Resumos
Esta produção teórica, apoiada em formulações presentes no debate acadêmico em torno dos processos assistenciais em saúde, oferece subsídios à qualificação do cuidado individualizado. Argumenta-se em prol do resgate da intersubjetividade na atenção, focando aspectos interacionais socioculturais e psico-afetivos, tomando-os como dimensão essencial na construção de uma nova relação com os sujeitos alvos de atenção e de uma abordagem ampla das suas vivências e necessidades em saúde.
qualidade dos cuidados de saúde; promoção da saúde; prestação de cuidados de saúde
This theoretical production, based on academic debates concerning health care processes, offers elements to support the qualification of individualized care. Arguments in favor of the recovery of inter-subjectivity in care are developed, focusing on sociocultural and psycho-affective aspects of interaction and considering them as an essential dimension in the construction of a new relation with the people who receive care, as well as a broad approach to their health experiences and needs.
health care quality; health promotion; health care delivery
Esta producción teórica, basada en formulaciones presentes en el debate académico sobre procesos asistenciales en salud, ofrece elementos para apoyar la calificación del cuidado individualizado. Se argumenta a favor del rescate de la intersubjectividad en la atención, enfocando aspectos socioculturales y psíquicoafectivos de la interacción, tomados como dimensión esencial en la construcción de una nueva relación con los sujetos del cuidado y de un abordaje amplia de sus vivencias y necesidades en salud.
calidad de atención de salud; promoción de salud; prestación de atención en salud
ARTIGO DE REVISÃO
Intersubjetividade na qualificação do cuidado em saúde
Inter-subjectivity on the qualification of health care
Intersubjetividad en la calificación del cuidado en salud
Edir Nei Teixeira Mandú
Doutor em Enfermagem, Professor da Faculdade de Enfermagem e Nutrição da Universidade Federal de Mato Grosso, e-mail: enmandu@terra.com.br
RESUMO
Esta produção teórica, apoiada em formulações presentes no debate acadêmico em torno dos processos assistenciais em saúde, oferece subsídios à qualificação do cuidado individualizado. Argumenta-se em prol do resgate da intersubjetividade na atenção, focando aspectos interacionais socioculturais e psico-afetivos, tomando-os como dimensão essencial na construção de uma nova relação com os sujeitos alvos de atenção e de uma abordagem ampla das suas vivências e necessidades em saúde.
Descritores: qualidade dos cuidados de saúde; promoção da saúde; prestação de cuidados de saúde
ABSTRACT
This theoretical production, based on academic debates concerning health care processes, offers elements to support the qualification of individualized care. Arguments in favor of the recovery of inter-subjectivity in care are developed, focusing on sociocultural and psycho-affective aspects of interaction and considering them as an essential dimension in the construction of a new relation with the people who receive care, as well as a broad approach to their health experiences and needs.
Descriptors: health care quality; health promotion; health care delivery
RESUMEN
Esta producción teórica, basada en formulaciones presentes en el debate académico sobre procesos asistenciales en salud, ofrece elementos para apoyar la calificación del cuidado individualizado. Se argumenta a favor del rescate de la intersubjectividad en la atención, enfocando aspectos socioculturales y psíquicoafectivos de la interacción, tomados como dimensión esencial en la construcción de una nueva relación con los sujetos del cuidado y de un abordaje amplia de sus vivencias y necesidades en salud.
Descriptores: calidad de atención de salud; promoción de salud; prestación de atención en salud
INTRODUÇÃO
Pensar-atuar no âmbito da atenção à saúde de forma inovadora requer dos profissionais uma postura permanente de reflexão e investimentos éticos em torno da construção de uma nova qualidade assistencial, que possa responder de forma ampla a necessidades de saúde, de acordo com as possibilidades e os potenciais institucionais locais.
Comprometendo-se com essa construção, neste artigo, destacam-se alguns elementos reflexivos substanciais à análise e renovação dos cuidados em saúde. De forma argumentativa, recorrendo a algumas formulações acadêmicas, apresentam-se subsídios ao incremento da capacidade técnica, política e ética de acolher pessoas que recorrem à atenção individualizada, objetivando considerar mais vastamente suas necessidades.
Nacionalmente, a premência da transformação da lógica predominante no setor saúde está posta, tendo em vista a superação de seu perfil excludente e a ampliação do impacto tecnológico na base da atenção - via promoção da saúde. Isso requer, entre várias outras possibilidades, fundamentos e processos de inovação relativos ao trabalho assistencial e gerencial.
Proposições em circulação abarcam idéias como vigilância à saúde, atenção integral e equânime, atendimento personalizado, geração de vínculo e estímulo ao autocuidado. Nesse conjunto, evidencia-se a relevância de ultrapassar os tradicionais recortes prévios e limitados dos problemas de saúde-doença a enfrentar (por classificações e/ou situações de risco), mediante a organização de assistência mais aberta à percepção e absorção das diversas necessidades em saúde.
Entre questões cruciais na atenção predominante, encontram-se: a limitação do acesso aos cuidados, associada à organização de ações fechadas à expressão/captação de importantes questões vitais; a manutenção de processos e tecnologias de trabalho homogeneizantes, que desconsideram a diversidade de condições, identidades, experiências e contextos de intersubjetividade * * Utiliza-se no texto o termo intersubjetividade, em lugar de subjetividade, evidenciando a sua dimensão relacional e histórica (crenças, valores, conhecimentos, desejos, temores, etc.); a permanência da tradição autoritária, distanciada e hierarquizante nas inter-relações entre profissionais e sujeitos alvos dos cuidados em saúde, centrada em referências profissionais e em um modo científico (biomédico) de identificar, controlar e tratar problemas, que exclui os saberes e as experiências diversos do outro pólo da relação.
