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O objeto voz: afecção entre angústia e culpa1 1 O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nivel Superior – Capes – Código de Financiamento 001.

The object voice: affection between anguish and fault

L’objet voix: affection entre angoisse et culpabilité

El objeto voz: afección entre la angustia y la culpa

O artigo analisa a concepção de objeto voz, proposta por Jacques Lacan, com o intuito de diferenciá-la do sentido comum de voz e de interrogar sua relação com a angústia. Para isso, dialogamos tanto com Jacques Derrida e sua crítica da voz fenomenológica, entendida como autoafecção, quanto com o trabalho de Theodor Reik em torno do objeto ritual shofar. Mostramos, assim, como o psicanalista francês, ao tematizar a reflexão reikiana, não só desenvolve a relação do objeto parcial voz com a angústia como também aborda a resolução desse afeto por meio da culpa. Este estudo se insere em uma pesquisa mais ampla, que busca fornecer um quadro a respeito da metapsicologia de Lacan sobre os afetos. A reconstrução crítica dos pontos apresentados ao longo do artigo também acaba por levantar o que tal horizonte lacaniano parece intuir, de maneira geral, sobre a ação.

Palavras-chave:
Objeto voz; angústia; culpa; afetos


Resumos

This article analyzes the conception of the object voice proposed by Jacques Lacan, with the aim of distinguishing it from the common meaning of voice and questioning its relationship with anguish. For this, we discuss both Jacques Derrida and his critique of the phenomenological voice, understood as self-affection, and Theodor Reik’s work on the shofar as a ritual object. We thus show how the French psychoanalyst, in the theme of Reikian reflection, not only develops the relationship between the partial object voice and anguish, but also addresses the resolution of this affection via guilt. This study is part of a broader research project that seeks to provide a framework for Lacan’s metapsychology of affect. The critical reconstruction of the points presented throughout the article also ends up highlighting what this Lacanian horizon seems to intuit, in general, about action.

Key words:
Object voice; anguish; fault; affect

L’article analyse la conception d’objet voix proposée par Jacques Lacan, dans le but de le différencier du sens commun de la voix et d’interroger son rapport à l’angoisse. Pour ce faire, nous dialoguons à la fois avec Jacques Derrida et sa critique de la voix phénoménologique, entendue comme auto-affection, et avec le travaux de Theodor Reik sur l’objet rituel shofar. Nous montrons ainsi comment le psychanalyste français, en thématisant la réflexion reikienne, développe non seulement la relation entre l’objet voix partiel et l’angoisse, mais aborde aussi la resolution de cet affect par la culpabilité. Cette étude s’inscrit dans le cadre d’une recherche plus large qui vise à encadrer la métapsychologie de l’affect chez Lacan. La reconstruction critique des points présentés au long de l’article finit par mettre en evidence ce que cet horizon lacanien semble intuitionner à propos de l’action.

Mots clés:
L’objet voix; angoisse; culpabilité; affects


Este artículo analiza la concepción del objeto voz propuesta por Jacques Lacan para diferenciarla del sentido común de la voz y cuestionar su relación con la angustia. Para ello, se utilizan Jacques Derrida y su crítica a la voz fenomenológica, entendida como autoafección, y el trabajo de Theodor Reik en torno al objeto ritual shofar. Se demuestra cómo el psicoanalista francés, al tematizar la reflexión reikiana, no solo desarrolla la relación del objeto parcial voz con la angustia, sino que aborda la resolución de este afecto mediante la culpa. Este estudio forma parte de una investigación más amplia, que pretende aportar un marco sobre la metapsicología de Lacan acerca de los afectos. La reconstrucción crítica de los puntos expuestos a lo largo de este artículo acaba planteando también lo que este horizonte lacaniano parece intuir, de manera general, sobre la acción.

Palabras clave:
Objeto voz; angustia; culpa; afectos


É próprio da estrutura do Outro constituir certo vazio, o vazio de sua falta de garantia. (...) Ora, é nesse vazio que a voz — como distinta das sonoridades, voz não modulada, mas articulada, ressoa.

(Lacan, 1962-63, p. 172Lacan, J. (1962-63). L’angoisse. Recuperado em 16 de junho de 2021, de http://staferla.free.fr/S10/S10%20L'ANGOISSE.pdf.
http://staferla.free.fr/S10/S10%20L'ANGO...
; tradução nossa).

A psicanálise lacaniana ficou amplamente conhecida pelo privilégio que concedeu ao que se costuma chamar de linguagem. Falar em afetos neste contexto pode parecer que estamos nos dirigindo a uma questão que permaneceu secundária na experiência intelectual de alguém como Jacques Lacan. Se não for isso, no máximo seria uma discussão vinculada ao plano imaginário, à hipérbole do sentimento de si por meio de uma espécie de narcisismo atrelado ao que inclusive poderíamos dar o título de caminho para a busca de reconhecimento em um espelho bastante específico, o espelho do Outro. No entanto, haveria de se lembrar que a revisão do status do objeto na especulação lacaniana se utilizou principalmente de um afeto como instrumento epistêmico para tal empreitada. Pois esse afeto, que não pode ser senão a angústia, é colocado como a única tradução subjetiva de um objeto que merece ser qualificado como impróprio à “egoização”, para falar como Lacan. Tal objeto, como já podemos esperar, foi identificado por uma letra, objeto a.

Por mais importante que seja a produção de uma discussão da angústia com o objeto a no singular, gostaríamos, neste trabalho, de apresentar também algumas questões a respeito de uma das formas do objeto a. Sabemos como o psicanalista francês apresentou ao menos cinco formas desse objeto: o seio, o cíbalo, o falo, o olhar e a voz. A forma à qual se dará espaço aqui é a última da série disposta por Lacan, aquela que coloca em jogo o que estamos acostumados a chamar de estágio invocante. Isso ocorreria como uma maneira de levar em conta a especificidade da voz como objeto na relação com a angústia, mesmo que as questões gerais do objeto a com esse afeto também estejam presentes de algum modo. Mas é bom nos lembrarmos, mais uma vez, de que há uma ilustração como a do shofar, que demanda um olhar mais aguçado para as interrogações a respeito do objeto voz tal como explorado pela psicanálise lacaniana.

Salientar esse aspecto nos permite também desconstruir o que poderíamos imaginar que está em jogo quando falamos sobre o objeto voz na experiência analítica. Inclusive, talvez fosse o caso de frisar que a primeira de nossas interrogações se voltará para o seguinte: em que consiste o objeto voz? Como dirá Jean-Michel Vives (2020)Vives, J-M. (2020). A voz no divã: Aller., essa pergunta faz todo o sentido se nós considerarmos que, ao contrário da ampla construção lacaniana sobre o olhar, os “(...) desenvolvimentos [de Lacan] sobre o objeto voz são raros e esparsos” (p. 29). Daí a importância de se indagar sobre tal objeto, pois isso pode colaborar na ampliação de sua compreensão no interior da psicanálise lacaniana. Analisar esse ponto nos abrirá também a possibilidade de diferenciarmos o estatuto desse objeto do modo como a filosofia derridiana compreende o fonocentrismo. Pois há que se assinalar que a voz como objeto considerada por Lacan está muito longe de alguma metafísica da presença por meio da transparência de si, como vinculou Jacques Derrida em sua famosa análise a respeito do emaranhamento da voz com as principais questões da metafísica tradicional.

Se começaremos com a perspectiva de promover um debate a respeito do objeto voz, não deixaremos de passar depois para a relação desse objeto parcial com a angústia. É sabido que uma das principais ilustrações produzidas por Lacan foi feita por meio da retomada de um estudo elaborado por Theodor Reik sobre um objeto ritual judaico, a saber, o shofar. Não desconsiderando o caráter por vezes enigmático de tal trabalho, tentaremos discutir o caso trabalhado por Reik com a reflexão lacaniana sobre a relação entre o objeto voz e a angústia, identificando o excesso produzido no confronto entre a ideia geral e o caso específico, sem esperar que os dois estejam em total identidade. Aliás, em nossa análise, eles estão um pouco longe disso. No entanto, o ponto que mais importa aqui é que o shofar permitirá que se fale a respeito da resolução da angústia por meio de um sentimento como a culpa.2 2 É importante dizer que nosso ensaio não se propõe a fazer um estudo ampliado sobre o objeto ritual judaico shofar. Seu lugar aqui é apenas de ilustração do objeto voz de Lacan. Por mais inapreensível que possa inicialmente ser a explicação dessa resolução, é preciso mencionar que a produção do supereu é um efeito de determinação da estrutura no sujeito. Ainda que pareça estranho, cabe colocar aqui que a falta, para espanto de alguns, é vista por Lacan, paradoxalmente, nas discussões a respeito da angústia, como a principal falha do desejo.

