Resumos
OBJETIVO:
interpretar os significados da experiência da doença e do tratamento entre pessoas com hipertensão arterial.
MÉTODO:
foram adotados os referenciais da antropologia interpretativa e médica e do método etnográfico. Participaram 22 pessoas com hipertensão arterial e 10 trabalhadores em saúde da Estratégia de Saúde da Família, de Minas Gerais. Utilizaram-se entrevistas, observação participante, grupo focal, diário de campo e análise de prontuário. Os preceitos éticos foram respeitados.
RESULTADOS:
emergiram dois núcleos de significados: "a doença como expressão do estilo de vida" e "a perspectiva de cura da doença". Problema de nervoso representa a categoria nosológica, sintomática, causada pelo estilo de vida urbano. Os sujeitos apoiam-se na crença da cura do problema. A família, a espiritualidade e a religião constituíram redes de apoio social. Os itinerários terapêuticos se interpenetram para a cura do problema. O subsistema de saúde popular constitui importante itinerário por proporcionar satisfatório bem-estar e a remissão dos sintomas.
CONCLUSÃO:
as lacunas evidenciadas entre o ponto de vista dos profissionais de saúde e dos depoentes propiciam repensar a práxis para prover cuidados integrados, contextualizados e humanizados, o que estimula a potência das pessoas para o viver, para o empoderamento e para o autocuidado.
Hipertensão; Cultura; Enfermagem; Antropologia Médica; Cooperação do paciente
OBJECTIVE:
to interpret the meanings of the experience of the condition and of the treatment among people with arterial hypertension.
METHOD:
the authors adopted the frames of reference of interpretive and medical anthropology and of the ethnographic method. 22 people with arterial hypertension, and 10 Family Health Strategy health workers, all from Minas Gerais, participated. The authors used interviews, participant observation, focus groups, field diaries and analysis of medical records. Ethical precepts were respected.
RESULTS:
two nuclei of meaning emerged: "The condition as an expression of way of living", and "The perspective of the cure of the condition". Nervous problems represent the nosological and symptomatic categories, caused by the urban way of living. The participants are supported by the belief of the curing of the problem. The family, spirituality and religion constitute social support networks. The therapeutic routes interpenetrate for the cure of the problem. The 'folk' health subsystem constitutes an important route because it provides better well-being and remission of the symptoms.
CONCLUSION:
the gaps evidenced between the points of view of the health professionals and the interviewees allow one to re-think the praxis so as to provide comprehensive, contextualized and humanized care, which encourages the people's potential for living, for empowerment, and for self-care.
Hypertension; Culture; Nursing; Anthropology, Medical; Patient Compliance
OBJETIVO:
interpretar los significados de la experiencia de la enfermedad y del tratamiento en personas con hipertensión arterial.
MÉTODO:
adoptamos los marcos teóricos de la antropología interpretativa y médica y del método etnográfico. Participaron 22 personas con hipertensión arterial y 10 trabajadores de la salud de la Estrategia de la Salud de la Familia del estado de Minas Gerais. Utilizamos entrevistas, observación participante, grupo focal, diario de campo y análisis de ficha médica. Fueron respetados los preceptos éticos.
RESULTADOS:
surgieron dos núcleos de significados: "La enfermedad como expresión del estilo de vida" y "La perspectiva de cura de la enfermedad". El problema nervioso representa la categoría nosológica, sintomática, causada por el estilo de vida urbano. Se apoyan en la creencia de la cura del problema. La familia, la espiritualidad y la religión constituyeron redes de apoyo social. Los itinerarios terapéuticos se entrelazan para la cura del problema. El subsistema de salud popular constituye un importante itinerario por proporcionar mejor bienestar y alivio de los síntomas.
CONCLUSIÓN:
los vacíos evidenciados entre el punto de vista de los profesionales de la salud y él de los deponentes propician repensar la praxis para proveer cuidados integrados, contextualizados y humanizados, lo que estimula la potencialidad de las personas para el vivir, para el empoderamiento y para el autocuidado.
Hipertensión; Cultura; Enfermería; Antropología Médica; Cooperación del Paciente
Introdução
A enfermagem enfrenta, na atualidade, grandes desafios, dentre eles o lidar com a
complexidade do ser humano com condições crônicas, tais como a Hipertensão Arterial
Sistêmica (HAS). A HAS é uma condição clínica multifatorial, caracterizada por níveis
elevados e sustentados de Pressão Arterial (PA), tendo como critério clínico, em
indivíduos acima de 18 anos, níveis tensionais iguais ou maiores que 140mmHg x
90mmHg(
11. Sociedade Brasileira de Cardiologia. Sociedade Brasileira de
Hipertensão. Sociedade Brasileira de Nefrologia. VI Diretrizes Brasileiras de
Hipertensão. Arq Bras Cardiol. 2010; 95(Supl1):1-51.