Certamente tais permanências alicerçam-se no caráter social e político das produções em saúde. Parte das explicações pode ser encontrada nos modos históricos de organização dos processos de trabalho gerencial e assistencial, da qual faz parte o reconhecimento da insuficiência das tecnologias tradicionais para dar substância a inovações no campo dos cuidados à saúde.
Mudanças na atenção dependem de novos arranjos tecnológicos - entre instrumentos, saberes e relações dos sujeitos envolvidos no ato de cuidar - repensados/recriados em articulação como os demais componentes implicados no trabalho. Ou seja, inovações assistenciais englobam, dentre outros aspectos, a construção/reconstrução social do trabalho como totalidade - de suas finalidades, objetos, ações, tecnologias, modos de inserção dos envolvidos, produtos(1), considerada a sua inclusão em dadas condições concretas.
Sem negar tal pressuposto, recortam-se, a seguir, alguns argumentos em torno da construção de uma nova visão/relação com o objeto de trabalho (sujeitos e suas necessidades) e da recriação de tecnologias relacionais, destacando o tema da intersubjetividade. Tais argumentos podem ser tomados como uma das bases para repensar/recriar o todo do trabalho, voltado ao cuidado individual, particularmente em serviços de atenção básica.
ATENÇÃO INDIVIDUAL - VALORIZAÇÃO DA INTERSUBJETIVIDADE PARA UMA NOVA QUALIDADE
Ampliação do olhar sobre o sujeito da atenção e suas necessidades
O trabalho em saúde sustenta-se em um dado olhar dos profissionais (que é social) sobre o sujeito do cuidado, suas necessidades e modos de nelas atuar - quais são, quais suas bases geradoras, como e apoiadas em que podem ser enfrentadas.
Esse olhar, na prática presente, comumente se organiza em consonância com saberes médico-científicos estruturados e predominantes (partes da racionalidade científica construída em meio a relações sociais capitalistas na modernidade). Esses saberes são constituintes da formação e dos nichos de especificidade dos vários campos profissionais, sendo mobilizados, em alguma medida, pelas/nas interações que ocorrem entre profissionais e desses com os sujeitos que demandam atenção e que tornam as ações/relações atos singulares. Na realização do processo de atenção em saúde, inscrevem-se mais ou menos saberes estruturados, de acordo com as suas finalidades sociais e com as condições e disputas interacionais que ali, de algum modo, se processam(2).
Com predomínio, os saberes utilizados na prática profissional em saúde compõem-se de fundamentos das ciências biomédicas e da epidemiologia clínica, do que decorre redução tanto da complexidade dos sujeitos alvos da atenção quanto da interpretação de quais, de fato, são suas necessidades em saúde e de como apoiá-las.
Essas referências sustentam uma visão de saúde subsumida na questão doença, em que se privilegiam lineares determinações biológicas, que relegam contextos de vida e processos psicoculturais singulares dos sujeitos. Essas bases deslocam, nos encontros assistenciais, as experiências vividas pelas pessoas e suas próprias interpretações e interesses em torno do que é necessário. Além disso, interpretam necessidades e alternativas de resolução dos problemas de saúde basicamente através da ciência e suas técnicas(3).
Esse reducionismo não é inerente apenas à visão das ciências biomédicas, mas também se encontra presente na adoção de outros enfoques disciplinares - da psicologia, sociologia e de outras disciplinas das ciências sociais e humanas - sobretudo quando eles assumem orientações positivistas, normativas, exclusivistas ou de caráter apenas agregador àquela visão(3).
Desse modo, no que diz respeito à aproximação dos sujeitos alvos da atenção e de suas necessidades, é relevante a adoção/criação de composições tecnológicas mais abertas à complexidade vital humana.
Não se recusa o fato de que a epidemiologia clássica tem sido pertinente à estruturação dos serviços/atenção e que a clínica também é um campo de conhecimento competente para responder a um certo conjunto de necessidades. Entretanto, dada a complexidade envolta nessa questão, a sustentação do trabalho em saúde deve se dar, também, com base em saberes diversos, que permitam um olhar e fazer mais aproximados dos sujeitos e de seus processos(4).
Nesse sentido, relevando-se a inter-relação de disciplinas e a perspectiva científica no trabalho em saúde, esse pode ser enriquecido por referências mais críticas das ciências sociais, políticas, da antropologia, da psicologia, etc. Tais referências são relevantes para aproximação e resposta a uma gama mais extensa de necessidades, assim como à qualificação dos diálogos, produção de autonomia e participação política em saúde (parte da resposta àquelas).
Focando a intersubjetividade presente na atenção (essencial à expressão/acolhimento de necessidades), também se pode reconhecer suporte mais amplo e crítico incorporando-se o saber prático. A sabedoria prática, não regulatória (traçada a priori como procedimento sistemático e universal prévio ao ato de interação), que tenha a emancipação como intenção ética, pode ampliar e qualificar o cuidado em saúde. Nessa perspectiva, é substancial a criação de um espaço relacional que extrapole e sobreponha o saber-fazer científico-tecnológico, no sentido de sua arrogância, ainda que nele se estabeleçam apoios(5). Trata-se, dito de um outro modo, de também valorizar saberes que se distinguem da universalidade das ciências e técnicas, como um saber preocupado, ao assistir, com o "outro", em sua totalidade.
