Resumos
Este trabalho objetivou compreender como a família da criança com câncer maneja a doença e suas intercorrências em casa e como decide levá-la para um atendimento de emergência. Para tanto, utilizou-se a História Oral como estratégia metodológica e a análise dos dados foi baseada no modelo teórico "Family Management Style Framework". Para isso, participaram seis mães, com idade entre 28 e 47 anos, que vivenciavam o tratamento de câncer do filho. A possível necessidade do atendimento de emergências é incorporada ao cotidiano da família como um recurso para manejar a doença quando esta vai além da capacidade da mãe de manter o controle sobre os sintomas, o que é permeado por sofrimento decorrente das incertezas que isto gera. Ajudar a mãe a desenvolver habilidades para se fortalecer, minimizando o sofrimento conseqüente das situações que causam incertezas e inseguranças em seu cotidiano com o filho com câncer é um desafio.
pediatria; família; enfermagem oncológica; criança
This study aimed to understand how the family of a child with cancer manages the illness and its intercurrences at home, and how it makes the decision of taking the child to an emergency care service. Oral History was used as the methodological strategy and data analysis was based on the "Family Management Style Framework". Participants were six mothers between 28 and 47 years old, who were experiencing their child's cancer treatment. The possible need for emergency care is incorporated into the family routine as a resource to manage the illness whenever it goes beyond the mother's capacity to keep control over the symptoms, which is permeated by suffering, derived from the uncertainties this creates. Helping the mother to develop skills to get stronger and reduce the suffering resulting from the situations that generate uncertainties and insecurities in her daily life with the child with cancer is a challenge.
pediatrics; family; oncology nursing; child
Este estudio buscó entender cómo hace la familia del niño con el cáncer para manejar la enfermedad y sus intercurrencias en la casa, y cómo hace la familia para tomar la decisión de llevar al niño a un servicio de emergencia. La historia oral fue utilizada como estrategia metodológica, y el análisis de los datos fue basada en el "Family Management Style Framework". Los participantes eran seis madres, con edad entre 28 y 47 años, que vivenciaban el tratamiento del cáncer de su niño. La posible necesidad de la atención de emergencia se incorpora dentro de la rutina de la familia como recurso para manejar la enfermedad siempre que vaya más allá de la capacidad de la madre en guardar el control sobre los síntomas, lo que es rodeado de sufrimiento, debido a las incertidumbres generadas por esa situación. Ayudar a la madre en el desarrollo de habilidades para se fortalecer y reducir el sufrimiento resultante de las situaciones que generan incertidumbres y inseguridades en su vida de cada día con el niño con el cáncer es un desafío.
pediatría; familia; enfermería oncológica; niño
ARTIGO ORIGINAL
Manejando o câncer e suas intercorrências: a família decidindo pela busca ao atendimento de emergências para o filho1
Maira Deguer MiskoI; Regina Szylit BoussoII
IMestre em Enfermagem Pediátrica, Enfermeira da Unidade de Pronto-Socorro do Instituto da Criança, e-mail: mairadm@bol.com.br
IIEnfermeira, Professor Doutor da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, e-mail: szylit@usp.br
RESUMO
Este trabalho objetivou compreender como a família da criança com câncer maneja a doença e suas intercorrências em casa e como decide levá-la para um atendimento de emergência. Para tanto, utilizou-se a História Oral como estratégia metodológica e a análise dos dados foi baseada no modelo teórico "Family Management Style Framework". Para isso, participaram seis mães, com idade entre 28 e 47 anos, que vivenciavam o tratamento de câncer do filho. A possível necessidade do atendimento de emergências é incorporada ao cotidiano da família como um recurso para manejar a doença quando esta vai além da capacidade da mãe de manter o controle sobre os sintomas, o que é permeado por sofrimento decorrente das incertezas que isto gera. Ajudar a mãe a desenvolver habilidades para se fortalecer, minimizando o sofrimento conseqüente das situações que causam incertezas e inseguranças em seu cotidiano com o filho com câncer é um desafio.
Descritores: pediatria; família; enfermagem oncológica; criança
INTRODUÇÃO
Um número significativo de crianças no Brasil vem sendo atingido pelo câncer, afetando suas famílias e reforçando sua importância epidemiológica, o que tem levado paralelamente a estudos sobre seus aspectos diagnósticos e terapêuticos.
