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Racismo e proibicionismo: Um retorno ao pensamento social do negro no Brasil

Racism and prohibitionism: A return to black social thinking in Brazil

Resumos

Resumo

Objetiva-se apreender os principais elementos da formação socio-histórica brasileira que sustentam e reforçam o racismo como estrutura indispensável para a consolidação do proibicionismo às drogas e sua matriz contemporânea estadunidense, com base em teóricos que contribuíram para o pensamento social do negro no Brasil. Há uma problemática fundamental na relação entre proibição e racismo: a eminência do trabalho livre, pós-abolição e a forma de integração do negro na constituição econômico-social do capitalismo dependente, desde o período de transição. Ou seja, há um atravessamento histórico entre a divisão racial do trabalho, a exclusão delegada à população negra na ordem social do capitalismo brasileiro, e a sustentação do racismo científico, da medicina social eugenista junto ao higienismo mental da psiquiatria e do Direito Penal, como marco embrionário da proibição. O resultado disso é a criminalização da pobreza moldada pelo racismo, e a reatualização da imagem do usuário de drogas como degenerado moral e criminoso.

Palavras-chave:
Formação social do Brasil; Guerra às Drogas; Proibicionismo; Racismo


Abstract

The ai mis to apprehend the main elements of Brazilian socio-historical formation that support and reinforce racism as an indispensable structure for the consolidation of drug prohibitionism and its contemporary US matrix, based on theorist who contributed to the social thinking of black people in Brazil. There is a fundamental issue in the relationship between prohibition and racism: the eminence of free work, post abolition and racism: the eminence of free work, post-abolition, and the form of integration of black people in the economic-social constitution of dependent capitalism, since the transition period. That is, there is a historical crossing between the racial division of work, the exclusion delegated to the black population in the social order of Brazilian capitalism, and the support of scientific racism, eugenic social medicine together with the mental hygiene of psychiatry and Criminal Law, as embryonic landmarks of prohibition. The result of this is the criminalization of poverty shaped by racism, and the updating of the image of the drug user as a moral and criminal degenerate.

Keywords:
Prohibitionism; racism; war on drugs; Brazil's social formation


Introdução

O histórico de intervenções público-estatais no campo das drogas foi administrado em torno do policiamento, moralização e patologização da população usuária, principalmente das populações periféricas e negras inseridas no circuito de venda e consumo das substâncias ilícitas, sob orientação sistemática — após a década de 1970 — do paradigma global do proibicionismo e sua matriz estadunidense.

Todos os anos, são inúmeras mortes por intervenções policiais em operações como a do Jacarezinho e da Penha, no Rio de Janeiro. Os dados da Rede de Observatórios da Segurança (2021) comprovam: na Bahia, 607 pessoas foram mortas pela polícia em 2020, 98% eram negras; no mesmo ano, em Pernambuco, das 112 pessoas mortas em operações policiais, 109 eram negras. A “guerra às drogas” também pode ser percebida nos superlotados sistemas prisionais, nas audiências de custódia, na vida de egressos(as), mães e familiares que convivem com a política de encarceramento em massa, ou na criminalização das pessoas em situação de rua.

De fato, o infeliz “sucesso” da política de encarceramento em massa manifesta as implicações do proibicionismo nas estruturas de coesão social do Estado. Segundo levantamento do Anuário Brasileiro de Segurança Pública de 2022, produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, nos últimos 21 anos, o número de pessoas privadas de liberdade no sistema prisional e sob custódia das polícias aumentou cerca de 252%, chegando ao máximo de 820.689 em 2021, em que o crime de maior incidência é o tráfico de drogas (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2022). Em 2021, duas em cada três pessoas privadas de liberdade eram negras, e mais, no mesmo ano, a cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 78 eram negras. Apesar de não haver novidades, o agravamento das desigualdades repercute na reprodução acentuada deste perfil, a exemplo dos dados de 2021: 67,5% das pessoas privadas de liberdade são negras (pretos e pardos) e 46,3% são jovens de 18 a 29 anos (FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2022).

A questão do cárcere feminino também tem ganhado destaque. Apesar do número expressivamente menor se comparado a homens encarcerados, a questão da mulher encarcerada apresenta particularidades que atravessam a forma da violência prisional. O aumento da série histórica de mulheres no cárcere é mediado primordialmente pela seletividade penal da “guerra às drogas”. Não é surpresa, mais uma vez, que a desigualdade social vivenciada por este grupo produza o mesmo perfil no cárcere brasileiro, mulheres jovens, com baixa escolaridade e falta de acesso à renda, mães e negras.

A população negra usuária de drogas também está significativamente presente nos serviços de saúde mental do SUS e nas redes psicossociais e socioassistenciais das políticas sociais que ofertam cuidado à pessoa usuária e seus familiares. Em meio ao desmantelamento da seguridade social, o recrudescimento do conservadorismo na Política sobre Drogas promove retrocessos em pautas anteriormente conquistadas, ao exemplo da inserção massiva de Comunidades Terapêuticas no acesso ao fundo público e da negação da Redução de Danos como princípio de cuidado.

Toda essa realidade é mobilizada por tendências históricas e particularidades da formação social brasileira que respondem ao Brasil contemporâneo. Apesar disso, é comum ver compreensões sobre o racismo, a discriminação racial e marginalização de nossos corpos pouco associadas à racionalidade antagônica das estruturas do escravismo e sua transição para o capitalismo dependente, como bem destaca Clóvis Moura. Nesse caso, sabemos que o proibicionismo no Brasil é fundamentalmente constituído pelo racismo, mas como as raízes históricas da questão do negro no Brasil respondem à contemporaneidade?

