Resumo
O objetivo da pesquisa apresentada neste artigo é refletir sobre a relação existente entre o processo de expansão do capital e as dinâmicas fronteiriças, enfatizando a atuação do Estado e as relações trabalhistas estabelecidas em tais regiões. Partindo das contribuições teóricas de István Mészáros, problematizamos as consequências do caráter expansionista e incontrolável do capital na execução de políticas e nas estratégias dos trabalhadores, observando a fragmentação das práticas do Estado Real, algumas políticas específicas de desenvolvimento, como o caso das maquilas, e os modos de viver dos sujeitos sociais inseridos nas fronteiras.
Palavras-chave: Fronteira; Sistema do Capital; Estado; Trabalho
Abstract
The research presented in this article aims to reflect on the relationship between the process of capital expansion and border dynamics, emphasizing the state’s participation and the labor relations established in such regions. From the theoretical contributions of István Mészáros, the study problematizes the consequences of the expansionist and uncontrollable nature of capital in the implementation of public policies and in the workers’ strategies. The fragmentation of the practices of the real state are observed, along with specific development policies, such as the case of the maquilas, and the lifestyles of the people living on the borders.
Keywords: Border; Capital System; State; Work
Introdução
Na última década observa-se um aumento da atenção dos pesquisadores e dos dispositivos estatais para as fronteiras internacionais brasileiras e, sem dúvidas, tal movimento pode ser considerado entrelaçado. Em grande medida, durante a gestão federal do Partido dos Trabalhadores, a política pública de universalização do ensino superior garantiu a existência de novas universidades e o fortalecimento daquelas já existentes no interior do País, alimentando novas abordagens e apresentando outros problemas de pesquisa, que há algumas décadas não possuíam muita visibilidade. No mesmo período também se destaca a construção da Estratégia Nacional de Segurança Pública nas Fronteiras (ENAFRON), que aproximou universidades consolidadas de instituições mais recentes e garantiu financiamento para uma grande pesquisa de diagnóstico dos problemas de segurança em toda faixa de fronteira do Brasil.
Neste percurso, originaram-se inúmeras iniciativas acadêmicas no entorno das discussões referentes aos problemas vivenciados pelos habitantes das regiões de fronteira do país. Grupos de pesquisa, programas de pós-graduação, grupos de trabalho nas principais associações profissionais e uma infinidade de novas publicações concentraram seus esforços em entender as diferentes dimensões que envolvem a questão social no universo fronteiriço. Tento por base esta produção e também as experiências de pesquisa de campo vividas durante estudos realizados nas fronteiras brasileiras, explicitamos que o objetivo deste artigo é pensar em uma agenda de pesquisa que leve em consideração o lugar da fronteira no processo de expansão do capital.
Segundo István Mészáros (2002), o capital corresponde a uma relação de propriedade historicamente criada e, por isso mesmo, historicamente superável. Ele não corresponde a um estado definido e estático, mas uma espécie de relação de poder mutável, “um modo de controle que se sobrepõe a tudo o mais, antes mesmo de ser controlado”. (MÉSZÁROS, 2002, p. 98). Como um organismo vivo, ocupa os espaços, pressiona suas contenções e atinge a todos e a tudo. No interior do seu funcionamento, “o sistema do capital se articula numa rede de contradições que só se consegue administrar medianamente, ainda assim durante curto intervalo, mas que não se consegue superar definitivamente” e no centro destas contradições estruturais do modelo vigente encontra-se o “antagonismo inconciliável entre capital e trabalho, assumindo sempre e necessariamente a forma de subordinação estrutural e hierárquica do trabalho ao capital”. (MÉSZÁROS, 2003, p. 19).
Ao longo de toda a história do sistema do capital, inúmeros governos e formas de gestão nasceram e morreram na tentativa de controlar e amenizar as relações contraditórias entre trabalho e capital. Neste sentido, observa-se nas últimas décadas um conjunto de práticas desenvolvidas no intuito de intervir e amenizar os antagonismos estruturais existentes no capitalismo, transformações nos modelos de organização dos processos produtivos, modificações nas formas de controle de estoque, maior flexibilização nas relações de trabalho, pulverização dos parques industriais, processos de terceirização, enfim, estratégias que visam minimizar os conflitos e os antagonismos próprios do modelo de produção atualmente existente. No entanto, tais ações não obtiveram grande êxito. Como destaca Mészáros (2006, p. 31), “atingimos uma fase do desenvolvimento histórico do sistema capitalista em que o desemprego é a sua característica dominante”, impossibilitando o desenvolvimento de medidas paliativas e parciais para tentar solucionar seus próprios antagonismos estruturais.
