Acessibilidade / Reportar erro

Obstinação terapêutica como questão ética: enfermeiras de unidades de terapia intensiva

Resumos

A obstinação terapêutica, presente nas unidades de terapia intensiva (UTIs), ainda é pouco discutida especialmente por enfermeiras, responsáveis por implementar procedimentos, dos quais, muitas vezes, podem discordar. Para compreender como enfermeiras de UTIs vêm enfrentando a aplicação de medidas terapêuticas que reconhecem como fúteis, foram realizadas entrevistas com essas profissionais e análise de conteúdo dos dados, construindo-se categorias: - "Obstinação terapêutica: o que é isso?"; - "A obstinação terapêutica como o prolongamento do sofrimento"; - "A obstinação terapêutica como a priorização da cura"; - "Enfrentamento da obstinação terapêutica: cuidado humanizado?". O trabalho demonstra a necessidade de avaliar as medidas terapêuticas a serem utilizadas com pacientes em processo de morrer e de morte, de modo que possam viver a fase final de sua vida com qualidade. Quando a cura não é mais possível, é necessário cuidar, respeitando a integridade da pessoa doente, pois o cuidado é a base do exercício profissional da enfermagem.

terapêutica; saúde; morte; ética; enfermagem


Therapeutic futility in intensive care units (ICUs) is still little discussed among nursing professionals responsible for implementing prescribed procedures, which they might disagree on. Therefore, interviews were carried out with ICU nurses to understand how they are coping with the implementation of futile treatments. Based on the analysis of collected data, the following categories emerged: Therapeutic futility: what is it?; Therapeutic futility extends suffering; Therapeutic futility with healing as a priority; Coping with therapeutic futility: humanized care? The study indicates the need to evaluate therapeutic measures provided to terminal patients with a view to improving their quality of life in this final phase. When healing is no longer possible, care is necessary with a view to respecting the sick person's integrity because care is the essence of the nursing profession.

therapeutics; health; death; ethics; nursing


La obstinación terapéutica, presente en las Unidades de Terapia Intensiva (UTIS), aún es poco discutida entre los profesionales de enfermería que son responsables por la implementación de las terapéuticas y con las cuales pueden discordar. Así, para comprender, como las enfermeras de UTIs, vienen enfrentando los tratamientos fútiles fueron realizadas entrevistas con estas profesionales. A partir del análisis de contenido de los datos, fueron construidas categorías: Obstinación terapéutica: ¿Qué es eso?; La obstinación terapéutica como la continuidad del sufrimiento; la obstinación terapéutica como la preferencia de la cura; el enfrentamiento de la obstinación terapéutica: ¿Es un cuidado humanizado? La evaluación de medidas terapéuticas que necesitan ser utilizadas en pacientes en proceso de morir y de muerte, de modo que puedan vivir su vida con calidad es fundamental. Cuando no existen posibilidades de curar, es necesario efectuar el cuidado respetando la integridad de la persona enferma. El cuidado es la base del ejercicio profesional de la enfermería.

terapéutica; salud; muerte; ética; enfermería


ARTIGO ORIGINAL

Obstinação terapêutica como questão ética: enfermeiras de unidades de terapia intensiva1

Karen Knopp de CarvalhoI; Valéria Lerch LunardiII

IEnfermeira do Hospital Universitário Dr. Miguel Riet Corrêa Jr da Fundação Universidade do Rio Grande, Brasil, Mestre em Enfermagem, Docente da Universidade Católica de Pelotas, Brasil, e-mail: knoppcarvalho@bol.com.br

IIDoutor em Enfermagem, Fundação Universidade do Rio Grande, Brasil, e-mail: vlunardi@terra.com.br