O objeto voz

Há quem faça a defesa de que a entrada significativa de objetos como a voz e o olhar na especulação analítica só foi possível graças à adesão lacaniana ao que poderíamos chamar de paradigma estruturalista. Um pouco como se os outros objetos parciais — o oral e o anal, principalmente — ainda estivessem marcados pelo pensamento desenvolvimentista promovido pela psicanálise freudiana. No entanto, seria importante acrescentar que Lacan não deixa de abarcar tanto a voz como o olhar em estágios. Inclusive, talvez fosse o caso de refletir a respeito desse ponto e se perguntar o que levou o psicanalista francês a permanecer utilizando uma palavra — estágio — de um vocabulário um pouco avesso à sua maneira de pensar. Mesmo que seja difícil supor que tanto a voz quanto o olhar participem de algo como estágios, eles não deixam de retroagir nos dois primeiros — o oral e o anal —, o que faria pensar que a permanência da expressão pode ter como mérito a lembrança de que a estrutura não é estável. Como salienta Erik Porge (2011)Porge, E. (2011). Les voix, la voix. Essaim, 26, 7-28.: “(...) [Lacan] não hesita em falar de ‘estágios’, embora se coloque em uma perspectiva estrutural. Não são estágios do desenvolvimento, e essa é uma forma de dizer que a estrutura tem uma dinâmica” (p. 11; tradução nossa).

No caso específico do objeto voz, Lacan chega a dizer que o estágio invocante poderia ser tomado como o mais original. É como se o autor tivesse em mente que o estágio em que o objeto voz se encontra é importante no sentido de ser capaz de retroagir nos outros estágios, a ponto de permitir que readquiram valor as funções do desejo e da angústia em todo o restante do circuito pulsional. Curiosamente, a importância desse objeto nas elaborações de Lacan é visível também por meio de uma das suas principais construções esquemáticas: o grafo do desejo. Se prestarmos bem a atenção, o objeto voz é o único entre os objetos parciais a ser situado nesse esquema lacaniano. É verdade que houve uma tentativa posterior de psicanalistas como Colette Soler que cogitaram a inclusão do olhar em determinado lugar no grafo do desejo, que inclusive foi a primeira entrada sistemática da topologia no pensamento de Lacan.3 3 A sugestão de Colette Soler (2009) é que o olhar poderia ser situado em I(A) no grafo do desejo porque, sem o Outro, o sujeito não conseguiria se sustentar na posição de Narciso: “O que faz com que já o Ideal do Outro funcione como olhar” (p. 209; tradução nossa). No entanto, mesmo assim, na relação com a cadeia significante, o objeto voz teve um lugar bastante privilegiado.

Inclusive, já que estamos a falar do grafo, apresentemos com mais vagar as questões que ele suscita por causa do ponto em que o objeto voz está situado nele. Isso permitirá uma primeira desconstrução da forma como geralmente compreendemos o que é uma voz. Para isso, precisamos retomar algo crucial: a cadeia significante, quando reduzida às suas características mínimas, tem como resto a voz. Esboçar a voz dessa forma tem algumas consequências. Como apontará Mladen Dolar (2006)Dolar, M. (2006). A Voice and Nothing More. The MIT Press., “(...) a voz não é tomada como uma origem hipotética ou mítica (...), nem como uma substância difusa a ser reduzida à estrutura, ou uma matéria-prima a ser domesticada para produzir fonemas” (p. 35; tradução nossa). Na verdade, a formulação lacaniana sustenta exatamente o oposto disso: nesse caso, a voz é resultado da operação estrutural. É como se a análise estrutural, expressada por uma disciplina como a fonologia, tivesse deixado um resto que está longe de toda a positividade do que geralmente temos em mente quando falamos em algo como a voz.

Afinal de contas, a positividade da voz estaria atrelada, de maneira ampla, à tradição metafísica, principalmente se lembrarmos que ela expressa largamente o domínio da presença por meio de uma suposta transparência de si. Um dos trabalhos maiores a respeito disso foi fornecido por Jacques Derrida quando ele discute a fenomenologia transcendental de Husserl. É verdade que não se tratava apenas de um apontamento circunscrito à fenomenologia, mas de sugerir que os pressupostos aos quais ela aderia faziam parte da metafísica tradicional. O filósofo da desconstrução insistiu em mostrar que Husserl se esforçava para afirmar um laço essencial entre logos e phonè. Tal conservação tem como pressuposto o privilégio da consciência cuja possibilidade está na viva voz. Como se o privilégio da presença como consciência só pudesse se estabelecer pela excelência da voz.4 4 Claude Evans (1991) aponta para uma crítica no interior da análise de Derrida sobre Husserl, uma vez que o pensamento derridiano só teria força desconstrutiva se fosse possível assumir que o filósofo alemão está ligado a um conceito de interior que se fecha sobre si mesmo. Há controvérsia em relação a isso. Como dirá Derrida (1994)Derrida, J. (1994). A voz e o fenômeno: introdução ao problema do signo na fenomenologia de Husserl. Zahar.:

A voz é o nome desse elemento. A voz se ouve. Os signos fônicos (as “imagens acústicas” no sentido de Saussure, a voz fenomenológica) são “ouvidos” pelo sujeito que as profere na proximidade absoluta do seu presente. O sujeito não tem que passar para fora de si para ser imediatamente afetado por sua atividade de expressão. Minhas palavras são “vivas”, porque parece que elas não me deixam: não caem fora de mim, para fora da minha respiração, em um afastamento visível; não deixam de me pertencer, de estar à minha disposiçao, “sem acessório”. (p. 86; grifo do autor)

Se pudéssemos resumir, diríamos que a questão derridiana poderia ser formulada da seguinte maneira: quando eu falo, pertence à essência fenomenológica de tal operação que eu me escute no tempo em que falo. Para Derrida (1994)Derrida, J. (1994). A voz e o fenômeno: introdução ao problema do signo na fenomenologia de Husserl. Zahar., o ouvir-se falar é uma autoafecção de um tipo absolutamente único, pois puro. A unidade do som e da voz produz tal aspecto: “É essa universalidade que faz com que, estruturalmente e de direito, nenhuma consciência seja possível sem a voz. A voz é o ser junto de si, na forma da universalidade, como con-sciência. A voz é a consciência” (p. 90; grifo do autor). Sobre isso, um dado ao mesmo tempo curioso e central da língua francesa, o verbo s’entendre tem certa ambiguidade, pois o significado pode ser tanto se ouvir quanto se entender. Dessa forma, não ficaria difícil compreender o que Dolar (2006, pp. 38-39Dolar, M. (2006). A Voice and Nothing More. The MIT Press.; grifo do autor, tradução nossa) coloca nos seguintes termos: “S’entendre parler — ouvir a si mesmo falar — seria assim a definição mínima de consciência”.

Mas alguém poderia ter a ideia de interrogar: quais são as consequências disso em um trabalho dedicado aos afetos na metapsicologia de Lacan? A questão poderia ser respondida da seguinte forma: a voz constitutiva da consciência está próxima do que poderia ser incluído em um plano narcisista nas discussões vinculadas à experiência analítica. Nesse caso, seria uma dimensão supostamente autoafetiva da voz, em que nos reconhecemos naquilo que se apresenta a nós. Falamos em algo supostamente autorreferente, porque é bom lembrar que até mesmo o narcisismo é dependente do espelho do Outro. Mas o objeto voz do qual fala Lacan está longe do narcisismo, é uma voz que nos afeta a ponto de podermos ficar angustiados diante dela, uma vez que não se pode dominá-la a partir do plano imaginário.5 5 Essa é a importância de falar do objeto voz em uma reflexão a respeito dos afetos no horizonte lacaniano, sobretudo porque ele ajuda a explicitar a natureza negativa que importa à experiência analítica para Lacan. Negatividade que nada tem de narcísica, como poderia ocorrer em outros modos de afecção. É inclusive com essas questões que Mladen Dolar se coloca a refletir sobre a relação entre a voz e a história da metafísica, sobretudo para relativizar o que Derrida havia proposto anteriormente. Sem entrar aqui em todos os detalhes dessa discussão, apenas retomaríamos que a tese central do filósofo esloveno aponta para uma voz que foi sumariamente apagada da história.