Confirmada a doença, é grande o sofrimento dos pais. A família terá de conviver com a incerteza do prognóstico e as conseqüências de um tratamento agressivo e doloroso, originando neles sentimentos de angústia e negação, levando-os a buscar a confirmação diagnóstica(1-2).
Apesar do avanço tecnológico quanto ao tratamento do câncer - com o advento de novos medicamentos, radioterapia e cirurgias - e da porcentagem de cura e sobrevida das crianças acometidas por essa doença ter aumentado significativamente, o tratamento é ainda bastante desconfortável, invasivo e ameaçador; ele provoca rápida e intensa mudança na vida do paciente e um desequilíbrio na rotina e dinâmica familiares(3). As dificuldades que a família terá de enfrentar durante todo o tratamento são muitas. Ela precisará procurar maneiras para ajudar o filho a vencer as situações de sofrimento físico e emocional que a doença acarreta e a lidar com a problemática de manter uma interação saudável entre os familiares(4).
A família enfrenta problemas advindos do tratamento, uma vez que a terapia agressiva provoca vários efeitos colaterais indesejáveis, além da angústia, dor e sofrimento por precisar conviver com as possibilidades de recidivas, exacerbações dos sintomas e morte da criança.
Assim sendo, o câncer e sua terapia podem conduzir a criança para condições de emergência, sendo que uma emergência oncológica pode ser definida como uma condição clínica resultante de uma mudança estrutural ou metabólica causada pelo câncer ou pelo seu tratamento, que requerem intervenções médicas imediatas, prevenindo morte ou dano severo permanente(5-6).
A importância de se conhecerem as necessidades dos familiares que acompanham seus parentes em setores de emergência hospitalar é apresentada na literatura. Há a referência ao ambiente de um setor de emergência, afirmando que ele, normalmente, é caótico e que, nessas ocasiões, administrar as situações que representam risco de vida e o manejo das crises são prioridades. Graças a essa particularidade, as necessidades dos familiares que acompanham esses pacientes acabam sendo negligenciadas. Ressalta-se, também, que familiares que acompanham seus parentes em fase crítica de doença, nos departamentos de emergência, devem ser vistos como unidades de cuidado e que ainda há poucos estudos examinando as suas necessidades durante esse período(7).
Não se deve esquecer a carga emocional que os pais sofrem quando vivenciam o atendimento de emergência da criança, carecendo de informações e comunicação para amenizar suas emoções. Assim sendo, a enfermeira precisa ter habilidade para lidar com os pais e capacidade comunicativa adequada a cada situação(8).
Diante do exposto, este estudo teve como objetivos compreender como a família da criança com câncer maneja a doença e suas intercorrências em casa e como toma a decisão de levá-la para um atendimento de emergências.
METODOLOGIA
Para responder ao objetivo proposto neste estudo, utilizou-se a abordagem qualitativa e a estratégia metodológica foi a História Oral, que é um recurso usado como forma de captação de experiências de pessoas dispostas a falar sobre aspectos de sua vida, com o compromisso de se manterem no contexto social. Ela é usada para elaboração de documentos, arquivamentos e estudos referentes à vida social das pessoas. O pressuposto da História Oral está na percepção do passado como algo que tem continuidade no presente e cujo processo histórico não está acabado; além disso, proporciona um sentido à vida social dos depoentes e leitores, levando-os a compreender o seguimento histórico e a se identificar como parte dele. Na História Oral, o depoente é considerado o "colaborador", o que implica um relacionamento de afinidade entre o entrevistado e o entrevistador(9).
Neste estudo, utilizou-se a História Oral Temática, que busca o esclarecimento ou a opinião do entrevistado sobre algum assunto específico ou um tema preestabelecido. A objetividade é direta: aborda questões externas, objetivas, factuais, temáticas, e seu caráter específico lhe confere características diferentes(9).
Conhecer como são as ações das pessoas quando elas vivenciam determinadas situações torna possível antecipar alguns cuidados, possibilitando uma participação mais efetiva e ativa neles, com a possibilidade de uma intervenção onde possa haver algum risco(10).