Nessa direção, destaca-se o valor da incorporação da tradição da educação popular na atenção, incluindo o diálogo com os saberes e práticas populares em saúde. Esses saberes, compondo o campo da arte em saúde, podem favorecer a expressão e o acolhimento de demandas/necessidades que não são comumente consideradas/satisfeitas pelas vias científicas tradicionais(6-8).
É esperado que pessoas, frente a processos de saúde-doença, inevitavelmente se vinculem ou dirijam aos serviços de saúde, na medida em que esses representam parte dos sistemas de cuidados socialmente criados e dos mecanismos sociais que aquelas dispõem para recomposição de suas vidas. Contudo, é certo que inúmeras necessidades vividas não se exprimem como demandas aos serviços de saúde.
Comumente, necessidades traduzidas em demandas formais ou informais aos serviços expressam, em princípio, a busca de prevenção ou resolução de um possível mal-estar/problema, apresentando-se de forma sintonizada com o modo de organização do trabalho assistencial e as possibilidades de atenção historicamente recortadas. A percepção de alternativas disponíveis, do que se pode apresentar como demanda, assim como a própria busca de soluções, encontram-se limitados ao modo como nos serviços se produzem ações de atenção à saúde. Se um dado espaço é aberto à sua expressão, necessidades tendem a se manifestar explicitamente; se esse é restrito, essas não se transformam necessariamente em demandas formais, embora não deixem de se apresentar, de algum modo, como processos integrantes que são da vida humana em sua totalidade.
A experiência individual do adoecer é vivida de modo particular e único (embora espelhe o coletivo), constituindo-se comumente em momento de desordem física, subjetiva e contextual. Tais desordens são acompanhadas da procura de reorganização da vida, da retomada da independência perdida, do viver sem sofrimento e com qualidade, aspectos todos que, de algum modo, tendem a se manifestar nos serviços.
Assim, pois, subliminarmente às demandas moldadas por delineamentos prévios dos serviços enunciam-se processos mais abrangentes, que abarcam questões relativas às condições sociais, grupais e familiares vividas e a aspectos da intersubjetividade (conflitos, sofrimentos, questões psico-afetivas, sexuais, discriminações, etc.), não traduzidos primariamente como necessidades, problemas ou demanda de cuidados específicos.
A inter-relação necessidades-demandas-acolhimento dos serviços é bastante complexa, uma vez que a saúde depende amplamente, dentre outros fatores, da qualidade de vida, do modo de caracterizá-la, da tradução cultural da saúde-doença e cura, do perfil de proteção social presente no setor e dos modos de atenção construídos e direcionados a necessidades humanas.
Destacada a atenção individual, se a lógica que a perpassa organiza-se com base na simplificação da vida, por referência a uma proteção limitada a um quadro estrito e previamente priorizado de riscos e morbidades que restringe o olhar sobre o sujeito e suas necessidades, é certo que necessidades mais amplas, relativas ao viver, às inter-relações, à realização pessoal, ao prazer, a interações corporais significativas, ficam deslocadas no encontro com os serviços de saúde.
A assistência integral, se em perspectiva, reconhece a importância dos contextos, cenários familiares, processos culturais, intersubjetividades, relações de poder, considerando as peculiaridades das necessidades e as perspectivas e interesses dos sujeitos envolvidos. Portanto, todos esses componentes devem ser considerados como ponto de partida e chegada de possíveis definições/redefinições no cuidado individualizado em torno de aonde chegar, com que intenção, alcançando que sujeitos, com que conteúdos e formas.
Nesse processo, é fundamental a crítica ao modo histórico de a sociedade e os serviços de saúde aproximarem-se e lidarem com os corpos e a intersubjetividade criada/recriada nas relações.
Todo profissional de saúde, independente de sua área de atuação, defronta-se com processos mais gerais de vida e sofrimento, de várias ordens, que, dentre outras, envolvem necessidades relativas à esfera da intersubjetividade e demandam a adoção de tecnologias que as observem e absorvam em alguma medida(1).
A racionalidade científica, dentre outros processos que organizam e regulam a assistência, exerce controle sobre o trabalho do profissional, orientando e restringindo sua autonomia e criação no modo de fazê-lo(9). Entretanto, essa inscrição social na configuração da ação profissional não é mecânica. As ações profissionais não são reflexos puros do social e sim a sua inscrição recriada no próprio transcurso do trabalho, face às relações, tensões, reflexões que o envolvem, que inserem a possibilidade de participação ativa do trabalhador(10) e uma assunção ética comprometida com possíveis mudanças.
A partir dessa visão dialética, inscreve-se, em alguma medida, tanto a necessidade como a possibilidade histórica de construção de novas alternativas nos vários campos profissionais, abertas, nos diferentes âmbitos de atuação, ao acolhimento de sofrimentos vividos e, também, ao sentido de interação/construção corporal e subjetiva que se processa, queira-se ou não, nos vários momentos de atuação profissional.