Soma-se a isso, o problema da divisão racial do trabalho, com a questão do negro escravizado, a funcionalidade de sua integração na sociedade de classes, e o processo de internacionalização da política estadunidense de “guerra às drogas”. Diante da questão, o objetivo deste estudo exploratório é apreender os principais elementos da formação socio-histórica brasileira que sustentam e reforçam o racismo como estrutura indispensável para a consolidação do proibicionismo às drogas e sua matriz contemporânea estadunidense. Partiremos, em termos metodológicos, do diálogo entre os principais teóricos do pensamento social do negro no Brasil e os marcos histórico, sociais e políticos do proibicionismo brasileiro, enfatizando elementos pulsantes na realidade do país entre a segunda metade do século XIX e o período da ditadura empresarial-militar.

As bases materiais do proibicionismo e do escravismo no Brasil

O processo de constituição do proibicionismo no Brasil e na América Latina é atravessado por sua posição econômica e político-social na economia internacional. As noções constitutivas da proibição das drogas acompanham necessidades historicamente postas à realidade brasileira, que são operadas entre o século XIX e XX, especificamente durante a nebulosa transição da economia colonial e escravagista para a organização do trabalho livre e do capitalismo dependente. No caso do Brasil, há uma obrigatoriedade em pensar a transformação do uso de substâncias em mercadoria a partir do colonialismo e das relações escravocratas que se estabeleceram ao longo de quase quatro séculos. O uso de substâncias psicoativas na história brasileira reporta aos rituais das tradições indígenas, como as bebidas alcoólicas fermentadas e o tabaco, que logo se fundem aos mandos e trocas europeias e às práticas de pessoas escravizadas trazidas de África.

As drogas foram essenciais nas trocas mercantis em todo o mundo, inseridas em um movimento fundamental para estruturação do capitalismo comercial, onde as grandes oligarquias agrárias da colônia brasileira se tornaram seleiros de exportação de elementos como o açúcar, o café e o tabaco (CARNEIRO, 2018CARNEIRO, H. Drogas: a história do proibicionismo. Editora Autonomia Literária, 2018.). O escravismo indígena compôs significativamente o início da expansão colonial brasileira, em um processo que, cultural e ideologicamente, foi atravessado pela imposição ética e moral do cristianismo. Nessa esfera, a inquisição às práticas e aos manejos de substâncias realizados pelos povos originários também marcaram o processo de demonização cultural e religiosa do uso de substâncias. Por compor o circuito de apropriação colonial, responsável pela expropriação de terras brasileiras e pelo trabalho dos povos escravizados, a mercantilização das substâncias, com o passar do tempo, reordena e ressignifica o próprio uso cultural e religioso1. Não à toa, os destilados de cana, produzidos nos alambiques dos engenhos de açúcar, foram moedas para a compra e exploração de pessoas negras escravizadas (TORCATO, 2014).

A categoria escravidão foi tardiamente estudada como objeto central das análises sobre a formação socio-histórica brasileira. Ao longo do tempo, a história do negro no Brasil foi ora silenciada e negada, ora romantizada por intelectuais da sociologia brasileira, e essa realidade passa a ser tensionada principalmente na segunda metade do século XX. Para Clóvis Moura (1981)MOURA, C. Rebeliões da senzala: a questão social no Brasil. São Paulo: Ciências Humanas, 1981., os povos escravizados manifestavam um polo da dicotomia entre duas classes, neste caso, eram eles que contraditoriamente produziam a riqueza e compunham a luta das classes subalternizadas, já na obra “O escravismo colonial”, Gorender (2016)GORENDER, J. O escravismo colonial. 6. ed. São Paulo: Expressão Popular: Perseu Abramo, 2016. Disponível em: https://fpabramo.org.br/publicacoes/wp-content/uploads/sites/5/2021/11/Escravismo-Colonial-Web.pdf. Acesso em: 06 jun. 2022.
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afirma a escravidão como uma categoria social, em que o escravo é uma condição social de propriedade de outra pessoa, coisificada e desumanizada.

Na base colonial e escravista o reconhecimento da pessoa “escravo” como pessoa humana só foi firmado, inicialmente, diante da responsabilização penal, ou seja, a legitimação do crime e da pena forjou o que se pressupunha ser a “humanização” da pessoa escravizada (GORENDER, 2016GORENDER, J. O escravismo colonial. 6. ed. São Paulo: Expressão Popular: Perseu Abramo, 2016. Disponível em: https://fpabramo.org.br/publicacoes/wp-content/uploads/sites/5/2021/11/Escravismo-Colonial-Web.pdf. Acesso em: 06 jun. 2022.
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). Por também ser propriedade de outro, “o escravo conseguiu reconhecimento como sujeito de delito e também como objeto de delito” (GORENDER, 2016, pGORENDER, J. O escravismo colonial. 6. ed. São Paulo: Expressão Popular: Perseu Abramo, 2016. Disponível em: https://fpabramo.org.br/publicacoes/wp-content/uploads/sites/5/2021/11/Escravismo-Colonial-Web.pdf. Acesso em: 06 jun. 2022.
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. 98), sofrendo sempre as penas mais severas. Esta penalização do negro como objeto e réu do direito penal compõe um elemento constitutivo do punitivismo brasileiro na contemporaneidade, via de regra mediado pela violência como principal método de expropriação.