De maneira sintética, poderíamos dizer que nessa perspectiva há uma outra história da voz, lá onde ela foi considerada perigosa, pois era vista como aquilo que poderia nos levar à ruína. Se fosse possível resumir, diríamos que tal história estaria definitivamente marcada pela dicotomia entre a voz e o logos. Mesmo que o som esteja em jogo aqui, Dolar produz uma arqueologia na qual o imperador chinês Shun (2200 a.C.) apresenta certos princípios que a música deve seguir. No interior dessas recomendações, é possível encontrar que é condenável a música carente de sentido, é preciso seguir o sentido da letra. Como muito bem nota Dolar (2006)Dolar, M. (2006). A Voice and Nothing More. The MIT Press., não só a música, mas principalmente a voz “(...) não deve se afastar das palavras que a dotam de sentido; assim que se afasta de sua ancoragem textual, a voz torna-se sem sentido e ameaçadora — ainda mais por causa de seus poderes sedutores e embriagantes” (p. 43; tradução nossa).

É quando a voz se solta da palavra que ela é vista como perigosa. Seria sobretudo uma voz sem lei. A construção dessa história permitirá ao filósofo esloveno afirmar que a voz fonocêntrica era apenas uma parte da história. Dolar (2006)Dolar, M. (2006). A Voice and Nothing More. The MIT Press. ainda dirá: “(...) a história do ‘logocentrismo’ não anda de mãos dadas com o ‘fonocentrismo’, há uma dimensão da voz que vai contra a autotransparência, sentido e presença: a voz contra o logos, a voz como o outro do logos, sua alteridade radical” (p. 52; tradução nossa). Se abordamos de forma vaga certa decomposição de como compreendemos a voz no interior da história, seria preciso também apontar com mais ênfase para a fenomenologia, campo que Derrida discutiu, de maneira central, com a tradição husserliana. Nesse caso, há quem proponha que Lacan estava às voltas do que foi chamado de uma fenomenologia sem reservas. É como se a perspectiva lacaniana forçasse os limites do fenômeno por considerar não apenas a voz fenomenológica (que nada mais é que o conceito de voz no sentido comum, que inclui tanto a dimensão sonora quanto a significação que lhe permite ser compreendida), mas também uma voz enquanto objeto marcada pela negatividade. O vínculo do sujeito com o Outro, laço que permite que o primeiro receba a linguagem do segundo, produz o objeto voz como desvinculado de todo conteúdo discursivo. Sendo assim, é uma voz distinta da sonoridade.

Mas não só isso, pois não se trata apenas de algo não sonoro, como se estivéssemos a falar de maneira mais hermética do silêncio. Na verdade, o objeto voz do qual fala Lacan aponta para uma forma específica de ressonância negativa do discurso. Sobre isso, Bernard Baas (2014)Baas, B. (2014). De Derrida à Lacan: une phénoménologie sans réserve. Le Tour critique, 0(3), 111-119. chegará a explicar o seguinte: “Essa ressonância enigmática, essa ressonância não sonora, constitui o pano de fundo não discursivo sobre o qual ocorre o próprio discurso” (p. 116; tradução nossa). Isso dá margem para dizer que não é possível objetivá-la. O vazio do discurso produzido por ele próprio mantém a dinâmica enunciativa. Dinâmica que impede que o sujeito possa se relacionar consigo mesmo sem heteronomia. Dito de outro modo, o objeto voz bloqueia a possibilidade de uma identidade de si, como supostamente permitiria a voz fenomenológica.

Isso poderia ser explicado se retomássemos que o objeto voz na psicanálise lacaniana é o que nunca cessa de insistir na cadeia significante, sem nunca ser um elemento dessa cadeia, ao mesmo tempo que ele acaba por sustentar o fluxo enunciativo, se é que poderíamos dizer dessa maneira. No entanto, há que se salientar que se esse objeto é um recurso crucial para o parlêtre, ele não deixa também de ameaçá-lo. Estamos a falar de um objeto que encontra dificuldades para ser reconhecido no espelho do Outro. Lacan (1962-63/2005)Lacan, J. (2005). O seminário. Livro 10. A angústia. Zahar. (Seminário proferido em 1962-63). é bastante específico sobre isso em uma passagem como: “O que constitui seu perigo para o eu? É a própria estrutura desses objetos [parciais], que os torna impróprios para a ‘egoização’” (p. 134). O que isso quer dizer senão que a dimensão vocal do objeto parcial voz põe em perigo o nosso narcisismo. Isso é muito diferente de uma voz na qual nos reconhecemos como tendo consistência imaginária. É tendo isso em vista que Dolar (1996)Dolar, M. (1996). The object voice. In R. Salecl, & S. Zizek (Orgs.), Gaze and Voice as Love Objects (pp. 7-31). Duke University Press. perguntará coisas como: “O reconhecimento da voz [do infans pela mãe] não produz no bebê os mesmos efeitos jubilatórios que acompanham o reconhecimento [por ela da imagem do infans] no espelho?” (p. 13; tradução nossa). Agora, como salientará Vives (2020)Vives, J-M. (2020). A voz no divã: Aller., diante do objeto voz, estamos no “(...) campo da tensão e da angústia” (p. 35). Mas, afinal de contas, por quê? Qual a relação desse objeto com a angústia? Para poder responder a essas questões, será necessário se dirigir para as elaborações a respeito do objeto a, sem deixar de colocar em jogo as especificidades de uma das formas desse objeto, a voz.

A angústia e o objeto a

Comecemos pela apresentação de algumas das questões gerais a respeito da relação do objeto a com a angústia como uma maneira de esclarecer como isso pode aparecer no caso de uma das formas da qual estamos às voltas. Sabemos que uma das principais teses de Lacan (1961-62/2003)Lacan, J. (2003). O seminário. Livro 9. A identificação. Centro de Estudos Freudianos do Recife. (Seminário proferido em 1961-62). a respeito da angústia poderia ser posta assim: “(...) a angústia é a sensação do desejo do Outro” (p. 243). Salientar tal aspecto permite o apontamento para o caráter enigmático do desejo do Outro, que se desenvolve quando um objeto não dialetizável força os limites do imaginário. Aliás, poderíamos nos interrogar se, quando a angústia emerge, o objeto a aparece no espelho do Outro. Pode parecer inicialmente estranha essa questão, pois é verdade que estamos acostumados com a ideia segundo a qual o objeto a é não especular. Agora, é preciso colocar a seguinte pergunta: o fato de ele ter tal característica quer dizer também que ele não emerge no espelho do Outro?

Pois é preciso lembrar que já houve a defesa de que o objeto a aparece no espelho, desde que se leve em conta que isso implica uma mudança radical na estrutura desse objeto. Nesse caso, poderíamos nos lembrar de Alfredo Eidelsztein (2017)Eidelsztein, A. (2017). O grafo do desejo. Toro Editora., para quem a não especularidade do objeto a é distinta da do falo: “O falo é um buraco, um vazio, um ponto cego no espelho, ao passo que o objeto a é, sim, visto no espelho” (p. 235). Dito de outra forma, o caráter não especular do objeto a é um pouco diferente, pois não impede que ele apareça no espelho. Só que, quando aparece, isso não deixa de necessitar uma mudança radical da estrutura do objeto a como causa do desejo. Uma outra posição sobre o assunto é aquela que aponta que o objeto a comanda a aparição, mas não é exatamente o próprio objeto que aparece. Ela é bem formulada por Soler (2012)Soler, C. (2012). Seminário de leitura de texto ano 2006-2007: seminário A angústia, de Jacques Lacan. Escuta.: “O que é que comanda essa aparição? É o objeto a; não é o objeto a que aparece, é alguma coisa que aparece lá onde nada deveria aparecer” (p. 45). No entanto, talvez seja possível dizer que é o objeto a que aparece, um pouco como se o não especular tentasse, paradoxalmente, especularizar-se.

