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Ideologia e alienação: uma relação necessária

Resumo

Este artigo resulta de uma pesquisa1 1 Trata-se de desdobramentos da investigação que a autora vem desenvolvendo após o seu doutorado, cuja metodologia tem sido a análise imanente de texto. voltada para a ideologia e a alienação enquanto complexos sociais presentes no mundo dos homens e para as determinações fundamentais que conectam essas duas categorias no pensamento e na práxis humana. Objetiva refletir sobre seus fundamentos ontológicos e funções na sociedade e toma como principal referência o pensamento de Georg Lukács (2013) em Para uma Ontologia do Ser Social. Estruturado em dois momentos distintos e articulados, expõe sobre ideologia, suas bases fundamentais e sobre alienação como fenômeno também ideológico, particularmente quando se trata das reificações e sua relevância para a crítica ao capitalismo.

Palavras-chave:
Ideologia; Alienação; Vida cotidiana; Capitalismo

Abstract

This article results from a research1 1 These are unfolding of the research that the author has been developing after her doctorate, whose methodology has been immanent text analysis. focused on ideology and alienation as social complexes present in the world of men, and on fundamental determinations that connect these two categories in human thought and praxis. The study aims to reflect on the ontological foundations and roles in society of ideology and alienation, based on the thought of Georg Lukács (2013) in his work Para uma Ontologia do Ser Social [Toward the Ontology of Social Being]. The article is structured in two distinct and connected moments, discussing first ideology and the fundamental base of the concepts. Then, the work debates alienation as an ideological phenomenon, particularly when it comes to reifications and their relevance to the critique of capitalism.

Keywords:
Ideology; Alienation; Daily life; Capitalism

Introdução

Muitas$são as publicações sobre ideologia e alienação, não por outro motivo senão pela importância que elas detêm na análise das diferentes sociedades, até mesmo das sociedades primitivas. O rigor teórico marxiano das postulações de Lukács (2013Lukács, G. (2013). Para uma ontologia do ser social II [Toward the ontology of social being II] (N. Schneider, Trans.). São Paulo, Brazil: Boitempo.) em Para uma Ontologia do Ser Social o conduz a uma análise em que o trabalho assume centralidade enquanto fato básico fundamental, originalmente portador de um pôr teleológico, determinação apropriada por Marx (1988Marx, K. (1988). O capital: Crítica da economia política [Capital: Critique of political economy] (R. Barbosa & F. R. Kothe, Trans., 3rd ed., Vols. 1-3). São Paulo, Brazil: Nova Cultural.) em O Capital, na distinção que faz entre o pior arquiteto e a melhor abelha. No trabalho, fenômeno fundante de toda práxis social, inclusive da práxis econômica, o pôr teleológico só se torna um ato teleológico autêntico quando da sua realização material. Por outro lado, a cadeia causal - parte material do trabalho - posta teleologicamente em movimento, jamais surgiria a partir da causalidade do ser natural2 2 As leis da natureza jamais dariam origem a uma mesa, por exemplo, ou qualquer outra objetividade social. , o que não nega que nela possam se tornar ativos momentos causais naturais, existentes em si mesmos.

Não há em Lukács (2013Lukács, G. (2013). Para uma ontologia do ser social II [Toward the ontology of social being II] (N. Schneider, Trans.). São Paulo, Brazil: Boitempo.) nenhum dualismo metodológico em que a economia comparece de modo mecânico como uma legalidade necessária, desvinculada do campo da superestrutura, no caso, do campo da ideologia. Os pores teleológicos que estão na base da ideologia, muitas vezes mediados de forma bastante complexa pela divisão do trabalho, embora tenham também um caráter teleológico-causal, se diferenciam daqueles do trabalho na medida em que os fins que os provocam e que os realizam não se dirigem diretamente ao metabolismo da sociedade com a natureza, mas pretendem influenciar outras pessoas num determinado sentido, levá-las a um pôr teleológico desejado. Estes últimos, cuja função é dirigir-se à consciência de outros homens, são denominados por Lukács (2013) de pores teleológicos secundários, justamente porque diferem do trabalho, por teleológico primário, cuja função central é caracterizar-se como uma ação da consciência sobre a materialidade objetiva da natureza.

O objeto sobre o qual o pôr teleológico que visa influenciar a consciência de outra pessoa, nem de longe se equipara ao do trabalho propriamente dito, no qual, conforme assegura Lukács (2013Lukács, G. (2013). Para uma ontologia do ser social II [Toward the ontology of social being II] (N. Schneider, Trans.). São Paulo, Brazil: Boitempo.), só entra em cogitação uma apreensão correta ou incorreta de conexões ontológicas da natureza; diferentemente, quando se trata de influenciar a consciência de outros homens o material é qualitativamente imprevisível quanto mais mediado for. Contudo, existe um elemento em comum decisivo nos dois casos: o êxito ou o fracasso dos pores teleológicos dependem do conhecimento que se tem da realidade a ser transformada, se o sujeito que põe é capaz de proceder corretamente de modo a que as forças a serem postas em movimento atualizem de modo desejado as cadeias causais que lhes são imanentes.

Esses fundamentos ontológicos gerais também se fazem presentes na alienação, aqui entendida como um processo de desumanidade socialmente construído pelos homens no cotidiano da vida em sociedade. No capitalismo, conforme priorizado neste artigo, observa-se a aparência de um automovimento das coisas e não de atos da práxis humana; é assim que as mercadorias aparecem no processo de troca, como se por si mesmas pudessem fazer qualquer movimento, quando na verdade seu movimento pressupõe relações entre compradores e vendedores. Antes de Lukács, Marx (1988Marx, K. (1988). O capital: Crítica da economia política [Capital: Critique of political economy] (R. Barbosa & F. R. Kothe, Trans., 3rd ed., Vols. 1-3). São Paulo, Brazil: Nova Cultural.) já havia dissolvido essa aparência reificadora em atos teleológicos prático-humanos, quando afirma que as mercadorias não vão sozinhas ao mercado trocar-se umas pelas outras.

