Objetivo: analisar o risco de exposição ao estresse ocupacional em profissionais de saúde da Atenção Primária à Saúde durante a pandemia da COVID-19 e sua percepção sobre essa vivência.
Método: estudo de métodos mistos do tipo explanatório sequencial, com 50 profissionais da atenção primária. Foram utilizados questionários sociodemográfico, clínico e laboral, Job Stress Scale e entrevista semiestruturada. Os dados quantitativos foram submetidos à análise estatística descritiva e analítica; os qualitativos, à Análise Temática de Conteúdo.
Resultados: 66% dos profissionais apresentaram exposição ao estresse ocupacional. A profissão médica associou-se ao trabalho de alta exigência (p<0,001); enfermeiros, técnicos em Enfermagem, profissionais da Odontologia, ao trabalho ativo (p<0,001); dentistas, a menor demanda psicológica (p<0,001). Profissionais com mais de dezesseis anos de formados apresentaram melhores condições para lidar com fatores estressantes, comparados aos com menos de cinco anos (p<0,03). A integração dos dados evidenciou implicações da pandemia na vida, no trabalho e interfaces com os sintomas psicológicos.
Conclusão: os profissionais trabalharam sob altas demandas psicológicas e elevado risco de exposição ao estresse durante a pandemia pela COVID-19. Autocontrole e elevado apoio social podem contribuir para redução desses riscos, assim como tempo de formação e experiência profissional.
Descritores: Profissional de Saúde; Estresse Ocupacional; Atenção Primária à Saúde; COVID-19; Saúde do Trabalhador; Saúde Mental
Objetivo: analizar el riesgo de exposición al estrés laboral de los profesionales de la Atención Primaria de la Salud durante la pandemia de COVID-19 y la percepción que tienen sobre esa experiencia.
Método: estudio de métodos mixtos del tipo explicativo secuencial, con 50 profesionales de la atención primaria. Se utilizaron cuestionarios sociodemográficos, clínicos y laborales, Job Stress Scale y entrevista semiestructurada. Los datos cuantitativos fueron sometidos a análisis estadístico descriptivo y analítico; los cualitativos, a Análisis de Contenido Temático.
Resultados: el 66% de los profesionales estuvieron expuestos a estrés laboral. La profesión médica se asoció al trabajo de alta exigencia (p<0,001); los enfermeros, técnicos en enfermería, profesionales de odontología, al trabajo activo (p<0,001); los odontólogos, a menor exigencia psicológica (p<0,001). Los profesionales con más de dieciséis años de graduados presentaron mejores condiciones para lidiar con los estresores que aquellos con menos de cinco años (p<0,03). La integración de datos demostró que la pandemia repercutió en la vida, el trabajo e interfaces con los síntomas psicológicos.
Conclusión: los profesionales trabajaron bajo altas exigencias psicológicas y alto riesgo de exposición al estrés durante la pandemia de COVID-19. El autocontrol y un alto apoyo social pueden contribuir a reducir estos riesgos, así como el tiempo de formación y la experiencia profesional.
Descriptores: Personal de Salud; Estrés Laboral; Atención Primaria de Salud; COVID-19; Salud Laboral; Salud Mental
Objective: to analyze the risk of exposure to occupational stress among primary healthcare professionals during the COVID-19 pandemic and their perception regarding their experience.
Method: mixed-methods sequential explanatory study with 50 primary care professionals. Sociodemographic, clinical, and labor questionnaires, Job Stress Scale, and semi-structured interviews were used. Quantitative data were submitted to descriptive and analytical statistical analysis; qualitative data were submitted to Thematic Content Analysis.
Results: 66% of professionals were exposed to occupational stress. Doctors were associated with highly demanding work (p<0.001); nurses, nursing technicians, and dental professionals with active work (p<0.001); and dentists with lower psychological demand (p<0.001). Professionals with more than sixteen years of experience had better conditions to deal with stressful factors, compared to those with less than five years (p<0.03). Data integration showed implications of the pandemic in life, work, and interfaces with psychological symptoms.
Conclusion: professionals worked under high psychological demands and a high risk of exposure to stress during the COVID-19 pandemic. Self-control and high social support may contribute to reducing these risks, as well as professional training and experience.
Descriptors: Health Personnel; Occupational Stress; Primary Health Care; COVID-19; Occupational Health; Mental Health
Destaques:
(1) Profissionais da Atenção Primária à Saúde trabalham sob elevada demanda psicológica.
(2) Estão expostos a elevados risco de estresse ocupacional e sintomas psicológicos.
(3) O apoio social exerce grande influência para minimizar riscos à saúde mental.
(4) O trabalho na pandemia contribuiu para aumentar sintomas psicológicos no trabalhador.
(5) Experiência profissional e tempo de serviço minimizaram fatores de risco na pandemia.
Introdução
A pandemia da coronavirus disease 2019 (COVID-19), entre os profissionais de saúde, afetou aqueles que contraíram a doença bem como os que permaneceram fisicamente saudáveis ( 1 ). Os impactos da pandemia ultrapassaram a doença física, ocasionando estresse psicossocial, com impacto na qualidade de vida ( 2 ).
O cenário pandêmico contribuiu para o aumento das deficiências já existentes no processo de trabalho das unidades de saúde e expôs os profissionais de saúde a novos estressores ( 3 ), tornando-os um dos grupos mais suscetíveis aos problemas psicológicos, quando comparados à população em geral ( 4 - 5 ). Esse panorama sugere a necessidade de maior cuidado à sua saúde mental.