RESUMO

A obstinação terapêutica, presente nas unidades de terapia intensiva (UTIs), ainda é pouco discutida especialmente por enfermeiras, responsáveis por implementar procedimentos, dos quais, muitas vezes, podem discordar. Para compreender como enfermeiras de UTIs vêm enfrentando a aplicação de medidas terapêuticas que reconhecem como fúteis, foram realizadas entrevistas com essas profissionais e análise de conteúdo dos dados, construindo-se categorias: - "Obstinação terapêutica: o que é isso?"; - "A obstinação terapêutica como o prolongamento do sofrimento"; - "A obstinação terapêutica como a priorização da cura"; - "Enfrentamento da obstinação terapêutica: cuidado humanizado?". O trabalho demonstra a necessidade de avaliar as medidas terapêuticas a serem utilizadas com pacientes em processo de morrer e de morte, de modo que possam viver a fase final de sua vida com qualidade. Quando a cura não é mais possível, é necessário cuidar, respeitando a integridade da pessoa doente, pois o cuidado é a base do exercício profissional da enfermagem.

Descritores: terapêutica; saúde; morte; ética; enfermagem

INTRODUÇÃO

No ambiente de uma unidade de terapia intensiva (UTI), há múltiplas questões éticas envolvidas no enfrentamento do cuidado de pessoas que vivenciam o processo de morrer e de morte. Muito vem sendo discutido sobre essa temática por diferentes profissionais da saúde e de outras áreas e, em especial, o direito de o paciente morrer com dignidade e a obstinação terapêutica, expressão que também pode ser empregada como sinônimo de tratamento fútil e inútil, que tem como consequência a morte medicamente lenta e prolongada, acompanhada de sofrimento. Trata-se da atitude médica que, visando salvar a vida de um paciente terminal, submete-o a grande sofrimento. Com essa conduta, não se prolonga a vida propriamente dita, mas o processo de morrer(1).

No decorrer deste texto, são utilizados com o mesmo significado os termos: ato médico fútil, distanásia, futilidade terapêutica e obstinação terapêutica.

A enfermagem está começando a discutir essa temática, artigos sobre o processo de morte e morrer apontam a possibilidade de prolongamento da vida dos doentes, sem avaliar sua qualidade de vida e as reais chances de sobrevivência, bem como as dificuldades e o sofrimento das enfermeiras nessas situações(2-3). O tema é considerado de extrema relevância para a enfermagem, por ser a profissão que efetiva muitas das terapêuticas prescritas, sendo necessário discutir tais práticas, como trabalhadores da área da saúde, a fim de que se possa definir o que se está buscando atualmente como modelo de saúde e de vida.

Questões relativas à obstinação terapêutica, possivelmente estão presentes no cotidiano das UTIs, onde diferentes decisões com relação ao tratamento de pacientes em fase terminal da doença são tomadas sem prévia discussão com os próprios pacientes, suas famílias e a equipe de saúde, restringindo-se, comumente, a deliberação a uma só pessoa, geralmente, o médico plantonista(4-5). Os procedimentos terapêuticos a serem instituídos nos pacientes dependem de critério médico. Entretanto, refletem no trabalho da equipe de saúde como um todo e, especificamente, na enfermagem, que, ao cumprir terapêuticas com as quais não concorda, pode sofrer intensamente, questionando os valores que fundamentam sua prática(1,6).

Procurou-se, assim, compreender como as enfermeiras vêm enfrentando a implementação de medidas terapêuticas que reconhecem como fúteis.

TRAJETÓRIA METODOLÓGICA

Este estudo qualitativo, exploratório descritivo, foi elaborado com atenção às recomendações da Resolução 196/96(7), aprovado pelo Comitê de Ética de um dos hospitais onde foi realizado o estudo, já que, na outra instituição, o comitê encontrava-se em processo de formação. Todos os sujeitos assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido.

A coleta de dados ocorreu em dois hospitais de uma cidade do Rio Grande do Sul: o Hospital A - instituição privada de grande porte, com religiosas na equipe de trabalhadoras de enfermagem, atuando em chefias e coordenações de serviço; o Hospital B - instituição privada e de ensino, com alunos de graduação e de pós-graduação. A UTI de cada um dos dois hospitais possui 10 leitos e, para cada turno de trabalho, uma enfermeira responsável, um técnico de enfermagem para cada dois leitos e um médico plantonista, além de contar com um fisioterapeuta. A carga horária semanal das profissionais de enfermagem é de 44 horas.