Sabemos que, na angústia tal como mobilizada pela psicanálise lacaniana, trata-se de uma espécie de positivação do que é negativo, a saber, o objeto a. Inclusive, essa é uma possível maneira de compreender o aforismo segundo o qual a angústia é a falta da falta.6 6 Aqui há um ponto interessante a ser frisado: de maneira geral, costumamos entender que a “a falta da falta” é um problema no interior da experiência analítica porque isso poderia ser sinal de um modo ruim, digamos assim, de lidar com a castração, levando a toda uma paralisia na dinâmica do desejo. O que estamos a sinalizar ao longo deste ensaio é que o objeto voz é negativo, isto é, não passível de ser simbolizado. Esse ponto solicita um outro lugar para a angústia na clínica, lugar muito bem lembrado por Alain Badiou (2018), para quem “(...) a angústia é um bloqueio da simbolização. É o que nos diz diretamente a sua definição: se é a falta da falta sobre o excesso de real, é justamente porque está se produzindo constantemente uma paralisia das operações de simbolização, e isso é, na verdade, seu afeto. Por outro lado, o protocolo de restrição em si [produzido pela angústia] é um protocolo de simbolização correto” (p. 178; grifo nosso; tradução nossa). Esse é o ponto paradoxal identificado por Badiou: não haverá simbolização parcial “correta” (o termo não é muito bom, mas é o usado pelo autor) sem uma relação direta com aquilo que bloqueia a simbolização, a natureza negativa da angústia em que o objeto voz é uma de suas “figuras”. O que quer dizer, entre outras coisas, que, na clínica, não se trata ou da angústia ou do desejo, mas de uma ligação dialética bem mais complexa entre esses dois elementos. No entanto, seria também importante distinguir a angústia de outros afetos que costumam ser confundidos com ela, tais como o medo e o sentimento de expectativa — hoje amplamente conhecido como ansiedade. Pois, quanto ao último, Lacan (1962-63/2005)Lacan, J. (2005). O seminário. Livro 10. A angústia. Zahar. (Seminário proferido em 1962-63). salienta que não é necessário que ele esteja presente na angústia: “(...) essa expectativa, apesar de ser a conta certa para fazer abater-se um peso sobre mim, não é, como creio poder dizer por experiência, uma dimensão que em si mesma faça surgir a angústia” (p. 17). Talvez seja possível arriscar aqui que, quando a expectativa se apresenta, o que está em jogo é muito mais a sua relação com o Ideal do Eu, que pode produzir sentimentos como o de impotência, do que com a angústia gerada pelo aparecimento do objeto a.

Quanto ao medo, Lacan (1962-63/2005)Lacan, J. (2005). O seminário. Livro 10. A angústia. Zahar. (Seminário proferido em 1962-63). questiona como ele foi comumente visto como adequado à situação de perigo. Inclusive chega a questionar se seria um sentimento mais objetivo, pois muitas vezes nos paralisa em vez de nos distanciar do perigo. No entanto, produz uma afirmação que pode inicialmente soar estranha: “(...) seria igualmente legítimo sustentar que o medo não tem objeto” (p. 189). É verdade que isso se torna mais compreensível se levarmos em conta que o que está sendo tomado como objeto é o objeto a. Nesse caso, a angústia não é sem objeto, ao contrário do medo, que não tem objeto nesses termos. Pois, na perspectiva lacaniana, se quisermos dizer que o medo tem um objeto, seria preciso salientar que sua estrutura é distinta da de um objeto a, uma vez que se trata de um objeto inscrito na dimensão significante. Se quisermos aproximar o medo da fobia, basta retomar o cavalo do pequeno Hans como um significante que se interpõe na relação do sujeito com o Outro devido à opacidade do desejo do Outro.

Após essas questões, abramos o horizonte para interrogar a especificidade do objeto voz com a angústia. Sobre isso, é bom começar por lembrar que Soler (2012)Soler, C. (2012). Seminário de leitura de texto ano 2006-2007: seminário A angústia, de Jacques Lacan. Escuta. indica muito bem que “(...) o ponto de angústia está relacionado à voz [no sentido comum] que pode faltar” (p. 124). Pois, quando essa voz falta, a voz enquanto objeto tem a potência para emergir. Como dirá Slavoj Zizek (1992)Žižek, S. (1992). Eles não sabem o que fazem: o sublime objeto da ideologia. Zahar., essa voz enquanto objeto, “(...) a voz do supereu, por exemplo, que se dirige a mim sem estar ligada a nenhum esteio particular, que flutua livremente em algum intervalo aterrorizante, funciona também como uma mancha cuja presença inerte incomoda como um corpo estranho” (pp. 151-152). Para que continuemos a interrogar a relação entre o objeto voz e a angústia, talvez fosse o caso de considerar as questões desenvolvidas por Lacan a respeito de um estudo sobre o objeto ritual shofar.

O shofar

Para nossos fins, não se trata aqui de fazer uma análise extensiva do estudo de Theodor Reik sobre o shofar, mas de expor o que importa para a formulação do estágio invocante no que diz respeito às suas relações com a angústia. De maneira geral, podemos assinalar que um dos estopins para a reflexão sobre o shofar instaurada pelo psicanalista, que inclusive chegou a ser injustamente acusado de charlatanismo, foi um interesse pela origem da música. A discussão parte de uma hipótese geral, a de que os mitos dos povos antigos ajudariam a lançar alguma luz sobre os primórdios da música. Reik conta como a invenção da música, mas não só, pois também dos próprios instrumentos musicais, é atribuída geralmente a alguma espécie de mitologia dos deuses. No entanto, há uma exceção a isso: é o que ele chama de “nossa civilização”, que não tem nem um mito da origem da música, nem uma derivação dela a partir de algum deus. Na verdade, a origem dela é atribuída a um mortal, referenciado na Bíblia, chamado Jubal. Alguém poderia, então, indagar: mas qual a relação disso com o objeto ritual shofar? É Reik (1931)Reik, T. (1931). The shofar. In Ritual psycho-analytic studies (pp. 221-361). Hogarth Press, The Institute of Psychoanalysis. quem dirá: “O nome Jubal é da mesma raiz que jôbēl לבוי, que significa chifre de carneiro ou trombeta; então o nome do inventor é identificado com o de um instrumento que é de importância em um culto religioso” (p. 222; tradução nossa).

Isso acaba por se tornar um dos motivos que leva Reik a estudar o shofar. É verdade que ele apresenta comentários diversos sobre esse objeto ritual, mas se concentra principalmente no uso dele no interior da liturgia judaica. Desse modo, acrescentemos que o shofar é um dos instrumentos de sopro mais antigos que se conhece. Contudo, o psicanalista vienense faz uma objeção quanto a esse instrumento ser musical, uma vez que nenhuma melodia pode ser tocada nele, sobretudo por não poder produzir sons diferentes. Sobre a multiplicidade de seus usos, Reik (1931)Reik, T. (1931). The shofar. In Ritual psycho-analytic studies (pp. 221-361). Hogarth Press, The Institute of Psychoanalysis. aponta que o shofar jamais foi empregado trivialmente, “(...) é sempre nos momentos solenes da vida do povo que se ouve, e mesmo nos acontecimentos seculares é apenas em ocasiões graves, como no estrondo da batalha, na proclamação de uma lei, ou na aproximação de perigo” (pp. 231-232; tradução nossa). O que Reik estranha é que seu uso ficou cada vez mais restrito, circunscrito a grandes festas judaicas.