Alguns estudos nacionais e internacionais relataram sintomas psicológicos em profissionais de saúde durante a pandemia da COVID-19. As evidências científicas demonstraram elevados índices de sofrimento psicológico no ambiente laboral durante a pandemia, desencadeando os sintomas de ansiedade, depressão e estresse ( 6 - 8 ).
O estresse relacionado ao trabalho tem aumentado entre os profissionais de saúde, especialmente em tempos de crise, como nas pandemias ( 2 - 3 ). Apesar de os estudos terem investigado os impactos psicológicos nos trabalhadores de saúde durante esse período, a maioria das pesquisas se direcionou aos ambientes hospitalares ( 7 , 9 - 10 ), e poucos estudos nacionais e internacionais enfocam essa temática na Atenção Primária à Saúde (APS). Tendo em vista que a presença do estresse associada às condições de trabalho tem afetado a saúde mental desses profissionais, além de ser um agente facilitador para outras doenças. Faz-se necessário conhecer melhor estes cenários, buscando a identificação de fatores de risco, a fim de prevenir a ocorrência do estresse e reduzir a presença de agravos à saúde desses profissionais. Isso ressalta o potencial inovador deste estudo e a relevância de se buscar uma maior compreensão sobre o contexto de trabalho e de saúde dos profissionais envolvidos nos cuidados da APS no cenário pandêmico.
Frente a estas considerações, este estudo objetivou analisar o risco de exposição ao estresse ocupacional em profissionais de saúde da APS durante a pandemia da COVID-19 e sua percepção sobre essa vivência.
Método
Tipo de estudo
Trata-se de um estudo de métodos mistos, que compreende a integração de fontes de evidência quantitativas e qualitativas para a produção de conhecimento aprofundado em torno de um problema de pesquisa complexo. Foi empregado um desenho explanatório sequencial, no qual realiza-se uma etapa quantitativa, seguida de uma etapa posterior, qualitativa. Esse desenho possibilita que evidências de natureza qualitativa sejam utilizadas para aprofundar ou explicar os achados quantitativos ( 11 ). Neste estudo, foi atribuído um maior peso à análise quantitativa (um estudo transversal correlacional) e menor à qualitativa (um estudo qualitativo descritivo), sendo, portanto, representado pela forma QUAN ➝ Qual.
Local
Foi desenvolvido na APS de um município do Sul do Brasil, que possui quatro Unidades Básicas de Saúde (UBS) e 18 Estratégias Saúde da Família (ESF), todas participantes do estudo.
Período
A coleta de dados quantitativos ocorreu entre junho e setembro de 2021, e dos dados qualitativos entre janeiro e fevereiro de 2022.
População e critérios de seleção
A pesquisa foi conduzida a partir de uma população composta por 162 profissionais de saúde da APS, representados por: médicos, enfermeiros, técnicos em Enfermagem, nutricionistas e profissionais da Odontologia. Devido ao fato de que se tratava de uma população viável ao desenho do estudo, optou-se por trabalhar com toda a população elegível, tendo como parâmetro de amostragem a taxa de resposta.
Atenderam aos critérios de elegibilidade profissionais de saúde: médicos, nutricionistas, profissionais da Enfermagem e da Odontologia, que prestaram assistência nestas unidades durante a pandemia. Foram excluídos aqueles que, no decorrer da coleta de dados, estiveram em férias ou afastamento funcional.
Portanto, ao aplicar os critérios de elegibilidade, foram excluídos cinco profissionais que estavam em férias e 18 por estarem em afastamento funcional nos períodos de coleta de dados. Além disso, 32 manifestaram recusa (alegando outras atividades e falta de tempo) e 57 profissionais não responderam às quatro tentativas de contato presencial e online realizadas. Assim, 50 participaram, ou seja, 32,4% do universo total proposto.
Primeira fase: instrumentos e coleta de dados quantitativos
Neste estudo, foi atribuído um maior peso sobre a etapa quantitativa, desenvolvida em um primeiro momento. Os dados foram coletados por meio de um instrumento online autoaplicável construído no Google Forms contendo: questionário sociodemográfico, laboral e clínico; questões relacionadas à COVID-19 e escala de estresse no trabalho.
O questionário incluía dados sociolaborais e clínicos elaborados pelas pesquisadoras com as seguintes variáveis: sexo, idade, estado civil, filhos, formação, pós-graduação, cargo, unidade de lotação, carga horária, jornada de trabalho, tempo de formação, prática de atividade física, lazer, problemas de saúde, uso de medicações e afastamento do trabalho. Também continha questões referentes à COVID-19, relacionadas às medidas de contingência, contaminação e ao uso de medicamentos.
A Job Stress Scale (JSS) foi utilizada em uma versão traduzida e adaptada para a língua portuguesa ( 12 ). O Modelo Demanda Controle (MDC) foi utilizado para avaliar a exposição ao estresse ocupacional, a partir da JSS, que avalia os fatores psicossociais e risco de estresse nas atividades de trabalho. A escala se constitui em um questionário autoaplicável, contendo 17 questões, divididas em três dimensões: demanda psicológica (cinco questões), controle (seis questões) e apoio social (seis questões) ( 12 ).
Os itens são mensurados pelos escores assinalados em uma escala tipo Likert de quatro pontos, variando entre frequentemente e nunca/quase nunca ou entre concordo totalmente e discordo totalmente. Para as questões de demanda e controle, a pontuação varia de 1 (nunca ou quase nunca) a 4 (frequentemente); para as questões de apoio social, a pontuação varia de 4 (concordo totalmente) a 1 (discordo totalmente). Para as questões 4 (“Você tem tempo suficiente para cumprir todas as tarefas do seu trabalho?”) e 9 (“No seu trabalho, você tem que repetir muitas vezes a mesma tarefa?”) as análises foram inversas. Em cada dimensão da escala, quanto maior o escore, maior a demanda, o controle ou o apoio social percebidos.