Ainda que a trama do proibicionismo brasileiro e seu estatuto médico-legal não apontassem estruturas sólidas no século XIX, os pilares da medicina social e psiquiátrica e institucionalizavam junto à regulamentação dos fármacos (LIMA, 2009LIMA, R. de C. C. Uma história das drogas e do seu proibicionismo transnacional: relações Brasil-Estados Unidos e os organismos internacionais. 2009. Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Serviço Social, Rio de Janeiro, 2009.). No berço do estado punitivo brasileiro, os Juízes da Paz tinham como função, segundo a Lei de 1827, “por em custódia o bêbado, durante a bebedice” e “corrigir os bêbados por vícios turbulentos e meretriz escandalosa, que perturbam o sossego público, obrigando-os a assinar o termo de bem-viver” (TORCATO, 2016TORCATO, C. E. M. A história das drogas e sua proibição no Brasil: da Colônia à República. Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2016.). Já na capital do império, em 1830, foi sancionada a primeira normativa contra a maconha no Código de Posturas da Cidade do Rio de Janeiro, buscando garantir um controle sobre as práticas de pessoas escravizadas ou libertas que se acumulavam no centro da cidade (FIORE, 2005FIORE, M. A medicalização da questão do uso de drogas no Brasil: reflexões acerca de debates institucionais e jurídicos. In: VENÂNCIO, R. P.; CARNEIRO, H. Álcool e drogas na história do Brasil. São Paulo: Alameda, 2005. p. 257-290.).

As grandes modificações econômicas nos centros urbanos sinalizavam o reordenamento do Brasil na organização mundial do trabalho, que teve rebatimentos na composição dos traços das classes sociais no Brasil. É importante atentar que nessa transição, antes mesmo de 1888, conviveram por algum tempo trabalhadores escravizados e trabalhadores livres, ou ainda pessoas escravizadas que assumiam funções operárias (MOURA, 2020MOURA, C. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Editora Perspectiva S.A., 2020. E-book.). A manutenção do trabalho escravo em terras brasileiras retardava a expansão do mercado consumidor internacional e, consequentemente, reduzia as taxas de acumulação, neste caso, o fim do trabalho escravo no Brasil foi conduzido pela intervenção dos países de capitalismo central, baseadas na universalização do trabalho assalariado.

As pressões de âmbito internacional aliadas aos movimentos antiescravistas nacionais culminaram na abolição da escravatura no Brasil, em 1888, mas não somente. Clóvis Moura (1981)MOURA, C. Rebeliões da senzala: a questão social no Brasil. São Paulo: Ciências Humanas, 1981. destaca a importância primordial dos mecanismos de resistências e reações criados pelos povos negros escravizados como força dinâmica e atuante para a descontinuidade do sistema escravagista. Sem eles, as oligarquias agrárias poderiam ter resistido às transformações dos sistemas de forma ainda mais longínquas.

Na obra “A integração do negro na sociedade de classes” (2008), Fernandes destaca que no período transição para universalização do trabalho livre, não havia espaço nem emprego para o negro nas cidades urbanas — e seus comportamentos “modernos” — tampouco as cidades rurais lhe garantiam estabilidade social em meio ao tradicionalismo colonial. Para a elite agrária, havia uma incompatibilidade do negro com o trabalho assalariado diante da vulgarização de sua funcionalidade, aptos apenas para tarefas simples ou braçais, não seria possível torná-los técnicos, tampouco era viável que frequentassem a escola (GORENDER, 2016GORENDER, J. O escravismo colonial. 6. ed. São Paulo: Expressão Popular: Perseu Abramo, 2016. Disponível em: https://fpabramo.org.br/publicacoes/wp-content/uploads/sites/5/2021/11/Escravismo-Colonial-Web.pdf. Acesso em: 06 jun. 2022.
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). “Todo o processo se orientava, pois, não no sentido de converter, efetivamente, o escravo (ou o liberto) em trabalhador livre, mas de mudar a organização do trabalho para permitir a substituição do “negro” pelo “branco” (FERNANDES, 2008FERNANDES, F. A integração do negro na sociedade de classes (o legado da raça branca). São Paulo: Biblioteca Azul, 5 ed. 2008. E-book. [Não paginado]., [não paginado])”, e essa substituição contou com a investida massiva do projeto de embranquecimento do país.

Trata-se de uma particularidade à constituição da força de trabalho nos moldes do capitalismo dependente. Moura (1983)MOURA, C. Escravismo, colonialismo, imperialismo e racismo. Afro-Ásia, n. 14, p. 124-137, 1983. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/afroasia/article/download/20824/13425. Acesso em: 20 fev. 2023.
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adverte para a formação de uma “franja marginal” posta abaixo dos trabalhadores imigrantes brancos, uma franja melhor compreendida como “uma grande massa dependente de um mercado de trabalho limitado e cujo centro de produção foi ocupado por outro tipo de trabalhador, um trabalhador injetado” (MOURA, 1983, pMOURA, C. Escravismo, colonialismo, imperialismo e racismo. Afro-Ásia, n. 14, p. 124-137, 1983. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/afroasia/article/download/20824/13425. Acesso em: 20 fev. 2023.
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. 133), em um processo nítido de descarte desta população. Foi reservado ao negro o desemprego, a informalidade e as baixas condições de vida, espaços quase estagnados na exclusão e marginalização da divisão racial do trabalho (GONZALES, 2020).

As classes dominantes do Império, que se transformaram de senhores de escravos em latifundiários, estabeleceram mecanismos controladores da luta de classes dessas camadas de ex-escravos. Mecanismos repressivos, ideológicos, econômicos e culturais visando acomodar os ex-escravos nos grandes espaços marginais de uma economia de capitalismo dependente. As classes dominantes necessitavam para manter esses ex-escravos nessa franja marginal de um aparelho de Estado altamente centralizado e autoritário. Essa franja marginal foi praticamente seccionada do sistema produtivo naquilo que ele tinha de mais significativo e dinâmico. (MOURA, 1983MOURA, C. Escravismo, colonialismo, imperialismo e racismo. Afro-Ásia, n. 14, p. 124-137, 1983. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/afroasia/article/download/20824/13425. Acesso em: 20 fev. 2023.
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, 133, grifo nosso).