Os sujeitos da pesquisa foram enfermeiras que atuam nas UTIs desses hospitais há mais de um ano e que concordaram em participar do trabalho: 4 enfermeiras do Hospital A e 2 enfermeiras do Hospital B, identificadas no texto pela letra E, seguida de números arábicos de 1 a 6. Foram realizadas entrevistas semiestruturadas, com as seguintes questões: o que entendes por obstinação terapêutica? Consideras presente, na UTI em que trabalhas, essa problemática? Se sim, como reages, ao ter que implementar medidas terapêuticas que reconheces como fúteis? Que sentimentos vivencias ao implementares esses tratamentos? Como enfrentas essas situações? Que estratégias consideras que poderiam ser utilizadas?

As categorias de análise foram elaboradas após sucessivas leituras das entrevistas, a partir da sua ordenação e classificação, por semelhanças e diferenças, conforme as essências descritas e a codificação dos dados colhidos(8). Em permanente relação com os referenciais teóricos que sustentam este trabalho, buscou-se compreender como essas profissionais identificam situações de obstinação terapêutica, como as vivenciam e os fatores que as influenciam nas tomadas de decisão, tentando apontar os sentimentos experenciados e possíveis estratégias no enfrentamento dessas situações. Foram construídas quatro categorias de análise, a seguir apresentadas.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Obstinação terapêutica: o que é isso?

Para compreender como as enfermeiras vêm enfrentando a implementação de medidas terapêuticas que reconhecem como fúteis, tornou-se necessário primeiramente constatar se reconhecem nas UTIs, nas quais trabalham, a presença desses tratamentos. Ao serem questionadas acerca de seu entendimento sobre obstinação terapêutica e se havia, na UTI em que trabalham, a prescrição desses tratamentos, a maioria afirmou desconhecer o significado do termo (E1, E4, E5, E6). Assim, optou-se, após a realização da primeira pergunta e sua respectiva resposta, por ler a definição de obstinação terapêutica(9).

A maior parte das enfermeiras, apesar do desconhecimento do termo, após a leitura, afirmou vivenciar a referida problemática na UTI em que trabalham, considerando a prática muito presente, como neste depoimento: Olha, conhecimento do termo mesmo eu não tinha, tanto que tive que te perguntar sobre o que era, que eu não tinha ideia,, só que depois que tu me esclareceu o que é, eu até sei que a gente vivencia muito aqui dentro da UTI (E1).

O referido desconhecimento reflete a prevalência que se tem, ainda hoje, no contexto hospitalar, de um modelo predominantemente tecnicista, em que a prática e a técnica são supervalorizadas, em detrimento daquele mais humanista(10). Assim, o trabalho das enfermeiras parece padronizado, priorizando a manutenção da ordem na unidade e o atendimento do paciente em suas necessidades biológicas. Entretanto, talvez nem essas necessidades estejam sendo atendidas, pois são analisadas e definidas preponderantemente pelos profissionais da saúde, ignorando a vontade do paciente. É provável que mudanças em muitas práticas, ainda adotadas como adequadas e aceitáveis nas UTIs, sejam possíveis por meio do exercício do pensamento.

Apesar de a obstinação terapêutica ser um problema cotidiano da UTI, sua percepção e problematização pelas profissionais podem exigir conhecimento e aprofundamento teórico dessa temática. Tal desconhecimento pode permitir que condutas distanásicas sejam identificadas como normais e necessárias nos tratamentos dos pacientes.

A obstinação terapêutica como o prolongamento do sofrimento

Algumas enfermeiras explanaram que entendem a obstinação terapêutica como a conduta de estender o tempo de vida de um paciente que está em fase terminal da doença, prolongando o seu sofrimento. É prolongar o tempo de um paciente que tu sabe que vai morrer, que tu pode usar todos os recursos possíveis que não adianta. Não vai reverter aquele quadro. Eu sinto bastante pena dessas pessoas, não porque vão morrer, mas porque passam por este sofrimento que tu sabe que não vai adiantar (E5).