O projeto desta pesquisa foi encaminhado à Comissão de Ética para Análise de Projetos de Pesquisa do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo. A autorização foi concedida em agosto de 2004. Inicialmente, solicitou-se, por escrito, consentimento às mães para sua participação na pesquisa, por meio do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, o qual apresentava informações sobre a pesquisa, relatando que as entrevistas seriam gravadas e que o seu anonimato seria assegurado.
Após a aceitação, as entrevistas foram iniciadas, e a coleta de dados, realizada no período de outubro de 2004 a março de 2005. Deste estudo participaram seis mães que acompanhavam o tratamento de câncer dos filhos, matriculados em um Hospital Público de São Paulo, referência para o tratamento do câncer infantil. Suas idades variaram de 28 a 47 anos, uma delas era viúva, e cinco, casadas. Elas é que acompanhavam as crianças durante as consultas de rotina, os atendimentos no pronto-socorro e os tratamentos de quimioterapia e radioterapia.
Foram feitos contatos com essas famílias quando elas se encontravam em atendimento do filho no pronto-socorro. Foi-lhes explicado o objetivo do projeto e solicitada a participação voluntária. Após estarem de acordo, dia, horário e local para a realização da entrevista foram definidos, sempre respeitando a escolha da família. Inicialmente, utilizou-se um instrumento contendo dados de identificação e as questões norteadoras: Conte-me: como é para vocês conviver com um filho com câncer em casa? Como é para vocês precisar procurar o pronto-socorro? Como vocês decidem procurá-lo? Quem decide procurá-lo?
As entrevistas, gravadas em fita cassete, tiveram duração média de uma hora. A análise foi realizada em três etapas: 1) Transcrição: é a passagem rigorosa da entrevista, após a escuta cuidadosa de todo o conteúdo, por algumas vezes, da fita para o papel, com todos os seus lapsos, erros, vacilos, repetições e incompreensões, incluindo as perguntas do entrevistador; 2) Textualização: é a etapa na qual as perguntas são retiradas e agregadas às respostas, passando a ser todo o texto de domínio exclusivo do colaborador, assumindo, como personagem único, a primeira pessoa. Aqui, a narrativa recebe uma reorganização para se tornar mais clara. Escolhe-se, então, o "Tom Vital", que é uma frase a ser colocada na introdução da narrativa por representar sua síntese moral, e 3) Transcriação: é a etapa onde se atua no depoimento de maneira mais ampla, invertendo-se a ordem de parágrafos, retirando-se ou acrescentando-se palavras e frases, utilizando-se dos instrumentos da língua, como: pontuação, reticências e interjeição, para melhor compreensão do texto.
Com isso, recria-se a atmosfera da entrevista, procurando trazer ao leitor o mundo de sensações provocadas pelo contato, o que não ocorreria reproduzindo-se palavra por palavra. Há a inferência do autor no texto, que será refeito várias vezes, devendo obedecer a acertos combinados com o colaborador. Nesse procedimento, torna-se vital a legitimação da entrevista por parte do colaborador(9).
Após a leitura de cada depoimento, constatou-se que as narrativas expressavam um significado peculiar, percebendo-se pontos em comum entre as histórias, que poderiam ser mas bem explorados, com o intuito de fornecer compreensão mais ampla de seu conteúdo.
A análise dos dados teve como referencial o modelo teórico "Family Management Style Framework" (FMSF), o qual identifica aspectos cognitivos e de comportamento que compõem a experiência da família no manejo da doença crônica das crianças. Esse modelo apresenta três componentes conceituais: Definição da situação dividido em quatro temas conceituais: "Identidade da criança", "Visão da doença", "Idéias sobre a capacidade de manejo da doença" e "Mutualidade entre os pais". Comportamentos de manejo, dividido em: "Filosofia dos pais" e "Abordagem para o manejo". Percepção de conseqüências, subdividido em: "Foco da família" e "Expectativas quanto ao futuro"(11).
RESULTADOS E DISCUSSÃO
Com base no modelo teórico apresentado acima, a partir de agora, realiza-se a apresentação dos resultados obtidos a partir das narrativas realizadas pelas mães.
O primeiro componente conceitual do modelo é a Definição da situação, que diz respeito ao significado e à maneira como os pais vêem a criança e a doença, sendo esses aspectos importantes para a definição da situação e influenciadores dos tipos de comportamentos utilizados para manejar a doença e incorporá-la à rotina familiar(11).