). A HAS apresenta características peculiares que influenciam a percepção
e a convivência da pessoa com o adoecimento. A casualidade na descoberta da doença, a
atemporalidade das fases de remissões e exacerbações(
22. Souza SPS de, Lima RAG de. Chronic condition and normality: towards
the movement that broadens the power of acting and being happy. Rev. Latino-Am.
Enfermagem. jan-fev 2007;15(1):156-64.
), o longo período de latência e o longo curso assintomático(
33 3. Prevalência de diabetes e Hipertensão arterial no Brasil. Rev. Saúde
Pública 43(Supl2) 74-82. 2009.
), o rótulo da doença que tem efeito negativo sobre o
bem-estar(
44. Ogedegbe G. Labeling and hypertension: it is time to intervene on its
negative consequences. Hypertension. 2010;56(3):344-5.
), acompanhadas por manifestações e perda do bem-estar social(
55. Munõz LA, Price Y, Gambini L, Stefanelli MC. Significados simbólicos
de pacientes com doenças crônicas. Rev Esc Enferm USP. 2003;
37(4):77-84.
) e a medicalização(
66. Tesser CD, Poli Neto P, Campos GWS. Acolhimento e (des)medicalização
social: um desafio para as equipes de saúde da família. Ciência Saúde Coletiva.
2010;15(Supl3):3615-24.
), trazem repercussões significativas no modo de ver a vida. Desse modo, a
doença modifica a relação da pessoa consigo mesma e com o mundo, o que repercute na
reconstrução de sua identidade. A HAS ocasiona transformações expressivas na vida das
pessoas, seja na esfera psicológica, familiar, social ou econômica pela possibilidade
de agravo em longo prazo. Essas transformações reforçam a tese de que as questões
relativas à doença não podem ser analisadas de forma isolada das demais dimensões da
vida social, mediadas e permeadas pela cultura, que confere sentido a essas
experiências(
77. Langdon EJ, Wiik FB. Anthropology, health and illness: an
introduction to the concept of culture applied to the health sciences. Rev.
Latino-Am. Enfermagem. mai-jun 2010;18(3):459-66.
). No cuidado à pessoa com HAS, o enfermeiro precisa participar dos
processos de construção do conhecimento, no sentido de assimilar e utilizar
inovações, tanto tecnológicas como humanísticas, de modo equilibrado, para que se
possam oferecer condições de desenvolver o autocuidado de forma mais satisfatória ao
seu contexto de vida. No decorrer da atuação profissional das autoras deste estudo,
enquanto docentes e coordenadora de projeto de extensão, a partir das ações
fundamentadas no princípio da indissociabilidade ensino/pesquisa/extensão, com vistas
à educação e à assistência em saúde às pessoas com HAS, e de estudos decorrentes
dessas ações(
88. Franceli AB, Figueiredo A, Fava SMCL. Hipertensão arterial: desafios
e possibilidades na adesão ao tratamento. REME: Rev Min Enferm.
2008;12(3):308-12.
9. Fava SMCL, Figueiredo AS, Franceli AB, Nogueira MS, Cavalari E.
Diagnóstico de enfermagem e proposta de intervenções para clientes com hipertensão
arterial. Rev Enferm UERJ. 2010;18(4):536-40.
-
1010. Fava SMCLF, Nunes ZB, Gonçalves MFC, Nogueira, MS. Educação em saúde
e adesão ao tratamento na perspectiva histórico cultural. Saúde Transform Soc.
2011;2(1):81-7.
), identificaram-se que os problemas relacionados à adesão ao tratamento
não se restringem apenas à esfera física e àterapia farmacológica, também estão
implícitas a experiência de vida e a subjetividade no processo de adoecer e de cuidar
de si. Percebe-se que os modos de pensar e de agir das pessoas com HAS, que podem ser
traduzidos pela experiência da enfermidade, são pouco valorizados e compreendidos
pelos profissionais de saúde. Constata-se que esses estudos responderam, em parte, às
inquietações para a formulação desta pesquisa, pois ainda são vivenciadas situações
geradoras de expectativas e angústias que se traduziram nas seguintes questões: como
eles interpretam a doença? Como eles experienciam o adoecimento? Como é formado o
sistema de cuidado à saúde? Para responder a essas inquietações, buscou-se conjugar
outros referenciais além do biológico, já que se reconhece que a experiência da
doença e as ações necessárias para a adesão a tratamentos e aos cuidados, em longo
prazo, estão profundamente imbricadas com a cultura, ou seja, com os estilos de vida,
com os hábitos, as rotinas e os rituais na vida das pessoas.