Devido, possivelmente, à falta de compreensão e de discussão do que realmente pode, ou melhor, do que necessita ser feito a cada paciente que vivencia uma situação de terminalidade(11), algumas enfermeiras expressaram sua percepção de estar implementando terapêuticas fúteis, acarretando sofrimento ao paciente, o que lhes desencadeia sentimentos antagônicos. [... ] às vezes tu sente raiva, de que tu tá fazendo alguma coisa que seja fútil, que tu não vai mudar a situação daquele paciente, mas tu cria um vínculo e acha que até é melhor mesmo e tu pensa que no fundo, no fundo, quem sabe, tem uma esperança (E3).

Na perspectiva da obstinação terapêutica, o investimento indeterminado no tratamento de cura do paciente, aliado ao sentimento de esperança de sua melhora, parece ser motivado pelas dificuldades das enfermeiras em lidar com a morte e o morrer, e pelo não reconhecimento da impotência em evitá-las, ocorrendo, assim, implementação de terapêuticas que mantenham a ilusão de que a cura será atingida, mesmo não vislumbrando sua real possibilidade.

A implementação de tratamentos distanásicos parece basear-se, também, em concepções religiosas das enfermeiras, considerando que a doença e o sofrimento, decorrentes dela, podem ser um resgate de dívidas por erros cometidos no decorrer da vida do paciente. Eu fico pensando, meu Deus, às vezes eu acho que a gente tem que pagar um monte de coisas aqui na terra, para demorar tanto assim para morrer, ainda mais investindo desse jeito, prolongando cada vez mais (E6). Dessa forma, parece se justificar o máximo prolongamento da vida, sem preocupação com a qualidade da vida que está sendo prolongada, assim como com o sofrimento do paciente nesse processo e sem questionamentos acerca dos seus desejos e opções quanto ao que vem enfrentando. [...] aqui na UTI eu tenho funcionários bem religiosos que dizem que enquanto tem vida a gente tem que estar sempre tentando (E3).

A qualidade de vida, tratando-se do tema obstinação terapêutica, ainda que subjetiva, pode ser entendida como o processo de morrer sem dor e sem sofrimento, respeitando os desejos do paciente e possibilitando que ele e sua família compartilhem suas experiências(10).

A obstinação terapêutica como a priorização da cura

Outras enfermeiras apontaram que a obstinação terapêutica seria a execução de uma terapia que reconhecem como fútil, entretanto, necessária, pois há priorização da cura do paciente, como se pode perceber nesta fala: [...] pois, nós temos o costume, sim, de aqui na UTI continuar investindo no paciente, muitas vezes sabendo que é um paciente terminal e que não tem retorno. O investimento é grande em termos de antibióticos caros, a ventilação, o melhor respirador; a gente só não investe quando é paciente em morte cerebral, daí não. Porque nos outros é feito todo o investimento. Tem casos que o paciente não vai ter retorno em que o médico continua investindo. A gente sabe que aquele paciente não vai se recuperar em condições, só que nós, pelo menos eu, falo eu, eu vou se tiver que administrar tal medicação, eu vou. A assistência de enfermagem, ela é completa, para mim. Eu nunca vou com dúvida, nunca vou com raiva, é certo. Eu vou com aquela certeza que eu tenho que fazer (E1).

Muitas das medidas adotadas por essas profissionais podem estar pautadas no princípio da beneficência, acreditando que, por meio da manutenção da vida, estão beneficiando o paciente e minimizando danos, como a morte, aparentemente, na crença de que "enquanto há vida, há esperança". Expressões como essas são ouvidas frequentemente no contexto hospitalar e demonstram a necessidade de os profissionais da saúde lidarem com condições de certeza, sem espaço para dúvidas e questionamentos. Assim, decisões entre a vida e a morte devem ser tomadas entre esses parâmetros, sendo necessário continuar lutando pela vida até que se tenha a certeza da morte(1). Dessa forma, as profissionais podem estar implementando cuidados, baseadas em tentativas de evitar a morte do paciente.