Dentro deste, encontra-se a Identidade da criança, pois a família, após o impacto do diagnóstico, começa perceber que a criança passará por um tratamento demorado, o que poderá lhe trazer conseqüências. Frente às reações do tratamento, a criança passa a ser vista como frágil, vulnerável às situações do seu antigo cotidiano, podendo apresentar intercorrências; com isso, as mães passam a defini-la como especial, diferente das outras.
... quem está na experiência com a rotina do tratamento de uma criança com câncer sabe que eles não têm nada programado, que são como caixinhas de surpresa e que (...) podem precisar vir ao pronto-socorro. (C1)
As mães começam a perceber que a doença poderá afetar as habilidades físicas e, conseqüentemente, o ajustamento psicossocial da criança e, por vezes, até da família.
As pessoas iam nos visitar, eu não gostava que ficassem perguntando o que minha filha tinha, o porquê de ela estar carequinha (...) Queria que já soubessem tudo isso. Perdi muitas amizades nessa época, deixei de sair de casa. (C5)
Outro aspecto a ser considerado é a Visão da doença, que compõe o conjunto de crenças que os pais possuem em relação ao diagnóstico, causa, gravidade, prognóstico e curso da doença(11).
As colaboradoras remontam o início da caminhada da doença, geralmente abrupto, sem uma causa conhecida e, a partir disso, começam a elaborar definições para a doença, ficando boa parte do tempo tentando compreendê-la. O câncer, para elas, é uma doença destruidora, com tratamento agressivo, acarretando uma série de conseqüências para a criança, gerando sofrimento e, muitas vezes, tornando-se necessário buscar auxílio hospitalar freqüente. Ronda um período de incertezas durante todo o curso da doença.
Eu falo para ele que não podemos comparar o C. conosco, ele é diferente, (...) câncer não é como uma gripe ...(C3)
O tratamento é visto como extremamente agressivo para os filhos, podendo impor complicações clínicas adicionais para a criança. Ao mesmo tempo, é visto como algo necessário e como meio de se conseguir a cura.
Este tratamento é assim, muito doído, a químio é terrível! Mas precisamos fazer. (C5)
Nesta caminhada, o ter de vir ao pronto-socorro representa a incerteza sobre o tratamento e o curso da doença, uma vez que buscar o atendimento de emergência representa, para a mãe, que ela não está sendo controlada nem tendo resultados efetivos.
... A impressão que eu tinha sempre é que precisava trazê-la para cá (pronto socorro - PS), era a de que o tratamento não estava dando certo. Como eu poderia confiar no tratamento se ela estava no PS precisando de outros recursos? (C1)
O modelo teórico escolhido versa também sobre as Idéias sobre a capacidade de manejo da doença, que trata da interação de idéias da família a respeito da avaliação sobre as demandas para o manejo da doença e de suas próprias habilidades para desempenhar estas atividades(11).
... eu tenho muito medo de lidar com A. Acho que por ser minha filha, receio até tocá-la. Não tomo nenhuma conduta com ela sozinha, tenho medo, é como se eu não soubesse fazer nada. (C1)
Desde o diagnóstico, a criança passa a ser vigiada e impedida de realizar determinadas atividades que, antes, faziam parte de sua rotina. As mães, especialmente, iniciam um esquema de vigilância diário ao filho doente, procurando indícios de que algo de errado possa estar acontecendo e tentando evitar qualquer tipo de intercorrência ou acidente.
Depois que iniciou a quimioterapia, passei a dar mais valor às pequenas alterações que ele apresentasse, sempre procurando por sinais que pudessem desencadear uma complicação. (...) não costumo deixá-lo sozinho por nada. (C3)
As mães que convivem com os filhos com câncer em casa desenvolvem estratégias a fim de se sentirem mais seguras para lidar com as surpresas da doença. Utilizam-se dessas estratégias enquanto se percebem em uma situação de segurança mínima em relação ao desempenho de seu papel de cuidar do filho e protegê-lo. Quando se encontram fora desses limites, procuram o atendimento de emergências.