Para a dicotomia, na análise estatística bivariada da JSS, o ponto de corte é a mediana do escore total de cada dimensão. Para o escore do domínio “demanda psicológica”, que varia de cinco a 20 pontos, foi dicotomizado em baixa demanda (cinco a 14 pontos) e alta demanda (15 a 20 pontos). Para o escore da dimensão “controle sobre o trabalho” varia de seis a 24 pontos, e foi dicotomizado pela mediana em baixo controle (nove a 17 pontos) e autocontrole (18 a 24 pontos). O escore do domínio “apoio social” varia de seis a 24 pontos e foi dicotomizado em baixo apoio social (seis a 10 pontos) e alto apoio social (11 a 24 pontos)(12). Ao finalizar, o conceito dos quadrantes do MDC foi estratificado em baixa exigência (autocontrole e baixa demanda), trabalho passivo (baixo controle e baixa demanda), trabalho ativo (autocontrole e alta demanda) e alta exigência (baixo controle e alta demanda). A dimensão “apoio social” funciona como mediadora do estresse no ambiente laboral ( 12 ).
O instrumento foi enviado para a população do estudo por meio de e-mails institucionais e aplicativo de troca de mensagens. Em um segundo momento, foi conduzida uma etapa presencial/física de coleta dos dados, buscando acessar os profissionais que não haviam respondido de forma online. Os questionários foram entregues aos participantes nas unidades, após a apresentação e explicação dos objetivos do estudo.
Segunda fase: instrumento e coleta de dados qualitativos
Neste estudo, foi atribuído um menor peso sobre a etapa qualitativa, desenvolvida em um segundo momento. O planejamento desta etapa ocorreu na sequência de uma primeira análise dos dados quantitativos. O objetivo, portanto, foi a geração de dados de natureza subjetiva que contribuíssem na elucidação das relações entre o estresse e o trabalho em saúde na pandemia da COVID-19. Para isso, foram conduzidas as entrevistas semiestruturadas individuais com uma amostra composta por 14 profissionais (médicos, nutricionista, enfermeiros, técnicos em Enfermagem e dentista). Os profissionais foram selecionados por meio de um sorteio aleatório simples com aqueles que participaram da etapa quantitativa. Desse modo, caracterizou-se, na etapa qualitativa, um desdobramento da etapa quantitativa.
O número de participantes foi estabelecido por meio do critério de saturação teórica dos dados ( 13 ). Assim, as coletas interromperam-se com o alcance de 14 entrevistas, por se considerarem obtidos os resultados suficientes para esta etapa.
Para a condução das entrevistas, foi utilizado um roteiro elaborado pelas pesquisadoras, abordando os tópicos: fatores estressantes no trabalho durante a pandemia; sentimentos vivenciados; apoio recebido; dificuldades e desafios enfrentados. Este roteiro foi planejando considerando a necessidade de se obter os achados de natureza qualitativa que contribuíssem para explicar/aprofundar os achados quantitativos. Portanto, a investigação destes elementos foi importante para constituir um banco de dados qualitativos cujo conteúdo possibilitasse o encontro de inferências capazes de iluminar os achados quantitativos.
As entrevistas foram realizadas no formato online, conduzidas pela pesquisadora principal, previamente capacitada, com tempo médio de 35 minutos de duração. As falas foram transcritas por uma equipe de transcritores do grupo de pesquisa da Universidade Federal de Santa Maria, previamente capacitados para este trabalho. Após as transcrições, foi realizada dupla checagem e dupla conferência para verificação de possíveis erros e fortalecimento da confiabilidade dos dados. A transcrição integral das entrevistas compôs corpus qualitativo para análise.
Tratamento e análise dos dados
Os dados quantitativos foram digitados no programa Microsoft Excel ® por dois digitadores independentes. Após a verificação de possíveis erros e/ou inconsistências, os dados foram transferidos para o software Statistical Package for the Social Sciences (SPSS), versão 22.0, e analisados com estatística descritiva e inferencial. Para a caracterização das variáveis sociodemográficas, laborais e clínicas dos participantes foi utilizada estatística descritiva. As variáveis quantitativas foram descritas por medidas de tendência central e dispersão. Para a associação e/ou correlação entre variáveis foram utilizados os teste Qui-Quadrado e teste exato de Fisher, sendo considerados significativos os valores de p < 0,05.
Os dados qualitativos seguiram a Análise Temática de Conteúdo por meio de três etapas: pré-análise, exploração do material e tratamento dos dados/interpretação. A pré-análise corresponde aos primeiros contatos do pesquisador com o material empírico ( 14 ). Foi realizada uma leitura flutuante com o objetivo de melhor compreensão e apropriação do conteúdo. Após a leitura e releitura do material, este foi refinado e organizado, destacando os depoimentos que contribuíram para a compreensão do objeto de estudo.
A exploração do material se constitui em uma fase longa, por meio da qual é realizada a identificação, a decomposição e a codificação dos temas emergentes em Unidades de Registro (URs) ( 14 ). Foram extraídas e codificadas cinco URs (ansiedade, estresse, insônia, medo\insegurança e vulnerabilidade). As URs foram organizadas por afinidade semântica em dois eixos analíticos: Demanda, controle e apoio social dos profissionais da APS na pandemia COVID-19 e Estresse autopercebido pelos profissionais da APS na pandemia da COVID-19: interfaces com a demanda, o controle e o apoio social.