O fato de o paciente ser despersonalizado, durante esse processo, sua real recuperação não pode mais ser desconsiderada, pois não há tempo a perder com questionamentos. Quando a saúde é apenas a ausência de doença e a medicina é apenas tecnocientífica e curativa, a atenção da equipe de saúde tende a se restringir à patologia a ser curada. Entretanto, é necessário questionar-se se a beneficência pode ser reduzida simplesmente para alcançar a cura, independente de sua real possibilidade e dos sofrimentos associados. Na perspectiva da saúde como um estado de bem-estar global, envolvendo os aspectos físico, mental e social, o que se deve tratar é o paciente, considerando a beneficência como o conjunto de fatores que podem levar ao bem-estar(12).

Muitas vezes, os profissionais da saúde podem não tomar consciência ou podem, até mesmo, negar que estão decidindo sobre o destino dos pacientes. Porém, as diferentes atitudes, tais como a decisão do médico de internar ou não na UTI, a opção por um ou outro tratamento, as ordens verbais de executar ou não manobras de reanimação cardiopulmonar e a implementação pela enfermagem de rotinas de cuidado significam decisões sobre o processo de viver e até de morrer das pessoas e de como suas famílias vivenciarão o processo de morrer do familiar doente, considerando-se apenas, por exemplo, o seu afastamento físico decorrente da internação em um ambiente fechado e de difícil acesso.

As manobras de reanimação cardiopulmonar, algumas vezes, são desencadeadas pelas enfermeiras, baseadas em ordens verbais prévias, como, comumente, no caso de plantões noturnos, em que a profissional dá início à reanimação até que o médico se apresente. Outras vezes, essas manobras são desencadeadas pelo médico plantonista, que decide pela sua realização, entretanto, frequentemente, sem avaliação anterior das chances de recuperação do paciente, nem o conhecimento prévio dos seus desejos e/ou dos seus familiares, tendo-se como único objetivo evitar a morte. Há casos extremos de a família interferir, espontaneamente, solicitando ser ouvida, como a seguir relatado. Eu tive uma menina de 15 anos internada muito tempo aqui, por uma insuficiência respiratória, pós-parada, a gente nunca soube do diagnóstico. Ela foi pro quarto, teve duas vezes no quarto e retornou para nós, parada, e a gente sempre revertendo, revertendo. E a última vez ela ficou internada no hospital por um ano e acho que na quarta internação dela na UTI, ela veio em parada cardiorrespiratória e nós fomos reverter a menina; nós estávamos com todos os nossos leitos ocupados, montamos um leito extra dentro da UTI, ficamos com o nosso 11° leito. Quando nós começamos a reverter a paciente, que ela já estava entubada, a mãe bateu na porta e pediu que não revertesse mais a sua filha. Isso aconteceu no meu plantão, eu fui chamada e a mãe me pediu. No momento assim foi uma coisa que nem raciocinei, voltei, parece que eu nem tinha escutado aquilo ali, neguei. Voltei, comuniquei à médica que também tomou um susto, a equipe tomou um susto, a médica foi na porta conversou com a mãe. Ela disse:"... minha filha tá sofrendo, faz um ano que eu venho nesse sofrimento, minha filha está sofrida, e não estou vendo volta, eu não tô vendo retorno e eu não quero que vocês reanimem a minha filha". A médica voltou e disse: "vamos parar". Quando ela disse isso, eu fiquei parada. Assim, para tentar entender aquela mãe, porque é difícil uma mãe chegar para ti e dizer: "não reverta mais meu filho". A gente realmente não reverteu, paramos com tudo, quem tava no ambu tirou. Aquela tarde foi uma tarde de silêncio, cada um cuidando dos seus pacientes, não se ouvia nada, não se ouvia um comentário (E1).

Dessa forma, os recursos terapêuticos podem estar sendo usados abusivamente, valorizando a vida, independente de suas condições, criando situações em que se pode identificar a obstinação terapêutica, não existindo definições claras do melhor a ser feito pelo paciente, como pode ser também percebido nesta fala: [...] tu vê que o paciente está ali só pelo efeito da medicação. Tu sabe que vai terminar aquele efeito e ele vai parar novamente. O paciente para e eles continuam reanimando. Eu cheguei a ouvir: "... tem que segurar até às oito que é a hora que eu saio" (E5).