Caso perceba alguma coisa diferente, minha reação primeira é trazê-la para o PS, porque sei que, quando chegar aqui, os médicos irão examiná-la até localizarem o que lhe está causando problema e iniciar o tratamento adequado. (C2)
O medo da doença é mais relacionado à falta de conhecimento do que da doença propriamente dita(12). Em nosso estudo, uma das mães expressa que o fato de não ter conhecimento sobre a terapia lhe causa insegurança de permanecer em casa com o filho quando ele apresenta qualquer alteração de comportamento, referindo medo de que a criança possa vir a falecer. Isso a faz buscar auxílio procurando pelo atendimento de emergências.
A busca pela informação é uma das estratégias utilizadas pela mãe para conseguir desempenhar seu papel com a responsabilidade que deseja. Com o decorrer do tratamento, pais e familiares vão acumulando experiências que os tornam mais aptos e seguros para tomarem decisões frente a possíveis intercorrências. Quando os pais dispõem das informações necessárias para o cuidado da criança, este pode ser realizado de forma mais tranqüila(13).
Para saber quando ela está bem ou não, baseio-me (...) no que a médica dela fala. (...), segundo ela, sei o que fazer e como agir com a D., como já conheço todo o tratamento, fica mais fácil cuidar dela em casa. (C4)
As experiências de internação vivenciadas com a criança e os sintomas percebidos em casa agregados às conversas com outros pais também são percebidos pela mãe como recursos facilitadores na hora de tomar decisões em relação ao manejo da doença em casa e à tomada de decisão.
(...) Percebi que seu fígado cresceu, porque um lado da barriga ficou maior que o outro, como já havia acontecido no início do tratamento; por isso eu já sabia que poderia ser algum problema relacionado ao fígado. (C2)
Na avaliação da mãe sobre as demandas para o manejo da doença também está presente a necessidade de os médicos obterem informações precisas sobre o que acontece com a criança em casa. A mãe percebe-se comprometida e hábil para desempenhar a atividade de coletar dados sobre a criança e disponibilizá-los com precisão para a equipe médica.
... preciso observar, porque, como a própria médica diz, sou eu que permaneço mais tempo com ele e tenho de perceber o que está mudando para poder passar para a equipe médica e ajudar no tratamento. (C3)
Dentre as estratégias para se atingir esta demanda, a criança é um recurso fundamental. Além de vigiá-la, a mãe também lhe faz perguntas para obter informações sobre o que pode estar acontecendo, utilizando estratégias como: perceber diferenças em suas crianças e fazer-lhes perguntas para obter maiores informações sobre ela. À medida que os pais vão se tornando atentos aos seus filhos, cientes dos sintomas que eles podem apresentar ou percebendo mudanças em seu quadro geral, como alteração na temperatura, eles podem decidir sobre a real necessidade de buscar auxílio médico adicional(14).
Se a percebesse um pouquinho triste, já tirava a roupa dela, colocava no banho, perguntava se ela estava se sentindo bem. Ia conversando e brincando com ela, mas, na verdade, estava investigando o corpo dela ...(C5)
Outro tema deste componente conceitual é a Mutualidade dos pais, que aborda suas percepções na forma como eles compartilham, complementam-se ou têm visões discrepantes de como definem e manejam a situação da doença(11).
Uma das colaboradoras relata sua experiência de compartilhar a experiência de doença com o marido e ressalta a importância do apoio dele quando a criança precisa ser atendida no pronto-socorro.
Sempre que precisávamos vir aqui (pronto-socorro), ela vinha brincando e, dessa vez, chegou sonolenta e toda mole no meu colo. Os guardas da recepção não queriam permitir que meu marido entrasse comigo (...); eu estava desesperada em ver minha filha naquelas condições, não queria ficar sozinha com ela, precisava do apoio do meu marido naquele momento. (C2)
As narrativas das mães apontam para uma discrepância de como os pais percebem e manejam a doença, havendo uma diferença de idéias, principalmente no momento de decidir levar a criança para o atendimento de emergências quando percebem que algo pode estar errado com o filho.
Segundo as mães, os maridos são mais tolerantes aos sintomas que surgem em casa e crêem que nela o filho pode se recuperar. Já as mães, por conhecerem melhor os efeitos e riscos do tratamento, não aceitam permanecer em casa com os filhos, pois, por se sentirem inseguras, não querem correr o risco de que aconteça algo que não seja possível controlarem sozinhas.
