: a diluição das requisições das massas expurgadas da participação política no Estado por meio de medidas que salvaguardem tanto a sua continuidade de dominação quanto a normalidade para efetividade lucrativa de empreendimentos. Segue-se, portanto, a distensão autocrática rumo à redemocratização que fundará a Nova República.

A Nova República, jamais alcançada sem a mobilização popular, acabou redundando numa distensão do domínio burguês sob roupagem democrática, uma “ditadura com um novo revestimento” (Fernandes, 1989, pFERNANDES, F. Constituinte e revolução. Entrevista a J. Chasin, Ricardo Antunes, Antônio Rago Filho, Paulo Douglas Barsotti e Maria Dolores Prades. Ensaio, São Paulo, n. 17/18, fev. 1989.. 126). A Constituição Federal de 1988, apesar da participação popular envolvida, conseguiu ser enquadrada aos interesses dominantes resultando, nas palavras de um dos parlamentares envolvidos em sua elaboração, numa “carta de privilégios. Não mudou nada” (Ibid., p. 128). A sua efetivação, no que continha de avanços, viu-se minada pelo propalado exercício neoliberal (Behring; Boschetti, 2011, pBEHRING, E. R.; BOSCHETTI, I. Política social: fundamentos e história. São Paulo: Cortez, 2011.. 145). As encarnações formais de abertura democrática tiveram de lidar com a força dos interesses econômicos dominantes. A orientação democrática alavancou avanços para a sociedade brasileira, a despeito dos vícios de formação que herdava da centralização política, onde o exemplo mais caricato fora a atuação das medidas provisórias — espólio do decreto-lei disposto pelo despotismo ditatorial anterior. As tendências progressistas existentes do período são marcadas por influxos decisivos que determinam um giro de atuação, refletindo uma “crise na esquerda” (Chasin, 1989CHASIN, J. A sucessão na crise e a crise na esquerda. Ensaio, São Paulo, n. 17/18, 1989.) com rebatimentos diretos em sua estratégia política. Os avanços democráticos verificados na sociabilidade brasileira colidiam, assim, diretamente com as arraigadas estruturas de formação que determinavam o modo de efetivação democrático particular.

Da entrada ao atual século seguiram-se o ordenamento das disposições vigentes. Certamente concretizou-se uma participação democrática inusitada na história brasileira, mas as marcas da dominação burguesa contiveram a realização substancial da democracia. Ilustrativo é Delfim Netto, ministro da agricultura no ciclo autocrático burguês, que recobrou sua assistência aos governos progressistas que adentraram no papel do Executivo. Ademais, a política econômica neoliberal funcionou e funciona como um grande obstáculo para essa realização adjunta às questões concretas de objetivação do capital brasileiro, inserindo entraves determinantes na vida democrática.

A atualidade da dominação burguesa: a disputa no Estado pelos frutos da exploração

O aspecto da vida democrática brasileira vinculada à particularidade de sua formação socio-histórica foi objeto de pertinentes interpretações da literatura crítica: desde as características da revolução burguesa assinaladas por Fernandes (1976), aFERNANDES, F. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1976. via prussiana de desenvolvimento por Coutinho (2011)COUTINHO, C. N. Cultura e sociedade no Brasil: ensaios sobre ideias e formas. São Paulo: Expressão Popular, 2011. ou a sua particularização na via colonial analisada por Chasin (1978)CHASIN, J. O integralismo de Plínio Salgado: formas de regressividade no capitalismo hiper-tardio. São Paulo: Ciências Humanas, 1978..

No campo de ação política é de enorme valoração heurística a contribuição de Gramsci (2002)GRAMSCI, A. Cadernos do cárcere. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. v. 5. de revolução passiva, como um “critério de interpretação” (Ibid., p. 332) para “países que modernizaram o Estado através de uma série de reformas ou de guerras nacionais, sem passar pela revolução política de tipo radical-jacobino” (Ibid., 209-210). Trata-se de uma “luta de renovação” (Ibid., p. 330) na qual o “Estado, mesmo limitado como potência, seja o ‘dirigente’ do grupo que deveria ser dirigente” (Ibid., p. 329), que é “caracterizada pela hostilidade a toda a intervenção das massas populares na vida estatal, a toda a reforma orgânica que substituísse o rígido ‘domínio’ ditatorial por uma ‘hegemonia’” (Ibid., p. 286). Ou seja, uma “revolução sem revolução” (Ibid., p. 63) na qual “a direção política se tornou um aspecto da função de domínio, uma vez que a absorção das elites dos grupos inimigos leva à decapitação destes e a sua aniquilação por um período freqüentemente muito longo” (Ibid., p. 63).