Nesse sentido, é relevante tanto o apoio a um leque mais amplo e crítico de referências científicas como o suporte em alternativas tidas como não científicas (que valorizam trocas intersubjetivas e saberes práticos), para que trabalhadores, ao lidar com necessidades, configurem uma face ética e humanizada ao atendimento individualizado.
A intersubjetividade como alvo de investimento e transformação do cuidado
Sendo considerada a intersubjetividade na qualificação do cuidado individualizado em saúde, essa se manifesta como história relacional vivida, como linguagens, intercomunicação, conhecimento, valores, crenças, emoções, desejos, temores, perspectivas, projetos.
Vários estudiosos, a partir da crítica à medicina tecnológica e ao seu empobrecimento no trato com as questões da intersubjetividade e participação política, têm dimensionado esse lócus, o das inter-relações ou intersubjetividade, como espaço importante de investimento, com implicações significativas na transformação do atual modelo assistencial.
Ações eficazes em saúde devem entrar nesse terreno, entendendo-o, nele operando, com intencionalidade para além da cura e prevenção, na direção do alívio dos sofrimentos vividos pelas pessoas(2).
A percepção da diversidade cultural no modo de ver e viver a saúde-doença, prevenção e cura, pelas diferentes coletividades, grupos e sujeitos, é crucial na qualificação das instituições, das inter-relações, na identificação de necessidades e nos resultados obtidos(11).
O encontro entre a clientela e profissionais disponibiliza um espaço peculiar ao resgate da intersubjetividade, em sua relação com a construção da saúde, que, como já se observou, é negligenciado nas atuais práticas em saúde.
Valorizar a intersubjetividade na atenção e lidar com ela de forma apropriada imprime um lugar ao poder subjetivador do momento assistencial, ou seja, ao empoderamento ou construção do poder de ser pessoa, podendo produzir emancipação humana(12-13). A emancipação ou autonomia dos sujeitos, como escuta compartilhada de si mesmos e participação política ativa e crítica na vida pessoal e social, é vital à conquista da saúde, da cidadania e à democratização dos serviços, constituindo-se em um dos esteios da proposta de construção da reforma sanitária no país e de conquista de melhores condições de vida e saúde.
De igual modo, não se pode investir na adoção de estilos de vida mais saudáveis e práticas de autocuidado sem considerar a questão da intersubjetividade, em componentes tais como valores, conceitos, prazeres, medos, vontades, desejos conscientes e inconscientes, etc., uma vez que os modos de agir e cuidar-se em saúde não se desvinculam do universo cultural e psico-emocional dos sujeitos, sendo esses vistos como seres mais que racionais e auto-regulados.
O lugar onde os imperativos sociais/da saúde funcionam de forma mais constritora, no controle e gerenciamento do corpo, é na sua associação com o eu interior, em que se podem localizar, reforçar ou superar processos impeditivos ao bem-estar, associados a distinções e hierarquias de gênero, etnicidade, classe social, preferência sexual, dentre outras(14).
As inter-relações presentes nos serviços de saúde, entre os envolvidos na atenção, abrangem mais que um encontro físico, intermediado pela aplicação de medidas técnico-científicas. Tal encontro diz respeito a um acontecimento intersubjetivo entre sujeitos eminentemente relacionais, culturais, políticos e psico-afetivos, imersos em contextos de relações e produção/reprodução de ações e simbolismos diversos. Nesses contextos, a saúde, a doença, as demandas, a organização e os modos de realização dos cuidados constituem-se em formas múltiplas e dinâmicas elaboradas/reelaboradas na relação entre os níveis macro e microssocial(2,11,15).
O encontro intersubjetivo que se processa na atenção individualizada coloca em cena peculiaridades do universo afetivo, cultural e social de ambos, sujeitos e agentes da atenção. No atendimento em saúde, ocorre o encontro/desencontro de processos, perspectivas de vida e produção de significados distintos (ainda que com elementos em comum).
No que concerne à clientela, é certo que nem sempre essas peculiaridades são explicitadas e intercambiadas no ambiente da atenção. Mas, mesmo quando há pouco espaço ou existe controle sobre elas, exprimem-se percepções/manifestações afetivo-culturais - acerca da condição vivida (estar bem ou doente; ter esta e/ou aquela necessidade; ser esta e/ou aquela a causalidade do problema enfrentado), dos caminhos, momentos ou eventos importantes de abordagem, além de credibilidades, incredulidades, sofrimentos e expectativas em torno de dadas respostas por parte dos serviços/profissionais.
A doença e, também, outras condições e experiências vividas no âmbito do que se denomina vivência da saúde não se limitam a uma simples referência biológica para quem a experimenta; mais amplamente, a condição vivida de saúde-doença serve de substrato para construções culturais, concomitantes à experiência biológica(11). Ou seja, cada pessoa tem uma dada percepção ou leitura acerca do que sente e percebe fisicamente manifesto em seu corpo.
Mais que isso, cada sujeito vivencia a sua condição corporal e a ela reage, de modo peculiar, por meio de idéias, valores, projeções e comportamentos, associados a emoções e sentimentos, que representam um modo sociocultural e psico-afetivo de traduzir a vida, que também é filtrado por trajetórias particulares de vida.
Assim, outro aspecto fundamental, considerada a dimensão intersubjetiva, diz respeito ao fato de que a existência humana em meios e circunstâncias diversos, ao englobar sofrimentos e relações entre pessoas, mobiliza continuamente afetividade e criação.