Por fim, no tratamento dos dados e interpretação, em posse de resultados significativos e fiéis, o pesquisador poderá fazer inferências e adiantar as interpretações de acordo com o objetivo do estudo ( 14 ). Esta etapa foi conduzida em conjunto com o processo de mixagem dos dados. Ou seja, a interpretação dos achados qualitativos ocorreu a partir da interface com os quantitativos, buscando similaridades, complementaridade ou divergências.
Integração dos dados
A integração entre os achados quantitativos e qualitativos ocorreu conforme o referencial específico de metodologia mista ( 11 - 15 ). Em concordância com o desenho explanatório sequencial, foi realizada uma integração do tipo explicativa, ou seja, as descobertas qualitativas foram utilizadas para iluminar as quantitativas, em um design sequencial explicativo ( 15 ). Para tanto, foram buscadas, nos depoimentos, inferências e narrativas que ajudassem a contextualizar a experiência do estresse, iluminando as vivências relacionadas a ele e as possíveis interfaces com o contexto pandêmico (contexto central deste estudo).
No sentido de viabilizar esta integração foram empreendidas as ferramentas denominadas matrizes de exibição conjunta ( joint-displays), que são representações visuais ilustrativas da integração QUAN➝Qual e metainferências, que representam visualmente a integração nos desenhos de métodos mistos ( 15 ). Para isso, foi utilizado o software CmapTools versão 6.04, uma ferramenta que viabiliza a construção de mapas mentais e conceituais.
Na apresentação dos resultados, há trechos de depoimentos dos participantes. Os depoentes estão identificados pela letra P (“profissional”), seguida de um número cardinal aleatório.
Aspectos éticos
O projeto foi aprovado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, com número de protocolo 30792920.5.1001.5350.
Resultados
Entre os 50 participantes da pesquisa, 88% eram do sexo feminino; 42,0% eram enfermeiros e 26,0%, técnicos em Enfermagem. Médicos, nutricionistas e profissionais da Odontologia apresentaram menor percentual. A maior parte era casada (60,0%), com filhos (74,0%) e idade entre 41 e 50 anos (38,0%).
Quanto às características laborais, 54,0% cumpriam jornada de trabalho de oito horas diárias e 50,0% possuíam carga horária de 40 horas semanais. Ainda, 84,0% afirmaram ter vínculo empregatício único; 48,0% referiram possuir mais de 16 anos de formação, conforme demonstrado na Tabela 1.
Caracterização sociodemográfica e laboral de profissionais de saúde da atenção primária durante a pandemia COVID-19 (*n=50). Ijuí, RS, Brasil, 2021
Na etapa qualitativa, dentre os 14 entrevistados, houve a predominância de mulheres (n=12, 85,7%), enfermeiras (n=8, 57,1%) e com média de idade entre 31-40 anos (50,0%).
A Figura 1 ilustra a joint-display representativa da integração dos dados QUAN➝Qual. Na sequência, serão apresentados ambos os eixos de análise que discorrem sobre os achados do estudo. O primeiro denominou-se: Demanda, controle e apoio social dos profissionais da APS na pandemia da COVID-19; e o segundo: Estresse autopercebido pelos profissionais da APS na pandemia da COVID-19: interfaces com a demanda, o controle e o apoio social.
Joint-display ilustrativa da integração QUAN➝Qual e metainferência dos achados relacionados ao estresse ocupacional (demanda, controle e apoio social) dos profissionais da APS na pandemia da COVID-19. Ijuí, RS, Brasil
Demanda, controle e apoio social dos profissionais da APS na pandemia da COVID-19
As características sociodemográficas e laborais (variáveis independentes) foram associadas às dimensões da JSS (variáveis dependentes). A profissão médica associou-se à alta demanda, menor controle e baixo apoio social (p<0,001); enfermeiros, técnicos em Enfermagem e profissionais da Odontologia, à alta demanda, autocontrole e alto apoio social (p<0,001); a profissão dentista associou-se a menor demanda psicológica (p<0,001). Profissionais com mais de 16 anos de formados apresentaram melhores pontuações na dimensão controle e apoio social, enquanto os profissionais formados em menos de cinco anos apresentaram alta demanda, baixo controle e baixo apoio social (p<0,03), como detalhado na Tabela 2.
Características laborais de profissionais de saúde que atuam na atenção primária durante a pandemia COVID-19 segundo as dimensões da Job Stress Scale (*n=50). Ijuí, RS, Brasil, 2021
Na sequência, a Figura 2 mostra a distribuição dos profissionais de saúde de acordo com a estratificação nos quadrantes do MDC, a partir da divisão das três dimensões propostas pela JSS: demanda, controle e apoio social. Observa-se que os profissionais pesquisados possuem trabalho caracterizado por alta demanda psicológica (66,0%), autocontrole (54,0%) e de alto apoio social (54,0%). Ao associar às análises das dimensões da JSS, percebe-se que 18 (36,0%) estavam em trabalho de alta exigência e cinco (10,0%) em trabalho passivo; 15 (30,0%) dos participantes estavam em trabalho ativo, com menor risco para a saúde.