Em virtude disso, as intervenções proibitivas com foco no consumo de drogas das classes subalternas ocorreram em meio à consubstancial relação entre a ordem racial e social, onde as forças patrimoniais e colonialistas mantinham a lógica da desintegração do trabalho de pessoas escravizadas (FERNANDES, 2008FERNANDES, F. A integração do negro na sociedade de classes (o legado da raça branca). São Paulo: Biblioteca Azul, 5 ed. 2008. E-book. [Não paginado].).

A problemática da integração do negro correspondia à associação imperiosa das duas forças até então vigente. A medicina social, a psiquiatria e o direito penal foram direcionados pela criminologia racial e pela medicina eugenista. Um dos expoentes para a legitimação dessa aliança foram os estudos que estruturaram o racismo científico no século XIX, representado por nomes como o médico Raimundo Nina Rodrigues. O autor embasou seus ensaios na defesa de que o Código Penal deveria tratar as “raças inferiores”, leiam-se, negros, indígenas e “mestiços”, a partir de condenações penais mais rígidas que correspondessem aos níveis de evolução social dos “povos inferiores”, argumentando que eles estariam em outra fase do desenvolvimento intelectual e moral e, consequentemente, noções de justiça social e valores morais “selvagens”; estes seriam fatores que facilitariam inclusive o alcoolismo entre essas raças subjugadas (RODRIGUES, 2015RODRIGUES, M. F. Raça e criminalidade na obra de Nina Rodrigues: uma história psicossocial dos estudos raciais no Brasil do final do século XIX. Estudos e pesquisas em psicologia, v. 15, n. 3, p. 1119-1135, 2015.). Nesse caso, a miscigenação brasileira seria um grande entrave.

Quanto ao movimento eugenista, sua organização no Brasil foi pensada através da medicina social de bases europeias, e atentou para a educação moral das famílias em prol de sua necessária adaptação aos moldes do moderno capitalismo e da vida urbana (LIMA, 2009LIMA, R. de C. C. Uma história das drogas e do seu proibicionismo transnacional: relações Brasil-Estados Unidos e os organismos internacionais. 2009. Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Serviço Social, Rio de Janeiro, 2009.). A transição para o século XX, entretanto, remonta a tradição da higiene mental de influência francesa ao apresentar a noção de “anormalidades” da Teoria das Degenerências2, que ampliou o campo de interação da psiquiatria com a questão das drogas. No geral, Lima (2009, pLIMA, R. de C. C. Uma história das drogas e do seu proibicionismo transnacional: relações Brasil-Estados Unidos e os organismos internacionais. 2009. Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Rio de Janeiro, Escola de Serviço Social, Rio de Janeiro, 2009.. 158) afirma que:

A legitimação da prática médica condicionada ao monopólio da prescrição dos pharmacos e associada aos preceitos higienistas de “limpeza” e “ordenação” urbana, além da regulação do que é saudável física e moral para a família, parece ter formado determinações de natureza cultural, normativa e organizacional para o alinhamento do país aos primeiros marcos transnacionais de controle e regulação das drogas provocados pelos Estados Unidos no século seguinte.

É no século XX que o primeiro momento do proibicionismo aponta tendências locais em diálogo com outros países. Abdias do Nascimento (2016)NASCIMENTO, Abdias do. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Editora Perspectiva SA, 2016. menciona o embranquecimento como estratégia de genocídio da população negra ao levantar teorias da época que sustentavam a ideia de que a raça ariana — enquanto elemento superior — iria predominar ao longo do tempo no Brasil; o objetivo era “a erradicação da ‘mancha negra’ na população brasileira”, fato que se explica no investimento da recente nação nas políticas imigratórias e consequente recepção de imigrantes de “raça ariana”.

Apagar a “mancha negra” demandava estratégias econômicas, culturais, demográficas e ideológicas. Na lógica do embranquecimento da população brasileira, a cannabis — assim como a capoeira, as religiões de matrizes africanas e o samba — representava um mal da subalternidade negra, que precisava ser desassociado da embrionária nação brasileira, para não penetrar na cultura e nos valores da nova república e sua identidade nacional (SANTOS; SILVA; SILVA, 2021SANTOS, S. C. P. dos; SILVA, P. H. M. da; SILVA, F. A. da. O discurso médico-científico sobre a maconha no pós-abolição: o racismo científico como pressuposto para a emergência da ideologia proibicionista. Revista Maracanan, n. 27, p. 118-144, 2021.). Em concordância à análise, Moura (2020, [não paginado]) aponta elementos significativos associados à construção ideológica do proibicionismo no Brasil, ao concluir que:

A imagem do negro tinha de ser descartada da sua dimensão humana. De um lado havia necessidade de mecanismos poderosos de repressão para que ele permanecesse naqueles espaços sociais permitidos e, de outro, a sua dinâmica de rebeldia que a isso se opunha. Daí a necessidade de ser ele colocado como irracional, as suas atitudes de rebeldia como patologia social e mesmo biológica.