As manobras de reanimação podem ser implementadas por receio de os profissionais da saúde se comprometer legalmente por deixar de fornecerem recursos terapêuticos aos pacientes. Em outras situações, há opção por não realizar manobras de reanimação cardiopulmonar, inexistindo qualquer tipo de registro no prontuário do paciente e, da mesma forma, quando elas são realizadas, a família não costuma ser previamente consultada. Parece existir receio, indefinição e, até mesmo, desconhecimento por parte dos profissionais da saúde de até que ponto investir na busca da cura de um doente.

A escolha por não reanimar o paciente não exclui que outros cuidados de enfermagem e médicos sejam realizados, pois não implicam abandono aos cuidados básicos necessários. Na medida em que o paciente é considerado incurável, os recursos terapêuticos destinados ao cuidado devem se sobrepor aos destinados à cura. Assim, cuidados básicos de enfermagem, tais como higiene oral, cuidados com a pele, mudanças de posição do paciente, entre outros, devem ser mantidos(13).

Enfrentamento da obstinação terapêutica: cuidado humanizado?

Algumas enfermeiras apontaram como estratégias de enfrentamento para questões referentes à obstinação terapêutica a adoção de um cuidado humanizado, no entanto, não foi apontado como poderia efetivá-lo. Considera-se, aqui, que a implementação de um cuidado humanizado implica, primeiramente, personalizar o paciente internado na UTI.

A fala de E1, ao se referir a um paciente tetraplégico que se encontrava internado na unidade há muitos meses, apresentando várias complicações, tais como insuficiência respiratória, traqueotomia, com consequente dificuldade de desmame do respirador, perda de peso, entre outros, denota a dificuldade de as enfermeiras se comunicarem com o paciente, impossibilitando o conhecimento do que ele deseja para si, o que pode estar contribuindo para a ocorrência de condutas obstinadas, terapeuticamente. Ele não fala, então, a gente não sabe nada, e claro, nem tem coragem de perguntar se ele sabe que não se movimenta. É uma situação... A gente já falou para ele que ele não se movimenta, que tem que fazer exame, que não tem certeza. Toda vez que a gente vai e fala, no final tu acaba sempre dando uma esperança para o paciente, porque tu nunca és definitiva. Na enfermagem ninguém é, a gente tá tentando, vai fazer um exame, "... vamos ver se o senhor vai conseguir recuperar, tem fisioterapia", acaba sempre dando uma esperança. A gente nunca diz para o paciente o que ele realmente tem. Então são coisas que não são trabalhadas, é muito difícil de se enfrentar (E1).

É possível perceber a dificuldade vivenciada por muitas profissionais de ouvir o paciente. Antes que ele tente se expressar, já lhe são dadas explicações aparentemente convenientes, como uma proteção para não abordar temas referentes à revelação do diagnóstico e prognóstico da doença, à morte e ao morrer. Possivelmente devido às dificuldades em abordar essa temática, não se abra espaço para o diálogo, podendo reprimir possíveis dúvidas e questionamentos que o doente possa fazer.

Parece necessário ouvir mais o paciente, falar sobre seus valores relacionados ao processo de morrer e de morte, perspectiva de vida, o modo como os sintomas da doença e do tratamento o afetam. É importante que mais de um profissional converse com o paciente, obtendo informações e discutindo-as em reuniões multiprofissionais periódicas sobre o melhor a ser feito. Apesar de as enfermeiras ocuparem grande parte do seu tempo, comumente escasso, com vários afazeres e, por vezes, excessivos, é necessário priorizar o diálogo devido à sua fundamental importância no estabelecimento de critérios para o tratamento do paciente(14).