Encontram-se, na antropologia interpretativa(
1111. Geertz C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Livros
Técnicos e Científicos Editora; 1989. 224 p.
) e na antropologia médica(
1212. Kleinman A. The Illness Narratives: Suffering, Healing and the Human
Condition. New York: Basic Books; 1988. 269 p.
), referenciais que possibilitaram encontrar respostas, uma vez que elas
têm por objetivos observar, descrever, analisar e interpretar os sistemas culturais,
a partir do ponto de vista de seus integrantes. A antropologia é considerada uma
ciência da diferença e da diversidade que permite desenvolver uma perspectiva crítica
frente às "verdades" humanas mais fundamentais, favorecendo a construção de uma nova
abordagem. Ela se preocupa em estudar as características dos homens em sociedade, com
foco na cultura, com os seus sistemas de símbolos, ideias e significados, o que
propicia a compreensão do comportamento do ser humano de forma ampla, levando em
consideração as diversas dimensões da vida. A antropologia traz importantes
contribuições para a atuação do enfermeiro porque possibilita analisar como a pessoa
vive no seu cotidiano, suas interpretações acerca do processo de saúde/doença, os
modos de viver e as escolhas de tratamento. No que concerne à antropologia médica, um
dos seus principais expoentes(
1212. Kleinman A. The Illness Narratives: Suffering, Healing and the Human
Condition. New York: Basic Books; 1988. 269 p.
) descreve, em seu Modelo Explanatório (ME), as construções
"profissionais" e "culturais" de doença. Encontra-se a distinção entre
disease "doença processo" como as anormalidades dos processos
biológicos e/ou psicológicos, e a illness "doença experenciada",
refere-se à experiência psicossocial da doença, está centrada na subjetividade, a
qual inclui os elementos culturais, sociais e pessoais da doença. Apreende-se que a
experiência da doença é moldada pelo contexto sociocultural que determina formas
culturais e simbólicas de expressão para interpretar a doença, a forma como é sentida
e são expressos seus sintomas, utiliza os recursos de cura e os impedem de fazer
alterações no estilo de vida. A busca pelo tratamento da HAS depende dos significados
construídos no decorrer da vida que, muitas vezes, se confrontam com as ações
prescritivas dos profissionais de saúde. Reconhece-se que conviver com a HAS é uma
experiência complexa, dada a exigência da medicalização da vida, dadas as abdicações
do cotidiano e a necessidade de interações com os subsistemas de cuidado à saúde, ao
longo da vida, para tratarem da doença ou para o cuidado intrínseco às suas condições
de vida. Apesar do interesse crescente das pesquisas para se entender a construção
cultural do processo saúde/doença, são poucos os trabalhos atuais relacionados à HAS
nessa perspectiva(
1313. Trad LAB, Tavares JSC, Soares CS, Ripardo RC. Itinerários
terapêuticos face à hipertensão arterial em famílias de classe popular. Cad Saúde
Pública. 2010;26(4):797-806.
14. Pistulka GM,Winch PJ, Park H, Han HR, Kim MT. Maintaining an outward
image: a Korean immigrant's life with type 2 Diabetes Mellitus and Hypertension. Qual
Health Res. 2012;22(6):825-34.
15. Barnes DM, Lu JH. Mexican Immigrants' and Mexican Americans'
Perceptions of Hypertension. Qual Health Res. 2012;22(12):1685-93.
-
1616. Aroian KJ, Peters RM, Rudner N, Waser, L. Hypertension Prevention
Beliefs of Hispanics. J Transcult Nurs. 2012;23(2):134-42.
). A escassez de trabalhos ancorados nesse referencial e a busca por
respostas às inquietações aqui apresentadas, que envolvem como as pessoas com HAS
pensam, sentem e fazem para conviver com a doença e a busca pelo tratamento
justificam o desenvolvimento deste trabalho que tem por objetivo interpretar os
significados da experiência da doença e do tratamento entre pessoas com HAS,
cadastradas em uma Unidade de Estratégia de Saúde da Família, de uma cidade de Minas
Gerais.