No objetivo de cumprir sua missão expansionista, onde se destaca a busca da ampliação dos padrões de acumulação de capital, as distâncias que separam os antagonismos estruturais do modelo vigente se ampliam. Enquanto o capital concentra-se cada vez mais nas mãos de poucos capitalistas, constata-se, em contrapartida, o processo de empobrecimento e de exclusão de uma parcela significativa da população trabalhadora, lançada em um universo de vulnerabilidade, insegurança e precariedade; vivendo em lugares cada vez mais degradados (DAVIS, 2006) e desenvolvendo atividades cada vez mais instáveis, precárias e sem qualquer tipo de segurança (VASAPOLLO, 2006). Assim, constata-se que “o desenvolvimento daquele que é de longe o mais dinâmico sistema produtivo da história culmina por proporcionar um número cada vez maior de seres humanos supérfluos para o seu mecanismo de produção”, embora estes estejam bem longe de serem supérfluos, pois também são consumidores (MÉSZÁROS, 2006, p. 32).
Neste contexto, as formas de inserção econômica da classe trabalhadora envolvem um conjunto de práticas sociais que acompanham as conjunturas regionais e políticas, já que de um lado observa-se a existência de um modelo econômico excludente e, por outro, a necessidade fundamental de incluir toda a população no universo do consumo. Assim, as possibilidades de manutenção da força de trabalho e do próprio mercado passam pelo desenvolvimento e pelo aproveitamento dos recursos existentes localmente, das suas particularidades. Enquanto os apologistas do capital afirmam que as ocupações autônomas desenvolvidas pelos trabalhadores excluídos dos padrões normais de emprego configuram-se como as iniciativas mais adequadas para a ampliação do capital, justificadas e analisadas através de categorias como empregabilidade e empreendedorismo, os estudos mais críticos da realidade social vêm demonstrando que tais formas de atuação se apresentam como formas de sobrevivência e resistência de milhares de pessoas (CARDIN, 2015).
Como demonstra Pochmann (2006, p. 61), “a expansão das formas de inserção da População Economicamente Ativa (PEA) referentes às ocupações com baixa produtividade e precárias condições de trabalho marcam o contexto mais amplo da crise do emprego no Brasil, a partir das duas últimas décadas do século XX”. Neste sentido, salienta que “a maior parte das vagas abertas no mercado de trabalho não têm sido assalariadas, mas de ocupações sem remuneração, por conta própria, autônomos, trabalho independente, de cooperativa, entre outras”. Tal realidade, que volta com força após o golpe de 2016, é visualizada em toda faixa de fronteira brasileira, principalmente na dependência dos trabalhadores em relação aos ilegalismos possíveis e a um conjunto de atividades precárias oriundas da mobilidade fronteiriça. Em grande medida, a expansão do capital nos limites territoriais do País dinamiza e condiciona a fronteira na busca das melhores condições de acumulação (CARDIN, 2015).
Assim, os limites históricos e jurídicos que antes definiam as ocupações e criavam as fronteiras entre as práticas morais e imorais, as legais e ilegais, as justas e injustas, são modificados. As fronteiras conceituais perdem a força e a importância quando o capital, no esforço de sua expansão e acumulação incontrolável, força milhares de homens e mulheres a se colocarem dentro de situações desumanas no interior de seu próprio processo de desenvolvimento. Inevitavelmente, como resistência a um modelo econômico sustentado pela exploração dos homens e como modo de sobrevivência a um mundo absolutamente desumano, surgem práticas sociais, formas de trabalho e de ocupações que fogem aos padrões juridicamente aceitos pela ordem do capital, mas, muitas vezes, não condenadas socialmente (CARDIN, 2015). É dentro desta situação que emergem questões fundamentais para o entendimento da realidade social existente nas fronteiras brasileiras, pois problemas que muitas vezes são considerados locais necessitam ser iluminados ou articulados com o dinamismo próprio do atual momento do sistema do capital.
Diante deste cenário, nos propomos a refletir sobre dois eixos centrais para o entendimento da questão social nas regiões de fronteira, dois eixos que evidentemente não conseguem apreender a totalidade, mas que possibilitam exemplificar e apontar aspectos que podem ser úteis para reflexões sobre outros assuntos relacionados a estas localidades. Em um primeiro momento faremos algumas observações sobre as dificuldades na definição do Estado e no desenvolvimento de políticas públicas e, posteriormente, no segundo momento, nos propormos a fazer algumas sinalizações referentes às relações de trabalho e aos modos de viver dos habitantes fronteiriços. Embora o exercício pareça pretensioso, o intuito não é efetivamente trazer conclusões, mas algumas inquietações que possibilitem abrir outros caminhos de reflexão.