No diálogo entre enfermeira e paciente, é importante, também, esclarecer as opções de cuidados a serem implementados e suas possíveis consequências, pois, para que o doente tenha condições de escolha, é necessário que as conheça. No modelo de assistência de cuidados paliativos, que se caracteriza pelo controle de pacientes com doença ativa e progressiva em fase avançada, para os quais o prognóstico é limitado e o foco dos cuidados é a qualidade de vida, considera-se indispensável despender um tempo para o esclarecimento das opções para o paciente e seus familiares(15).

Dessa forma, o início de um diálogo pode ser estabelecido, antes da realização de procedimentos e da implementação de terapêuticas, por meio da solicitação do consentimento do paciente, reconhecendo-o como sujeito e mantendo o caráter humano das relações entre indivíduos que vivenciam situações radicais de extrema vulnerabilidade. A solicitação do consentimento é um procedimento mínimo e obrigatório que demonstra responsabilidade para com o paciente e o protege de eventuais abusos, garantindo e promovendo que os relacionamentos entre pessoas que não se conhecem permaneçam éticos(16).

Além do diálogo com o paciente, é importante que as enfermeiras conversem com a equipe de enfermagem, com o médico e demais profissionais que podem atuar na assistência, estabelecendo corresponsabilidade e construindo trabalho em equipe, como forma de produzir maior comprometimento do todo em benefício do doente, estabelecendo, conjuntamente, as melhores condutas a serem seguidas. Nesse complexo de relações, o conjunto de profissionais responsabiliza-se pelo envolvimento com o paciente e seus familiares, integrando-os aos cuidados prestados, como forma de torná-los ativos e capazes de assumir.

Acredita-se que o exercício do pensamento seja importante estratégia de instrumentalização para o cuidado de pacientes em fase terminal da doença, além de possibilitar reflexão sobre as melhores condutas a serem adotadas, evitando a distanásia.

Ainda, o processo de formação das profissionais de enfermagem necessita incluir a discussão de questões éticas, como a obstinação terapêutica, preferentemente, em situações práticas e de estágios, visando um profissional que alie a competência técnica com a sensibilidade humana.

CONCLUSÃO

A obstinação terapêutica caracteriza-se por ser uma problemática da atualidade. Esse evento é muito presente nas unidades de terapia intensiva, onde os diversos equipamentos de alta tecnologia são capazes de manter a vida, mesmo nos casos de acometimento de órgãos vitais e outras estruturas.

A reflexão sobre os significados das práticas vivenciadas e dos valores considerados na avaliação para a escolha de terapêuticas a serem utilizadas é importante, na medida em que possibilita mudanças no fazer. Não implementar tratamentos de cura não significa deixar o paciente morrer, mas, sim, aceitar o processo de morte, que não tem como ser evitado. As enfermeiras podem contribuir para a manutenção da qualidade de vida, realizando cuidados que possibilitem diminuição da dor física e do sofrimento psíquico e pelo atendimento aos desejos do paciente, bem como favorecendo maior proximidade com seus familiares.

Uma relação ética e que respeite a autonomia do paciente pode se estabelecer por pequenas atitudes, como decidir com o paciente o momento mais conveniente para tomar seu banho de leito, aceitar sua recusa em ingerir alguma medicação, priorizar a sua privacidade na realização de procedimentos que exponham seu corpo, chamá-lo pelo nome, importar-se se algum procedimento lhe causa dor. Outras estratégias de enfrentamento podem ser discutidas pelas próprias equipes de saúde que atuam nas UTIs, bem como de outros estudos e aprofundamentos.

O trabalho demonstra a necessidade e a importância de se assumir o grande desafio ético de avaliar as medidas terapêuticas que devem ser utilizadas no tratamento de pacientes em processo de morrer e de morte, garantindo que vivam as fases finais de suas vidas com qualidade, considerando que, quando a cura não é mais possível, é necessário cuidar, preocupando-se com a pessoa doente e respeitando a sua integridade, lembrando que o cuidado é a base do exercício profissional da enfermagem.