Métodos
Trata-se de pesquisa interpretativa, fundamentada no referencial da antropologia interpretativa( 1111. Geertz C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos Editora; 1989. 224 p. ), da antropologia médica( 1212. Kleinman A. The Illness Narratives: Suffering, Healing and the Human Condition. New York: Basic Books; 1988. 269 p. ) e do método etnográfico, sendo a etnografia aqui entendida como a busca por uma descrição densa( 1111. Geertz C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Livros Técnicos e Científicos Editora; 1989. 224 p. ). A etnografia tendo como princípios a relação dialógica e prolongada com os depoentes, o abrir-se para o conhecimento do senso comum, numa visão de perto e de dentro, permitindo decifrar os códigos que dão o sentido à maneira de pensar e de agir dos depoentes convivendo com a HAS, numa visão geral e contextualizadora da realidade e, ainda, propiciando aos pesquisadores e ao depoente a troca, o envolvimento e a transformação de ambos. Participaram do estudo 22 depoentes com HAS, sendo homens e mulheres, com 18 anos e mais, com capacidade para responder as questões, cadastrados no sistema informatizado do Ministério da Saúde-Hiperdia, de área adstrita de uma Unidade de Estratégia de Saúde da Família (UESF) e 10 trabalhadores em saúde dessa Unidade, de uma cidade de Minas Gerais. Os dados foram coletados no período de abril de 2010 a novembro de 2011, por meio de imersão no campo, coleta de depoimentos, observação participante, diário de campo e análise de prontuários. As coletas de depoimentos seriadas foram realizadas pela primeira autora por meio de visita domiciliária, após agendamento prévio. Os depoimentos foram gravados em aparelho digital de voz powerpack e, imediatamente ao seu término, foram transcritos, o que permitiu complementá-los pelas observações e notas do diário de campo. Após a produção textual, esses foram lidos e, posteriormente, comparados com a gravação. Utilizou-se como roteiro básico para a coleta de depoimentos o ME( 1212. Kleinman A. The Illness Narratives: Suffering, Healing and the Human Condition. New York: Basic Books; 1988. 269 p. ), que procura explicar a enfermidade a partir de cinco questões básicas: 1) etiologia; 2) tempo e modo de início dos sintomas; 3) fisiopatologia; 4) curso da doença e 5) tratamento. A análise foi realizada concomitantemente à coleta, o que permitiu identificar contrastes e similaridades, gerando reflexões com possibilidades de refinar questões, aprofundá-las e retornar ao campo para melhor interpretação dos significados da experiência da doença, na perspectiva da pessoa com HAS. Foram cumpridas as etapas( 1717. Pope C, Mays N. Pesquisa Qualitativa na atenção à saúde. Porto Alegre: Artmed; 2009.172 p. ): organização dos dados a partir da transcrição dos depoimentos e de diário de campo; codificação dos dados, considerando cada linha e frase do material empírico; agrupamento de códigos similares e contrastantes para criar as unidades de sentido, ou categorias empíricas. Essas categorias foram nomeadas, utilizando-se a terminologia dos depoentes. Recortaram-se as palavras ou frases que constituíram as unidades de sentido, reagrupadas de acordo com as similaridades e codificadas com expressões significativas que traduziam os significados da experiência dos depoentes. Assim, foram construídos os núcleos de significados, ou categorias analíticas. Na medida em que as categorias analíticas foram criadas, foram confrontadas com as categorias empíricas, na busca de inter-relações e interconexões. Essa fase é complexa, pois, ao mesmo tempo em que depende da lente do pesquisador, no processo de interpretação, requer o exercício da alteridade numa tentativa de apreender os sentidos atribuídos pelas pessoas com HAS para a interpretação dos significados da experiência, no processo de adoecimento. A reflexividade para interpretar os sentidos na busca dos significados foi orientada pelo referencial teórico-metodológico, pelo encontro etnográfico e por meio da compreensão do contexto histórico dos depoentes, no qual os sentidos são produzidos, buscando decodificá-los para a apreensão dos significados implícitos na experiência com o adoecimento. Ao analisar os dados, encontraram-se divergências e similitudes e, a partir do estranhamento, foi possível compreender o outro e repensar o modo de pensar e agir. O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal de Alfenas, sob Processo nº018/2010. Para participar do estudo, as pessoas foram orientadas sobre os objetivos da pesquisa, o anonimato e a assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Resultados e Discussão