Estado e políticas públicas nas fronteiras
Embora possamos definir o Estado por meio de uma categoria conceitual, apreendendo suas dinâmicas mais abrangentes e os seus objetivos mais fundamentais, há uma distância entre a forma em que ele é entendido conceitualmente e as tentativas de entendê-lo por meio da observação de suas ações práticas. Como destaca Mészáros (2002), o Estado desempenha um papel que pode ser considerado complementar e ao mesmo tempo inseparável do sistema do capital, que dentro de sua lógica expansionista e destrutiva, necessita de uma estrutura de comando político que seja condizente com a reprodução econômica. Neste sentido, os contornos que o Estado adquire são diretamente influenciados pelas circunstâncias históricas específicas. Independentemente do seu perfil político ideológico, a função do Estado é garantir a necessária reprodução do capital.
A existência de um Estado ocupado por diferentes frações de classe, possuidoras de distintos mecanismos de acumulação, não representa efetivamente um problema para o sistema de produção vigente, pois em todos os casos o objetivo final é o mesmo, a acumulação. No entanto, na vida cotidiana tal situação fomenta a impossibilidade de o sujeito visualizar uma homogeneidade nas ações daqueles agentes e dispositivos que personificam o Estado. Dentro de um mesmo campo político, é possível visualizarmos diferentes agentes estatais agindo de maneiras muito específicas, dificultando a compreensão de que todos eles são vinculados a um mesmo e único Estado. Enfim, embora o objetivo do Estado seja predefinido, na prática ele ganha movimentos turvos, o que dificulta a avaliação adequada desta estrutura de controle, como define Mészáros (2002).
O Estado Real, ou seja, aquele que conhecemos na pseudoconcreticidade, é compreendido e apreendido cotidianamente por meio de diferentes performances promovidas pelos dispositivos estatais, performances que se difundem em um conjunto de relações de poder efetivadas por ações coniventes, condicentes e prevaricantes. Em outro momento (CARDIN, 2017), destacamos que os sujeitos que personificam o Estado na vida cotidiano possuem múltiplas formas de agir, o que impossibilita a visualização de uma instituição objetiva e coesa. De forma sintetizada, as ações destes sujeitos podem ser coniventes com as necessidades locais, independente das normatizações oficiais; elas podem ser condicentes com as políticas determinadas pelos respectivos dispositivos estatais; e, por fim, podem ser prevaricantes ao atenderem interesses privados.
Diante destes apontamentos, defendemos que as dinâmicas fronteiriças, assim como as políticas públicas efetivadas nas regiões de fronteira, precisam ser compreendidas e analisadas partindo da observação simultânea do movimento de expansão do capital e também das particularidades que marcam a existência do Estado Real. Ao longo das últimas décadas constata-se uma forte discussão sobre a permanência ou não das fronteiras internacionais e, consequentemente, sobre a saúde dos Estados Nacionais. Tal debate é diretamente conectado com a maneira em que os dispositivos estatais atuam nas diferentes aduanas, com o controle de fluxo de pessoas e mercadorias nas fronteiras e, por último, com a própria organização social dos municípios fronteiriços. Contudo, no bojo de tais observações e das análises teóricas anteriores encontra-se uma necessária reflexão do próprio movimento do sistema do capital, que envolve fundamentalmente uma relação inalienável entre Estado, Capital e Trabalho.
No entanto, o entendimento geral deste movimento e de sua influência nas dinâmicas fronteiriças não elimina as particularidades ocorridas nestas localidades. Embora em determinados momentos históricos possa haver uma matriz teórica e ideológica que sustente um Estado forte, centralizador, nacionalista e mais presente nas fronteiras, os agentes estatais que atuam na fronteira não efetivarão em todos os momentos ações condicentes a tais premissas políticas, por exemplo. Os sujeitos sociais não correspondem exatamente a modelos moldados conforme os interesses centrais ou governamentais, embora o metabolismo do sistema do capital atinja a todos e a tudo, a formação do ser social perpassa necessariamente pelas relações sociais vividas localmente e é esta formação o aspecto decisivo no momento em que os sujeitos desenvolvem suas práticas.
Assim, a elaboração e a execução de uma política pública dependem das condições históricas das relações entre Estado, Capital e Trabalho, mas também das particularidades dos sujeitos sociais envolvidos. As políticas direcionadas aos serviços de saúde, por exemplo, correspondem a uma das ações mais controversas, pois ao mesmo tempo em que se visualiza um esforço do governo central no reconhecimento das particularidades dos municípios localizados na faixa de fronteira do Brasil por meio do SIS-Fronteiras, observa-se a exigência de certos procedimentos de identificação que restringem a circulação dos usuários nas regiões fronteiriças, como a cobrança da apresentação da carteira de identificação do SUS, antes ou até mesmo depois dos procedimentos realizados.
