Open-access Por uma nova gramática da vida social: o conceito ampliado de capitalismo e socialismo de Nancy Fraser

REVIEW: Towards a new grammar of social life: Nancy Fraser's expanded concept of capitalism and socialism

FRASER, Nancy. Capitalismo canibal: como nosso sistema está devorando a democracia, o cuidado e o planeta e o que podemos fazer a respeito disso.São Paulo: Autonomia Literáriaa, 2024

Referência na teoria crítica contemporânea e uma das principais teóricas da segunda onda do feminismo nos Estados Unidos, Nancy Fraser enfrenta as questões fundamentais do século XXI para a superação do capitalismo em seu livro Capitalismo Canibal: como nosso sistema está devorando a democracia, o cuidado e o planetae o que podemos fazer a respeito disso. O livro foi publicado originalmente em inglês (Cannibal Capitalism, Verso) no ano de 2022, em espanhol (Capitalismo Caníbal, Siglo Veintiuno), italiano (Capitalismo Cannibale, TempiNuovi) e alemão (Der Allesfresser, Suhrkamp Verlag) no ano seguinte e, em 2024, foi lançado no Brasil pela editora Autonomia Literária. A proposta central de reflexão do livro é simples em seu enunciado e complexa em seus desdobramentos: lançar um conceito ampliado de capitalismo, apresentado na ideia de Capitalismo Canibal, que forneça ferramentas teóricas a partir e para além de Marx para entender, desde dentro, a crise atual do capital como uma crise geral da totalidade da ordem social e, assim, ser capaz de reimaginar o socialismo. Dessa reflexão, surge o ponto de partida de um debate apenas pincelado pela autora e cujo escrutínio ainda está por ser feito: o que deve significar a luta pelo socialismo no século XXI?

Já no prefácio do livro a autora propõe uma ideia ampliada de capitalismo, considerando-o não somente como um sistema econômico, mas como um tipo de sociedade, uma ordem social institucionalizada. Distanciando-se de uma visão apartada das esferas que compõem o sistema capitalista, Fraser argumenta que o capitalismo é mais do que uma forma de organizar a produção e a troca econômica, sendo também uma forma de “organizar a relação de produção e troca com suas condições não econômicas de possibilidade” (Fraser, 2024, p. 128–129), quais sejam: a reprodução social, a natureza não humana e os bens comuns.

Nesse aspecto, a autora fornece uma explicação em entrevista que concebe ao Jacobin Itália, ao elucidar que a noção ampliada de capitalismo permite uma visão ampliada de luta de classes. Nesse sentido, a luta antirracista, feminista e ecológica são componentes da luta de classes, embora não se expressem estritamente nos locais de trabalho. É esta visão alargada da luta anticapitalista, pontua, que criará as condições para a promoção das alianças necessárias para o desmantelamento desta ordem social e para o exercício de reimaginação do socialismo (Fraser; Mosquera, 2021).

Em sua visão, essas condições subjacentes têm sua própria gramática e temporalidade, mas se relacionam com a sociedade capitalista que, afinal, compreende uma economia que depende da política, uma arena de produção que depende da reprodução, um conjunto de relações sociais de exploração que depende da expropriação, e um campo socio-histórico de atividade humana que depende de um substrato material de natureza não humana. É na fronteira entre essas articulações e não somente no centro soberano da produção econômica enquanto lócus fundamental da luta de classes — polemiza a autora no primeiro capítulo do livro — que surge a crise geral dessa ordem social. Essa crise se expressa, ao mesmo tempo, como uma crise econômica, do cuidado, social, ecológica e política. Em outras palavras, é na relação entre o funcionamento do sistema econômico e suas condições de possibilidades, isto é, no processo de expropriação permanente, na esfera da reprodução, na relação com a natureza e com a política que as crises recorrentemente se expressam e que, dialeticamente, os repertórios crítico-políticos emergem, dando vida a movimentos de resistência que a autora intitula lutas de fronteira. Como pontuou Butler (2023), ao identificar essas lutas, Fraser elabora predicados para uma ação política radical, lançando um “apelo explícito por um projeto político”.