Entre os 22 depoentes com HAS, treze eram mulheres e nove homens, com idade entre 34 e 84 anos, predomínio da raça branca, casados e com filhos, católicos, seguidos pelos evangélicos. O grau de escolaridade era baixo, assim como a renda mensal: em sua maioria de um salário-mínimo, sendo quinze aposentados e, desses, quatro por invalidez. O índice de parentesco entre os moradores é grande, há similaridade nas trajetórias de vida; nasceram, viveram, casaram e criaram seus filhos nessa comunidade, exercendo atividades profissionais como pedreiro, lavrador, dona de casa e empregada doméstica. Os trabalhadores em saúde foram constituídos por cinco agentes comunitários de saúde, um enfermeiro, um médico, um auxiliar de enfermagem, um atendente de farmácia e um secretário. Os dados foram organizados e codificados em sete unidades de sentido: "descoberta da doença"; "processo de adoecimento"; "convivência com a doença"; "estratégias de enfrentamento"; "crenças"; "itinerário terapêutico" e "adesão ao tratamento" que, depois de interpretadas, resultaram nos núcleos de significados: "a doença como expressão do estilo de vida" e "a perspectiva de cura da doença". "A doença como expressão do estilo de vida" - constatou-se que os sentidos atribuídos à experiência da enfermidade foram marcados pela casualidade na descoberta da doença, o que justificou a indignação e desconfiança diante ao diagnóstico da doença. [...] eu me sinto uma vítima do acaso. Fui ao ambulatório para consulta de outra coisa e, durante a triagem, aferiram minha pressão e me perguntaram se eu tinha pressão alta, eu disse que não, porque nunca tinha sentido nada, foi aí que eles já me rotularam como hipertenso, minha pressão estava 17/11, nada sentia. Mais eu estava passando por muitos problemas emocionais (Wellington, 54 anos). Por outro lado, outros, diante a percepção de que algo não ia bem, romperam o silêncio da doença assintomática( 33 3. Prevalência de diabetes e Hipertensão arterial no Brasil. Rev. Saúde Pública 43(Supl2) 74-82. 2009. ) pela presença de manifestações inespecíficas que constituem formas culturais e simbólicas da experiência vivida. Percebeu-se que alguma dimensão da corporalidade foi comprometida como uma necessidade de reafirmarem a doença( 1818. Canesqui AM. Olhares socioantropológicos sobre os adoecidos crônicos. São Paulo: HUCITEC; 2007. 149 p. ), como se constata no depoimento. [...] eu sentia mal, moleza, tonteira, mal-estar, dor de cabeça, eu num sabia que era pressão não, pensei que fosse anemia [...] aí eu fui no médico do postinho aí eles falaram que ela (pressão) tava alta. (Maria Aparecida, 55 anos). O problema de nervoso constituiu a categoria nosológica para o grupo social pesquisado, díspar dos encontrados na literatura e é culturalmente moldado pelo sentido como eles percebem, experienciam e lidam com ele. [...] é um problema de nervoso (pausa) é ficar enfezado. Aqui na rua é muita bagunça e brigaiada, num deixa a gente ficar sossegado, é noite e dia (João, 79 anos). Ao relacionar a acepção da palavra( 1919. Ferreira ABH. Novo Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. Curitiba: Positivo; 2008. ) "problema" às concepções que eles têm sobre a HAS, identificaram-se similaridades, e tais acepções correspondem aos sentidos que os depoentes atribuem à doença, algo difícil de explicar, de lidar e tratar, que se expressam em sentimentos de dúvidas, incertezas, ansiedade e até medo da doença. Quanto às causas, enquanto para a biomedicina estão relacionadas à disfunção dos vasos, do coração e do sangue( 11. Sociedade Brasileira de Cardiologia. Sociedade Brasileira de Hipertensão. Sociedade Brasileira de Nefrologia. VI Diretrizes Brasileiras de Hipertensão. Arq Bras Cardiol. 2010; 95(Supl1):1-51. ), para os depoentes estão relacionadas ao nervoso. O estilo de vida urbano constitui o determinante principal para o nervoso. Apreende-se que o problema de nervoso incorpora uma série de aflições na sintomatologia e na etiologia e espelham nas experiências como os problemas do cotidiano de vida, decorrentes das dificuldades financeiras, da preocupação com a família, do isolamento social, dos problemas de doenças, do alcoolismo, dos conflitos conjugais e familiares, das perdas de entes queridos, da insatisfação com o sistema formal de saúde, do processo de aculturação e dos problemas da rua. Essas interpretações, ora mostradas, coadunam com as concepções do autor( 1212. Kleinman A. The Illness Narratives: Suffering, Healing and the Human Condition. New York: Basic Books; 1988. 269 p. ), ao considerar a doença como um modo somático de experiência e de sofrimento social. Traduz a forma como uma pessoa vivencia suas tristezas, seu sofrimento social, que inclui qualquer tipo de problema. O nervo, no nível pessoal, representa um conjunto de manifestações decorrentes de fenômenos psicobiológicos, e tais manifestações sofrem a influência cultural, pois é nesse campo que são percebidos, rotulados, explicados e avaliados os agentes estressantes( 1212. Kleinman A. The Illness Narratives: Suffering, Healing and the Human Condition. New York: Basic Books; 1988. 