Considera-se o tema da maior importância, haja vista que a crítica ao capitalismo comporta necessariamente uma análise sobre as formas de alienação por ele engendradas e ao seu caráter ideológico, conforme as formulações de Lukács (2013Lukács, G. (2013). Para uma ontologia do ser social II [Toward the ontology of social being II] (N. Schneider, Trans.). São Paulo, Brazil: Boitempo.). Tanto a alienação quanto a ideologia nascem da vida cotidiana e a ela remetem, razão pela qual o cotidiano se põe nessa relação como médium entre a estrutura econômica geral da sociedade e a dos seres humanos.

Tomando por base essas reflexões, o artigo aqui apresentado tem por objetivo trazer à luz essas categorias, seus fundamentos ontológicos, suas determinações e conexões que as relacionam entre si. O texto está estruturado em dois momentos distintos e articulados. Num primeiro momento, expõem-se sobre ideologia, suas bases fundamentais e, em seguida, sobre alienação como fenômeno também ideológico, particularmente quando se trata das reificações, enquanto modo de ser das alienações no capitalismo, aspecto também presente na ontologia lukacsiana.

A escolha do tema resulta da pesquisa que vem sendo realizada sobre o pensamento de Lukács e sua contribuição à crítica ao ser social burguês.

Ideologia e suas bases ontológicas

A reflexão lukacsiana não apenas sobre ideologia, mas em toda Ontologia, remete à noção de totalidade social como um complexo de complexos e ao trabalho enquanto fundamento último das relações operantes no mundo dos homens. Lukács (2013Lukács, G. (2013). Para uma ontologia do ser social II [Toward the ontology of social being II] (N. Schneider, Trans.). São Paulo, Brazil: Boitempo.) inicia a discussão sobre o problema da ideologia fazendo uma crítica ao duplo significado dado por Gramsci3 3 Não está no escopo dessa reflexão ir a Gramsci para ampliar a discussão sobre ideologia, sendo o presente trabalho pautado nas análises feitas por Lukács (2013). (1949, 1967 apud LUKÁCS, 2013Lukács, G. (2013). Para uma ontologia do ser social II [Toward the ontology of social being II] (N. Schneider, Trans.). São Paulo, Brazil: Boitempo.) a esta categoria. Sem deixar de reconhecer “[...] o mérito de ter articulado claramente a ambiguidade sempre furtiva desse termo tão importante”, Gramsci “[...] incorre imediatamente numa abstração convencional” na medida em que, mesmo reconhecendo por ideologia a superestrutura que surge de uma base econômica, compreende o seu conceito no sentido pejorativo “[...] como formação arbitrária do pensamento de pessoas singulares”. (LUKÁCS, 2013, p. 464). Para o mestre húngaro, diferentemente, enquanto uma ideia permanecer o produto do pensamento de um indivíduo, ela não pode ser considerada ideologia, mesmo que seja dotada de valor ou de desvalor (LUKÁCS, 2013). De igual modo, mesmo que difundidas com relativa amplitude, um conjunto de ideias não pode ser transformado diretamente em ideologia.

As formas ideológicas, sejam elas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, pressupõem necessariamente uma função determinada nos conflitos humano-sociais. Trata-se daquela elaboração ideal da realidade na qual os homens se conscientizam dos conflitos por eles vivenciados e os enfrentam tendo em vista solucioná-los. Ou seja, a ideologia no preciso sentido lukacsiano é uma forma de elaboração ideal da realidade que atua nos conflitos humano-sociais, tornando a práxis humana consciente e operativa.

Isso se aplica não apenas às revoluções econômicas, mas à totalidade da vida social, pois não se deve separar as grandes crises sociais do processo econômico de reprodução. A economia marxiana demonstra a veracidade desse argumento naquela metamorfose M-D-M; ali já está posta, segundo Lukács (2013Lukács, G. (2013). Para uma ontologia do ser social II [Toward the ontology of social being II] (N. Schneider, Trans.). São Paulo, Brazil: Boitempo.), a possibilidade da crise, não estando aqui em questão se essa possibilidade se converterá em realidade. O importante é perceber “[...] que uma mudança radical de estrutura e dinâmica só surgem quando, no âmbito do ser social, efetua-se a transição de uma formação para a outra ou um período decisivamente novo da formação dada” (LUKÁCS, 2013Lukács, G. (2013). Para uma ontologia do ser social II [Toward the ontology of social being II] (N. Schneider, Trans.). São Paulo, Brazil: Boitempo., p. 465), consequência do próprio desenvolvimento.

Ao trazer essa determinação marxiana para o cotidiano de cada uma das formações e identificar as formas ideológicas como meios que possam tornar conscientes e enfrentar os problemas desse cotidiano, Lukács (2013Lukács, G. (2013). Para uma ontologia do ser social II [Toward the ontology of social being II] (N. Schneider, Trans.). São Paulo, Brazil: Boitempo.) une ontologicamente os dois conceitos de ideologia mencionados por Gramsci (1949, 1967 apud LUKÁCS, 2013Lukács, G. (2013). Para uma ontologia do ser social II [Toward the ontology of social being II] (N. Schneider, Trans.). São Paulo, Brazil: Boitempo., p. 465):

A ideologia é sobretudo a forma de elaboração ideal da realidade que serve para tornar a práxis social humana consciente e capaz de agir. Desse modo, surgem a necessidade e a universalidade de concepções para dar conta dos conflitos do ser social; nesse sentido, toda ideologia possui o seu ser-propriamenteassim social: ela tem sua origem imediata e necessariamente no hic et nunc social dos homens que agem socialmente em sociedade.

Decorre dessa formulação lukacsiana que, sob circunstâncias históricas determinadas, as reações humanas ao ambiente socioeconômico podem se tornar ideologia e que essa possibilidade universal conserva as marcas de sua gênese, independentemente dessas marcas se tornarem imperceptíveis ou não, o que dependerá de suas funções nos conflitos sociais. Porque, de qualquer modo, para Lukács (2013Lukács, G. (2013). Para uma ontologia do ser social II [Toward the ontology of social being II] (N. Schneider, Trans.). São Paulo, Brazil: Boitempo.), a ideologia é um meio de luta social, que caracteriza toda sociedade, pelo menos as da pré-história da humanidade. Seu significado pejorativo enquanto falsa consciência vem dessa sua função como meio de luta social. Contudo,

[...] verdade ou falsidade ainda não fazem de um ponto de vista uma ideologia. Nem um ponto de vista individualmente verdadeiro ou falso, nem uma hipótese, teoria etc., científica verdadeira ou falsa constituem em si e por si só uma ideologia, como vimos. Eles podem se converter em ideologia só depois que tiverem se transformado em veículo teórico ou prático para enfrentar e resolver conflitos sociais, sejam estes de maior ou menor amplitude, determinantes dos destinos do mundo ou episódicos. (LUKÁCS, 2013Lukács, G. (2013). Para uma ontologia do ser social II [Toward the ontology of social being II] (N. Schneider, Trans.). São Paulo, Brazil: Boitempo., p. 467).