É também de suma importância retomar a recordação de Reik de quando ouviu o shofar sendo tocado no dia do Ano Novo. O relato entregue se encontra em uma passagem como: “Eu ouvi o shofar sendo tocado no dia de Ano Novo, não pude evitar completamente a emoção que [surgiu em mim devido a] esses quatro sons rudes, assustadores, de gemidos, sons altos e longos produzidos” (Reik, 1931, p. 237Reik, T. (1931). The shofar. In Ritual psycho-analytic studies (pp. 221-361). Hogarth Press, The Institute of Psychoanalysis.; grifo nosso, tradução nossa). A partir disso, ele tenta encontrar o que poderia explicar essa emoção que o tomou ao escutar o shofar. Chega a se questionar se não foi por estar acostumado com o som desse instrumento desde a sua juventude. Mais do que isso, pois também passa a investigar se era um efeito que todos poderiam sentir. Para fundamentar a segunda hipótese, lembra que os cristãos testemunharam uma emoção semelhante. No entanto, não deixará de frisar o seguinte a respeito do poderoso efeito emocional que o shofar exerce nos crentes: “Pode-se pensar que deve haver fortes razões para a vivência dessa emoção por tantas pessoas, razões que podem ser claras para algumas delas. Mas quando questionamos os crentes, eles nos dão apenas respostas obscuras ou evasivas” (p. 239; tradução nossa).

O psicanalista vienense insiste que os crentes não têm clareza sobre as causas da emoção que os toma quando ouvem o shofar. Para não digredir tanto em nossas questões, podemos logo retomar que a psicanálise freudiana servirá de base para a explicação dessa emoção sentida diante do som do shofar. Assim, Reik (1931)Reik, T. (1931). The shofar. In Ritual psycho-analytic studies (pp. 221-361). Hogarth Press, The Institute of Psychoanalysis., a partir dos subsídios teóricos freudianos a respeito do totemismo, relacionará o som com a voz do pai totêmico, apontando que inconscientemente cada ouvinte é despertado em sua consciência culpada. É assim que o estudioso do shofar dirá que o tom assustador do instrumento se torna inteligível se levarmos em conta o seguinte: “(...) revive a memória do berro de um touro; deriva seu significado sério do fato de que, na vida mental inconsciente dos ouvintes, representa a angústia e a última luta mortal do que é para afetar profundamente e aterrorizar” (p. 259; tradução nossa).

Diante desse estudo, Lacan fará uma série de comentários para tentar apresentar por meio do shofar uma das formas do objeto a, a voz. Além de elogiar o estudo desenvolvido por Reik, principalmente devido ao seu estilo e intuição, o psicanalista francês apresenta críticas como a do uso puramente analógico do símbolo expresso na ligação feita entre o shofar e o falo. Sobre isso, haveria de se retomar que Reik sugere um significado mais especial para o chifre que se usa para transformá-lo no instrumento de sopro que é o shofar. Como propõe Reik (1931)Reik, T. (1931). The shofar. In Ritual psycho-analytic studies (pp. 221-361). Hogarth Press, The Institute of Psychoanalysis., “A experiência analítica sugere um significado mais especial para o chifre na figura divina, ou seja, é um símbolo sexual que representa o pênis masculino” (p. 261; tradução nossa).

Para além de discordâncias assim, Lacan se interessará pela emoção inusitada diante do shofar de que fala Reik, emoção que surge, para o psicanalista francês, pelas vias misteriosas do que chega a chamar de afeto propriamente auditivo. Nesse caso, o que principalmente interessa a Lacan é o diálogo entre Moisés e Javé, a renovação do pacto da Aliança e o fato de Reik ter suposto que o shofar é a voz de Javé. Quanto ao diálogo, podemos dizer que ele ocorre em meio a um tumulto intenso, que fará Lacan chamar de uma verdadeira tempestade de ruídos. Inclusive, não se trata de qualquer diálogo, mas daquele em que Moisés recebe as tábuas dos dez mandamentos. Lembremos que o próprio Reik (1931)Reik, T. (1931). The shofar. In Ritual psycho-analytic studies (pp. 221-361). Hogarth Press, The Institute of Psychoanalysis. já havia estranhado que um dos principais diálogos bíblicos tenha ocorrido entre essa turbulência sonora. É com essa desconfiança que ele indaga o seguinte: “É difícil imaginar uma ideia mais grotesca de que Deus conversou com Moisés enquanto o som da trombeta aumentava de volume” (p. 249; tradução nossa).

Por que esse som do shofar aparece? Muito mais do que isso, pois, além disso que soa, quem o sopra? Como Reik (1931)Reik, T. (1931). The shofar. In Ritual psycho-analytic studies (pp. 221-361). Hogarth Press, The Institute of Psychoanalysis. questionará: “O som do chifre fica cada vez mais alto, Moisés fala e Deus responde em voz alta. Por que o ruído que o acompanha? As pessoas veem a montanha fumegante, ouvem o som do chifre e ficam apavoradas, com medo” (p. 250; tradução nossa). É bom acrescentar que essas pessoas que ouvem o som do shofar também afirmam que ouviram a voz de Deus. No entanto, Reik estranha, pois elas apenas ouviram o shofar tocar. Para poder resolver as contradições inerentes ao fragmento bíblico, Reik (1931)Reik, T. (1931). The shofar. In Ritual psycho-analytic studies (pp. 221-361). Hogarth Press, The Institute of Psychoanalysis. sugere que se assuma que o som do chifre é a voz de Deus: “Agora podemos entender a frase peculiar, o som do chifre ficava cada vez mais alto, Moisés falava, e Deus respondia com uma voz: o som do chifre é Deus falando” (p. 250; tradução nossa).

Antes de passar para quando Reik aborda a renovação do pacto da Aliança, seria mais compreensível acrescentar uma série de questões para pensar o objeto voz. A primeira delas consiste em apontar que a voz de Deus se apresenta em seu caráter separável, tanto que toda a especulação reikiana ocorre diante da dificuldade de explicar quem toca o shofar quando Moisés conversa com Javé. Ainda sobre essa passagem, alguns poderiam apontar, e com razão, que aqui não se trata de um fragmento cujo som está ausente. Um pouco como se a questão pudesse ser formulada assim: depois de toda a decomposição da ligação entre o objeto voz e o som, o que faz o som presente nesta análise lacaniana do shofar? É verdade, e é preciso retomar ainda que Lacan aponta para a voz enquanto objeto no interior do registro sonoro quando comenta sobre a fita de gravador para mostrar o caráter de resto da voz, cujo efeito, ao escutá-la, pode ser o estranhamento: “(...) separada de nós, nossa voz nos soa como um som estranho” (Lacan, 1962-63/2005, p. 300Lacan, J. (2005). O seminário. Livro 10. A angústia. Zahar. (Seminário proferido em 1962-63).). Nesse caso, talvez o que mais se destaca é a expressão de estranheza diante de uma voz separada, mais do que a necessidade de o som material estar presente para que se possa dizer que consiste no objeto voz.

No entanto, mesmo assim, a problemática do som com o objeto voz permanece. No caso mais específico do shofar, poderíamos dizer várias coisas sobre tal ligação. A primeira delas é que Lacan está construindo seus conceitos durante os seminários, e, tal como acontece com o objeto a no seminário dedicado ao afeto que não engana, há contradições internas à sua própria experiência intelectual. Mas, para que possamos pensar se o som deve estar presente no objeto voz, propomos a retomada de uma afirmação de Lacan (1974)Lacan, J. (1974). La Troisième. Recuperado em 17 de junho de 2021, de http://staferla.free.fr/Lacan/La_Troisieme.pdf
http://staferla.free.fr/Lacan/La_Troisie...
, que aponta para a necessidade de fazer algo com esse objeto: “(...) esvaziá-la [a voz enquanto objeto] da substância que poderia haver no ruído que ela faz, ou seja, recolocá-la na conta da operação significante” (p. 3; tradução nossa). É a partir dessa ideia que o autor sublinha que essa voz estaria livre para ser outra coisa que não exatamente substância. Se esse for o caso, alguém ainda poderia perguntar: então o que importa na retomada da ilustração do shofar no caso do objeto voz? Talvez haja dois elementos que permitam expressar a importância de apresentar o estudo elaborado por Reik sobre esse objeto ritual. O primeiro deles apontaria que o que mais importa é a interpelação do Outro. Inclusive, alguém como Darian Leader expressa tal problema por meio de uma reflexão sobre as crianças com a interpelação.