Em vista disso, os discursos médicos legitimados pelo racismo científico ressoaram na comunidade internacional, com o pioneirismo do Brasil ao propor a proibição da maconha na II Convenção do Ópio, em 1924, e proibir, pela primeira vez, o uso da erva. Para comprovar as investidas da intelectualidade médica em problematizar o uso de maconha, Santos (2021)SANTOS, S. R. C. dos. “É um caso da calamidade pública”: A questão de drogas em debate no Congresso Nacional (1964-1971). Revista Aedos, v. 12, n. 27, p. 522-541, 2021. resgata o trabalho do médico sergipano Rodrigues Dória, da Faculdade de Direito e Medicina, apresentado no Congresso Científico Pan-Americano, em 1915:

Dentre os males que acompanharam a raça subjugada, e como um castigo pela usurpação do que mais precioso tem no homem - a sua liberdade - nos ficou o vício pernicioso e degenerativo de fumar as sumidades floridas da planta aqui denominada fumo d’Angola, maconha e diamba, e ainda, por corrupção, liamba, ou riamba. (DÓRIA, 1958, p. 2 apud SANTOS, 2021, pSANTOS, S. R. C. dos. “É um caso da calamidade pública”: A questão de drogas em debate no Congresso Nacional (1964-1971). Revista Aedos, v. 12, n. 27, p. 522-541, 2021.. 526).

Na década de 1920, os movimentos antialcoólicos ou da temperança no Brasil — fomentados pela categoria médica — foram fundamentais para o posterior aumento de instituições de internação para alcoolistas em espaços públicos e privados. Torcato (2016, pTORCATO, C. E. M. A história das drogas e sua proibição no Brasil: da Colônia à República. Tese (Doutorado) - Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2016.. 276) afirma que os médicos higienistas, desvinculados da ordem religiosa, eram “verdadeiros militantes da temperança no Brasil”. No caso do álcool, a consolidação da medicalização legitimada pelo saber médico higienista passa a investir no processo de patologização do alcoolismo, associando o uso de álcool às mazelas das classes populares que precisariam ser disciplinadas em prol da tradição burguesa e do trabalho assalariado e industrial. No geral, o proibicionismo das drogas no Brasil teria sido promovido pelo discurso psiquiátrico, que transferiu “o modelo de combate às epidemias do sanitarismo para o campo do comportamento social, fortalecendo assim sua posição no interior do aparato estatal, através da medicalização do crime” (ADIALA, 2011, pADIALA, J. C. Drogas, medicina e civilização na primeira república. Tese (Doutorado) - Fundação Oswaldo Cruz, Casa de Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2011.. 24).

A suposta resolução de problemáticas sociais através da psiquiatria e patologização também serviu à intelectualidade brasileira que defendia a harmoniosa “democracia racial”. De forma acertada, Moura (2020)MOURA, C. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Editora Perspectiva S.A., 2020. E-book. afirma que as repercussões das ideias de Gilberto Freyre insistiram em apagar a contradição da escravidão na formação social do Brasil, mediante uma pseudo imparcialidade, típica do pensamento social brasileiro. Isenta de problemáticas estruturais, a percepção da realidade social que foi construída desobrigava-os a analisar a luta de classes, restando respostas e análises psicologizantes sobre a questão do negro na sociedade brasileira (MOURA, 2020MOURA, C. Sociologia do negro brasileiro. São Paulo: Editora Perspectiva S.A., 2020. E-book.), já que sob as lentes do mito da democracia racial, o apagamento dos conflitos raciais, pós-abolição é acompanhado pelo apassivamento do negro, que se realiza também pelo poder coercitivo do sistema penal.

Até então, é possível considerar a transição entre a escravidão e o trabalho livre e a consequente divisão racial do trabalho um marco para a sustentação ideológica dos pilares do proibicionismo no Brasil. Evidentemente, esses pilares possuem fundamento concreto, fruto da fusão entre as bases coloniais e escravocratas e a reestruturação do Brasil na economia mundial, processo que foi embebecido pelas teorias e tendências ideológicas dos países centrais. O século XX, portanto, remonta essa estrutura, garantindo-lhe legitimidade legal.

Proibições legais e capitalismo dependente

As mudanças que ocorrem nas primeiras décadas do século XX são fundadas pela era monopolista do capital, que para Fernandes (2006)FERNANDES, F. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. São Paulo: Editora Globo, 5. ed. 2006., implica na estruturação do capitalismo dependente brasileiro. A urgência da constituição do capitalismo dependente é acompanhada pela urgência da constituição e institucionalização da identidade nacional, que precisou contar com a dilatação do aparato estatal para sua profícua intervenção. Entretanto, a legitimidade desse processo só foi possível pela manutenção de característica do antigo regime colonial, reforçando intervenções que sequer contemplavam os princípios da “democracia burguesa”.

A primeira regulamentação nacional com vistas a combater o consumo de drogas no Brasil se deu com a aprovação do Decreto nº 4.294, de 1921. Inspirada na Convenção Internacional sobre o Ópio, o decreto puniu o comércio de “substância de qualidade entorpecente”, tais como cocaína, ópio, morfina e seus derivados, e criou estabelecimentos para internação de “intoxicados”. Mas foi no período Varguista que as ações proibitivas aumentaram. Decreto nº 20.930 de 1932 foi instituído passando a penalizar também o usuário, porém, diferenciando-lhe do crime do comerciante, denominado traficante. A legislação permitia o apenas com prescrição médica.

Ainda nesse período, foi criada a Comissão Nacional de Fiscalização e Entorpecentes, em 1936, e sancionado o Decreto-Lei nº 891 de 1938 ou Lei de Fiscalização de Entorpecentes, além de estender o quantitativo de drogas sob o estatuto de proibição, a lei estabeleceu o uso abusivo e a dependência como doença de notificação compulsória, passível de internação civil e interdição. A internação obrigatória de que trata seu Art. nº 29, refere-se à necessidade de tratamento pelos danos à saúde em função do consumo abuso das drogas, mas também quando for “conveniente à ordem pública”. Cabe ressaltar que a autoridade responsável por verificar a necessidade de internação era a polícia ou o Ministério Público, efetivando-se por determinação de um juiz. A partir da década de 1930, portanto, a proibição das drogas passa a ser retratada também como questão policial, precisamente respondida pela repressão (ADIALA, 2011ADIALA, J. C. Drogas, medicina e civilização na primeira república. Tese (Doutorado) - Fundação Oswaldo Cruz, Casa de Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, 2011.).