Carlos Augusto Grabois Gadelha e Laís Costa (2007) observam que o esforço do governo central em implantar o SIS-Fronteiras deve-se a um gargalo observado nas inúmeras reuniões realizadas para discutir questões relacionadas à integração regional no início do século XXI, onde os problemas referentes ao atendimento aos estrangeiros e à população flutuante nos municípios fronteiriços sempre surgem como empecilho para a garantia da qualidade nos serviços prestados. Neste contexto, constatou-se que qualquer esforço em pensar em uma política nacional de desenvolvimento da faixa de fronteira necessita superar os debates exclusivamente econômicos, incluindo medidas que possam auxiliar na construção de um diagnóstico dos serviços de saúde oferecidos e fomentar políticas mais próximas das necessidades reais de tais regiões. O conflito e as articulações entre políticas de integração econômica e a necessidade de acesso a direitos sociais nos municípios fronteiriços também é tema da pesquisa desenvolvida por Keli Regina dal Prá, Jussara Maria Rosa Mendes e Regina Célia Tamaso Mioto (2007).
No entanto, ao mesmo tempo em que se observa algum esforço de articulação das políticas públicas de saúde com a concepção de desenvolvimento regional presente no Programa de Desenvolvimento da Faixa de Fronteira (PDFF), por exemplo, visualiza-se um conjunto de publicações recentes que denunciam as dificuldades de atendimento à população transfronteiriça no momento em que as Unidades Básicas de Saúde (UBS) exigem o cartão do SUS para garantir o atendimento ou a continuidade dele. Os problemas encontrados por estrangeiros na busca por procedimentos de saúde nos municípios de fronteira do Brasil fazem parte das constatações das pesquisas realizadas por Ligia Giovanella, Luisa Guimarães, Vera Maria Ribeiro Nogueira, Lenaura de Vasconcelos Costa Lobato e Giseli Nogueira Damacena (GIOVANELLA et al., 2007); por Vera Maria Ribeiro Nogueira e Maria Geusina da Silva (2008); e por Jéssica Aparecida Soares (2017), entre outras.
Por outro lado, as estratégias desenvolvidas pelos estrangeiros e pelos brasileiros não residentes no País na busca do acesso aos serviços de saúde oferecidos pelo Sistema Único de Saúde (SUS) também é algo de atenção de Jéssica Aparecida Soares (2017) e de José Lindomar Coelho Albuquerque (2015). Este último, interessado em analisar as estratégias desenvolvidas por paraguaios e por brasileiros residentes no Paraguai para terem acesso à rede de direitos sociais oferecida em Foz do Iguaçu/Paraná, afirma que tais sujeitos “inventam diferentes táticas”, como, por exemplo, endereços falsos, parentescos e estadias sazonais, tudo com o objetivo de “conseguir o cartão do Sistema Único de Saúde (SUS), a matrícula do filho na escola brasileira ou o benefício do Programa Bolsa Família”. (ALBUQUERQUE, 2015, p. 98).
Assim, constata-se que a análise de uma política pública específica em uma região de fronteira exige pensarmos a concepção e os fundamentos das propostas de desenvolvimento econômico planejada para tais localidades, as contradições entre os diferentes documentos que normatizam as políticas do setor, as repostas oferecidas pelos sujeitos sociais que buscam o acesso a determinados direitos e, por fim, a análise daquilo que realmente é executado pelos dispositivos estatais. Neste sentido, não é o fato de existir determinadas normatizações que impedem ou dificultam o acesso do estrangeiro ou do brasileiro não residente ao sistema único de saúde que efetivamente impossibilita que isso ocorra, tal sua situação envolve interpretações realizadas em um contexto histórico-social específico.
Os agentes estatais que atuam nos diversos pontos da fronteira e que garantem ou não o acesso aos direitos sociais, agem e executam políticas em um campo de possibilidades mais amplo, que envolvem interpretações de regimentos, de leis, de histórias e de situações particulares. Como destacamos anteriormente, nem sempre o agente estatal leva em consideração com todo rigor as normatizações cabíveis para determinadas situações, ou seja, nem sempre sua ação é condicente. Em muitos momentos, ela pode ser conivente com o contexto social, político e econômico em que determinada relação entre Estado e Sociedade é efetivada, pois os problemas que são próprios das regiões de fronteira são experimentados por todos que a habitam. Além disso, não é possível eliminarmos a possibilidade que ocorram ações prevaricantes, onde o agente estatal utilizando de sua condição de servidor público busca obter alguma vantagem pessoal no interior das relações estabelecidas.