Logo, independentemente de como as ideologias se manifestem no curso da história, se por meio de tradições, de convicções religiosas, de teorias e métodos científicos etc., devem realizar a função social de meios de luta no interior de conflitos humano-sociais. Ao tratar sobre esses elementos, Lukács (2013Lukács, G. (2013). Para uma ontologia do ser social II [Toward the ontology of social being II] (N. Schneider, Trans.). São Paulo, Brazil: Boitempo.) sinaliza o sentido amplo e estrito de ideologia4 4 Costa (2011) traz em seu livro Serviço Social em Debate: ser social, trabalho, ideologia, publicado pela Edufal, uma extensa e esclarecedora discussão sobre esses dois aspectos da ideologia em Lukács. . Disso deduz-se que não será a gnoseologia que trará à luz a “[...] diferenciação entre ideologia e não ideologia”, mas cabe à função social decidir se algo se torna ideologia, “[...] e sobre isso a gnosiologia, por sua essência, não pode dispor”. (LUKÁCS, 2013Lukács, G. (2013). Para uma ontologia do ser social II [Toward the ontology of social being II] (N. Schneider, Trans.). São Paulo, Brazil: Boitempo., p. 569).

Voltando-se para a história da astronomia heliocêntrica ou para a teoria do desenvolvimento orgânico, Lukács (2013Lukács, G. (2013). Para uma ontologia do ser social II [Toward the ontology of social being II] (N. Schneider, Trans.). São Paulo, Brazil: Boitempo.) percebe que o fato de ambas serem teorias científicas, verdadeiras ou falsas, não faz delas ideologias. Somente após os posicionamentos acerca das concepções de Galileu e de Darwin tornarem-se meios para travar combates em torno dos antagonismos sociais presentes naquele momento da história humana, elas se tornaram operantes como ideologias. O sentido concreto de ideologia para Lukács (2013, p. 468) é mais amplo do que o do conceito estrito, na medida em que “[...] a passagem de uma ideia para o plano ideológico pode dar-se no trajeto percorrido através de múltiplas mediações, inclusive de tal maneira que só no processo de mediação essa transformação se torne fato”. Isto quer dizer que no ser social nada ocorre cujo nascimento não seja por ele mesmo determinado. Essa aparente tautologia se desfaz quando, sem excluir a determinação biológica imanente à reprodução do ser social, tais determinações se tornam cada vez mais predominantemente sociais.

Assim sendo, não há, desde a alimentação e a sexualidade até a exteriorização mais abstrata de uma ideia [Gedankenäužerungen], nenhum componente do ser social cujo ser-propriamente-assim concreto não seja essencialmente codeterminado pelas circunstâncias sociais de seu nascimento. É isso e só isso que significa a mais geral das determinações da ideologia. (LUKÁCS, 2013Lukács, G. (2013). Para uma ontologia do ser social II [Toward the ontology of social being II] (N. Schneider, Trans.). São Paulo, Brazil: Boitempo., p. 469).

É justamente nesses aspectos acima formulados que se encontra a concretude do homem como ser social, sua sociabilidade universal e todas as suas manifestações vitais, observadas desde os atos humanos mais primordiais, como é o caso do trabalho e da linguagem, até as demais objetivações da vida em sociedade. Tanto as objetivações quanto as exteriorizações, componentes fundamentais de todos os atos humanos, têm esse duplo caráter: por um lado, “[...] elas determinam todas as manifestações vitais de modo universal e, por isso generalizante; por outro lado e simultaneamente, elas constituem a sua singularidade especificamente social”. (LUKÁCS, 2013Lukács, G. (2013). Para uma ontologia do ser social II [Toward the ontology of social being II] (N. Schneider, Trans.). São Paulo, Brazil: Boitempo., p. 469). A singularidade se faz presente em todas as coisas e processos. As impressões digitais, por exemplo, denotam no homem sua singularidade em termos biológicos; no nível social, a singularidade representa uma complexa síntese entre os pores teleológicos e as reações aos pores dos outros, regulada pela pessoa. A unidade pessoal daí resultante, conforme postulado por Lukács (2013Lukács, G. (2013). Para uma ontologia do ser social II [Toward the ontology of social being II] (N. Schneider, Trans.). São Paulo, Brazil: Boitempo.), tem igualmente um duplo caráter objetivo inseparavelmente unitário. Por um lado, a dimensão pessoal do homem, sua essência, se objetiva no modo como ele reage às alternativas com que a vida o confronta; por outro lado e ao mesmo tempo, porém, as alternativas são socialmente determinadas, resultam do hic et nunc social no qual o homem vive e atua. Portanto, o que faz do homem uma pessoa singular são as escolhas que ele próprio faz diante das possibilidades com as quais é confrontado.

Nesse sentido, pode ser dito que ser pessoa, efetuar uma realização pessoal, e reagir de modo correspondente ao ser-propriamente-assim histórico-social, são dois lados que integram o mesmo complexo. E isso - seja dito contra certos preconceitos - tanto mais quanto mais desenvolvida for a personalidade, quanto maior a sua realização. (LUKÁCS, 2013Lukács, G. (2013). Para uma ontologia do ser social II [Toward the ontology of social being II] (N. Schneider, Trans.). São Paulo, Brazil: Boitempo., p. 470).

A propósito dessas reflexões, Marx e Engels (1993Marx, K., & Engels, F. (1993). A ideologia alemã [The German ideology] (J. C. Bruni & M. A. Nogueira, Trans., 9th ed.). São Paulo, Brazil: Hucitec. , p. 54) disseram com acerto que “[...] a verdadeira riqueza espiritual do indivíduo depende da riqueza de suas relações reais”, daí porque a afirmação de que “não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência” (MARX; ENGELS, 1993Marx, K., & Engels, F. (1993). A ideologia alemã [The German ideology] (J. C. Bruni & M. A. Nogueira, Trans., 9th ed.). São Paulo, Brazil: Hucitec. , p. 37) demonstra claramente sua remissão a uma consciência de indivíduos que têm uma atividade prática. Portanto, todas as suas realizações, sejam elas práticas, intelectuais, artísticas etc., são determinadas pelo ser social em que o indivíduo vive e atua. Nisso está o fundamento de toda ciência referente à sociedade.