Após dois anos, através Decreto-Lei nº 2.848, o Decreto-Lei nº 891 foi incorporado ao Art. nº 281, do Código Penal de 1940. O artigo em questão, parte constitutiva do capítulo III, direcionado aos crimes contra a saúde pública, ao tratar do comércio clandestino ou facilitação de uso de entorpecentes, estabeleceu pena de um a cinco anos para qualquer atividade envolvendo entorpecentes sem autorização legal.

Diante do cenário apresentado no tópico anterior, cabe ressaltar que a era Vargas (1930-1945) dispôs de instrumentos legais significativos de consenso e coesão. Além de seguir a retórica que se construía no plano internacional sobre a proibição, o governo Varguista atuou na implementação de políticas socioeconômicas que respondessem ao processo de modernização conservadora, a partir de arranjos econômicos híbridos em que coexistiam “formas econômicas ‘arcaicas’ e ‘modernas’” (FERNANDES, 2006FERNANDES, F. A revolução burguesa no Brasil: ensaio de interpretação sociológica. São Paulo: Editora Globo, 5. ed. 2006.). O ordenamento de políticas sociais implementadas atuava na construção de uma cidadania regulada, que excluía e marginalizava o acesso de parte da população. A coexistência dessas formas econômicas repercutia na formação da classe trabalhadora brasileira, aos ex-escravos, indígenas, camponeses e demais pauperizados que não ocupavam espaços na cadeia produtiva da industrialização brasileira, restavam o desemprego, a informalidade, os riscos compelidos aos mocambos e as formas coercitivas de regulação social. Não é surpresa, portanto, tamanho investimento legal para que a questão das drogas tornasse questão de polícia3.

Mais tarde, durante a ditadura militar, alguns contornos são dados à política de drogas brasileira. É importante lembrar que os arranjos do golpe empresarial-militar de 1964 sofreu a intervenção dos interesses norte-americana, sustentados pelo enredo da soberania nacional. Destaca-se que a redação da Lei nº 4.451, de 1964, provocou mudanças que passaram a ser consideradas um novo momento do proibicionismo. A Lei nº 385, de 1968, sancionada em plena ditadura militar, alterou o Art. nº 281 do Código Penal e no inciso primeiro equiparou usuário a traficante, atribuindo-lhes penas semelhantes.

Sabe-se que a década de 1970 marcou a consolidação programática do proibicionismo. A famosa proposta ditada pelo ex-presidente dos EUA Richard Nixon (1969-1974) firmava as drogas como “inimigo número um” do país, sustentando a chamada “guerra às drogas”, e a disseminação dessas ideias, enquanto paradigma ideológico, contou com a contribuição do governo Ronald Reagan (1981-1989), para a expansão axial do que se consolidou como política de encarceramento em massa.

O proibicionismo de matriz norte-americana foi não só incorporado, como impelido aos países latino-americanos. As investidas desse projeto se justificam pela lógica imperialista de intervenção e monopólio americano, baseadas em supostas estratégias de proteção nacional e transnacional. Neste caso, é no programa de Estado supostamente democrático dos EUA que o proibicionismo executa uma agenda de restrição de liberdade justificada pela defesa da própria democracia burguesa, a partir da administração de discursos voltados para a defesa da paz social, das instituições e contra a violência e a corrupção associada ao narcotráfico (RODRIGUES, 2002RODRIGUES, T. A infindável guerra americana: Brasil, EUA e o narcotráfico no continente. São Paulo em Perspectiva, v. 16, p. 102-111, 2002. Disponível em: https://www.scielo.br/j/spp/a/yZyxgckKF6Ljzc3gprjhgkF/?lang=pt. Acesso em: 25 nov. 2022.
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).

No Brasil, a “matriz proibicionista” americana facilmente se ajustou ao conservadorismo oligárquico brasileiro. Foi na década de 1970 que o Estado brasileiro passou a atuar mais fortemente na perseguição aos consumidores e comerciantes de drogas proibidas. Vale lembrar que a acepção dessa agenda se desenrola em aspectos geopolíticos reordenados entre as décadas de 1970, 1980 e 1990, que moldaram o processo de favelização e da chegada do narcotráfico nas economias de países periféricos, principalmente latino-americanos. Nos anos de chumbo, o posicionamento nutrido desde o final do século XIX com relação às drogas passou a ser associado, com base nas intervenções americanas, a “costumes comunistas”:

A toxicomania comunista foi um argumento construído por frações civis e militares durante a ditadura. No contexto da Guerra Fria, essas representações reproduziam uma tradição anticomunista moral e conspirativa atualizada pela chamada “revolução nos costumes”. Esses elementos alimentaram uma reação contrassubversiva e conservadora, convergindo com as moralidades em torno do proibicionismo, que associava a droga à promiscuidade sexual e à destruição da família. (BRITO, 2021, pBRITO, A. M. F. A droga da subversão: anticomunismo e juventude no tempo da ditadura. Revista Brasileira de História, v. 41, p. 39-65, 2021.. 41).

O princípio da “lei e ordem” pregado na ditadura civil-militar era pautado com forte apelo da participação da sociedade civil na denúncia de “irregularidades”. Este aspecto pode ser observado na Lei nº 5.726, de 1971, que já em seu artigo primeiro institui o dever da sociedade em colaborar no combate ao consumo e tráfico de drogas. Ademais, Barros e Peres (2012) apontam que as denúncias podiam ser realizadas mesmo sem a posse de qualquer droga, ou seja, sem prova material, e “qualquer policial, sem ordem judicial, podia prender uma pessoa e deixá-la incomunicável com sua família ou advogado por trinta dias” (BARROS; PERES, 2012, p. 14-15).