Distribuição dos profissionais de saúde da atenção primária na pandemia da COVID-19, de acordo com os quadrantes do Modelo Demanda Controle, conforme a dicotomização das dimensões da Job Stress Scale (*n=50). Ijuí, RS, Brasil, 2021
Estresse autopercebido pelos profissionais da APS na pandemia da COVID-19: interfaces com a demanda, controle e apoio social
Por meio da abordagem qualitativa, os participantes referiram altas demandas de seu trabalho, conferindo alta exigência. Havia uma tentativa de manter autocontrole, estando sob alta demanda, indo ao encontro dos dados quantitativos. Ao mesmo tempo, referiram sentimentos como: ansiedade, angústia, estresse, insônia, medo, insegurança e vulnerabilidade, destacando os impactos negativos em seu bem-estar físico e psicológico. No entanto, a análise dos dados revelou que a maioria dos participantes citou o estresse como a condição que estabeleceu mais interfaces com sua saúde mental, como mostram os depoimentos:
[...] fiquei bem irritada, estava bem mais estressada. [...] mais nervosa em casa, descontando muitas vezes nos familiares, [...] chorava muito, então eu senti bastante (P2).
[...] as questões de pressões externas, me trouxeram um certo estresse que eu não esperava. Tanto que precisei procurar ajuda profissional, não conseguia conduzir isso sozinha (P9).
Demorei para perceber que estava extremamente estressada, [...] tudo respondia muito grosseira, muito nervosa, o nível de estresse ficou muito alto (P5).
A frequência de trabalhadores sob alta demanda estratificados pelos quadrantes do MDC mostrou que a maior parte se encontrava sob alta demanda psicológica no trabalho (66,0%). As entrevistas contribuíram para o entendimento de que o trabalho desses profissionais, dentro da APS, durante a pandemia, elevou as demandas psicológicas e os riscos de danos psíquicos:
Eu estava em um momento de muita tensão. Sempre irritada, nervosa, trabalhava 10 horas por dia [...] esse aumento na demanda também mexe com a gente. Parece que a gente se torna incapaz [...] queria atender todo mundo e atendia todo mundo. Só que depois ficava tensa, estressada. [...] nunca passei por uma experiência igual a essa (P3).
[...] a dificuldade era: tem um monte de gente sentada na sala de espera, quem eu chamo primeiro [...] com o início da vacinação veio outro estresse [...]como prosseguir, como fazer, como agendar (P2).
[...] tinha que organizar o atendimento tanto da COVID, como o que já era de rotina [...] mudou muito drasticamente a rotina de trabalho e a sobrecarga que já é intensa para o enfermeiro (P5).
Apesar de 54,0% dos participantes terem afirmado autocontrole, o trabalho de alta demanda exigiu um grande esforço desses profissionais para manter o controle elevado no ambiente laboral e buscar soluções para os problemas, o que pode favorecer um maior desgaste e o aumento das queixas de sintomas psicológicos:
No início era tudo novo. A gente não sabia como ia fazer, tinha medo de não conseguir fazer, não atender bem, não conseguir fazer o diagnóstico, não conseguir tratar. Então, foi bem difícil (P13).
Por ser uma coisa nova, tu ficas na dúvida, o que vai fazer com aquele paciente, não sabe para onde vai direcionar. [...] fica ansioso, não sabe o que fazer, vai pra casa pensando [...]. Não tem como desligar cem por cento. Essas questões geram mais insegurança, ansiedade, te faz ter preocupações que não sentia antes (P1).
A gente se sente não dando conta da demanda que deveria dar conta. Isso aos poucos vai afetando o dia a dia. Quando não consegues atingir os objetivos [...] todo mundo sobrecarregado (P6).
A percepção do apoio social no ambiente de trabalho foi baixa para 46,6% dos participantes. As entrevistas constataram que, apesar de ser considerada uma importante ferramenta para minimizar os riscos para o desenvolvimento do estresse laboral, quase metade dos participantes relataram não terem se sentido apoiados:
[...] a administração procurou, mas eles também não estavam preparados para isso [...]. Apoio psicológico a prefeitura não oferece [...] então acho que falta muito apoio (P11).
Mas acho que faltou apoio, de repente até psicológico [...]. Porque apesar da gente estar trabalhando, ninguém pensou nisso. Acho que ficou meio de lado. Cuida do doente, esquece do profissional (P1).
Os depoentes referiram também ao medo vivenciado no ambiente de trabalho, em decorrência da COVID-19, como fator de forte influência em sua saúde psicológica:
[...] aprender a trabalhar de outra forma, aprender a lidar com o medo de atender as pessoas, com o medo de adoecer, de trazer doença para dentro de casa (P10).
Foi bem difícil, a equipe toda se assustou muito, tinha muito medo [...] a gente tinha restrição, então, atendia menos, mas quando atendia, era com uma carga, um medo. Medo pela gente, pelo paciente, a gente trabalhava sempre no limite (P2).
Eu tive medo, funcionários que tiveram medo, que passaram a usar psicotrópico e a precisar do acompanhamento psicológico e psiquiátrico. Funcionários falavam que não dormiam mais a noite, ficavam com muito medo de se contaminar, de contaminar a família (P5).
Além disso, os profissionais de saúde relataram um sentimento de insegurança, vulnerabilidade e ansiedade relacionadas ao trabalho, colocando-os como fatores que interferiram negativamente sobre sua saúde mental, destacando a interface desses sentimentos com o aumento da demanda psicológica no trabalho:
No início foi bem difícil, a gente se assustou mais eu acho, inclusive eu desenvolvi crises de ansiedade, iniciei uso de medicação (P2).
Nunca fui tão insegura. Muito ansiosa, algumas vezes, parecia que tinha uma crise de pânico [...]. Às vezes, quero voltar para casa. [...] acho que fiquei uma pessoa um pouco mais insegura nesse sentido. Com mais medo, mais medrosa (P13).