Semelhante apreciação é dada por Fernandes (1976)FERNANDES, F. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1976., que caracterizou as transformações políticas da vida brasileira como modificações “de cima para baixo”. Por condições de forças internas e externas, registra-se uma “impotência burguesa, que faz convergir para o Estado nacional o núcleo do poder de decisão e de atuação da burguesia. O que esta não pode fazer na esfera privada tenta conseguir utilizando, como sua base de ação estratégica, a maquinaria, os recursos e o poder do Estado” (Ibid., p. 307). Esse Estado serve como “mecanismo de unidade de classe e de solidariedade de classe” (Ibid., p. 308). Retratando essa problemática aos países latino-americanos no nível do estatal, Osório (2019)OSÓRIO, J. O estado no centro da mundialização: a sociedade civil e o tema do poder. São Paulo: Expressão Popular, 2019. qualificou-o como “Estado de segurança do grande capital com verniz eleitoral”.

Todas essas interpretações assinalam uma particularidade não só de formação, mas de expressão de um tipo de sociedade política, na qual a função democrática não consegue valer-se em sua integralidade pela funcionalidade de sua reprodução econômica específica. As análises da constituição política e social da vida brasileira versam constantemente em seus termos categoriais para o caráter político reacionário da classe dominante no poder do Estado. Que essa classe dominante seja débil, fraca ou impotente pela gama das relações em que está inserida, não exclui o caráter despótico e autocrático de seu exercício pelo Estado, ao contrário, o acentua como modus operandi de exercício do poder e seu concomitante estilo democrático. No Estado, portanto, encontram-se as classes dominantes detidas em seu pacto de aliança, mas que, como vimos, não consegue jamais dissipar os conflitos de interesses imediatos.

Se, pela formação histórica, não há como simplificar uma disputa burguesa pelo espaço que ela ocupa na produção e realização do capital, são nos períodos de crise que essa diferença vem à tona. Senão, é muito mais uma disputa intraburguesa do que pelo espaço que ela ocupa dentro da esfera da produção e realização do valor, isto é, como disputa interburguesa. Os conflitos de interesses pelas classes dominantes no interior do Estado inserem-se, então, como disputa pela “repartição do butim” (Luxemburgo, 2017, pLUXEMBURGO, R. O segundo e o terceiro volumes d’O Capital. In: MARX, K. O capital: crítica da economia política: Livro III: o processo global da produção capitalista. São Paulo: Boitempo, 2017.. 25). Essa cisão de interesses pelo espaço ocupado na produção e realização do valor só será acentuada conforme avança o capital imperialista externo, sobretudo no processo de mundialização que pulveriza e volatiza os processos de investimento e participação externos. Eis que o neoliberalismo vicejou, no fim das contas, um estímulo para a disputa burguesa nacional, que teve no Estado o ponto privilegiado de confluência e disputa da distribuição dos frutos da exploração do trabalho.

Portanto, para a democracia brasileira, como reflexo desse poder no Estado, continua válida a acepção de Lênin (2017)LÊNIN, V. I. O Estado e a revolução: a doutrina do marxismo sobre o Estado e as tarefas do proletariado na revolução. São Paulo: Boitempo, 2017. de “democracia burguesa”, ou seja, para a fraca burguesia disputar entre si. O que, então, efetivamente os une? A taxa de lucro, que o faz se comportarem como “meros acionistas de uma sociedade por ações” (Marx, 2017, pMARX, K. O capital: crítica da economia política, Livro III, o processo global da produção capitalista. São Paulo: Boitempo, 2017.. 193), onde o conjunto dos capitalistas “apesar das desavenças que os separam no campo da concorrência, constituem, não obstante, uma verdadeira confraria maçônica diante do conjunto da classe trabalhadora” (Ibid., p. 233). O Estado transmuta-se, assim, na forma de poder de uma burguesia “compósita e articulada” (Fernandes, 1976FERNANDES, F. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.). Aí está o fulcro da dominação autocrática burguesa e o modo de ser da participação política.

Das últimas eleições presidenciais ocorridas, a disputa burguesa retomou presença. Do levantamento por nós realizado no site do TSE (2022)TSE – Tribunal Superior Eleitoral. Prestação de contas. Brasília/DF, 2022. Disponível em: https://sig.tse.jus.br/ords/dwapr/r/seai/sig-prestacao-contas/receitas?session=213794157471205. Acesso em: 19 dez. 2023.
https://sig.tse.jus.br/ords/dwapr/r/seai...
11 11 Este levantamento corresponde apenas às frações da classe dominante ligadas a produção e apropriação de capital. Um levantamento mais preciso deveria levar em conta a magnitude dos capitais envolvidos, dividindo pequenos, médios e grandes capitais em seu interesse, na qual não foi possível realizarmos. , dos dois candidatos levados a segundo turno, a burguesia latifundiária financiou faustosamente o candidato reacionário da situação, Bolsonaro. Já Lula contou com financiamento de parte significativa dos capitalistas comerciais, do capital bancário e industrial. A frustrada tentativa golpista de 8 de janeiro de 2023 e as interferências da Polícia Federal no segundo turno das eleições apontam para uma possível cissura no pacto de aliança das classes dominante na disputa para o governo do Estado. Até que ponto essa cissura pode objetivar-se em efetiva ruptura do pacto de alianças dominante somente a trajetória em curso responderá.