Cada uma dessas crises se apresenta como forma de canibalização do capital, uma vez que, ao mesmo tempo que depende das bases naturais, políticas e sociais de sua própria existência, ele as devora. Daí a imagem de um Ouroboros, figura de uma serpente que morde a própria cauda, ilustrar as diferentes capas do livro em suas versões inglesa, espanhola, italiana, alemã e brasileira. A ideia de canibalização, que sugere que o capitalismo “é um grande banquete institucionalizado, onde o prato principal somos nós” (Fraser, 2024, p. 14), organiza os capítulos 2, 3, 4 e 5.

No capítulo 2, a autora explica a tendência inerente do sistema capitalista em racializar populações para melhor canibalizá-las. No capítulo 3, explora o sistema devorador dos cuidados. No capítulo 4, expõe as dinâmicas predatórias entre natureza e humanidade e, no capítulo 5, decifra os movimentos pelos quais o capitalismo deglute o poder público e a democracia. A autora não entrega uma descrição abstrata dos processos ao longo dos capítulos, ao contrário, localiza-os nos diferentes momentos do regime de acumulação: no capitalismo mercantil, do século XV ao XVIII; no colonial-liberal, do século XIX; no capitalismo monopolista administrado pelo Estado, iniciado no período entreguerras e consolidado logo após a Segunda Guerra Mundial; e no atual momento marcado pela financeirização e pelo neoliberalismo.

Na discussão que relaciona capitalismo com opressão racial, presente no segundo capítulo, a autora argumenta que a sociedade capitalista abriga uma base estrutural de opressão racial, o que significa dizer que o próprio processo de exploração, típico da arena da produção, depende da expropriação econômica e política. A primeira aparece no trabalho expropriado, isto é, sujeito à dominação sem estar, necessariamente, mediada por um contrato salarial. Neste sentido, o processo de “acumulação por outros meios” (Fraser, 2024, p. 64) — expressão utilizada pela autora para caracterizar a expropriação econômica dos outros racializados — confisca recursos e capacidades humanas para incorporá-las ao processo de expansão do valor. Já a segunda surge da sujeição política de estratos de pessoas subjugadas e não livres que não estão no espectro da proteção estatal e que são racialmente marcadas como violáveis. A luta por emancipação, defende a autora, requer a abolição conjunta da simbiose exploração e expropriação, uma saída que está na construção de alianças inter-raciais amalgamadas pelo anticapitalismo, mesmo processo que, em outros termos, Asad Haider (2019) chamou de “universalidade insurgente”, que “não existe em abstrato [...] é criada e recriada no ato de insurgência, o qual não reivindica a emancipação unicamente para aqueles que compartilham minha identidade, mas para todos.” (Haider, 2019, p. 148).

O projeto de emancipação pressupõe, assim, que a crise geral dessa ordem social institucionalizada não se resolverá com modificações nas políticas sociais. Esse argumento se entrelaça com os destinos do feminismo e sua ambivalente relação com a social-democracia, argumento que a autora desenvolve à exaustão em seu livro Destinos do Feminismo: do capitalismo administrado pelo Estado à crise neoliberal, cuja edição em português, pela editora Boitempo, é de 2024. Na obra aqui em questão, Fraser discute resumidamente no terceiro capítulo, que o capitalismo administrado pelo Estado financiou e alargou os direitos sociais no centro capitalista, aliviando as pressões materiais sobre a vida familiar às custas da exclusão política das periferias, das populações rurais e das mulheres negras. Ademais, reforça a autora, os ganhos da reprodução social do norte global se deram por meio de uma democracia social que consolidou e institucionalizou as concepções androcêntricas de família e trabalho, naturalizando a heteronormatividade e o binarismo de gênero e eliminando a contestação política das desigualdades associadas a cada um desses aspectos. Fraser insiste, assim, que o capital também foi um devorador de cuidados, mesmo quando a proteção estatal aliviou a reprodução social. Agora, em tempos de capitalismo neoliberal e financeirizado, o desinvestimento público promove a mercantilização da reprodução social, gerando uma perversa combinação entre mercado e emancipação que o neoliberalismo progressista não se cansa de celebrar.