O meu marido nem sempre concorda comigo (...) Tenho para mim que na cabeça dele ainda não caiu a ficha que a menina está doente. (C4)
Não tenho hora para correr com minha filha, meu marido já é sossegado, quer deixar tudo para amanhã. (...) Se depender dele, fica esperando, espera uma febre, espera outra, ele acha que vai passar, que se der qualquer remédio resolverá o problema ... (C5)
É a mãe quem cuida da criança, acompanha o tratamento, realiza todos os cuidados e tem o domínio das informações, além de tomar as decisões sobre o que será feito com o filho.
... quando precisamos vir aqui, geralmente sou eu quem decido, porque sou eu quem fico internada com ele, quem o acompanha ao médico, estou por dentro de tudo. (C3)
Um outro componente conceitual deste modelo é o Comportamentos de manejo, que diz respeito aos princípios que subsidiam os comportamentos da família para o manejo da doença e a sua habilidade em desenvolver uma rotina para manejar demandas relacionadas à doença. Abrange dois temas conceituais: Filosofia dos pais e Abordagem para o manejo.
A Filosofia dos pais são os princípios nos quais os comportamentos deles se baseiam, englobando: objetivos, prioridades, valores que guiam a abordagem geral e estratégias específicas para manejar a doença; Abordagem para o manejo, que diz respeito à avaliação dos pais sobre o âmbito pelo qual eles conseguem desenvolver uma rotina e estratégias para manejar a doença e incorporá-la à vida familiar(11).
As mães deste estudo, frente ao câncer de suas crianças, assumem um senso de responsabilidade para proporcionar o melhor cuidado para o filho juntamente com a equipe. Vivem com as incertezas de quando uma nova crise poderá ocorrer e buscam, a cada dia, sinais que possam lhes indicar alguma nova complicação que venha a surgir. Sentem-se na obrigação de conhecer os efeitos do tratamento, para que possam saber o que e como vigiar e, assim, reconhecer todos os sintomas que possam ser manifestados. Além disso, buscam antecipar possíveis complicações, encontrando-se prontas para agir a qualquer momento, caso necessário. Elas se vêem como "peças-chave" durante todo o processo de doença. Quando a mãe se vê diante da impossibilidade da cura, procura o bem-estar da criança, e a meta principal passa a ser aliviar o sofrimento.
Em outro estudo, os familiares mencionaram que, com o avanço da doença e a provável aproximação da morte, os cuidados eram focados para evitar ou minimizar a dor do filho(15).
Ela está recebendo toda a medicação endovenosa e estamos conseguindo uma analgesia razoável; ela tem conseguido ficar bem, mas meu interesse é que se consiga estabelecer uma analgesia com medicação via oral, para que possamos ir para casa. (C1)
Ocorrem algumas alterações na vida familiar para que se encontrem maneiras de facilitar o manejo da doença que se instala. Tem-se o medo de que aconteça algo com o filho e não se perceba.
Algumas de nossas colaboradoras mencionaram deixar as malas prontas em casa para a eventualidade de precisarem procurar o atendimento de emergência com os filhos; tal rotina diminui o estresse no manejo da doença em casa. Na medida em que incorporam a possibilidade da busca do atendimento de emergências, sentem-se mais confortáveis para não deixarem a situação se agravar em casa. O pronto-socorro é incorporado ao tratamento da criança.
Cabe ressaltar que, ainda que o atendimento de emergências seja incorporado ao tratamento da criança como possibilidade e referência para um melhor manejo durante o curso da doença, ele traz consigo um significado de possibilidade de piora, de falta de controle da doença e, conseqüentemente, medo, ansiedade e incertezas.
O último componente conceitual é a Percepção de conseqüências, que se refere à dimensão que a doença ocupa na vida familiar, segundo os pais, e o reflexo que isso tem e terá para o futuro da vida familiar.
O tema conceitualFoco familiar compreende a avaliação dos pais sobre o equilíbrio entre o manejo da doença e outros aspectos da vida familiar(11).
As narrativas apresentam a avaliação da dimensão ou importância da doença na perspectiva da mãe que tem a criança doente como o foco da sua própria vida, passando a viver em função dela; pensa na família, nos outros filhos, no marido, mas a prioridade é o filho doente. As que trabalhavam fora deixam seus empregos para poderem dar seguimento ao tratamento do filho.