Relações de trabalho e modos de viver nas fronteiras
A origem e sustentação do Estado não se encontram localizadas no centro das decisões políticas e econômicas, mas em suas margens. É o processo de expansão do capital em regiões pouco exploradas pelos capitalistas a sua força motriz e reprodutora. É a expansão da fronteira agrícola e do mercado consumidor, da pulverização dos parques industriais para as regiões possuidoras de baixos índices de normatização ambiental e trabalhista e dos processos agressivos de extração de recursos naturais e de mais-valia absoluta que marcam o surgimento das fronteiras e possibilitam a acumulação de capital de maneira descontrolada. Em um segundo movimento, visualizam-se os esforços para reinventar economicamente e simbolicamente espaços mal explorados pela ordem vigente, fomentando experiências de gentrificação, por exemplo.
É por meio destes pressupostos que buscamos entender as relações entre Estado, Capital e Trabalho nas fronteiras, iluminando, por exemplo: o movimento de transposição agrícola brasileira para o Paraguai, Uruguai e Bolívia; a utilização de força de trabalho em condições análogas à escravidão em muitos latifúndios e na derrubada de vegetação nativa principalmente na região amazônica; a destruição de reservas ambientais e minerais no oeste e norte do país; o fortalecimento das políticas de maquilas no México e no Paraguai; e a relação indivisível entre práticas legais e ilegais no processo de expansão do capital. Neste contexto, podemos pensar que o sistema do capital em seu processo de expansão e criação de fronteiras econômicas e políticas associa práticas primitivas e contemporâneas de acumulação de capital.
Para visualizarmos e pensarmos um pouco mais sobre estes elementos, dentro de muitas possibilidades existentes, indicaremos e exploraremos rapidamente três fenômenos aparentemente distintos, mas que encontram sustentação na articulação de práticas primitivas e contemporâneas de exploração e, consequentemente, de acumulação: as maquilas paraguaias, o circuito sacoleiro e o trabalho servil de estrangeiros. Em todos os casos se visualizam a participação direta ou indireta do Estado e uma relação complexa entre práticas legais e ilegais que servem de base para a existência dos fenômenos, relação que não se encontra unicamente no universo jurídico, mas que está sujeitada pelas possibilidades de existência oriundas das relações fronteiriças.
Em grande medida, o desenvolvimento econômico do Paraguai ao longo da segunda metade do século XX sempre esteve relacionado a relações comerciais e a flexibilização das fronteiras com o Brasil. Em um primeiro momento, encontra-se a experiência migratória de agricultores brasileiros para cultivar as terras paraguaias, experiência incentivada por políticas de desenvolvimento do governo ditatorial de Stroessner (ALBUQUERQUE, 2010). Em um segundo momento, ainda durante o período de vigência do golpe militar, encontra-se a criação da zona de tributação diferenciada para as mercadorias negociadas em Ciudad del Este, que tinha como público alvo os consumidores brasileiros (CARDIN, 2011). Por último, já no final da década de 1990, é elaborado um plano de industrialização que buscava atrair empresas estrangeiras, principalmente brasileiras, para produzir em território paraguaio.
Inspirados pelas políticas de industrialização adotadas no México, o governo paraguaio criou um programa industrial conhecido como Lei das Maquilas no ano de 1997. Embora já tenha 20 anos de vigência, apenas nos últimos anos começou a obter resultados expressivos com a multiplicação das indústrias atraídas para o país. A Lei 1.064/97, promulgada pelo Decreto 9.585/2000 (PARAGUAY, 1997), tem como órgão executor e regulador das indústrias maquiladoras o Conselho Nacional das Indústrias Maquiladoras e Exportadoras (CNIME), pertencente ao Ministério de Indústria e Comércio do Paraguai e age em compasso com o Tratado do MERCOSUL. Em uma perspectiva de fomento ao desenvolvimento regional, tem como principal objetivo atrair investidores, principalmente regionais, para manufaturar seus produtos no país.
Mesmo a lei permitindo às indústrias instalarem suas plataformas de produção em qualquer ponto do território paraguaio, a maioria delas se fixou na região de fronteira com o Brasil, mais especificamente em Ciudad Del Este e Hernadarias. Segundo a Câmara de Empresas Maquiladoras (CEMAP), o parque industrial contava com aproximadamente 60 indústrias em novembro de 2015, sendo que as exportações do país entre janeiro a junho de 2015 somaram USD 139,5 milhões, 25% a mais que no mesmo período do ano anterior, conforme o Ministério da Indústria e Comércio (MIC). Os principais produtos exportados são do ramo de confecção e têxtil, seguido de peças de veículos e cabos. E o destino final de 90% destes produtos são para o MERCOSUL, principalmente Brasil e Argentina.