O que o psicanalista britânico argumenta é que ser abordado por um adulto é, ao mesmo tempo, necessário e problemático para uma criança. Podemos imaginar as razões sob perspectiva lacaniana: o significado do questionamento de um adulto pode parecer enigmático para a criança em um primeiro momento. No entanto, o mais importante é que a criança não teria como se defender de tal abordagem. Sobre isso, Leader (2006)Leader, D. (2006). La voix en tant qu’objet psychanalytique. Savoirs et clinique, 7(1), 151-161. esclarecerá que a criança poderia intervir ao mostrar a própria subjetividade, “(...) a forma mais comum disso é recusar o que o adulto parece querer: a criança pode se recusar a comer, beber, ir ao banheiro etc. Mas ela absolutamente não pode recusar que o Outro está falando com ela” (p. 156; tradução nossa).7 7 Mesmo que a criança tape os ouvidos e não escute nem entenda nada, o Outro permanece ali em lugar de interpelação, expressando a natureza do objeto voz distante da sonoridade e da significação. O que o autor sublinha é que isso que pode parecer inicialmente trivial é uma função absolutamente central da linguagem e da experiência da criança.

Desse modo, Leader (2006)Leader, D. (2006). La voix en tant qu’objet psychanalytique. Savoirs et clinique, 7(1), 151-161. acrescentará o seguinte: “Esta função linguística de interpelação é muito simplesmente o conceito lacaniano de [objeto] ‘voz’. É a experiência de ser endereçado, isolado de qualquer modalidade sensorial particular e de qualquer campo semântico” (p. 158; tradução nossa).8 8 Importante salientar aqui que a modalidade sensorial particular (o som) e o campo semântico que o logos organiza são os dois pontos presentes na voz fenomenológica (a voz no sentido comum). Esses dois pontos estão ausentes no objeto voz por ele ser tomado por Lacan como um objeto negativo. Não é o que ocorre entre o povo e Javé por meio do shofar? É uma interpelação do Outro por meio de um som que é qualificado como ininteligível. Tendo isso em vista, tal ponto nos permitirá explorar o segundo elemento que necessita estar presente para que se diga que se trata do objeto voz: o resto da operação do significante está longe de qualquer efeito de significação. Ou talvez fosse o caso de acrescentar que, ao menos em um primeiro momento, é disso que se trata. A voz informe de Deus causa angústia por não ser apreensível em uma cadeia significante passível de significação via ponto de estofo.

Se fosse o som o que estivesse em jogo na formulação do objeto voz, poderíamos logo apresentar algo próximo ao timbre da voz, só que isso é passível de significação. Basta lembrar como a mudança de entonação durante uma discussão pode ser considerada, até no aspecto de mudar o próprio sentido da mensagem que está sendo enunciada. É por isso que Jacques-Alain Miller (2013)Miller, J-A. (2013). Jacques Lacan e a voz. Opção Lacaniana, 4(11), 1-13. lembrará que a linguística da entonação, que tenta definir uma espécie do que poderíamos chamar de significantes da entonação, levando em conta os efeitos de sentido que eles podem se encarregar de abarcar, está longe da formulação lacaniana a respeito do objeto voz. Sendo assim, não deixará de dizer o seguinte: “A esse respeito, a linguística da entonação nada tem a ver com a voz lacaniana que não é entonação, já que sua posição é essencialmente fora do sentido” (p. 7). No entanto, será que haveria uma espécie de tentativa de significar essa forma de objeto a? Para compreender tal ponto, será necessário se perguntar pela resolução da angústia especulada por Lacan. Aliás, tal reflexão ocorre exatamente por meio da ilustração do shofar no interior das questões de Reik.

A resolução da angústia

Salientar que o objeto voz está longe das questões oriundas da significação ainda é dizer muito pouco. É verdade que isso pode ocorrer em um primeiro momento. No entanto, não deixemos de lembrar que Lacan aponta uma possível resolução da angústia por meio da culpa, o que nos faria pensar que, a partir desse instante, haveria certa significação disponível para abarcar o que é inicialmente inapreensível em relação ao registro imaginário. Contudo, talvez não se trate bem de dizer que, em um segundo momento, o objeto voz se torna passível de significação, mas que a defesa diante dele fornece algum sentido. Para podermos dispor de uma primeira compreensão de tal ponto, será necessário retomar o que costuma ocorrer na renovação do pacto da Aliança presente nas questões oriundas do aparecimento do shofar em fragmentos bíblicos. Para além da discussão de quem tem que lembrar do pacto, em que Lacan inclusive salienta que, na verdade, é Deus quem tem que lembrar, uma vez que os fiéis passam um tempo meditando a respeito dessa relação, há como que um sentimento de culpa em jogo.

A tentativa lacaniana de especular sobre a resolução da angústia ocorre por meio da forma como o shofar se encontra no ritual religioso. No entanto, somos os primeiros a reconhecer que, em certa medida, as formulações que se seguem chegam a ser quase enigmáticas. Assim, lembremos que a indicação de Lacan (1962-63/2005)Lacan, J. (2005). O seminário. Livro 10. A angústia. Zahar. (Seminário proferido em 1962-63). é que, após o desejo do Outro assumir a forma de uma ordem, teríamos o seguinte: “É por isso que pode desempenhar sua função eminente de dar à angústia sua resolução, que se chama perdão ou culpa, mediante a introdução de uma outra ordem” (p. 301). Por que salientar tal aspecto nesse contexto? A culpa parece ser uma das maneiras pela qual a falta pode ficar do lado do sujeito. Sobre isso, Eidelsztein (2017)Eidelsztein, A. (2017). O grafo do desejo. Toro Editora. salienta que a falta do Outro acaba por fundar, quando fica do lado do sujeito, uma falta no último, que consideramos o desejo. No entanto, o psicanalista argentino também lembra que falta, em francês, é faute, no sentido de faltar algo, mas também como pecado ou culpa. Desse modo, Eidelsztein (2017)Eidelsztein, A. (2017). O grafo do desejo. Toro Editora. também dirá:

O que Lacan propõe é que a função do supereu e o sentimento inconsciente de culpa são um efeito de determinação no sujeito — dado que a falta de um significante do lado do Outro se inscreve não somente como desejo, mas também como pecado, do lado do sujeito. (p. 230)

A possibilidade da falta de um significante do lado do Outro se inscrever como pecado ou culpa do lado do sujeito fará Lacan abordar, mesmo que de maneira pontual, o que chamará poeticamente de falha do desejo. Sendo assim, essa falha estaria relacionada com a questão de o desejo ser sobretudo falta, no sentido de alguma coisa que faz falta. A partir disso, Lacan (1962-63/2005)Lacan, J. (2005). O seminário. Livro 10. A angústia. Zahar. (Seminário proferido em 1962-63). aponta para a resolução da angústia por meio da culpa: “Mudem o sentido dessa falha, dando-lhe um conteúdo — na articulação de quê? deixemos em suspenso —, e aí estará o que explica o nascimento da culpa e sua relação com a angústia” (p. 302). É como se o desejo do Outro estivesse implicado no clamor da culpa que se expressa no shofar, mas tal desejo encobre a angústia quando lhe é dado um conteúdo.9 9 Dar um conteúdo ao desejo do Outro, um conteúdo que acima de tudo evoca a organização totêmica, hegemônica em nossa sociedade, é de certa forma se comprometer com a falta no vetor da culpa. Lembrar disso pode parecer inicialmente estranho, pois estamos muito acostumados, no campo lacaniano, a apenas falar de falta no aspecto vinculado ao desejo. No entanto, que Lacan frise, dentro da discussão sobre o shofar, a resolução da angústia por meio da culpa não quer dizer que essa seja a única resolução possível. A experiência analítica é, de certa forma, a procura por questionar o conteúdo fornecido ao desejo do Outro, a colocar muito mais “um ponto de enigma” para esse desejo a fim de que a dinâmica da falta enquanto desejo possa, mais uma vez, reaparecer. Como lembrará Bruce Fink (2018), técnicas como a fala oracular e a sessão de duração variável na psicanálise lacaniana visam confrontar “(...) o analisando com a questão do desejo enigmático [sem conteúdo] do analista (o desejo do Outro) e lhe demonstrar continuamente que o desejo do Outro não é o que ele presume [não é o conteúdo que foi inicialmente fornecido a esse desejo]” (p. 236). Um pouco como se tivesse sido oferecido algo para o desejo do Outro, o que inclusive permitirá que Lacan fale, mesmo que muito vagamente, sobre a ideia de sacrifício.