Além de o capitalismo canibalizar a reprodução social e expropriar as populações racializadas, também desestabiliza suas próprias condições ambientais e políticas de possibilidades. No quarto capítulo, a autora expõe a relação canibal e extrativa do capital com a natureza: o capital consome cada vez mais riqueza biofísica enquanto nega as externalidades ecológicas. O capitalismo, assim, devora seus próprios órgãos vitais, pois precisa da natureza, mas a deprecia. Da mesma forma, argumenta a autora, no quinto capítulo, os imperativos da acumulação do capital dependem dos poderes públicos (regimes jurídicos, forças repressivas, infraestrutura e organismos de regulação), mas os desestabilizam, gerando uma crise democrática, ou melhor, da promessa democrática, como bem pontuou Prado (2023). Depois de explicar como isso ocorreu ao longo das diferentes etapas do capitalismo, Fraser destaca que, na fase atual, a crise política se manifesta no poder que o capital financeiro exerce ao disciplinar o Estado, minando sua capacidade de dar respostas aos problemas sociais. Mas, ao se utilizar da dinâmica da dívida para sujeitar o poder público, o capital também gera uma crise de governabilidade democrática, o impossibilitando de aliviar as crises ecológica, sociorreprodutiva e econômica.

A questão é que essas crises não estão isoladas, afinal, a reprodução social está intimamente ligada com a reprodução ecológica. É na catástrofe, como os brasileiros assistiram extasiados em Brumadinho (2019), na região serrana do Rio de Janeiro (2011 e 2022), e no Rio Grande do Sul (2024), que a face invisibilizada da reprodução social emerge, impondo tensões pesadas ao cuidado e à provisão social de corpos e psiques devastados pela ecodepredação. Ao mesmo tempo, é ao poder público que as populações recorrem quando as ameaças de danos ambientais se tornam iminentes, evidenciando que a articulação natureza-economia é política. Isso não somente porque é o Estado que socorre, mas também porque é ele que supre as forças jurídicas e militares que possibilitam que o capital exproprie as riquezas naturais a baixo custo. Assim, ainda que o sistema busque separar a política da economia, e a natureza e o cuidado da política, a crise geral desta ordem social insiste em reuni-las.

Como uma crise dessa magnitude não ocorre todos os dias, a autora defende que estamos diante de uma encruzilhada histórica e não de mais uma crise de desenvolvimento do atual regime de acumulação que poderia ser superada por um novo desenho capitalista. Seu desfecho passa pela resposta à pergunta: “O que deveria significar o socialismo no século XXI?”. Fraser não ousa respondê-la, mas, no sexto e último capítulo do livro, fornece pistas para pensar uma solução emancipatória para a crise geral desta ordem social. O ponto fundamental, para ela, está em como a esquerda conseguirá colocar em questão a forma como a gramática da vida social está organizada, isto é, os limites entre economia e política, sociedade e natureza, trabalho remunerado e atividades de cuidado. Embora seja justamente na coragem de propor esta reflexão a partir de um conceito ampliado de capitalismo onde reside a contribuição fundamental do livro, para Herb et al. (2023) o último capítulo não passa de uma simples repetição de apelos à inclusão: o socialismo deve superar os jogos de soma zero que tiram da natureza, do poder público e da reprodução social o que eles dão à produção, colocando essas dimensões em primeiro plano; deve democratizar o desenho institucional para a elaboração política e o controle sobre o excedente social. Fraser pontua, entretanto, no mesmo capítulo, que reimaginar o socialismo é uma tarefa ainda a ser feita, no decurso da luta, em esforços combinados de militantes, teóricos e teóricas, com pensamento crítico e organização política.

Criticando as interpretações liberais e, ao mesmo tempo, distanciando-se do marxismo do passado, sem negar os aportes fundamentais de O Capital (Herb et al., 2023), Fraser realiza uma tentativa ambiciosa de contribuir para uma nova gramática da luta social, descrevendo o processo de canibalização das condições de possibilidades de acumulação para além da esfera econômica. É, portanto, uma leitura imprescindível para todos e todas que se perguntam qual a linha que irá costurar, no campo democrático e anticapitalista, as lutas de fronteira com as classes trabalhadoras no século XXI, forjando um projeto alternativo à sociabilidade canibal.

Agradecimentos

A autora agradece à Leonardo Dias Nunes e Patrícia Rocha Lemos pelo debate e leitura atenta da resenha.

  • Agência financiadora
    Não se aplica.
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participação
    Não se aplica.
  • Consentimento para publicação
    Eu, autora, autorizo a publicação desta resenha.

Referências

Editado por

  • Editores Responsáveis
    Michelly Laurita Wiese – Editora-chefe
  • Fabiana Negri – Comissão Editorial

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Dez 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    04 Jun 2024
  • Aceito
    16 Set 2024
  • Revisado
    07 Out 2024
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