A Lei nº 6.368, de 1976, passou a estabelecer penas diferenciadas para traficantes e usuários. No entanto, a distinção entre eles se deu de forma enviesada, já que o enquadramento da pena enquanto usuário ou traficante ficou, a cargo da autoridade judicial por intermédio das declarações feitas pela polícia, o que se constituía um problema, sobretudo, pela funcionalidade racista e classista destas instituições.

No geral, tem-se a compreensão de que o mito da democracia racial foi a linha defendida pela ditadura militar. Em um primeiro momento, a retórica da harmonia entre as raças considerava as movimentações e organizações negras como inexpressivas, defendendo que o racismo era uma invenção da esquerda, entretanto, as mobilizações de lideranças e intelectuais negros incomodaram a ponto de provocar posteriores intervenções violentas frente qualquer posição ou mobilização contrária à ordem da “democracia racial” (PIRES, 2018PIRES, T. R. de O. Estruturas intocadas: Racismo e ditadura no Rio de Janeiro. Revista Direito e Práxis, v. 9, p. 1054-1079, 2018.).

No processo histórico que atualiza as bases programáticas do proibicionismo, a função social da “guerra às drogas” na sociedade de classes serve às atualizações globais do neoliberalismo, na recusa do Estado a enfrentar as expressões da “questão social”. Wacquant (2001, pWACQUANT, L. As prisões da miséria. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.. 80) afirma que “a atrofia deliberada do Estado social corresponde a hipertrofia distópica do Estado penal”, analisando a política de encarceramento em massa como ferramenta programática do neoliberalismo, em que se torna necessário legitimar o controle social, através de uma suposta legalidade pautada em pressupostos de classe, raça e morais-cristãs. Esses aspectos posicionam a guerra às drogas como multiplicadora de dispositivos ultra repressiva (WACQUANT, 2001WACQUANT, L. As prisões da miséria. Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.). Apesar de Wacquant ter analisado a política de encarceramento em massa dos EUA, o percurso histórico apresentado mostra que a história do Brasil é cercada pela criminalização e pelo punitivismo de raízes coloniais, escravocratas e ditatoriais, e pela vigilância do trabalho explorado e colonizado. Nesse sentido, o Estado brasileiro sempre foi categoricamente o Estado penal.

Na relação entre o racismo estrutural brasileiro e o proibicionismo contemporâneo, Costa e Mendes (2022)COSTA, P. H. A. da; MENDES, K. T. “Negro: de bom escravo a traficante”. Contribuições de Clóvis Moura à crítica da Guerra às Drogas no Brasil. Sociedade e Estado, v. 37, p. 511-530, 2022. recorrem ao pensamento mouriano para entender a “guerra às drogas” como mais um “mecanismo de barragem”. Noutras palavras: a passagem — e não superação — do sistema escravagista implica até hoje em mecanismos de reatualização e manutenção dos estratos sociais e de classes que resguardando o negro nos mais precários espaços sociais, políticos e econômicos:

De maneira mais evidente, temos na e a partir da GD a edificação de todo um aparato repressor, criminalizante e de extermínio que tem um suposto combate às drogas como justificativa, mas que, no fundo, volta-se majoritariamente contra a população negra (também jovem, dos estratos mais pauperizados da classe trabalhadora e periférica), construída ideologicamente como responsável por tais drogas, na forma do traficante. (COSTA; MENDES, 2022, pCOSTA, P. H. A. da; MENDES, K. T. “Negro: de bom escravo a traficante”. Contribuições de Clóvis Moura à crítica da Guerra às Drogas no Brasil. Sociedade e Estado, v. 37, p. 511-530, 2022.. 514).

Os caminhos posteriores do proibicionismo no Brasil são costumeiramente revisados pelas literaturas do campo das drogas. De toda forma, as razões que determinam a bipartição entre venda e consumo, comerciante do tráfico e o usuário — “o marginal e o doente” — apresentam uma unidade antagônica que ampara a criminalização da pobreza, a exclusão social e o sofrimento no processo de subjetivação do consumo de drogas, a partir de critérios geográficos, marcadamente raciais e de classe. Neste caso, se o controle penal das classes subalternas sempre compôs a agenda do sistema capitalista como parte organicamente necessária para repressão da luta de classes e gestão da pobreza, na contemporaneidade a crise do capital demanda por estratégias reatualizadas de punição, que se expandem no neoliberalismo em resposta à população excedente, ao desemprego estrutural e acirramento das desigualdades (DURIGUETTO, 2017DURIGUETTO, M. L. Criminalização das classes subalternas no espaço urbano e ações profissionais do Serviço Social. Serviço Social & Sociedade, p. 104-122, 2017.). O aumento do encarceramento é apenas um dos diversos fatores que englobam o paradigma proibicionista, os rebatimentos do proibicionismo também envolvem mortes, prisões superlotadas, estigma aos usuários, violências em virtude do tráfico de drogas, dificuldades de acesso à saúde, dentre outros.

Considerações finais

A construção do proibicionismo reúne pilares importantes da constituição do Estado burguês brasileiro, que se fundem às formas coloniais e escravocratas de quase quatro séculos na história do país, e os arranjos desse paradigma são delineados pelo racismo e o punitivismo que resguarda a proibição das drogas na contemporaneidade.