Ao integrar os dados, foram identificadas interfaces entre a alta demanda psicológica e a presença de sintomas de danos psíquicos, o que pode ser explicado pelas mudanças organizacionais e as particularidades exigidas no trabalho, bem como pela percepção dos riscos ao trabalhar no cenário pandêmico. Os resultados evidenciaram que parte dos profissionais de saúde foram submetidos ao trabalho de alta exigência durante a pandemia. Os relatos de sentimentos de medo, vulnerabilidade, insegurança, ansiedade e estresse sinalizavam que os profissionais estavam sob alta demanda, o que exigiu um maior esforço para manter o autocontrole e o equilíbrio necessários para suprimir a alta demanda psicológica, diante do novo cenário de trabalho. Além disso, o apoio social que se constitui em um elemento fundamental para minimizar os fatores de risco para o estresse, não foi percebido por quase metade dos participantes da pesquisa. O que pode justificar o fato de que a maior parte dos entrevistados apresentarem sintomas de estresse ocupacional.
Discussão
Os profissionais de saúde da APS estão expostos aos elevados riscos para o estresse ocupacional. Características individuais, do trabalho e a classe profissional podem contribuir para a diminuição ou aumento desses riscos. Essa afirmação emerge das reflexões a partir dos resultados que demonstraram que a maior porcentagem dos participantes afirmou apresentar alta demanda psicológica, ainda assim, percebem autocontrole e elevado apoio social, minimizando os riscos para o estresse ocupacional entre esses profissionais. O escore elevado para alta demanda é condizente com o que foi levantado nos depoimentos, nos quais as exigências envolvidas no ritmo diário foram observadas nos relatos dos participantes.
Apesar disso, parte dos profissionais ainda está exposta aos riscos à saúde. Também foi verificado que o tempo de serviço e experiência profissional interferem na forma como cada pessoa enfrenta os fatores estressantes. Outro dado que chamou a atenção neste estudo é o fato de grande parte dos profissionais ter vínculo empregatício único, contudo, sentem-se esgotados psicologicamente e sob elevada demanda. Isso contraria um estudo que evidenciou as jornadas múltiplas de trabalho como o principal fator que interfere na saúde física e mental dos profissionais ( 16 ). Dessa forma, evidencia que o trabalho durante a pandemia exigiu um grande esforço desses profissionais para manterem o equilíbrio, favorecendo o surgimento de diversos sintomas psicológicos, como o estresse.
O estresse ocupacional está entre os principais causadores de sofrimento psicológico durante a pandemia ( 17 ), e pode trazer consequências negativas para o trabalhador, como a diminuição da qualidade de vida e implicações para a saúde mental, tensão elevada e as alterações no sono e nas emoções, prejudicando o processo de trabalho e a qualidade da assistência prestada ( 18 ).
A pandemia da COVID-19 refletiu de forma intensa sobre a atenção primária, provocando mudanças profundas na forma de atendimento, e por ser uma doença infecciosa apresentou um risco adicional aos profissionais de saúde que eram submetidos a altas demandas e com equipes reduzidas, gerando uma sobrecarga de trabalho, favorecendo o surgimento de fatores que podem desencadear sintomas de adoecimento físico e mental, levando à redução da concentração e refletindo na qualidade do trabalho ( 19 ).
Os profissionais de saúde da APS estão na linha de frente no combate à COVID-19; considerando a APS como principal porta de entrada para o Sistema Único de Saúde (SUS), ela tem como uma de suas atribuições atuar diretamente em surtos e epidemias, desenvolvendo um trabalho fundamental no combate à COVID-19 no Brasil ( 20 ). Os profissionais inseridos nos cuidados primários durante a pandemia manifestaram esgotamento e elevados riscos de estresse relacionado ao trabalho e às condições adversas, que foram acrescentadas na sua rotina devido à pandemia ( 21 ). Os achados deste estudo sugerem que, durante a pandemia, as demandas psicológicas associadas aos serviços prestados na APS foram elevadas e estão entre as principais causas de queixas de sofrimento psicológico.
Para melhor compreensão das relações entre o estresse ocupacional e o trabalho durante a pandemia, o primeiro eixo analítico mostrou a interface demanda, controle e apoio social dos profissionais da APS durante o trabalho na pandemia da COVID-19. Os resultados obtidos a partir da JSS mostraram que 66,0% dos participantes estavam sob alta demanda psicológica, apresentando risco de exposição ao estresse no ambiente de trabalho. Esses dados são condizentes com a etapa qualitativa, na qual a maior parte dos entrevistados relatou algum grau de estresse no trabalho durante a pandemia da COVID-19.
Esses achados foram superiores ao estudo com profissionais de saúde na Etiópia, onde os resultados revelaram o estresse em 61,9% ( 7 ). Os profissionais de saúde se mostraram especialmente atingidos por uma elevada carga psíquica relacionada ao processo de cuidar dentro das unidades de saúde.
Do total dos participantes, 36,0% estavam no quadrante de trabalho de alta exigência e 10,0% no quadrante de trabalho passivo. Assim, 46,0% dos trabalhadores estavam em situação de risco para a saúde, susceptíveis ao desenvolvimento do estresse ocupacional. Este tem se tornado comum entre os profissionais de saúde, e é considerado uma doença perigosa para o trabalhador que, quando exposto às situações com altas demandas, exige que o profissional ultrapasse sua capacidade individual e social de adaptação para o enfrentamento, excedendo seus recursos pessoais, desenvolvendo as alterações do estado psicológico e gerando reações emocionais, cognitivas, fisiológicas e comportamentais ( 22 ). Inclusive pode repercutir em perdas de habilidades e interesse, o que reflete negativamente na saúde e no ambiente de trabalho ( 12 ). Esses reflexos já foram observados nos depoimentos dos participantes durante as entrevistas.