No sentido aqui exposto, a ideologia pressupõe a existência de conflitos sociais cujos portadores ontológicos imediatos são os homens singulares. Razão pela qual, no plano imediato, “[...] todos os conflitos também se manifestam como embates de interesses entre homens singulares ou então entre estes e grupos humanos ou entre dois grupos desse tipo”. (LUKÁCS, 2013Lukács, G. (2013). Para uma ontologia do ser social II [Toward the ontology of social being II] (N. Schneider, Trans.). São Paulo, Brazil: Boitempo., p. 471). Porém, a determinação mais estrita e mais precisa da ideologia consiste nisso: os homens tornam-se conscientes e, com a ajuda das ideologias, travam os seus conflitos sociais, cujos fundamentos últimos estão no desenvolvimento econômico. Segundo Lukács (2013Lukács, G. (2013). Para uma ontologia do ser social II [Toward the ontology of social being II] (N. Schneider, Trans.). São Paulo, Brazil: Boitempo., p. 471), “[...] a análise dessa área mais estrita simultaneamente fornece a chave para a compreensão mais concreta da área mais ampla, sobretudo ao pôr a descoberto as ligações ontológicas reais entre ambas”.

Deduz-se daqui o seguinte: a existência da ideologia pressupõe conflitos sociais primordialmente travados no campo socioeconômico, com consequente desenvolvimento em suas formas específicas concretas, em cada sociedade concreta. Por serem os homens os portadores ontológicos imediatos de toda atividade social, inclusive dos conflitos, conforme assinalado acima, os interesses que se apresentam antagônicos entre eles só podem ser eficazmente enfrentados quando os membros de um grupo se convencem de que seus interesses vitais coincidem com os interesses importantes da sociedade em geral. Não importa se isso é imposto por convencimento, através de violência franca ou velada, por meio de manipulações. Da mesma forma que não conta para sua determinidade como ideologia, se o conteúdo corresponde às tendências da época ou se se contrapõe a elas, se o que norteia a ação ideologicamente determinada é sincera ou hipócrita. Apesar de esses aspectos serem decisivos para a avaliação histórico-social do conteúdo das ideologias singulares, não são determinantes da ideologia em termos gerais.

A questão principal é, por conseguinte, que o surgimento de tais ideologias pressupõe estruturas sociais, nas quais distintos grupos e interesses antagônicos atuam e almejam impor esses interesses à sociedade como um todo, como seu interesse geral. Em síntese: o surgimento e a disseminação de ideologias se manifestam como a marca registrada geral das sociedades de classes. (LUKÁCS, 2013Lukács, G. (2013). Para uma ontologia do ser social II [Toward the ontology of social being II] (N. Schneider, Trans.). São Paulo, Brazil: Boitempo., p. 472).

Se é verdade que os interesses são determinados pela estrutura social de cada sociedade, a presença da ideologia não é uma peculiaridade das sociedades de classes. Nas sociedades em que ainda não era possível nenhuma propriedade dos meios de produção, nem exploração do homem pelo homem, nem classes sociais, inexistiam interesses antagônicos. Contudo, a ideologia também aí se faz presente, mas o seu conteúdo é completamente distinto daquele que surge a partir da Revolução Neolítica (período da agricultura e da pecuária). Com isso, o conceito de ideologia em Lukács (2013Lukács, G. (2013). Para uma ontologia do ser social II [Toward the ontology of social being II] (N. Schneider, Trans.). São Paulo, Brazil: Boitempo.), sem anular seu sentido estrito, aquele acima descrito em que os homens tentam impor seus interesses a toda a sociedade, “[...] experimenta certa dilatação e sua gênese aparece com uma luz um tanto modificada”. (LUKÁCS, 2013Lukács, G. (2013). Para uma ontologia do ser social II [Toward the ontology of social being II] (N. Schneider, Trans.). São Paulo, Brazil: Boitempo., p. 472). Trata-se do sentido amplo de ideologia que implica certa generalização social de comportamentos, de normas de ação humana presentes e necessários para a reprodução social deste período da caça e da coleta. Aqui estão as formas embrionárias do que vai se tornar importante nas ideologias que surgem com as classes sociais. Nas palavras de Lukács (2013, p. 473):

[...] pelo fato de especialmente a caça a feras perigosas exigir modos de reação bem diferentes das pessoas, os comportamentos por ela determinados como imperativamente necessários surgem no mínimo simultaneamente com o trabalho, mas até antes e com maior intensidade pelo peso social que têm.

Lukács (2013Lukács, G. (2013). Para uma ontologia do ser social II [Toward the ontology of social being II] (N. Schneider, Trans.). São Paulo, Brazil: Boitempo.) supõe que os germes de conflitos entre a comunidade e o homem singular surgem no período primitivo e que seria um preconceito metafísico considerar que ali havia uma total identidade da consciência social de cada homem. Portanto, elementos da ideologia já se faziam presentes nos estágios mais iniciais do desenvolvimento social como é o caso do que pesquisas científicas encontram nos achados arqueológicos e das pinturas rupestres. Estas últimas “[...] atestam claramente que, quando circunstâncias favoráveis produzem prosperidade relativa e, desse modo, certo ócio, sociedades desse tipo são capazes de criar inclusive produtos de grande valor”. (LUKÁCS, 2013Lukács, G. (2013). Para uma ontologia do ser social II [Toward the ontology of social being II] (N. Schneider, Trans.). São Paulo, Brazil: Boitempo., p. 478).