O aparente desenvolvimento obtido por meio de tal programa precisa ser visto dentro de uma lógica comercial na qual as empresas internacionais, entre elas as brasileiras, possuem um amplo conjunto de benefícios fiscais, liberdade de importação de matéria-prima e de exportação do produto acabado, além do emprego de uma força de trabalhado mal remunerada e com frágil organização sindical. Neste contexto, enquanto as indústrias possuem boas condições para garantir sua própria rentabilidade, o Paraguai consegue quase que exclusivamente ampliar seu mercado de trabalho, pois atualmente o processo de transferência de tecnologia para o país é insignificante ou quase nulo. No entanto, é preciso destacar que ainda não há uma produção significativa sobre o impacto das atividades laborais geradas pelas maquilas paraguaias na vida dos trabalhadores, mas é algo que necessita ser observado, já que a experiência mexicana é marcada por inúmeros tipos de violência cometidos contra os trabalhadores (VILLEGAS et al., 1997; O, 2006).
Em síntese, consideramos que as maquilas correspondem ao esforço mais recente do governo paraguaio em garantir a circulação e a expansão do capital no território nacional, trata-se de mais uma experiência de abertura de fronteiras para facilitar fluxos de trabalhadores, mercadorias e capitais no país, dando continuidade ao predomínio de políticas neoliberais de fortalecimento do livre mercado. Este comportamento é similar aquele adotado no momento de criação das zonas de livre comércio nos municípios paraguaios fronteiriços, como representam os casos de Encarnación, Ciudad del Este, Salto del Guairá e Pedro Juan Caballero, onde mercadorias de diferentes origens são negociadas com preços diferenciados, alimentando grandes circuitos de compras no Brasil e na Argentina.
Em um estudo anterior (CARDIN, 2011), observamos que o surgimento e a manutenção destes entrepostos comerciais, garantidores de uma alta circulação de capitais e trabalhadores, envolve interesses nacionais atrelados a uma perspectiva neoliberal de mercado. Por um lado, constata-se a vontade do governo central em ocupar demograficamente suas fronteiras e garantir a entrada de divisas internacionais, por outro se visualiza um contexto internacional marcado pela globalização do consumo, a mundialização de capitais e a
reestruturação produtiva, que correspondem a aspectos garantidores da circulação global de mercadorias, da transferência internacional de valores e de uma força de trabalho ociosa apta a desenvolver as ocupações necessárias no interior do circuito sacoleiro.
Todavia, é evidente a impossibilidade de generalização quando abordamos especificamente o perfil dos trabalhadores que se inserem nos diversos circuitos comerciais oriundos das relações fronteiriças. De maneira geral, os circuitos são redes sociais compostas por vínculos permanentes ou não entre trabalhadores distribuídos em um território que vai muito além dos limites internacionais. Neste sentido, a origem de uma massa de trabalhadores disposta a desenvolver as práticas necessárias nestes circuitos depende, ao mesmo tempo, de políticas econômicas internacionais e nacionais, da configuração do mercado de trabalho local e regional e, por fim, de aspectos vinculados às trajetórias particulares dos próprios trabalhadores. Assim, em determinado momento histórico, os elementos que levam um morador do Estado de Minas Gerais a se inserir no circuito sacoleiro são, em alguma medida, semelhantes aos motivadores dos demais trabalhadores, mas, por outro lado, também possui muitas particularidades, ainda mais quando comparamos com os trabalhadores que vivem nas faixas de fronteira.
Contudo, é preciso explicitar que os habitantes das regiões de fronteira não são diferentes dos moradores de qualquer outra região, o que os marcam é que eles, no momento em que necessitam desenvolver suas práticas sociais e até mesmo suas escolhas - dentro de todas as limitações impostas pelo capitalismo - encontram nas possibilidades oferecidas pela fronteira uma resposta diferenciada. Quando José Lindomar Coelho Albuquerque (2015) analisa as estratégias utilizadas pelos moradores fronteiriços para obter acesso a determinados direitos sociais, observa-se que a fronteira amplia o espaço de manobra do sujeito. Ela fornece um conjunto maior de articulações e possibilidades para que os moradores elaborem seus arranjos sociais no intuito de atingir seus objetivos, seja o acesso à unidade básica de saúde ou ao mercado de trabalho.