Observa-se que 30,0% dos profissionais pesquisados possuem trabalho ativo e 24,0% trabalho de baixa exigência. O trabalho ativo ocorre quando altas demandas e autocontrole coexistem; nesse caso, ainda que existam elevadas demandas, elas são menos prejudiciais à saúde, ao passo que o indivíduo tem a possibilidade de planejar seu trabalho de acordo com suas possibilidades e criar suas estratégias para enfrentá-la. Essas são consideradas as condições mais favoráveis para a saúde do trabalhador ( 23 ).
Apesar da alta demanda psicológica, a maior parte dos participantes estava no quadrante de autocontrole sobre os processos de trabalho e alta percepção de apoio social. O autocontrole está relacionado à capacidade do trabalhador em usar suas habilidades para realizar seu trabalho, assim como ter autoridade para tomar as decisões ( 12 ). O autoapoio social indica uma boa interação social no ambiente de trabalho, além de ser considerado um moderador dos fatores que favorecem o estresse, e a falta deste pode acarretar consequências negativas à saúde do trabalhador ( 24 ). Tais resultados corroboram um estudo em três hospitais públicos em Accra, Gana, em que 40,11% dos profissionais de saúde afirmaram ter apoio adequado dos colegas e da gerência. Além disso, 46,20% dos participantes afirmaram ter controle e autonomia necessária para tomar as decisões ( 9 ).
Assim, os dados quantitativos e os achados qualitativos desvelaram que a maioria dos participantes constatou alta demanda, no entanto, têm controle e elevado apoio social, o que pode favorecer a redução da exposição dos trabalhadores aos fatores estressantes, contribuindo para adaptação às demandas e reduzindo as chances de adoecimento psicológico.
Porém, é importante ressaltar que uma parte considerável da amostra estudada se encontra nos quadrantes de risco para a saúde, enfatizando a importância do cuidado relacionado à saúde mental desses profissionais. Além disso, o trabalho sob alta demanda, somado aos fatores de riscos inerentes à pandemia, acarretaram sobrecarga psicológica, exigindo um esforço maior para manter o equilíbrio e o controle na execução das atividades. O trabalho nessas condições favorece os sentimentos que, ao decorrer dos dias, desencadeiam o adoecimento físico e psicológico ( 25 ). Acredita-se que, mesmo com o fim da pandemia, os danos causados à saúde mental podem permanecer e gerar efeitos danosos a longo prazo ( 26 ).
O segundo eixo analítico mostrou as interfaces do estresse autopercebido pelos profissionais da APS na pandemia da COVID-19 e o rastreamento do MDC. Eventos estressantes como pandemias e desastres naturais possuem grande impacto sobre os profissionais de saúde envolvidos no cuidado, pois, enquanto prestam assistência à população, também vivenciam esses mesmos impactos em suas vidas pessoais ( 27 ). Isso faz com que o ambiente de trabalho do profissional de saúde se torne ainda mais carregado de estressores, podendo ter efeitos significativos na saúde mental dos profissionais ( 21 ). Esses reflexos foram confirmados nas entrevistas, que revelaram que os fatores estressantes, decorrentes da pandemia interferiram na qualidade do sono dos profissionais e contribuíram para o aumento do cansaço físico e mental.
Paralelamente aos achados quantitativos, os depoimentos revelaram que os profissionais de saúde exercem suas atividades dentro da APS, submetidos aos sentimentos de medo, ansiedade, insegurança e vulnerabilidade relacionados ao trabalho no cenário pandêmico. Outros estudos já identificaram esses sentimentos entre os profissionais de saúde atuantes da Hungria ( 10 ). Entre essas reações psicológicas, o medo foi referido por 67,4% dos participantes de um estudo da Noruega ( 24 ). A ansiedade, a depressão, a angústia e a insônia em um estudo chinês ( 6 ). Esses sentimentos são subjetivos ao adoecimento mental e acarretaram uma carga psicológica maior, em decorrência da pandemia ( 10 ). Por meio dos depoimentos é possível compreender que a exposição desses profissionais às elevadas demandas e às mudanças organizacionais, nos setores de saúde de cuidados primários, exigiu maior esforço na busca por adaptação aos fatores estressantes, o que pode ter contribuído para o aumento dos sintomas psicológicos relatados.
As entrevistas possibilitaram a percepção de que fatores específicos relacionados à pandemia são colocados como condições geradoras de sofrimento psicológico, como referência ao medo, à insegurança, à ansiedade e ao estresse. Além disso, o trabalho da APS na pandemia colaborou para que esses profissionais se sentissem mais inseguros e vulneráveis ao estresse ocupacional, como exposição ao risco de infecção, longas horas de trabalho, sofrimento psicológico, fadiga e esgotamento profissional. Identificou-se, ainda, a necessidade de atendimento profissional e uso de medicamentos para tratar tais sintomas, confirmando o sofrimento psicológico.
Foi verificada uma diferença estatística significativa entre o rastreamento de MDC e a profissão. O maior percentual de profissionais da Enfermagem e da Odontologia foi classificado no quadro de trabalho ativo. Esses dados diferem de estudo realizado com enfermeiros da assistência hospitalar no Irã, no qual demonstrou-se que a saúde física e mental da maioria dos enfermeiros sob alta pressão e estresse psicológico, decorrentes da COVID-19, foi prejudicada ( 25 ). Isso sugere que as responsabilidades e as atribuições de cada profissão em diferentes setores podem influenciar nos fatores estressantes no ambiente laboral, contribuindo para agravar ou minimizar seus efeitos nocivos.