Em síntese, alguns elementos ideológicos remontam aos primórdios do desenvolvimento social, fato que não nega, em absoluto, os problemas ideológicos oriundos da luta de classes como resultados ulteriores, “[...] mas requer, ao mesmo tempo, que sua função social e, por isso, sua gênese e seu efeito sejam determinados de modo um pouco mais amplo [...]” (LUKÁCS, 2013Lukács, G. (2013). Para uma ontologia do ser social II [Toward the ontology of social being II] (N. Schneider, Trans.). São Paulo, Brazil: Boitempo., p. 478). Todavia, isso em nada altera o problema de fundo: a função social da ideologia requer interferência nos conflitos sociais, o que não significa restringi-la de forma incondicional e exclusiva aos conflitos de classes. Nas sociedades primitivas eles aparecem apenas de modo latente, dadas às condições pouco desenvolvidas daquele momento da história da humanidade; enquanto o significado da ideologia como função nos conflitos de classe terá lugar muito mais tarde, somente se manifesta em sociedades baseadas na exploração do homem pelo homem e só aí a ideologia adquire o caráter estrito tendo, inclusive, a possibilidade de operar como falsa consciência e por isso mesmo a ideologia adquire o sentido negativo a ela atribuído. Entretanto isso não significa que toda ideologia é falsa consciência, nem tampouco que exista uma identidade entre ciência e ideologia.

Todo trabalho possui um objetivo imediato que é a reprodução da própria vida e essa imediaticidade, necessária à preservação da vida, interpõe-se aos homens de forma também imediata. Entretanto, “[...] essa imediatidade só pode se realizar como fundamento imediato da existência humana se a sua imediatidade suprimir a si mesma”. (LUKÁCS, 2013Lukács, G. (2013). Para uma ontologia do ser social II [Toward the ontology of social being II] (N. Schneider, Trans.). São Paulo, Brazil: Boitempo., p. 483). Nesse sentido, o pôr teleológico que se interpõe entre necessidade e satisfação traz consigo essa supressão, porque cada pôr teleológico contém em si a possibilidade (no sentido aristotélico de se objetivar ou não) de estimular outros pores, dado que o trabalho remete o homem para além do próprio trabalho.

Importa aqui observar que esses pores teleológicos que Lukács (2013Lukács, G. (2013). Para uma ontologia do ser social II [Toward the ontology of social being II] (N. Schneider, Trans.). São Paulo, Brazil: Boitempo.) chama de secundários, visam suscitar um novo comportamento nos outros homens e adquirem importância crescente quanto mais se desenvolvem as forças produtivas. Decisivo aqui é perceber que o pôr teleológico do trabalho (primário) dá origem a uma série causal, enquanto os pores secundários desencadeiam um novo pôr teleológico. Isso se reveste de especial importância para nosso problema, por um lado, porque os pores teleológicos secundários se constituem na base ontológica da ideologia e por outro lado, eles têm como objeto a consciência de outros homens, o que torna impossível exercer um controle tal como aquele exigido no metabolismo com a natureza, conforme veremos a seguir.

Ideologia, Alienação e vida cotidiana

Marx (2003Marx, K. (2003). Manuscritos econômico-filosóficos [Economic and philosophic manuscripts] (A. Marins, Trans.). São Paulo, Brazil: Martin Claret. ) já havia demonstrado desde os Manuscritos de Paris que o desenvolvimento das forças produtivas constitui simultaneamente um desenvolvimento para um patamar superior do homem, mesmo que isso ocorra de forma desumana. É justamente isso que acontece a partir das sociedades de classes, mas não enquanto efeitos mecânicos, pois “os homens enredados em conflitos geralmente agem, antes, de modo espontâneo, motivados diretamente pelo que chamamos de a ontologia da vida cotidiana”. (LUKÁCS, 2013Lukács, G. (2013). Para uma ontologia do ser social II [Toward the ontology of social being II] (N. Schneider, Trans.). São Paulo, Brazil: Boitempo., p. 561). Na vida cotidiana, são decisivas as vivências imediatas dos homens, largamente influenciadas pelas ideologias. Por essa via, pode-se pensar na relação entre ideologia e alienação na particularidade que esta assume no capitalismo5 5 Sobre esses aspectos Leandro Konder (2009), diferente de alguns marxistas, revela uma continuidade entre o conceito de alienação elaborado nos Manuscritos de 1844, os chamados Manuscritos de Paris, e o desenvolvimento posterior do pensamento de Marx, subjacente em diversas categorias por ele analisadas. “Particularmente, não cremos que fosse difícil demonstrar que o ‘fetichismo da mercadoria’ estudado em O Capital representa o aprofundamento do exame de um aspecto da alienação, isto é, da alienação econômica sob a sociedade capitalista.” (KONDER, 2009, p. 38, grifo do autor). .

Contra os preconceitos da ontologia da vida cotidiana derivados do marxismo vulgar e da superestimação idealista dos jovens hegelianos6 6 Tais preconceitos podem ser sinteticamente referidos quando Lukács, partindo da formulação de Marx e Engels (2003) em A Ideologia Alemã - sobre o fato de que “[...] os homens, ao desenvolverem a sua produção e seu intercâmbio materiais, transformam também com esta sua realidade, seu pensar e os produtos do seu pensar” (MARX; ENGELS, 2007, p. 94 apud LUKÁCS, 2013, p. 549) - faz uma crítica às interpretações dessa formulação marxiana tanto por parte do marxismo vulgar quanto do idealismo hegeliano. O primeiro concluiu que “[...] todos os produtos não rigorosamente econômicos da humanidade estariam numa dependência direta e mecânica com a economia [...]” (LUKÁCS, 2013, p. 550). As teorias burguesas, em segundo lugar, “[...] protestam contra qualquer derivação de modos ideais de exteriorização a partir de fundamentos socioeconômicos, reclamando para eles um desdobramento totalmente autônomo, imanente-autônomo, que só pode ser determinado pelas legalidades puramente interiores às áreas singulares, pode-se falar aqui de determinação”. (LUKÁCS, 2013, p. 550). , Lukács (2013Lukács, G. (2013). Para uma ontologia do ser social II [Toward the ontology of social being II] (N. Schneider, Trans.). São Paulo, Brazil: Boitempo.) esclarece que se trata do complexo de problemas da reificação7 7 Em Capitalismo e Reificação, Paulo Netto (1981, p. 61, grifo do autor) afirma: “O que distingue a impostação marxiana no enfoque da alienação, em 1844, da tematização ulterior do fetichismo é a concretização histórico-social a que Marx submete o objeto da sua investigação”. Ou seja, a problemática do fetichismo experimenta uma análise determinada pelas relações sociais de produção que os homens estabelecem entre si, sob circunstâncias precisas. “Por isto mesmo, as formulações sobre a problemática do fetichismo apresentam determinações histórico-econômicas que falecem no trato da alienação: referem-se a um fenômeno peculiar e agarram a sua especificidade - não é mais a alienação do homem moderno, abstratamente contraposto ao homem da pólis grega; o que elas denotam é a expressão característica da alienação típica engendrada pelo capitalismo, a reificação.” (PAULO NETTO, 1981, p. 61, grifo do autor). , cujo ponto de partida natural na ontologia espontânea da vida cotidiana está em que “[...] grande parte dos dados concretos da natureza se encontra de modo imediato na forma fenomênica de coisas”. (LUKÁCS, 2013Lukács, G. (2013). Para uma ontologia do ser social II [Toward the ontology of social being II] (N. Schneider, Trans.). São Paulo, Brazil: Boitempo., p. 550). Para Lukács (2013), é preciso entender a coisa objetivada a partir do seu processo genético. Sem ir à sua gênese, apreendem-se as coisas como “[...] prontas e acabadas [...]” (LUKÁCS, 2013, p. 550).