O uso da fronteira nas estratégias de sobrevivência e as relações de interdependência existentes entre os habitantes dos diferentes lados das fronteiras são seculares (CARDIN; FIOROTTI LIMA, 2016). Neste sentido, observa-se que, a complementação de renda, o abastecimento dos mantimentos utilizados nas residências e o uso de diferentes serviços, muitas vezes garantidos pela transposição das fronteiras, são práticas sociais desenvolvidas em períodos anteriores à presença efetiva do Estado e, por isso, são arraigadas no cotidiano local. Em grande medida, quando o agente estatal age de maneira conivente na fronteira é por reconhecer a historicidade dos modos de viver na fronteira, levando em consideração a forma em que a fronteira foi e ainda é utilizada pelos sujeitos que a habitam.
Neste contexto, é valido destacar que a apropriação e o uso da fronteira são elásticos, fazendo com que uma mesma situação possa ser apreendida e significada de modos distintos. Ao mesmo tempo em que a fronteira pode auxiliar na garantia de emprego para muitas pessoas, como é o caso das mulheres paraguaias que se inserem no mercado de trabalho de Foz do Iguaçu/Paraná, principalmente em atividades relacionados aos cuidados domésticos e ao mercado sexual, ela também possibilita e é usada para legitimar práticas de exploração análogas à escravidão. Bernardo Farina (2015), por exemplo, identifica e analisa mais de cem inquéritos nos quais empregadores - em grande medida profissionais liberais - estão sendo investigados e processados por restringirem a liberdade de ir e vir das trabalhadoras paraguaias, por exigirem uma carga horária de trabalho superior à permitida e por pagarem salários inferiores ao mínimo nacional. Não sendo suficiente a situação desumana no qual estas mulheres estavam inseridas, a justificativa dos empresários em nada contribuía na defesa de tais atos. Para eles, empregar as trabalhadoras dentro de tais condições era um favor que prestavam, pois assim as ajudavam a fugir da pobreza existente no país vizinho.
Considerações finais
Os três exemplos enumerados, as maquilas, o circuito sacoleiro e o trabalho servil, retratam diferentes faces da divisão internacional do trabalho e, ao mesmo tempo, aproximações das relações entre legal/ilegal no processo de expansão do capital. As maquilas e as zonas francas paraguaias são políticas federais, mas que dependem diretamente de processos intensos de exploração de força de trabalho e extração de mais-valia absoluta. A mesma situação pode ser constatada nos casos relacionados à utilização dos trabalhadores fronteiriços, seja nos cuidados domésticos, na construção civil ou no circuito sacoleiro. Em grande medida, a fronteira corresponde a um espaço onde o capital demonstra algumas das suas características mais marcantes e que foram destacadas por Mészáros (2002), ele é incontrolável e expansionista.
Diante desse movimento, o Estado e os seus diferentes dispositivos agem de maneira pouco coesa e difusa. Enquanto o governo paraguaio busca flexibilizar todas as relações de produção, o governo brasileiro tenta controlar a circulação de mercadorias nas fronteiras para proteger o produto nacional e garantir a arrecadação de impostos. Neste cenário, os habitantes fronteiriços e os agentes estatais se relacionam de diferentes formas e por diferentes meios, seja nos processos de fiscalização aduaneiros, no combate ao tráfico de drogas e armas ou na garantia do oferecimento de direitos sociais básicos, como educação e saúde. O entendimento destas relações exige que mantenhamos sempre a atenção para o fato das práticas sociais desenvolvidas pelos diferentes sujeitos fronteiriços serem derivadas das relações dialéticas entre as trajetórias particulares e os limites impostos pelo momento histórico, econômico e político.
Agradecimentos
Aos membros do Laboratório de Pesquisa em Fronteiras, Estadoe Relações Sociais (LAFRONT).
Referências
- ALBUQUERQUE, J. L. C. A dinâmica das fronteiras: os brasiguaios na fronteira entre o Brasil e o Paraguai. São Paulo: Annablume, 2010.
- ______. Migração, circulação e cidadania em território fronteiriço: os brasiguaios na fronteira entre o Paraguai e o Brasil. Tomo, São Cristóvão, n. 26, p. 97-122, jan./jun. 2015.
- CARDIN, E. G. A Expansão do Capital e as Dinâmicas das Fronteiras. Jundiaí: Paco Editorial, 2015.
- ______. Laranjas e sacoleiros na tríplice fronteira: um estudo da precarização do trabalho no capitalismo contemporâneo. Cascavel: EDUNIOESTE, 2011.