Em síntese, no encontro presente na atenção apresentam-se, explicitamente ou não, no que tange aos sujeitos alvos do cuidado, processos subjetivos relativos a trajetórias, situações e relações vividas, que englobam entrelaçados aspectos orgânicos, socioculturais e afetivos, a serem considerados na qualificação do trabalho em saúde.
No encontro intersubjetivo em saúde também se exprimem afetividades e leituras peculiares dos profissionais, sobre o que são os problemas, as necessidades e as alternativas às situações vividas pelos que requerem cuidados, iluminadas por determinadas perspectivas afetivas, socioculturais, experiências práticas (próprias ou da clientela) e por fundamentos teórico-metodológicos que dão sustentação ao seu saber-fazer.
Uma questão relevante é que comumente as leituras profissionais, orientadas pela visão e prática biomédicas (como já mencionado), são acompanhadas de apropriação inquestionável da intersubjetividade dos sujeitos alvos de cuidados, em acordo com a superioridade socialmente atribuída ao saber científico moderno. Por decorrência, ficam obscurecidos (mas não anulados) e subalternizados, no encontro intersubjetivo, processos discursivos e não discursivos - modos de pensar, valorar, conhecer, sentir, relacionar-se - dos sujeitos que demandam atenção. Desloca-se a sua intersubjetividade, no que diz respeito à cognição, aos discursos, a formas de entender e participar, a crenças, visões de futuro, facetas valorativas, parâmetros, significações, códigos, proposições, linguagens. De igual modo, deslocam-se capacidades, gestos, posturas, movimentos, hábitos, facetas afetivas, interação, exercícios de liberdade e potencialidades.
Reconhecer esse perfil e suas raízes possibilita, em alguma medida, ver a necessidade de dar espaço ao que fica subsumido na interação assistencial e também o imperativo de construir conjuntamente sentido para o manifesto e eleito, resgatando-se a centralidade da atenção nos sujeitos alvos da atenção.
Vivências corporais, saúde e doença, dor e sofrimento, busca e uso de alternativas de prevenção e cura são experiências moldadas pelas condições e história vividos, pelos contextos socioculturais partilhados, com seus símbolos e manifestações diversos - gestos, linguagens, movimentos, expressões, sensações - que dão origem à comunicação, à intersubjetividade, aos sujeitos.
Entender o modo de sentir, pensar e agir em relação à vida é possível na medida em que se considerem os processos corporais como fenômenos sociais. Ou seja, na medida em que se situe a sua constituição na trama histórica de relações sociais que lhe conferem significações, considerando que a micropolítica da vida/do corpo expressa e mobiliza a macropolítica das relações sociais. Posto de outra forma, o modo como vivemos o nosso corpo - idéias, sensibilidades, gostos estéticos, reações, preferências, sonhos, sentimentos, preocupações, ações - tem uma história e significações articuladas a processos econômicos, culturais e políticos(16).
Tomar, no cuidado individualizado, o corpo/os corpos como referência isolada, abstraídos de sua inserção social e complexidade, é parte do modo ideologicamente estruturado de apresentá-lo e tratá-lo em nossa sociedade. Porém, através dele/deles se processa a história humana e isso o constitui como material de concretude social, de modo que sua importância atrela-se ao fato de que, através dele/deles, tanto se reproduz como transforma a vida dos humanos.
Nesse sentido, para a atenção apropriada em saúde, é fundamental que se recuperem os seus simbolismos, sensibilidades, afetividades, potencialidades e capacidade de criação, inseridos na diversidade sociocultural, mediante o exercício reflexivo e interativo contínuo de aproximação e interpretação histórica das peculiaridades da vida dos sujeitos.
As condições vividas (incluindo ritmos de trabalho) permitem ou não dadas construções intersubjetivas, a adoção de determinados comportamentos e a realização de desejos e preferências, pois há relativa autonomia das estruturas simbólicas em relação aos processos sociais.
A dimensão sociocultural intercambia processos como: coerções do sistema social e econômico (de classe, gênero, etnias, sexualidades, geração, etc.); regimes culturais hegemônicos ou não (do setor saúde, das religiões, da escola, dos meios de comunicação, da família, das leis, da moralidade, etc.); valores tradicionais das gerações(17).
O sujeito e suas experiências constituem-se em uma dada estrutura sociocultural global, em uma dada contemporaneidade, em meio a certas condições vitais e a dadas comunicações, códigos (predominantes ou não), trajetórias, interesses compartilhados e/ou confrontados. Nessa estrutura o sujeito aprende, constrói e reconstrói sensações, expressividades, desejos, registros, reações, respostas afetivas, enfim, sociabilidades e identidades manifestas mediante linguagens corporais e orais.
Assim, a saúde, a doença, os cuidados com a vida são construídos em meio a uma ritualização. Essa engloba comunicação, recursos da oralidade, da linguagem corporal, relativos à dor, ao padecimento, a carências, a desconfortos, em que se evidenciam desordem orgânica e padrão social de desordem, expressão da articulação do orgânico a um sistema de referências aprendidas/vividas (ao ambiente)(15). Ou seja, também aprendemos, na intimidade de nosso corpo, a estar sadio ou doente, de acordo com o ambiente em que vivemos.