[...] quando se pergunta pelo seu surgimento, geralmente se aponta para um “criador” transcendente. É o que ocorre já nos mitos de Prometeu para explicar o uso do fogo, que objetivamente sem dúvida foi um produto da atividade bem própria dos homens; é o que ocorre mais tarde nos mitos sobre a essência e o poder do dinheiro etc., que penetram até na ciência e na filosofia. (LUKÁCS, 2013Lukács, G. (2013). Para uma ontologia do ser social II [Toward the ontology of social being II] (N. Schneider, Trans.). São Paulo, Brazil: Boitempo., p. 550-551).

A problemática da reificação no contexto da Ontologia situa-se nas formulações sobre os aspectos ideológicos da alienação próprios do capitalismo. Lukács (2013Lukács, G. (2013). Para uma ontologia do ser social II [Toward the ontology of social being II] (N. Schneider, Trans.). São Paulo, Brazil: Boitempo.) considera a reificação como um tipo de reflexo8 8 A concepção lukacsiana de reflexo considera a objetividade social como momento predominante, remete, pois, à reprodução ideal do movimento real do objeto. do mundo objetivo que requer, para entendê-lo corretamente, um exame ontológico da causalidade, tendo em vista que, não obstante o domínio da consciência sobre os processos físico-químicos e fisiológicos seja uma realidade desencadeada com o processo de trabalho, “[...] a existência das coisas de modo algum é mera aparência, nem mesmo um simples modo fenomênico, mas uma forma de ser que sob certas circunstâncias faz desaparecer na imediatidade os processos fundamentais do ser da natureza”. (LUKÁCS, 2013Lukács, G. (2013). Para uma ontologia do ser social II [Toward the ontology of social being II] (N. Schneider, Trans.). São Paulo, Brazil: Boitempo., p. 662).

Segundo Lukács (2013Lukács, G. (2013). Para uma ontologia do ser social II [Toward the ontology of social being II] (N. Schneider, Trans.). São Paulo, Brazil: Boitempo.), Marx constata a processualidade como dado primário na natureza, pondo em relevo o desenvolvimento da Terra como um processo que, mesmo em permanente transformação qualitativa, conserva na mudança uma determinada coisidade relativamente constante em sua objetividade. Neste sentido, “[...] o trabalho - ele próprio um processo - pode, em parte, tornar um processo natural diretamente útil para o homem, em parte ele transforma uma coisa em uma outra coisa - uma vez mais, numa coisa útil - por exemplo, uma pedra em ferramenta”. (LUKÁCS, 2013Lukács, G. (2013). Para uma ontologia do ser social II [Toward the ontology of social being II] (N. Schneider, Trans.). São Paulo, Brazil: Boitempo., p. 662).

Quando Marx (1988Marx, K. (1988). O capital: Crítica da economia política [Capital: Critique of political economy] (R. Barbosa & F. R. Kothe, Trans., 3rd ed., Vols. 1-3). São Paulo, Brazil: Nova Cultural., p. 143-144) argumenta, por exemplo, que o fiandeiro trata o fuso não como um produto originário de trabalho passado, isto é, como uma objetivação social, mas como “[...] o meio com o qual fia e o linho como objeto que fia”, está evidenciando uma reificação. Contudo, trata-se do que Lukács (2013Lukács, G. (2013). Para uma ontologia do ser social II [Toward the ontology of social being II] (N. Schneider, Trans.). São Paulo, Brazil: Boitempo., p. 663) vai chamar de “[...] reificações espontâneas [...]” no preciso sentido dos reflexos condicionados. Lukács (2013) dá como exemplo o uso de uma lâmpada elétrica que ao ligá-la ou desligá-la, a ninguém ocorre pensar que se estaria pondo em movimento ou interrompendo um processo. Isso porque o processo elétrico tornou-se uma coisa na vida cotidiana, uma reificação espontânea que não se torna consciente. A vida cotidiana é repleta desse tipo de reificação. Em sentido geral: “[...] sempre que [...] um processo, seja na produção ou no comércio ou no consumo, já não for mais consciente, mas for efetuad[o] mediante reflexos condicionados, os processos que entram em cogitação são espontaneamente coisificados”. (LUKÁCS, 2013Lukács, G. (2013). Para uma ontologia do ser social II [Toward the ontology of social being II] (N. Schneider, Trans.). São Paulo, Brazil: Boitempo., p. 663). Nesse preciso sentido, na vida cotidiana “[...] o rio via de regra é tão coisificado quanto o barco que nele navega”. (LUKÁCS, 2013, p. 663-664).

Esses processos acima descritos não têm, em sua essência, qualquer relação direta com as verdadeiras reificações. Estas se encontram originalmente, conforme postulação marxiana, na estrutura da mercadoria enquanto uma objetividade fantasmagórica em que tanto os produtos materiais quanto os processos da produção se convertem numa gelatina de trabalho humano indiferenciado, de dispêndio de força de trabalho humana, sem consideração pela forma de seu dispêndio, conforme afirma Marx (1988Marx, K. (1988). O capital: Crítica da economia política [Capital: Critique of political economy] (R. Barbosa & F. R. Kothe, Trans., 3rd ed., Vols. 1-3). São Paulo, Brazil: Nova Cultural.). Essa é a base sobre a qual surge o que Lukács (2013Lukács, G. (2013). Para uma ontologia do ser social II [Toward the ontology of social being II] (N. Schneider, Trans.). São Paulo, Brazil: Boitempo., p. 665) chama de “[...] reificação socialmente relevante”.