269 p. ). No tocante às complicações, para as pessoas com HAS, estão o infarto, o derrame e a morte repentina, enquanto que para a biomedicina estão a insuficiência cardíaca, a insuficiência renal e o acidente vascular cerebral( 11. Sociedade Brasileira de Cardiologia. Sociedade Brasileira de Hipertensão. Sociedade Brasileira de Nefrologia. VI Diretrizes Brasileiras de Hipertensão. Arq Bras Cardiol. 2010; 95(Supl1):1-51. ). A forma pela qual os depoentes convivem com o adoecimento, influenciados pelo contexto sociocultural, lhes permite expressar sentimentos e reações, cujas interpretações se relacionam à resiliência, à resignação, à autoestima baixa e à revolta. [...] eu acho que a gente é igual uma planta, a gente chega terra nela [...], quanto mais a gente agoa, mais ela vive, assim é a gente mesmo [...] precisa do remédio pra conservar a vida, quando mais cuida, mais vive, então é a vida da gente, não dá pra levar de outro jeito (Manoel, 84 anos). Reconhece-se que as cicatrizes advindas dos problemas da vida que resultaram no problema de nervoso propiciaram, para alguns, uma nova forma de ver o mundo e de ressignificar o cuidado com a saúde. Percebe-se que as crenças influenciaram a interpretação que os depoentes possuíam sobre a doença, orientaram a busca para a cura nos diferentes subsistemas de saúde e os levaram a tecer as redes como suporte para o enfrentamento do adoecimento. As crenças justificavam, ainda, os hábitos de vida, a impotência sexual causada pelos hipotensores, a saúde e a doença, a desconfiança em relação à composição dos fármacos, a concepção de que remédio de farmácia não cura e que a gratuidade não tem resolutividade.
"A perspectiva de cura da doença" - um aspecto peculiar para os depoentes são os sentidos atribuídos aos objetivos do tratamento para a HAS. A percepção que eles têm do problema é que ele é decorrente do nervoso, sintomático e curável e, portanto, o tratamento, de acordo com seu critério, será por tempo determinado. Dentre esses, estão aqueles que, após o abandono do tratamento, mantiveram ou apresentaram ocasionalmente níveis pressóricos dentro dos parâmetros de normalidade, o que os levou a crer na cura do problema, conforme o depoimento a seguir. [...] aí o médico mandou ele (esposo) tomar remédio, tá bom, ele tomou uns dias, foi lá (Unidade de ESF), mediu a pressão e já estava boa, aí ele parou com os remédios, porque já sarou a pressão (sorri). A minha ainda não, não sei o que é isso, mais ela vai sarar! (Gerusa, 60 anos). Apreende-se que os saberes que circulam entre eles suscitam comportamentos e sentimentos ao processo de viver e de adoecer. Evidencia-se, ainda, que a experiência de cura é compartilhada e influencia o abandono do tratamento. Percebe-se que as pessoas com HAS buscam a cura da enfermidade (healing) e não a cura da patologia (curing)( 2020. Kleinman A. Patients and healers in the context of culture: an exploration of borderland between Anthropology and Psychiatry. Berkeley: University of California Press; 1980.427 p. ). Apesar de o autor enfatizar que o objetivo da curing é a remissão de sintomas, neste estudo a cura denominada healing é também obtida pela remissão de sintomas, uma vez que o problema se apresenta de forma sintomática. Reconhece-se, a partir dos dados encontrados, a importância de valorizar o conhecimento do senso comum sobre a experiência do adoecimento, com vistas a facilitar o processo de interação e a negociação do plano terapêutico. Ao se comparar os MEs entre os profissionais de saúde e as pessoas com HAS, constata-se que, para os primeiros, a doença é uma interpretação funcional, enquanto para os segundos trata-se de uma interpretação simbólica, um dano muito mais existencial do que funcional. Há, ainda, divergências em relação às metas de tratamento e à avaliação. A divergência entre os diferentes pontos de vista pode influenciar negativamente a adesão ao tratamento, a satisfação e o uso das instituições de saúde( 2020. Kleinman A. Patients and healers in the context of culture: an exploration of borderland between Anthropology and Psychiatry. Berkeley: University of California Press; 1980.427 p. ) e os levam, ainda, à baixa percepção e à maior vulnerabilidade( 2121. Middleton JL. A proposed new model of hypertensive treatment behavior in African Americans. J Nat Med Assoc. 