Mas se é preciso destacar que as experiências e leituras em saúde-doença são delimitadas pelo contexto, pela simbologia da cultura partilhada, pelos hábitos, esses ganham peculiaridade considerada a trajetória de vida pessoal. Os processos e comportamentos naquele âmbito, tão caros ao trabalho em saúde, são modelados na trajetória de vida, englobando a dimensão da afetividade humana.
A dimensão psico-afetiva, que não se descola da biológica e sociocultural, faz parte da história de vida, do desenvolvimento da individualização (com determinações relevantes na infância), e nela se elabora/reelabora. Na construção do eu interior encontram-se sentimentos conscientes e inconscientes, de prazer, satisfação, tristeza, frustração, ressentimento, culpas, necessidades; imagem de si, que modelam a vida, sua produção/reprodução e modos de nela se colocar, intimamente relacionados aos comportamentos em saúde(14).
Os processos socioculturais que modelam a vida são filtrados, podendo passar despercebidos, ser transformados, mantidos, contestados ou usados com outros sentidos. Isso de acordo com condições vividas (oportunidades), com as experiências partilhadas(18), com os sentimentos, preferências, desejos, estilos (conscientes e inconscientes), com as percepções de si (auto-imagem e estima), dos outros e da realidade(14).
A idéia aqui é a de que há um pólo dinamizador das vivências, configurado como agência-resistência, que é parte da intersubjetividade e se constrói no interjogo das forças sociais (considerada a produção de desigualdades e conflitos decorrentes), das forças libidinais (dimensão inconsciente e consciente) e, também, do autocontrole consciente (desenvolvimento de filtros críticos)(14).
Assim, a dimensão político-ética constitui o contexto de intersubjetividade e nele se define/redefine, ou seja, questões como imposições, passividade, conflitos, resistência, entre profissionais e sujeitos alvos da atenção são materiais presentes na produção em saúde, construídos/reconstruídos na interface entre posicionamentos críticos/acríticos, desejos e forças sociais.
O universo das inter-relações engloba permanentes disputas e composições em torno de várias lógicas sociais, manifestações de interesses e interdições, imposições e recusas, contendo, assim, elementos ideológicos e afetivos que dão significado produtivo, direção e dinamicidade às relações(2).
No sistema de saúde reproduzem-se diversas relações sociais de poder - como aquelas entre classes sociais, gênero, etnia, raça, etc., expressas, entre outras, nas interações entre profissionais e sujeitos que demandam atenção. O modo como se lida com a questão do poder (pólo agência-resistência) pode gerar mais ou menos autonomia, controles ou aprisionamentos.
O poder é uma dimensão cultural histórica, catalisadora de forças e direção, envolvendo absorção, consensos e confrontos. Nos serviços, essa dimensão apresenta-se com força e precisa ser visualizada e revalorizada como alvo de ação crítica, uma vez que por seu intermédio pode-se conquistar mais ou menos saúde, pode-se aproximar mais ou menos das diversidades vividas, dos sujeitos, de seus interesses e necessidades.
No trabalho cotidiano, isso requer abertura ao sujeito que busca ou necessita de atenção, que deve ser visto e tratado como um sujeito ético-político com movimentos e potencialidades e não como um objeto isolado, dado, passivo, subordinável à intervenção definida em bases unilaterais e à racionalidade uniforme e hierarquizante das teorias, técnicas, regras e inter-relações.
NOVAS RELAÇÕES GERADORAS DE BEM-ESTAR, AUTONOMIA, CIDADANIA
Relevando os contextos e processos de intersubjetividade na qualificação da atenção à saúde, evidencia-se a necessidade de não partir de modelos, teorias, metodologias e procedimentos universais e fixos, que subsumam a diversidade de/das vidas, na prática assistencial individualizada.
Essa é uma postura que requer, como dito anteriormente, o alargamento das possibilidades no interior da própria ciência, inserindo-se criticamente nas suas diversas perspectivas, visualizando os limites das suas várias versões.
Isso significa que, ao invés de realizar atendimentos estruturados pouco flexíveis (com questões investigativas previamente eleitas, nos moldes de consultas orientadas por questões fechadas de entrevista, confrontadas a julgamentos elaborados a priori), há que se exercitar, no atendimento individual, a sua organização através/a partir do processo de escuta comprometida com a acolhida e amparo das pessoas. O que não significa ausência de intencionalidade ou rumo, mas construção partilhada dos passos a serem dados bem como das finalidades a serem alcançadas.
Escutar implica em mostrar-se receptivo ao universo social e afetivo-cultural da clientela, abrindo espaço à sua expressão - às vivências e seus contextos, às interpretações e aos sentimentos em torno da saúde-doença e de suas causas, das necessidades, dos problemas, das soluções e possibilidades de acompanhamento, dos papéis e poder a desempenhar.
Abrir, de fato, espaço a expressões dos sujeitos alvos da atenção significa incorporar a diversidade do existir, do saber-viver, de acordo com os padrões culturais de cada sujeito (e, por extensão, de sua coletividade, grupo, família), sem julgamento, classificação prévia e controle.
Para tal, reconhecer a diversidade subjetiva não é suficiente. As relações precisam deslocar-se no sentido da horizontalização, de modo que hierarquias, preconceitos e controles sejam substituídos o mais cabalmente possível. De igual modo, é preciso entender as peculiaridades subjetivas das pessoas, no sentido de sua origem e possível mobilidade, situando-se em relação às especificidades, aos contextos sociais, contextos intersubjetivos, às trajetórias particulares em que se desenvolveram e desenvolvem e aos modos de se colocar em relação ao pólo agência-resistência.