No bojo das determinações históricas expostas, o processo de colonização escravagista resguarda os tensionamentos contemporâneos da questão do negro e das “raças indesejadas” desde a marginalização do negro na sociedade de classes, à constituição da identidade nacional do capitalismo dependente, já que os padrões tradicionalistas penetraram na burguesia que ascendeu entre os finais do século XIX e durante o século XX. Diante do exposto, é perceptível que há uma problemática fundamental na relação entre o proibicionismo e o racismo no Brasil: a eminência do trabalho livre, pós-abolição e a forma de integração do negro na constituição econômica e produtiva do capitalismo dependente, desde o período de transição. Ou seja, há um atravessamento histórico entre a divisão racial do trabalho, a exclusão delegada à população negra na ordem social do capitalismo brasileiro, e a sustentação do racismo científico, da medicina social eugenista junto ao higienismo mental da psiquiatria e do Direito Penal, como marco embrionário do proibicionismo brasileiro. O resultado disso é a criminalização da pobreza que se organiza em torno do sistema de racialização, e a reatualização da imagem do usuário de drogas como degenerado moral e criminoso, do negro demonizado vinculado às classes perigosas.

Com base nesses marcos, a questão do negro na sociedade brasileira passa por estratégias de inferiorização, apagamento e apaziguamento no processo de miscigenação brasileira, questões bem pontuadas por Clovis Moura e Abdias do Nascimento. Como desde o princípio, a solução das elites brasileiras para os escravos e negros sempre foi a penalização e criminalização, como expôs Gorender, a questão da proibição das drogas perpassa respostas legais de interdição, lidas como questão de polícia ou de doença. Não à toa, o proibicionismo que atualmente se consolida como uma agenda de morte, encarceramento e sofrimento psicossocial para as populações pretas e periféricas no Brasil, é fruto da manutenção histórica da marginalização racial e social das classes subalternas ao longo dos séculos.

Vale destacar que a revisão histórica da constituição do proibicionismo no Brasil e sua ascensão no mundo atende às estruturas economicamente postas nas relações internacionais, geralmente mediadas pelos EUA, ainda que reordenados para atender as expectativas das elites burguesas no Brasil e as necessidades do capital. Não obstante, a sistemática intervenção do Estado brasileiro na questão das drogas é substancialmente ordenada no período da ditadura militar, através da interlocução com a política de segurança dos EUA e a consolidação ideológica do proibicionismo de matriz estadunidense.

Por fim, descamar a natureza do racismo estrutural é também um exercício para superação da estrutura do capitalismo e seus arranjos de manutenção do racismo (enquanto sistema). Inevitavelmente, essa natureza aponta para debates rotineiramente ofuscados e largados às polêmicas, que não serão aprofundados neste texto, mas possuem fundamental vazão para o debate, como a reivindicação do abolicionismo penal, a reparação social e histórica das vidas interditadas pela proibição às drogas, a descriminalização e legalização das drogas e a desmilitarização ou encerramento das forças policiais.

BARROS, A.; PERES, M.Proibição da maconha no Brasil e suas raízes históricas escravocratas Revista Periferia, v. 3, n. 2 São Paulo, 2012 Disponível em: http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/periferia/article/viewFile/3953/2742 Acesso em: 02 mar. 2020

Agradecimentos

Ao aprendizado compartilhado na disciplina de Formação Histórico-Social Brasileira do PPGSS-UFPE, que permitiu conhecer e aprofundar parte das referências presentes neste texto.

  • Notas

    1 A análise sobre o uso de substâncias psicoativas entre os povos originários requer leituras também particulares, que provocam as estruturas do colonialismo e sua imposição cultural da suposta civilidade clássica europeia. Como dito, os aspectos culturais, ritualísticos e religiosos relacionados aos saberes e manuseios de substâncias psicoativas não foram isentos de ataques, entretanto, há se diferenciar as formas de consumo de drogas da utilização cultural dessas substâncias nas sociedades contemporânea. Estamos dizendo, portanto, que os diversos significados culturais e religiosos atribuídos a essas substâncias continuam a existir em muitas realidades dos povos tradicionais. Um dos mais conhecidos exemplos é a utilização ancestral da coca - matéria-prima da cocaína - em chás ou mesmo na folha mastigada por comunidades indígenas nos Andes.
    2 A teoria da degeneração foi basilar para a eugenia e a psiquiatria tradicional, onde a “loucura, o “alcoolismo”, os “vícios”, e a “vagabundagem” eram lidos como degenerações hereditárias relacionadas ao psíquico, que precisariam ser retiradas das cidades. A limpeza social também estava relacionada aos centros urbanos, cortiços e ao próprio proletariado.
    3 Sobre a questão policial e a exclusão do trabalhador negro, é de importância fundamental a observação de Lélia Gonzalez (2020, pGONZALEZ, L. Por um feminismo afro-latino-americano. São Paulo: Editora Schwarcz-Companhia das Letras, 2020.. 46): “Um dos mecanismos mais cruéis da situação do negro brasileiro na força de trabalho se concretiza na sistemática perseguição, opressão e violência policiais contra ele. Quando seus documentos são solicitados (fundamentalmente a carteira profissional) e se constata que está desempregado, o negro é preso por vadiagem; em seguida, é torturado (e muitas vezes assassinado) e obrigado a confessar crimes que não cometeu. De acordo com a visão dos policiais brasileiros, “todo negro é um marginal até prova em contrário. Claro está que esse consenso setorial não é uma causalidade”.
  • Agência financiadora Programa de Excelência Acadêmica da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível (CAPES). Processo n° 88887.615328/2021-00, de 01/04/2021 à 30/09/2023.
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participação Não se aplica.
    Consentimento para publicação Não se aplica.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    23 Out 2023
  • Data do Fascículo
    Sep-Dec 2023

Histórico

  • Recebido
    28 Fev 2023
  • Aceito
    29 Maio 2023
  • Recebido
    04 Jul 2023
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