Caso seja assim, poderíamos começar ao menos a desconfiar de quando o objeto voz é inserido em uma significação oriunda de um sistema totêmico. Por exemplo, em alguns momentos Zizek (2007)Žižek, S. (2007). The Indivisible Remainder: An Essay on Schelling and Related Matters. Verso. compreende o shofar como que participando do que chama de gesto fundante da lei que representa a Aliança entre o povo judeu e Deus. Mas não só isso, pois também concebe o som do shofar como uma espécie de mediador do desaparecimento entre duas coisas, a saber: “(...) entre a expressão vocal direta mítica da substância vital pré-simbólica e a fala articulada: ele representa o gesto por meio do qual a substância vital, por meio de seu recuo, seu autoapagamento abre espaço para a Lei simbólica” (p. 150; tradução nossa). Mais do que isso, pois concebe que se trata de uma voz espectral de um pai primordial que está morrendo antes de começar a reinar por meio de seu Nome, como uma espécie de agente da autoridade simbólica.

Isso gera um problema a respeito da suposição de que há algo anterior ao simbólico. Por mais que haja um paradoxo na elaboração do objeto a, disposto, por exemplo, no momento em que ele é colocado tanto como fundamento quanto como resto da cadeia significante,10 10 É por isso que Vladimir Safatle (2017) pergunta: “Como podemos, pois, compreender esse paradoxo de algo que é, ao mesmo tempo, o fundamento de um processo e o que deve ser perdido para que esse mesmo processo possa operar?” (p. 70). há que se lembrar que o objeto voz do qual fala Lacan parece estar longe de ser concebido como algo próximo a uma substância vital pré-simbólica. Ele é colocado em termos de resto do processo, por mais que, neuroticamente, acabemos por tomá-lo como primeiro em relação ao simbólico. Para além disso, há uma outra maneira em que o shofar é abarcado. Zizek (2007)Žižek, S. (2007). The Indivisible Remainder: An Essay on Schelling and Related Matters. Verso. também parece dar notícia disso ao afirmar que a autoridade simbólica, o Nome-do-Pai, não é outra coisa senão a autoridade do pai morto, “(...) mas, para que essa mesma autoridade se torne efetiva, ela tem que se apoiar em um resto (fantasmático) do pai vivo, em um pedaço do pai que sobreviveu ao assassinato primordial” (p. 154; tradução nossa).

Essa forma de abarcar o shofar acaba por inscrevê-lo na significação totêmica que Lacan dá a entender que é secundária em relação à problemática do objeto a. Podemos ter notícia disso quando lembramos que Lacan (1962-63/2005)Lacan, J. (2005). O seminário. Livro 10. A angústia. Zahar. (Seminário proferido em 1962-63). aceita facilmente que, em sociedades organizadas pelo mito do assassinato do pai, há uma função do totemismo na economia do desejo. Só que ele acrescenta algo a isso quando está tentando conceituar o objeto voz: “No entanto, ele [o mito do assassinato do pai] é secundário no tocante a uma dimensão que temos de abordar aqui: a relação com esse objeto essencial que exerce a função de a, a voz” (p. 279; grifo do autor). Salientar que é secundário nada mais é que o modo lacaniano de colocar a significação totêmica já como uma espécie de defesa diante do que não tem sentido, essa forma de objeto a. Inclusive, houve quem dissesse que a culpa já é uma espécie de defesa contra a angústia de quem se sente interpelado pela voz do Outro. Bem, essa não deixou de ser uma hipótese de alguém como Brian Robertson (2015)Robertson, B. (2015). Lacanian Antiphilosophy and the Problem of Anxiety: An Uncanny Little Object. Palgrave Macmillan.: “[a culpa] já é um meio de domesticar a voz, organizá-la psiquicamente e situar, dentro de um complexo totêmico de significações, sua peculiar força de dominar e constranger o sujeito” (p. 205; tradução nossa).

Considerações finais

A recuperação das reflexões analíticas em torno do objeto ritual shofar, atreladas sobretudo à especulação de Lacan sobre a voz como objeto, sugere algo que pode ser central para uma compreensão sofisticada da metapsicologia lacaniana no que diz respeito aos afetos. É verdade que o psicanalista francês parece introduzir o tema sem jamais explicitá-lo, mas o que dizer de um momento decisivo como aquele em que se aponta que a angústia ganha uma resolução por meio da culpa? Segundo a perspectiva que nos interessa aqui, a tentativa de procurar dar um conteúdo ao enigma do desejo do Outro aponta mais do que a passagem da indeterminação ao seu contrário, a determinação. Pois tudo indica que um afeto se metamorfoseia em sentimento. Dito de outro modo, a angústia é aplacada com a culpa. Sendo assim, estaria Lacan mobilizando uma reflexão mais geral sobre os afetos ao falar a respeito de uma suposta defesa ao que não é passível de significação?

Mais do que isso, pois não há como passar completamente despercebido quem afeta quando nos colocamos a abordar a problemática do shofar como a voz do Outro. Sem nos demorarmos muito aqui, podemos já logo dizer que é o objeto voz que produz a afecção.11 11 É bastante comum pensar os afetos como o campo da “sensibilidade individual” de determinada pessoa. O que toda essa discussão lacaniana em torno do objeto voz visa é desmontar essa concepção hegemônica sobre os afetos, levando a pensar como é o objeto a (e suas formas) que produz a afecção entre o sujeito e o Outro. Se damos consequência a uma formulação dessa natureza, teríamos que aceitar que alguém não pode ter completa autonomia ao longo desse processo, pois é um objeto que afeta, é um objeto que age. Isso nos convidaria a repensar o que significa “ação” e “responsabilidade” no interior desse debate. Somos os primeiros a reconhecer que o que apresentamos aqui mereceria ser desenvolvido com muito mais vagar em outro espaço, mas não teríamos como deixar de escrever essa intuição, que, como a própria expressão já sugere, permanece, no âmbito deste ensaio, apenas como uma intuição. Um pouco como se tal forma de objeto a tivesse força suficiente para agir à revelia de nossas intenções. Ao levantar esse ponto, não deixa de ser tentador retomar a crítica de Derrida sobre a autoafecção para dizer que é bem provável que Lacan concordaria com o filósofo franco-argelino nesse ponto. Pois é impossível não identificar como o objeto voz aqui destitui qualquer tentativa egoica de supor uma identidade de si. Ao contrário disso, a voz teorizada por Lacan convida à heteronomia de que tanto falou Derrida, mas uma heteronomia que é capaz de deixar alguém fora de si ao conseguir causar uma opacidade na nossa imagem reconhecida no espelho do Outro. Como dirá Dolar (1996)Dolar, M. (1996). The object voice. In R. Salecl, & S. Zizek (Orgs.), Gaze and Voice as Love Objects (pp. 7-31). Duke University Press.: “(...) o objeto [voz] encarna a própria impossibilidade de atingir a autoafecção, ele introduz a cisão, a ruptura no meio da presença plena e a remete a um vazio” (p. 16; tradução nossa). Maneira de assegurar que, em vez da autotransparência criticada pelo filósofo franco-argelino ao desconstruir a voz fenomenológica, o que temos muitas vezes na experiência analítica quando o objeto voz entra em circulação, é o completo desmonte de processos vinculados ao plano narcísico.12 12 Também temos notícias disso nas considerações sobre o shofar: os fiéis, como consta em passagem bíblica, estão aterrorizados quando escutam o shofar, pois eles não conseguem compreender “o berro” do instrumento, é algo estranho a eles. Poderíamos imaginar que isso desestabiliza a imagem narcísica e os coloca próximos da dimensão negativa (e perigosa) da vida, que é “o encontro” com aquilo que é Real.