Abrir-se a histórias de vida a intersubjetividades, aos mecanismos de submissão-resistência presentes na atenção, entendendo-os e atuando nessas esferas, requer a construção de aprendizagens conjuntas e acordos, em que os sujeitos envolvidos na inter-relação, antes de qualquer coisa, interroguem-se conjuntamente sobre aonde chegar e como, mediante uma tecnologia básica - o diálogo. De forma abrangente, essa tecnologia (traçada como procedimento sistemático e/ou experiência prática) é essencial tanto ao resgate da dimensão corporal subjetiva como à alimentação do processo de emancipação de preceitos de sujeição da vida, em prol da cidadania(19).
Nesse sentido, o diálogo repõe o lugar do aprendizado conjunto, da troca, do contato corporal, da sensibilização, do lúdico, do estético, do ético na mobilização de conhecimentos e práticas mediados pelos componentes afetivo-emocional, físico-corporal e cognitivo, envolvendo ciência e arte. Também, o diálogo, em si, é emancipador e deve se constituir não só em um meio mas, ainda, em um fim da prática em saúde, porque valoriza os sujeitos, reafirma outras formas de relação entre poderes distintos, quebra hierarquias e restaura o sentido de totalidade corporal. É preciso considerar que a inter-relação em saúde entre o cuidador e o "outro" tem sempre um caráter que é pedagógico, organizado com base em dadas estruturas e relações de poder que atravessam as práticas cotidianas nos serviços.
O sucesso esperado no diálogo em saúde requer tanto a aceitação do discurso anunciado pelo interlocutor como do projeto de mundo e vida que ele media, além da concordância com o fato de que ele é expressão autêntica e qualificada da realidade(12).
Para o sucesso do diálogo é preciso compartilhamento, respeito e mobilização cultural, de desejos e interesses (de ordem estética, moral, do prazer, afetiva, etc.), particularmente daqueles que se encontram em torno da busca do "bem viver". É preciso reconhecer linguagens, culturas, sensos comuns, começando pelos de ordem profissional, para que a linguagem técnica (ou supostamente técnica) não domine o contexto de intersubjetividade, questionando a exclusividade da ciência utilizada no setor saúde, repondo o lugar da filosofia, das tradições culturais, do não científico.
Mais que a idéia de método, técnica, o diálogo deve ser considerado como síntese do ato interativo, como pura relação em base humanizada, pois "o diálogo se impõe como caminho pelo qual os homens ganham significação enquanto homens. (...) Ele é o encontro em que se solidarizam o refletir e o agir de seus sujeitos endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado. (...) Não deve ser doação do pronunciar de uns a outros. É um ato de criação"(20).
Assumindo essa perspectiva em relação às interações, a aproximação da complexidade e especificidade da vida será facilitada, uma vez que essa só pode ser traduzida/recriada com a participação de quem a vive.
O diálogo constrói-se com base na escuta, na interpretação dos significados contextuais e subjetivos presentes nas manifestações, através de uma comunicação ampla, mediada pelas palavras, pelo tato, pelos gestos, pelo olhar, enfim, pelos sentidos. O uso da palavra não se constitui em um mediador exclusivo; a esse devem se agregar espaços e experiências que mobilizem uma comunicação que reponha o lugar dos vários sentidos na construção da vida; do mesmo modo, o não-verbal deve ser adequadamente significado, como expressão dos profissionais ou da clientela.
Essa interlocução deve ser arbitrada pela busca de significados, em que o grande desafio encontra-se em descobrir onde está o sentido do saber, do sentir e da vivência para o outro, no entendimento de suas linguagens (culturais/afetivas), em trocar cognitiva e afetivamente. Isso implica na valorização do conhecimento intelectivo, afetivo e, igualmente, da intuição e da sensibilidade própria e do outro (ampliando, assim, de fato, o vínculo com o sujeito alvo dos cuidados).
Sua base encontra-se na autocrítica dos limites do conhecimento médico-científico, no resgate da riqueza sociocultural das pessoas e grupos, na identificação desses como seres com potencialidades (em oposição à visão predominante de que os grupos populares são pura carência - de valores, de história, de conhecimentos, de potenciais), reconhecendo o poder de seu saber e fazer.
Localiza-se, também, na valorização de fontes diversas que propulsionem a expressão, a diversidade, os conflitos, a ação criativa, a experiência lúdica, a alegria, tendo em vista o bem-estar das pessoas, o reconhecimento de suas perspectivas e o fortalecimento da sua cidadania.
Desse modo, assume-se o diálogo não somente como uma escuta bem intencionada, na intenção de apoiar o outro, mas como interlocução fundada em eixos que considerem a complexidade dos envolvidos, os seus processos interacionais e a vida tal como vivida e percebida.