Já os nutricionistas e os profissionais médicos foram classificados no quadrante de alta exigência, sob um risco elevado para o desenvolvimento do estresse ocupacional. Um estudo realizado com médicos da rede hospitalar evidenciou que estes perceberam aconselhamento e apoio social em maior grau quando comparados aos enfermeiros, indo de encontro ao exposto neste estudo ( 24 ). Essa desigualdade nos resultados se relaciona à estrutura e aos aspectos organizacionais do serviço hospitalar que se diferencia, quando comparados ao trabalho desenvolvido na APS. Os dados qualitativos deste estudo colaboram para a compreensão de que as responsabilidades e as atribuições de cada profissão na gestão do cuidado atuam como um fator estressante nos atendimentos durante a pandemia da COVID-19.
Neste estudo, os profissionais de saúde com mais experiência de trabalho souberam lidar melhor com os fatores estressantes, estando mais preparados psicologicamente para enfrentar as dificuldades do trabalho na pandemia, quando comparados àqueles com menor experiência.
A associação dos dados quantitativos e qualitativos evidenciou que, na percepção dos participantes do estudo, o trabalho durante a pandemia trouxe reflexos negativos para a saúde psicológica dos profissionais. As altas demandas trouxeram sobrecarga psíquica, juntamente com a falta de controle e apoio social para alguns profissionais, contribuindo para o surgimento de fatores que favoreceram o adoecimento mental. Fatores estressantes possuem grande influência sobre a saúde e a assistência prestada, causando danos físicos, psíquicos, sociais e culturais, interferindo diretamente na qualidade de vida e agindo como principais causadores do estresse ocupacional ( 28 ). Para os autores, o impacto negativo trazido pelo estresse vai além de prejuízos à saúde física e psicológica, influenciando também a qualidade de seus relacionamentos, na comunidade e no local de trabalho.
Este estudo teve como limitação o fato de as entrevistas terem sido feitas de forma online, tendo em vista que o contato presencial permite maior interação e observação da linguagem corporal. Além disso, não foram possíveis alguns procedimentos para o fortalecimento da confiabilidade dos dados qualitativos – como a validação das entrevistas junto aos depoentes, por exemplo. O momento pandêmico em que os dados foram coletados foi caracterizado por sobrecarga e desgaste dos trabalhadores da linha de frente, motivo pelo qual sua disponibilidade para participar do estudo foi restrita.
O trabalho dos profissionais de saúde da APS durante a pandemia da COVID-19 pode refletir negativamente na saúde mental destes profissionais, além de interferir na qualidade de vida e dos serviços prestados, com efeitos que podem ir além do período pandêmico. Os resultados reforçam as associações entre as variáveis laborais e os aspectos relacionados à saúde física e mental, em sinergia com as evidências produzidas no Brasil e em outros países. Porém, a integração dos achados provenientes de diferentes fontes de evidência e naturezas auxiliaram a avançar no conhecimento disponível até então, iluminando as implicações da pandemia na vida, no trabalho e interfaces com os sintomas psicológicos.
Sendo assim, este estudo contribuiu para a reflexão sobre a importância de um ambiente de trabalho saudável dentro da APS e maior conhecimento sobre a realidade do cenário de trabalho e as necessidades desses profissionais, podendo servir de subsídio aos gestores em saúde, para a identificação dos fatores estressantes no ambiente de trabalho, colaborando para a prevenção do adoecimento mental dos profissionais de saúde.
Conclusão
Profissionais de saúde da APS trabalharam sob altas demandas psicológicas, com elevado risco de exposição ao estresse ocupacional e sintomas psicológicos durante a pandemia da COVID-19. Profissão e tempo de formação se mostraram fatores associados ao estresse. Em contrapartida, a integração destes dados com os achados qualitativos evidenciou implicações da pandemia na vida, no trabalho e interfaces com os sintomas psicológicos, fortalecendo as relações entre o trabalho na pandemia e a saúde mental.
Este estudo mostrou que, independente do trabalho desenvolvido, os profissionais de saúde estavam sob elevados fatores estressantes inerentes ao processo de trabalho durante a pandemia. Os resultados oferecem subsídios para a compreensão das necessidades desses profissionais, sinalizando a importância de estratégias que visem o fortalecimento da APS e o cuidado com a saúde do trabalhador nas instituições de saúde. Tendo em vista a importância desses profissionais nos cuidados primários e que os reflexos negativos na saúde mental do trabalhador repercutem também no período pós-pandemia, são necessárias estratégias que visem a minimização de tais danos, promovendo saúde, qualidade de vida e apoio social.
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Todos os autores aprovaram a versão final do texto.
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Como citar este artigo
Tamborini MMF, Colet CF, Centenaro APFC, Souto ENS, Andres ATG, Stumm EMF. Occupational stress in primary care workers during the COVID-19 pandemic: mixed methods study. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2023;31:e4041 [cited ano mês dia]. Available from: URL . https://doi.org/10.1590/1518-8345.6797.4041
Agradecimentos
Agradecemos a Marina Schneider Ribeiro, Júlia Glowack, Gabriela Kich dos Santos, Kaliandra Gallina, Larissa Frigo Dal Soto e Nicoly Mycaela Eidelwein pela colaboração na fase de transcrição das entrevistas.
Editado por
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Editora Associada:
Andrea Bernardes
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
03 Nov 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
-
Recebido
17 Abr 2023 -
Aceito
03 Ago 2023