Considerações finais

Numa perspectiva de longa duração, sempre que as classes dominantes se viram em dificuldades ou pressão precisou-se estabelecer por meio do Estado a ordem de classes posta e sua posição hierarquizada. O que sempre uniu e conseguiu superar os conflitos de interesse das classes dominantes foi o seu aspecto reacionário, exercido autocraticamente através do Estado e seus instrumentos de ação a fim de manter a reprodução de seus capitais.

Antes mesmo que a pletora de capital viesse a trazer seus efeitos à realidade social brasileira, os comportamentos de dominação reacionária já se faziam sentir como manifestação comum de sua fragilidade, prevista na constituição da primeira república. Na subsequente trajetória, na conformação das frações da classe dominante no terreno histórico, o que lhes conferiu unidade em seus distintos interesses políticos e econômicos imediatos fora sempre o seu exemplar reacionarismo, culminando num pacto de alianças — este último jamais um ponto estático. Na totalidade da sociedade brasileira, essas determinações particulares inferem decisivamente na dinâmica democrática.

O problema da cidadania reside no centro da dominação burguesa e seu sentido de conservação através da reação, daí suas expressões antidemocráticas e espúrias contrafações de distribuição política participativa, reservando a democracia como mera forma subscrita aos marcos legais, negando o substrato material que poderia refazer-se num papel substantivo. Ainda, o papel formal e legal da democracia sobrevém mais enquanto exigência recobrada das massas, em terreno primeiramente extraparlamentar, mas que reclama novamente o estreitamento democrático por exigências de situação de acumulação por parte das classes dominantes.

A maneira particular de dominação burguesa em sua missiva estatal cumpre a função de centralizar o seu poder no Estado e seus instrumentos, com distintos rebatimentos do “nível” democrático ao longo da realidade brasileira. Isso torna, não impossível, mas complexificadas as disputas entre capital e trabalho no terreno parlamentar, fazendo com que as irrupções populares componham um acicate mais depurado do sentido para se fazer valer a cidadania. São nesses modos, de força popular, que são sentidas as orientações “democráticas” provenientes da esfera estatal, com o enquadramento das reivindicações sendo marcas constantes desse processo. Não é que, por si só, a sociabilidade burguesa seja avessa por definitivo à construção democrática, mas a forma particular que estrutura as classes dominantes, sua dominação e ação reacionária na especificidade brasileira, impõem um travão para o curso ideal de participação das classes que não estão inseridas diretamente nos espaços de poder e decisão política.

A política no Brasil fica envolta, no seu circuito histórico, entre as classes dominantes no poder do Estado e as forças progressistas que manejam o verdadeiro caminho democrático. O pacto de aliança reacionário das classes dominantes, na atual crise contemporânea do capital que move imponente cruzadas bélicas pelo globo, vê-se com possibilidades de fissura frente as disputas colocadas no cenário da última eleição nacional, levadas a cabo pelas distintas formas de acumulação de cada fração das classes dominantes em seus interesses econômicos imediatos. Por outro lado, o legado histórico da particularidade brasileira tem revelado que o avesso ao reacionarismo, isto é, a democratização social substantiva da vida brasileira, só reside enquanto potência nas forças progressistas das massas.

Notas:

Agradecimentos

Não se aplica.