2009;101(1):12-7. ). A se apreender que o problema de nervoso constitui um dano de natureza mais existencial do que funcional, entende-se que diferentes necessidades eram demandadas, o que os levava a buscar tratamento em diferentes subsistemas de saúde, tanto para cuidar da mente como do corpo. O subsistema de saúde familiar constituiu a fonte primária para interpretação das manifestações de adoecimento, tratamento e aconselhamento e, tanto esse como o subsistema popular, constituíram os principais suportes para o enfrentamento do problema de nervoso. Percebe-se que as práticas que se relacionam à terapia popular são desejadas e utilizadas pelos depoentes, porque é o recurso mais próximo e condizente com a cultura local, pela sensação de bem-estar produzida pelo remédio, benzimentos, pelo encontro com o terapeuta leigo, pela desconfiança quanto à composição do fármaco e pela dificuldade de acesso ao sistema formal de saúde, como se percebe no depoimento adiante. [...] a coisa tá difícil, a gente tem que se virá, porque nem médico num tem pra gente consultá! (Helena 55 anos). No que tange à adesão ao tratamento, percebe-se que as principais dificuldades se relacionavam à fadiga de "remediada a danada", à desconfiança quanto à composição do fármaco, à desvalorização da alopatia, à toxicidade causada pela medicação, às dificuldades de acesso e vínculo frágil com o sistema de saúde, às condições econômicas, à crença daquilo que é de graça não presta, aos efeitos indesejáveis das medicações hipotensoras que interferem no cotidiano de vida, na socialização e na masculinidade, o esquecimento na tomada da medicação, hipotensor e bebida alcoólica: mistura mortal, o analfabetismo, a descrença quanto à cronicidade da HAS e ao adiamento do início do tratamento, porque se tem o resto da vida para se tratar, ele pode começar amanhã. Mesmo diante das dificuldades enunciadas para o tratamento farmacológico, muitas pessoas ainda o fazem, mesmo que seja à sua maneira, pelo fato de não exigir mudanças nos hábitos de vida, por proporcionar alívio rápido das manifestações e ao se constatar que o problema é decorrente do nervoso, atribuído ao estilo de vida urbano, contribui para imputar o estado emocional aos outros e isenta da responsabilidade do controle da pressão arterial. Por outro lado, quanto ao tratamento não farmacológico, percebe-se que a carne, a gordura de porco e o sal constituem símbolos poderosos de identidade local e regional, entre outros, enraizados entre os depoentes, razão pela qual se torna difícil mudar os hábitos de vida. Também se nota que o adoecimento faz com que a pessoa busque por diferentes estratégias de enfrentamento, para superar as adversidades ocasionadas pela doença e pelo tratamento. Essa busca se deve ao fato de que a doença constitui um dano à totalidade da existência, pois não é a pressão arterial que incomoda, mas é a totalidade da pessoa que sofre( 2222. Boff L. Saber cuidar: ética do humano: compaixão pela terra. Petrópolis: Vozes; 1999. 199 p. ). Constata-se que a religião, a espiritualidade e a família constituíram para os informantes as principais fontes de suporte. A religião e a espiritualidade tiveram influência positiva sobre o problema de nervoso, ao proporcionar ao adoecido melhoria do bem-estar físico e subjetivo, além de contribuir para mudanças de comportamento, cuidados à saúde, ampliaram a rede social e propiciaram a resignificação da vida. Percebe-se que a experiência dos depoentes com o sistema formal de saúde revelou sentimentos de indignação, insatisfação e revolta, decorrentes das dificuldades relacionadas à estrutura organizacional e funcional. A falta de atendimento médico constituiu uma das principais causas de insatisfação com o serviço de saúde. Em decorrência disso, as pessoas são motivadas a dar o 'jeito delas', ou seja, buscar suporte para tratamento nos subsistemas de saúde profissional privado, familiar e popular. [...] médico num tem, então se tiver morrendo, num dá nem para esperar, num vai encontrar nem os ossos mais, então como faz uma coisa dessa! Está difícil demais esse postinho daqui. A gente vai lá no hospital e eles manda a gente de volta para o postinho, mais voltar pra que? Aí a gente tem que dar o jeito da gente (Helena, 55 anos). Nota-se, também, que "vencer as barreiras", como o acesso às consultas médicas e medicamentos e a disponibilidade de recursos para o atendimento, e "vencer as ladeiras", não apenas a distância geográfica, mas a dificuldade de deslocamento até a Unidade constituíram para os depoentes grandes dificuldades de acesso ao serviço de saúde. As crenças daquilo que "é gratuito não presta", "só tem valor e resolutividade o que envolve pagamento", corroboram sobremaneira a desconfiança e insatisfação com o serviço público de saúde e os motivaram a buscar o tratamento na rede privada de saúde. Os sentimentos de desconfiança e a insatisfação que permeiam o modo de pensar dos depoentes os conduziram à duplicidade de utilização de serviços de saúde, como encontrado em outro estudo( 2323. Mishima SM, Paula VGP, Pereira