O mistério da forma mercadoria consiste, portanto, simplesmente no fato de que ela reflete aos homens as características sociais do seu próprio trabalho como características objetivas dos próprios produtos de trabalho, como propriedades naturais sociais dessas coisas e, por isso, também reflete a relação social dos produtores com o trabalho total como uma relação social existente fora deles, entre objetos. Por meio desse quiproquó os produtos do trabalho se tornam mercadorias, coisas físicas metafísicas ou sociais. [...] Não é mais nada que determinada relação social entre os próprios homens que para eles aqui assume a forma fantasmagórica de uma relação entre coisas. (MARX, 1988Marx, K. (1988). O capital: Crítica da economia política [Capital: Critique of political economy] (R. Barbosa & F. R. Kothe, Trans., 3rd ed., Vols. 1-3). São Paulo, Brazil: Nova Cultural., p. 71).

Não por acaso, observa Lukács (2013Lukács, G. (2013). Para uma ontologia do ser social II [Toward the ontology of social being II] (N. Schneider, Trans.). São Paulo, Brazil: Boitempo.), Marx associa essa objetividade fantasmagórica às alienações religiosas. Mas interessa-nos aqui tão somente observar que o trabalho no sentido do intercâmbio da sociedade com a natureza, constitui o momento predominante, independente do grau de desenvolvimento das forças produtivas. Nesse sentido, não há diferença ontológica entre amolar uma pedra no período primitivo e esmigalhar átomos nos dias atuais. Não importa se o trabalho conta com um pôr teleológico revestido de conhecimento científico, o fato é que “[...] em sua execução prática não pode ocorrer nenhuma reificação em sentido próprio. Na prática, o trabalhador tem de tratar cada coisa como coisa, cada processo como processo [...]” (LUKÁCS, 2013Lukács, G. (2013). Para uma ontologia do ser social II [Toward the ontology of social being II] (N. Schneider, Trans.). São Paulo, Brazil: Boitempo., p. 667). Do contrário, o objetivo pretendido não se realizará.

O modo como a consciência subjetiva se expressa nesse processo, se de forma reificada ou não, não tem a menor importância. A forma objetiva fantasmagórica do valor de troca cria, de maneira cada vez mais intensa, reificações que no capitalismo se convertem em alienações. Ou melhor, no modo de ser peculiar das alienações capitalistas. Logo, é impossível entender a reificação e a alienação, deixando de lado suas determinações histórico-econômicas.

A reificação descrita por Marx (1988Marx, K. (1988). O capital: Crítica da economia política [Capital: Critique of political economy] (R. Barbosa & F. R. Kothe, Trans., 3rd ed., Vols. 1-3). São Paulo, Brazil: Nova Cultural.) no intercâmbio de mercadorias como necessariamente inerente a ele, em termos ideológicos, em geral tende a levar à autorreificação do homem, dos seus processos vitais. Importante aqui para nosso problema é que as diferentes relações entre ideologia e alienação ocorrem a partir da ideologia no sentido estrito, enquanto instrumento para mediar conflitos no interior das sociedades de classes cujos interesses se contrapõem entre si. Somente quando surge a exploração do homem pelo homem a ideologia adquire a possibilidade de operar como falsa consciência, donde o aspecto negativo a ela atribuído, conforme vimos. É esse campo das ideologias singulares que se presta às alienações.

Diante dos argumentos aqui expostos, desvendar a essência dos processos reificatórios, perseguir suas determinações específicas é tarefa indispensável para o conhecimento adequado dos momentos ideológicos da alienação.

Considerações Finais

Esse artigo traduz um esforço em compreender a ideologia e a alienação, suas relações a partir de Para uma Ontologia do Ser Social, obra de maturidade de Georg Lukács (2013Lukács, G. (2013). Para uma ontologia do ser social II [Toward the ontology of social being II] (N. Schneider, Trans.). São Paulo, Brazil: Boitempo.). Nele se considera essas categorias como decisivas para a crítica radical às sociedades de classes, em particular ao capitalismo, modo de produção que traz consigo peculiaridades no modo de ser tanto da ideologia quanto das alienações. Em que pesem as incompletudes presentes nas reflexões lukacsianas sobre alienação, o autor fornece elementos que contribuem significativamente para pensar a sociedade atual. Seus fundamentos ontológicos, como visto, apontam para uma antítese entre o desenvolvimento das forças produtivas e o crescimento das individualidades sociais.

A ideologia, por sua vez, se constitui num modo de elaboração ideal da realidade cujo aspecto primordial é exercer uma função nos conflitos humano-sociais. Esse caráter de atuação sobre os conflitos se revela duplamente: por um lado, os homens produzem generalizações que os ajudam a reconhecer e enfrentar os conflitos da vida cotidiana no processo de reprodução social; por outro lado, e aqui se encontra - sem dissociarse do primeiro aspecto - o sentido estrito de ideologia como instrumento de luta social em circunstâncias históricas de interesses que se antagonizam, portanto, interesses de classes. Em termos ontológicos, é precisamente a função social da ideologia que a conecta às formas de alienação surgidas desde a primeira sociedade de classes, o escravismo. Mas é no capitalismo que essas relações vão assumir formas reificadoras pautadas no caráter espectral da mercadoria.

Para Lukács (2013Lukács, G. (2013). Para uma ontologia do ser social II [Toward the ontology of social being II] (N. Schneider, Trans.). São Paulo, Brazil: Boitempo.) as alienações denotam um caráter ideológico fundado no imediato da vida cotidiana, muitas vezes expresso no modo de ser das verdadeiras reificações, aquelas que se caracterizam como alienações. Suas bases ontológicas se encontram no fetiche da mercadoria tal como exposta por Marx (1988Marx, K. (1988). O capital: Crítica da economia política [Capital: Critique of political economy] (R. Barbosa & F. R. Kothe, Trans., 3rd ed., Vols. 1-3). São Paulo, Brazil: Nova Cultural.) em O Capital. Com a universalização do consumo e dos serviços no comércio global de mercadorias, o ter, categoria que surge com a propriedade privada, assume papel decisivo nas relações fundamentais dos homens com o ambiente em que vivem, no sentido de torná-las cada vez mais alienadas. A ideologia (burguesa) assume aqui um papel fundamental no sentido de manipular a consciência a absorver necessidades que são próprias da reprodução do capital, como sendo necessidades humanas.