  • 1
    Para a classe representante do capital, Fernandes (1976, pFERNANDES, F. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.. 220) já apontava semelhante argumento: “a burguesia nunca é sempre a mesma, através da história”, e sua construção teórica sobre a formação da classe antagônica ao capital contou com estudo à parte, contido em Fernandes (2009)FERNANDES, F. Nós e o marxismo. São Paulo: Expressão Popular, 2009..
  • 2
    As interpretações sobre o desenvolvimento histórico brasileiro e o significado de seus momentos fundamentais determinantes são, sem sombra de dúvidas, objeto das mais variadas controvérsias e perspectivas. Não é casual que assim o seja, tendo em vista que as personagens históricas do ontem prevalecem, ainda que metamorfoseadas, no hic et nunc histórico brasileiro. Portanto, há assim, sempre uma visão interpretativa dos fatos históricos que não legam espaço para uma neutralidade axiológica – tão proclamada pelos arautos de um conhecimento científico “verdadeiro”. Disso se deve de que a história jamais repousa como “coleção de fatos mortos” (Marx; Engels, 2007, pMARX, K.; ENGELS, F. A ideologia alemã. São Paulo: Boitempo, 2007.. 94), mas um todo vivo e determinante. Posto isso, das interpretações que se seguem no presente artigo buscamos sempre sinalizar os autores de onde provieram a perspectiva assinalada em nossa interpretação, sem, contudo, significar a total adesão à integralidade de sua obra.
  • 3
    Sobre as leis de locação de serviços, o trabalho de maior envergadura é, certamente, o de Lamounier (1986)LAMOUNIER, M. L. Formas da transição da escravidão ao trabalho livre: a lei de locação de serviços de 1879. 1986. Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 1986..
  • 4
    Na esteira dessa interpretação, a fórmula das “ideias fora do lugar” de Schwarz (2012)SCHWARZ, R. Ao vencedor as batatas: forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. São Paulo: Duas Cidades, Editora 34, 2012. para o período e ideais do Partido Republicano detém sua validade.
  • 5
    Para além do predomínio na política imigrantista subvencionada, a expressão que figura a centralização política no poder do Estado pelos cafeicultores está inscrita no Convênio de Taubaté de 1906, sinalizando em que medida o Estado intervinha diretamente para servir aos interesses da classe dominante hegemônica.
  • 6
    Ao que nos interessa aqui das classes dominantes e suas frações no interior do poder do Estado, cabe apontar da vacilação predisposta que a burguesia comercial representa, efetivando quase sempre um conflito intraburguês. Tendencialmente atuam no sentido de defesa de interesses a realização do lucro a qual suas mercadorias estão vinculadas.
  • 7
    Se em 1956 “pela primeira vez a renda do setor industrial superará o da agricultura” (Oliveira, 2013, pOLIVEIRA, F. de. Crítica à razão dualista: o ornitorrinco. São Paulo: Boitempo, 2013.. 35), este teve breve período de pódio econômico, quando em 1962 começa a tergiversar e mostrar sinais declinantes em sua taxa de investimento e uma estagnação da sua expansão (Marini, 2017, pMARINI, R. M. Subdesenvolvimento e revolução. Florianópolis: Insular, 2017.. 97), cabendo ainda um crescimento inflacionário no triênio que inaugura a década de 1960, inferindo somente para o período um aumento no custo de vida de 57% (Marini, 2017, pMARINI, R. M. Subdesenvolvimento e revolução. Florianópolis: Insular, 2017.. 89).
  • 8
    “Se já houve, alguma vez, um ‘paraíso burguês’, este existe no Brasil, pelo menos depois de 1968” (Fernandes, 1976, pFERNANDES, F. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. Rio de Janeiro: Zahar, 1976.. 359).
  • 9
    A insaciável sana pelo poder político pela ala das forças militares, enquanto dirigentes do processo reacionário que viabilizava o poder do grande capital interno e externo, pode ser auferia no curioso episódio descrito por Gorender (2014, pGORENDER, J. Combate nas trevas: a esquerda brasileira: das ilusões perdidas à luta armada. São Paulo: Expressão Popular, 2014.. 189–191).
  • 10
    O fato da Nova República, inaugurada após exaurimento da longa noite contrarrevolucionária ditatorial – inicialmente provisória –, abrir uma margem mais universalizante às políticas e direitos sociais deve-se tanto às lutas sociais reivindicatórias, como igualmente (e de igual relevância) ao novo ciclo de reprodução do capital que se abria, abandonando o antigo quadro de ocupação formal da força de trabalho e reclamando, assim, uma via mais abrangente de acesso das massas à medida em que a população excluída tendia a aumentar.
  • 11
    Este levantamento corresponde apenas às frações da classe dominante ligadas a produção e apropriação de capital. Um levantamento mais preciso deveria levar em conta a magnitude dos capitais envolvidos, dividindo pequenos, médios e grandes capitais em seu interesse, na qual não foi possível realizarmos.
  • Agência financiadora: Não se aplica.
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participação Não se aplica.
  • Consentimento para publicação O autor consente a publicação do presente manuscrito.

Referências

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    » https://sig.tse.jus.br/ords/dwapr/r/seai/sig-prestacao-contas/receitas?session=213794157471205

Editado por

Editores Responsáveis

Michelly Laurita Wiese – Editora-chefe
Maria del Carmen Cortizo – Comissão Editorial

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    19 Dez 2023
  • Aceito
    28 Mar 2024
  • Revisado
    15 Maio 2024
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