MJBP, Almeida MCP, Kawata LS. (In)Satisfação dos usuários: duplicação e uso simultâneo na utilização de serviços na Saúde da Família. Rev Esc Enferm USP. 2010;44(3):766-73. ), para confirmação diagnóstica e certificação da terapêutica. A insatisfação com o modelo de assistência oferecido pela UESF deve-se ao fato de que eles buscam por cuidado centrado não apenas nas tecnologias duras, mas, também, nas leves( 2424. Merhy EE. Saúde: a cartografia do trabalho vivo. 3ª ed. São Paulo: Hucitec; 2007.189 p. ), para solução dos danos causados pelo adoecimento não apenas funcional, mas, sobretudo, o existencial. [...] precisa ter muita gente pensado assim como a senhora para que possa mudar (pausa) senão (movimenta a cabeça em sinal de negação) continua desse jeito, é como tratar a boiada...tudo igual (Wellington, 54 anos). A humanização tem sido o eixo norteador para repensar as práticas em saúde, no sentido de maior integralidade, efetividade e acesso( 2525. Marin MJS, Storniolo LV, Moravcik MY. Humanization of Care from the Perspective of the Family Health Strategy Teams in a City in the Interior of São Paulo, Brazil. Rev. Latino-am Enfermagem. jul-ago 2010;18(4):763-9. ). As singularidades na forma de pensar, associadas às peculiaridades da HAS, fazem com que as pessoas não precisem apenas de cuidados físicos, mas que necessitem, acima de tudo, de estímulo, de esperança e de compreensão.
Conclusão
Ao dar relevância à dimensão social e cultural na perspectiva da pessoa com HAS, compreende-se que a vida com a doença é envolvida por uma teia de significados, que se buscou interpretar, aqui, por meio da experiência da doença, o que possibilitou compreender as dificuldades implícitas no processo de adoecimento e no tratamento. Ao interpretar a experiência da doença para a pessoa com HAS, resultaram os núcleos de significados: "a doença como expressão do estilo de vida" e "a perspectiva de cura da doença". Constatou-se que o problema de nervoso constitui a categoria nosológica para o grupo social pesquisado, uma forma simbólica de representação que constitui dano muito mais existencial do que funcional. Diferentemente dos achados de outros autores, ao mencionarem que a HAS é uma doença invisível e não ameaça à identidade e ao autoconceito, constatou-se, neste estudo, que, para o grupo social pesquisado, trata-se de uma doença visível, traduzida culturalmente por manifestações subjetivas e objetivas, decorrente do estilo de vida urbano. Percebe-se que as causas que se relacionam ao problema refletem mais a história de vida do que as histórias da doença. As causas do nervoso, as crenças e a presença do problema, que modifica a relação da pessoa com o mundo e consigo mesma, pela necessidade de adaptação às novas condições, a leva à ressignificação da vida com repercussões na reconstrução do autoconceito e da identidade. Apoiam-se firmemente na crença da cura do problema, contudo, as recidivas são previstas, pois os fatores externos que desencadeiam o nervoso muitas vezes não podem ser evitados, fazem parte da vida. Pôde-se verificar que os itinerários terapêuticos se interpenetram para a cura do problema de nervoso. O subsistema de saúde familiar constitui o primeiro recurso de tratamento, em que as manifestações são interpretadas, os cuidados são realizados, e serve de orientação e de avaliação para os subsistemas de saúde popular e profissional. O subsistema de saúde popular constitui importante itinerário devido à identidade cultural que se estabelece com o grupo social pesquisado e por proporcionar melhoria do bem-estar e a remissão dos sintomas. Constataram-se similitudes e divergências entre o modo de pensar e agir das pessoas com HAS e dos profissionais de saúde, cujos discursos são demarcados por significados culturais determinados pelo contexto de vida, de ambos os atores, que, num encontro, se confrontam com diálogos desiguais. Ao se adotar a relação dialógica e valorizar o conhecimento do senso comum e o contexto no qual se inserem, nota-se que poderosas crenças culturais, associadas às noções da doença e do tratamento que revelam a experiência de vida e a subjetividade no processo de adoecer e de cuidar de si, dificultam a adesão ao tratamento farmacológico e ao não farmacológico. As lacunas evidenciadas entre o ponto de vista dos profissionais de saúde e da pessoa com HAS servem de orientações para repensar a práxis, com vista à reorganização dos processos de trabalho em saúde e à implementação de cuidados integrados e contextualizados, o que estimula a potência das pessoas com HAS para o viver, para o empoderamento e para o autocuidado.
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Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
Sept-Oct 2013
Histórico
-
Recebido
27 Nov 2012 -
Aceito
15 Jul 2013