Estou há quase um ano afastada do meu serviço, cuidando exclusivamente da minha filha. (C1)
Aquelas cujos filhos se encontram fora de terapia, realizando somente exames e consultas de controle, salientam que os resultados dos exames de rotina passam a ser o foco no manejo da doença. Essa situação é vivida com muita expectativa e incertezas, uma vez que sempre rodeia a possibilidade de uma recaída da doença ou do aparecimento de metástase.
Ontem ela precisou internar aqui no pronto-socorro (...) passou um filme na minha cabeça: voltou todo o tratamento de novo. (...) Sempre penso que ela está curada, mas também sei que essa doença pode voltar. (C2)
Nas histórias contadas pelas mães, a Expectativa quanto ao futuro está relacionada ao receio de não se conseguir tratar a criança, o que resultaria em sua morte. Uma característica importante em suas narrativas é que a busca pelo atendimento de emergências está relacionada à perda de controle da doença e à descoberta de uma nova complicação. Tal fato a relembra da gravidade da doença e da fragilidade do filho frente a esse inimigo.
Quando decido levá-la para o hospital, tenho medo que aconteça alguma coisa (...) o medo de ela morrer. (C4)
Conseguir permanecer em casa com os filhos, livres de sintomas, de alterações de comportamentos e de surpresas, é um sinal de que eles estão bem, e esta é a expectativa da família.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A chegada da doença faz com que a família abra um espaço para flexibilidade onde caibam novas tarefas, como a vigilância e novos eventos, como a busca pelo atendimento de emergências. Assim, manejar o câncer em casa consiste em atividades como: monitorar o comportamento da criança, vigiar os sintomas da doença e regular suas atividades, procurando diminuir os riscos. O manejo envolve objetivos que priorizam manter-se vigilante tanto dela quanto dos sinais de doença, buscando preservar a sua vida com menos sofrimento. A mãe assume profunda responsabilidade para prevenção de complicações e bem-estar do filho.
Vários motivos foram mencionados para a decisão de ela procurar pelo atendimento de emergências. Independente dos motivos, o objetivo final é sempre garantir o atendimento rápido da criança, minimizando a viabilidade de complicações e preservando a vida do filho. Ela também busca por informações sobre o que está acontecendo com a criança e o motivo da intercorrência. Ao procurar o atendimento de emergências, também busca assegurar-se de que agiu corretamente. É preciso que seja reconhecida sua competência no cuidado com a criança.
As mães apontam suas vivências no dia-a-dia com a criança em casa, permeada pela incerteza relacionada à dúvida da recorrência de novos sintomas que podem aparecer em função do tratamento e da própria doença. Agregado a essa experiência, nos momentos em que os sintomas aparecem, freqüentemente ela se depara com a incerteza. Suas dúvidas são com relação a como lidar com os sintomas e suas indecisões sobre o momento certo de procurar por uma ajuda externa, como o atendimento de emergências.
Assim, a possível necessidade do atendimento de emergências é incorporada ao cotidiano da família como um recurso para manejar a doença quando esta vai além da capacidade das mães de manterem o controle sobre os sintomas. Apesar disso, elas expressam traumáticas emoções experienciadas ao recordarem dos incidentes vivenciados nas suas idas ao pronto-socorro. Por isso, utilizam-se de todos os esforços para tratarem de seus filhos em casa, embora, quando os sintomas persistem ou geram alguma desconfiança de que algo não-visível possa estar ocorrendo, a primeira atitude é ir ao pronto-socorro. Elas precisam sentir-se confortáveis para permanecerem em casa cuidando da criança.
A compreensão, por parte das enfermeiras, sobre essa ardorosa jornada do câncer permeada pela incerteza apresentada na narrativa das mães tem implicações para o cuidado da família. Compreender a perspectiva da mãe sobre eventos específicos que ela vivencia com a criança em casa e o significado que ela dá a esses eventos, relacionando-os ao grau de incerteza gerado por eles podem ajudar no planejamento de intervenções adequadas a cada família.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Recebido em: 26.9.2005
Aprovado em: .15.8.2006
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
15 Mar 2007 -
Data do Fascículo
Fev 2007
Histórico
-
Recebido
26 Set 2005 -
Aceito
15 Ago 2006