- ______. O Fazer-se Estado nas Fronteiras: um estudo das relações entre trabalhadores fronteiriços e agentes estatais nos limites do Brasil. In: SIMPÓSIO DE PESQUISA ESTADO E PODER, 6., 2017, Marechal Cândido Rondon. Anais... Marechal Cândido Rondon, 2017.
-
______.; FIOROTTI LIMA, C. Migração paraguaia na faixa de fronteira do Brasil: identidades, circularidades e redes transnacionais. Século XXI, Porto Alegre, v. 7, n. 2, p. 53-71, jul./dez. 2016. Disponível em: <http://seculoxxi.espm.br/index.php/xxi/article/viewFile/ 148/144>. Acesso em: 17 jul. 2017.
» http://seculoxxi.espm.br/index.php/xxi/article/viewFile/ 148/144 - DAL PRÁ, K. R.; MENDES, J. M. R.; MIOTO, R. C. T. O desafio da integração social no MERCOSUL: uma discussão sobre cidadania e o direito à saúde. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 23, supl. 2, p. S164-S173, 2007.
- DAVIS, M. Planeta Favela. São Paulo: Boitempo, 2006.
- FARINA, B. C. Trabalhadores fronteiriços na tríplice fronteira: confronto entre a igualdade jurídica e a realidade. 2015. 210 f. Dissertação (Mestrado em Sociedade, Cultura e Fronteiras)-Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Foz do Iguaçu, 2015.
- GADELHA, C. A. G.; COSTA, L. Integração de fronteiras: a saúde no contexto de uma política de desenvolvimento. Cadernos de Saúde Pública. Rio de Janeiro, v. 23, supl. 2, p. S214-S226, 2007.
- GIOVANELLA, L. et al. Saúde nas fronteiras: acesso e demandas de estrangeiros e brasileiros não residentes ao SUS nas cidades de fronteira com países do MERCOSUL na perspectiva dos secretários municipais de saúde. Cadernos de Saúde Pública. Rio de Janeiro, v. 23, supl. 2, p. S251-S266, 2007.
- MÉSZÁROS, I. Desemprego e precarização: um grande desafio para a esquerda. In: ANTUNES, R. (Org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2006. p. 27-44.
- ______. O século XXI: socialismo ou barbárie? São Paulo: Boitempo, 2003.
- ______. Para além do capital: rumo a uma teoria da transição. São Paulo: Boitempo, 2002.
- NOGUEIRA, V. M. R.; SILVA, M. G. da. Brasiguaios: a dupla desigualdade na região de fronteira. Pleiade, Foz do Iguaçu, v. 2, n. 4, p. 31-46, jul./dez. 2008.
-
O, M. E. de la. El trabajo de las mujeres en la industria maquiladora de México: balance de cuatro décadas de estudio. Revista de Antropología Iberoamericana, Madrid, v. 1, n. 3, p. 404-427, agosto/dic. 2006. Disponível em: <http://imumi.org/attachments/article/ 63/Mujeres_en_la_industria_maquiladora-balance_cuatro_decadas_2006.pdf >. Acesso em: 17 jul. 2017.
» http://imumi.org/attachments/article/ 63/Mujeres_en_la_industria_maquiladora-balance_cuatro_decadas_2006.pdf -
PARAGUAY. Ley nº 1.064/97 del 13 de mayo de 1997. De la Industria Maquiladora de Exportación. Disponível em: <http:// www.aduana.gov.py/uploads/archivos/LEY%20N_%201064.pdf>. Acesso em: 17 jul. 2017.
» http:// www.aduana.gov.py/uploads/archivos/LEY%20N_%201064.pdf - POCHMANN, M. Desempregados do Brasil. In: ANTUNES, R. (Org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2006. p. 59-73.
- SOARES, J. A. A saúde pública na tríplice fronteira: estrutura de atendimento e estratégias de usuários fronteiriços para acesso à saúde. 2017. 165 f. Dissertação (Mestrado em Sociedade, Cultura e Fronteiras)-Universidade Estadual do Oeste do Paraná, Foz do Iguaçu, 2017.
- VASAPOLLO, L. O Trabalho Atípico e a Precariedade: elemento estratégico determinante do capital no paradigma pós-fordista. In: ANTUNES, R. (Org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2006. p. 45-57.
- VILLEGAS, J. et al. Trabajo y salud en la industria maquiladora mexicana: una tendencia dominante en el neoliberalismo dominado. Cadernos de Saúde Pública, Rio de Janeiro, v. 13, supl. 2, p. S123-S134, 1997.
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
May-Aug 2018
Histórico
-
Recebido
17 Out 2017 -
Revisado
16 Mar 2018 -
Aceito
08 Fev 2018