A questão de fundo aqui é: agir sobre a consciência dos homens com o objetivo de desencadear novas posições teleológicas, nesse caso, voltadas para reforçar o status quo. O que não quer dizer que a ideologia se restrinja a esse aspecto, pois, conforme visto, as formas ideológicas sejam elas jurídicas, políticas, religiosas, artísticas ou filosóficas, também pressupõem uma função determinada nos conflitos humano-sociais, uma elaboração ideal da realidade na qual os homens se conscientizam dos conflitos por eles vivenciados e os enfrentam tendo em vista solucioná-los.

Agradecimentos

Agradeço em especial a duas pessoas: Sérgio Lessa, que na década de 1990 me apresentou Lukács e com quem muito aprendi ao longo dos anos; e Gilmaisa Macedo da Costa, pelas observações, sempre muito pertinentes, a este manuscrito.

References

  • Costa, G. M. (2011). Serviço Social em debate: Ser social, trabalho, ideologia. Maceió, Brazil: Edufal.
  • Konder, L. (2009). Marxismo e alienação: Contribuição para um estudo do conceito marxista de alienação (2nd ed.). São Paulo, Brazil: Expressão Popular.
  • Lukács, G. (2013). Para uma ontologia do ser social II [Toward the ontology of social being II] (N. Schneider, Trans.). São Paulo, Brazil: Boitempo.
  • Marx, K. (1988). O capital: Crítica da economia política [Capital: Critique of political economy] (R. Barbosa & F. R. Kothe, Trans., 3rd ed., Vols. 1-3). São Paulo, Brazil: Nova Cultural.
  • Marx, K. (2003). Manuscritos econômico-filosóficos [Economic and philosophic manuscripts] (A. Marins, Trans.). São Paulo, Brazil: Martin Claret.
  • Marx, K., & Engels, F. (1993). A ideologia alemã [The German ideology] (J. C. Bruni & M. A. Nogueira, Trans., 9th ed.). São Paulo, Brazil: Hucitec.
  • Paulo Netto, J. (1981). Capitalismo e reificação. São Paulo, Brazil: Ciências Humanas.

Notas

  • 1
    Trata-se de desdobramentos da investigação que a autora vem desenvolvendo após o seu doutorado, cuja metodologia tem sido a análise imanente de texto.
  • 2
    As leis da natureza jamais dariam origem a uma mesa, por exemplo, ou qualquer outra objetividade social.
  • 3
    Não está no escopo dessa reflexão ir a Gramsci para ampliar a discussão sobre ideologia, sendo o presente trabalho pautado nas análises feitas por Lukács (2013).
  • 4
    Costa (2011) traz em seu livro Serviço Social em Debate: ser social, trabalho, ideologia, publicado pela Edufal, uma extensa e esclarecedora discussão sobre esses dois aspectos da ideologia em Lukács.
  • 5
    Sobre esses aspectos Leandro Konder (2009), diferente de alguns marxistas, revela uma continuidade entre o conceito de alienação elaborado nos Manuscritos de 1844, os chamados Manuscritos de Paris, e o desenvolvimento posterior do pensamento de Marx, subjacente em diversas categorias por ele analisadas. “Particularmente, não cremos que fosse difícil demonstrar que o ‘fetichismo da mercadoria’ estudado em O Capital representa o aprofundamento do exame de um aspecto da alienação, isto é, da alienação econômica sob a sociedade capitalista.” (KONDER, 2009, p. 38, grifo do autor).
  • 6
    Tais preconceitos podem ser sinteticamente referidos quando Lukács, partindo da formulação de Marx e Engels (2003) em A Ideologia Alemã - sobre o fato de que “[...] os homens, ao desenvolverem a sua produção e seu intercâmbio materiais, transformam também com esta sua realidade, seu pensar e os produtos do seu pensar” (MARX; ENGELS, 2007, p. 94 apud LUKÁCS, 2013, p. 549) - faz uma crítica às interpretações dessa formulação marxiana tanto por parte do marxismo vulgar quanto do idealismo hegeliano. O primeiro concluiu que “[...] todos os produtos não rigorosamente econômicos da humanidade estariam numa dependência direta e mecânica com a economia [...]” (LUKÁCS, 2013, p. 550). As teorias burguesas, em segundo lugar, “[...] protestam contra qualquer derivação de modos ideais de exteriorização a partir de fundamentos socioeconômicos, reclamando para eles um desdobramento totalmente autônomo, imanente-autônomo, que só pode ser determinado pelas legalidades puramente interiores às áreas singulares, pode-se falar aqui de determinação”. (LUKÁCS, 2013, p. 550).
  • 7
    Em Capitalismo e Reificação, Paulo Netto (1981, p. 61, grifo do autor) afirma: “O que distingue a impostação marxiana no enfoque da alienação, em 1844, da tematização ulterior do fetichismo é a concretização histórico-social a que Marx submete o objeto da sua investigação”. Ou seja, a problemática do fetichismo experimenta uma análise determinada pelas relações sociais de produção que os homens estabelecem entre si, sob circunstâncias precisas. “Por isto mesmo, as formulações sobre a problemática do fetichismo apresentam determinações histórico-econômicas que falecem no trato da alienação: referem-se a um fenômeno peculiar e agarram a sua especificidade - não é mais a alienação do homem moderno, abstratamente contraposto ao homem da pólis grega; o que elas denotam é a expressão característica da alienação típica engendrada pelo capitalismo, a reificação.” (PAULO NETTO, 1981, p. 61, grifo do autor).
  • 8
    A concepção lukacsiana de reflexo considera a objetividade social como momento predominante, remete, pois, à reprodução ideal do movimento real do objeto.
  • Agência financiadora

    Não se aplica.
  • Aprovação por Comitê de Ética e consentimento para participação

    Não se aplica
  • Consentimento para publicação

    Não se aplica

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    26 Ago 2019
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2019

Histórico

  • Recebido
    07 Out 2018
  • Aceito
    20 Nov 2018
  • Revisado
    02 Abr 2019
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