REFERÊNCIAS

  • 1. Pessini L. Distanásia: até quando prolongar a vida? São Paulo: Editora do Centro Universitário São Camilo: Loyola; 2001.
  • 2. Costa Juliana Cardeal da, Lima Regina Aparecida Garcia de. Luto da equipe: revelações dos profissionais de enfermagem sobre o cuidado à criança/adolescente no processo de morte e morrer. Rev. Latino-Am. Enfermagem [periódico na Internet]. 2005 Abr [citado 2008 Dez 27]; 13(2):151-157 Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-11692005000200004&lng=pt doi: 10.1590/S0104-116920 05000200004.
  • 3. Poles Kátia, Bousso Regina Szylit. Compartilhando o processo de morte com a família: a experiência da enfermeira na UTI pediátrica. Rev. Latino-Am. Enfermagem [periódico na Internet]. 2006 Abr [citado 2008 Dez 27] ; 14(2): 207-213. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0104-11692006000200009&lng=pt doi: 10.1590/S0104-11692006000200009.
  • 4. Pessini L, Barchifontaine CP. Problemas Atuais de Bioética. 6a ed. São Paulo: Editora do Centro Universitário São Camilo: Loyola; 2002.
  • 5. Pinheiro CTS. O paciente e seu Atendimento em Terapia Intensiva. In: Barreto SSM, Vieira SRR, Pinheiro CTS, organizadores. Rotinas em Terapia Intensiva. 3a ed. Porto Alegre: Artmed Editora; 2001. p. 25-30.
  • 6. Kipper D. O Problema das decisões médicas envolvendo o fim a vida e propostas para nossa realidade. Disponível em: http://www.portalmedico.org.br/revista/bio1v7/simposio.htm , 2005.
  • 7
    Ministério da Saúde (BR). Conselho Nacional de Saúde, Comitê de Ética em Pesquisa em Seres Humanos. Resolução n. 196 de 10 de outubro de 1996: diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisa envolvendo seres humanos. Brasília (BR): O Conselho; 1996.
  • 8. Minayo MC de S. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. 5a ed. São Paulo: Hucitec-Abrasco; 1998.
  • 9. Beauchamp TL, Childress JF. Princípios de Ética Biomédica. São Paulo: Edições Loyola; 2002.
  • 10. Esslinger I. De quem é a vida afinal? São Paulo: Casa do Psicólogo; 2004.
  • 11. Braz E, Fernandes LM. Buscando maneiras para o ensino sobre finitude para graduandos de enfermagem. Texto Contexto Enferm. 2001 setembro-dezembro; 10(3):138-51.
  • 12. Martin LM. A ética e a humanização hospitalar. In: Pessini L, Bertanchini L, organizadores. Humanização e Cuidados paliativos. São Paulo: Edições Loyola; 2004. p. 31-49.
  • 13. Pithan LH. Dignidade humana como fundamento jurídico das "ordens de não-ressuscitação" hospitalares. Porto Alegre: EDIPUCRS; 2004.
  • 14. Santos M, Santos DV dos, Massarollo MCKB. Posicionamento dos enfermeiros relativo à revelação de prognóstico fora de possibilidade terapêutica: uma questão bioética. Rev. Latino-am Enfermagem 2004 setembro-outubro; 12(5):790-6.
  • 15. Menezes RA. Em busca da boa morte antropologia dos cuidados paliativos. Rio de Janeiro: Garamond: Fiocruz; 2004.
  • 16. Neves MP. Contexto Cultural e consentimento: uma perspectiva antropológica. In: Pessini L, Garrafa V, organizadores. Bioética: poder e injustiça. São Paulo: Edições Loyola; 2003. p. 487-98.
  • 1
    Paper extracted from Master's Thesis
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      03 Ago 2009
    • Data do Fascículo
      Jun 2009

    Histórico

    • Recebido
      26 Nov 2007
    • Aceito
      01 Abr 2009
    Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto / Universidade de São Paulo Av. Bandeirantes, 3900, 14040-902 Ribeirão Preto SP Brazil, Tel.: +55 (16) 3315-3451 / 3315-4407 - Ribeirão Preto - SP - Brazil
    E-mail: rlae@eerp.usp.br