Isso requer postura dialética, de crítica ao discurso/fazer supostamente neutro da ciência (que lhe confere o status de verdade absoluta), à autoridade/legitimidade que essa confere ao profissional e à sua prática, ao tipo de relação com o "outro" que essa conforma, ao lugar que a atuação profissional ocupa na produção/reprodução social. Essa postura resgata a historicidade da vida e saúde-doença assim como reconhece a intersubjetividade como parte do seu contexto de produção, recolocando a questão metodológica em saúde sob novas bases - a partir de um claro confronto à autoridade absoluta do saber-fazer profissional e à sua suposta objetividade científica, em direção à inclusão da troca dialógica entre distintos horizontes culturais. Nessa perspectiva, visualiza-se o contexto de intersubjetividade como espaço de aproximação e combinação entre interlocutores com campos e posições socioculturais distintos que, a despeito da diversidade implicada, se colocam em posições simétricas.
Cabe observar que a idéia de diálogo e respeito ao universo sociocultural dos sujeitos alvos da atenção não significa relativismo absoluto, em que o entendimento e a troca com o "outro" se configura apenas em/a partir de suas próprias referências. De outro modo, preocupa-se com o significado social das posturas dogmáticas da ciência na manutenção de preconceitos, hierarquias e exclusões.
Não se trata, assim, de abdicar de/marginalizar as referências médico-científicas, mas de pôr em cena posições, pontos de vista de que se parte, esquemas básicos de interpretação; trata-se de esforço para compreensão dos esquemas culturais do "outro" na relação, de modo a favorecer que os universos culturais se interpenetrem sem se anularem e, também, à posição histórica dos sujeitos envolvidos.
Relação dialógica não significa reproduzir ou se isolar nas referências do outro. O diálogo não exclui o delineamento de intencionalidades, de caminhos e a prática da interpretação. Essa última deve permitir reconhecer formas, construir sentidos e traduções socioculturais, de forma contextualizada e dialética. Igualmente, deve promover acordos intersubjetivos entre os envolvidos, balizadores das interpretações e posições, atrelados a um modo ético e crítico de se colocar na relação.
Nesse sentido, é fundamental a inclusão do exame do sentido ideológico presente nas traduções das condições vividas, das regras, dos códigos, dos padrões e das expressões manifestas, pois tal postura permite avançar os limites das justificações presentes no âmbito dos discursos e ações dos sujeitos. Para tal, é relevante resgatar o caráter educativo presente nas relações e seu sentido ético na construção da cidadania ou no desenvolvimento de potenciais e responsabilidades individuais/sociais.
Uma perspectiva assistencial prescritiva e legitimadora do conhecimento científico, restrita à recomendação de atitudes e ações para o autocuidado, é limitadora da geração de autonomia, responsabilidade e cidadania. Em contraponto, a dimensão educativa presente no cotidiano assistencial deve valorizar a reflexão em torno das contradições sociais/das inter-relações, a crítica à expropriação do saber e ao controle do corpo. Ela deve abrir espaço à expressão da história vivida, das representações sobre o próprio corpo, tendo em vista a auto-revelação e exame dos próprios movimentos.
É importante construir uma relação intersubjetiva horizontal com o sujeito e desse com o seu próprio corpo, história e decisões. Nesse processo, são essenciais a participação espontânea e também a troca de interpretações, abordando-se, quando em cena, questões referentes ao próprio corpo e processos que sobre ele incidem.
O autoconhecimento, o exame crítico, o respeito e a participação são caminhos para a emancipação. Para tal, não se trata de promover uma visão médica da vida, de quebrar resistências para passar conhecimentos técnicos ou científicos ou de insistir para que os sujeitos assumam dados comportamentos. Trata-se, sim, sobretudo, de ampliar canais de interação cultural e acordos, sem negar os processos socioculturais e psico-afetivos que estão na base da vida, da saúde-doença, dos cuidados em saúde e da qualidade dos serviços.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os exercícios intersubjetivos são espaços de descoberta, de humanização, de formação e atualização das identidades dos sujeitos, que demarcam o desenrolar de suas vidas e suas condições de saúde-doença.
A atenção à saúde pode concorrer para a geração de mais bem-estar na medida em que valorize a intersubjetividade, criando novas possibilidades de aproximação das pessoas, de suas vivências, interpretações e potenciais, abrindo-se de fato a suas necessidades mediante relações personalizadas e estimuladoras de uma participação mais ativa e autônoma.
Trabalhar amplamente com a intersubjetividade é resgatar a consideração a dimensões do ser humano concreto: sua racionalidade (filtro crítico), seu potencial de autonomia (capacidade de pensar e agir por si), sua eticidade (acúmulo de valores), sua cultura (própria), sua estética (gosto, criatividade), sua afetividade (sensibilidade, sentimentos), sua corporalidade (lugar em que se entrelaçam o social, o cultural e o biológico).
Considerar o universo subjetivo dos que demandam a assistência individualizada representa uma efetiva recusa às formas de violência que se escondem no cotidiano da atenção, na invisibilidade das suas estruturas de produção dos sentidos e nas suas práticas de controle, submissão e legitimação.
Mais que isso, tal investimento representa a efetiva consideração ao humano, com efeitos, inclusive, na própria intersubjetividade do trabalhador que, mais atenta ao aprendizado da complexidade vital dos sujeitos alvos dos cuidados em saúde, pode localizar e percorrer caminhos de requalificação da própria vida, trabalho e saúde.
Recebido em: 12.5.2003
Aprovado em: 14.4.2004
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
29 Set 2004 -
Data do Fascículo
Ago 2004
Histórico
-
Aceito
14 Abr 2004 -
Recebido
12 Maio 2003