No entanto, isso nos leva ainda mais longe. Afinal de contas, como devemos abarcar a ideia segundo a qual é um objeto como a voz que age na relação entre o sujeito e o Outro? Isso parece pressupor, de maneira decisiva, um pensamento sobre um ponto central, a ação. Se somos atravessados por um objeto que nos afeta, o que dizer da agência da autonomia a supostamente permear nossas ações? Lembremos que, no caso do objeto voz, a ação não é a de um indivíduo dotado de consciência para deliberar a respeito do que pratica, mas de um objeto heterônomo à figura humana que aparece no espelho do Outro. Isso, de certa forma, abre espaço para um questionamento maior em torno de categorias amplamente mobilizadas hoje em dia na psicanálise lacaniana, tais como a de responsabilidade.13 13 Nesse caso, há que se reconhecer que Derrida havia chegado à mesma conclusão ao desconfiar da noção de autoafecção. No pensamento derridiano, algo perturba os fundamentos morais, pois a autonomia está, como dirá Leonard Lawlor (2015), contaminada pela heteronomia. É o caso de dizer que Lacan (1962-63/2005)Lacan, J. (2005). O seminário. Livro 10. A angústia. Zahar. (Seminário proferido em 1962-63). intuiu isso muito bem ao afirmar que a construção do objeto a não deixava de nos levar a um ponto a respeito da “não autonomia do sujeito” (p. 58). Sendo assim, estaria o psicanalista francês abrindo um horizonte no qual a experiência analítica poderia vir a falar de algo como a despossessão de si com o aparecimento do objeto voz agindo à nossa revelia?

É verdade que poderíamos ter discutido com mais vagar categorias como a de culpa, sua relação com a tradição judaico-cristã, para nos questionarmos se a angústia se resolveria em culpa em outras formas de ser. No entanto, uma coisa é certa: Lacan tentou subverter o conceito de voz ao tentar dirigi-lo para o que ele não é no sentido comum. Talvez a experiência analítica tenha colaborado aqui, pois não há como desconsiderar, no interesse em formular o objeto voz, tanto a alucinação auditiva do psicótico quanto o supereu na neurose. De qualquer forma, ao abrir caminho para desvincular o objeto voz do som, a psicanálise lacaniana parece apontar para como tal forma de objeto a teria força suficiente de desorganizar a harmonia no campo auditivo. Tendo isso em vista, Soler faz uma interrogação se não ocorreria uma esquize entre a voz e o som da mesma maneira que Lacan abordou entre o objeto olhar e a visão. Se for assim, é fácil de imaginar a função que algo como a música poderia ter. Como dirá Soler (2009)Soler, C. (2009). La querella de los diagnósticos (Curso 2003-2004). Letra Viva.: “A música existe para nos impedir de encontrar a voz. Visão e música são, ambas, para-objetos” (p. 214; tradução nossa).14 14 Apesar de ser possível pensar como certas experiências dissonantes no campo musical podem evocar o objeto voz, Colette Soler está pensando aqui na música como uma produção de significação que teria força suficiente para produzir uma defesa ao que não é passível de significação, o objeto voz.

Nesse caso, fica difícil esquecer que a tentativa de desvincular a voz do som já havia aparecido em alguém como Franz Kafka. Lembremos que uma das passagens mais conhecidas da Odisseia frisa o quanto Ulisses gostaria de escutar o canto das sereias, canto que poderia levá-lo ao que Theodor Adorno um dia chamou de não identidade. Ao retomar esse mito, o escritor tcheco produz uma inversão ao falar do seu contrário, o silêncio das sereias. No entanto, um silêncio muito peculiar, que inclusive faria o personagem de Homero ficar horrorizado. Como dirá Kafka (2017)Kafka, F. (2017). O silêncio das sereias. Caderno de leituras, 70, 2-3., “(...) as sereias têm uma arma mais terrível que seu canto: seu silêncio. Embora não haja sucedido, seria contudo pensável que alguém se salvasse de seu canto, mas por certo não de seu silêncio” (p. 2). Assim, há toda uma imaginação poética de que Ulisses acreditou que as sereias cantavam, crença necessária para não se deparar com o que há de mais insuportável nelas, seu silêncio. Pois poderíamos dizer que tal silêncio seria, paradoxalmente, um inaudível que grita sem jamais produzir sonoridade alguma.15 15 Falar em um inaudível que grita é a maneira metafórica de lembrar como o objeto voz não é apenas o silêncio, mas um silêncio muito específico, que nos interpela a partir de um lugar que “grita” à sua maneira. Sobre isso, basta lembrar daqueles momentos singulares em que paira um silêncio entre uma frase e outra do analisante, não deixando de angustiá-lo. Esse silêncio angustia porque não se é indiferente a ele. O “silêncio gritante” produz uma forma de incômodo vinculada à natureza negativa do objeto voz. Uma forma de grito silencioso que tem a potência de nos despossuir da condição de próprio ao nos afetar lá onde já não podemos dizer mais nada determinado a respeito de nós mesmos.

  • 1
    O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nivel Superior – Capes – Código de Financiamento 001.
  • 2
    É importante dizer que nosso ensaio não se propõe a fazer um estudo ampliado sobre o objeto ritual judaico shofar. Seu lugar aqui é apenas de ilustração do objeto voz de Lacan.
  • 3
    A sugestão de Colette Soler (2009)Soler, C. (2009). La querella de los diagnósticos (Curso 2003-2004). Letra Viva. é que o olhar poderia ser situado em I(A) no grafo do desejo porque, sem o Outro, o sujeito não conseguiria se sustentar na posição de Narciso: “O que faz com que já o Ideal do Outro funcione como olhar” (p. 209; tradução nossa).
  • 4
    Claude Evans (1991)Evans, C. (1991). Strategies of Deconstruction: Derrida and the Myth of the Voice. University of Minnesota Press. aponta para uma crítica no interior da análise de Derrida sobre Husserl, uma vez que o pensamento derridiano só teria força desconstrutiva se fosse possível assumir que o filósofo alemão está ligado a um conceito de interior que se fecha sobre si mesmo. Há controvérsia em relação a isso.
  • 5
    Essa é a importância de falar do objeto voz em uma reflexão a respeito dos afetos no horizonte lacaniano, sobretudo porque ele ajuda a explicitar a natureza negativa que importa à experiência analítica para Lacan. Negatividade que nada tem de narcísica, como poderia ocorrer em outros modos de afecção.
  • 6
    Aqui há um ponto interessante a ser frisado: de maneira geral, costumamos entender que a “a falta da falta” é um problema no interior da experiência analítica porque isso poderia ser sinal de um modo ruim, digamos assim, de lidar com a castração, levando a toda uma paralisia na dinâmica do desejo. O que estamos a sinalizar ao longo deste ensaio é que o objeto voz é negativo, isto é, não passível de ser simbolizado. Esse ponto solicita um outro lugar para a angústia na clínica, lugar muito bem lembrado por Alain Badiou (2018)Badiou, A. (2018). Lacan: anti-philosophy 3. Columbia University Press., para quem “(...) a angústia é um bloqueio da simbolização. É o que nos diz diretamente a sua definição: se é a falta da falta sobre o excesso de real, é justamente porque está se produzindo constantemente uma paralisia das operações de simbolização, e isso é, na verdade, seu afeto. Por outro lado, o protocolo de restrição em si [produzido pela angústia] é um protocolo de simbolização correto” (p. 178; grifo nosso; tradução nossa). Esse é o ponto paradoxal identificado por Badiou: não haverá simbolização parcial “correta” (o termo não é muito bom, mas é o usado pelo autor) sem uma relação direta com aquilo que bloqueia a simbolização, a natureza negativa da angústia em que o objeto voz é uma de suas “figuras”. O que quer dizer, entre outras coisas, que, na clínica, não se trata ou da angústia ou do desejo, mas de uma ligação dialética bem mais complexa entre esses dois elementos.
  • 7
    Mesmo que a criança tape os ouvidos e não escute nem entenda nada, o Outro permanece ali em lugar de interpelação, expressando a natureza do objeto voz distante da sonoridade e da significação.
  • 8
    Importante salientar aqui que a modalidade sensorial particular (o som) e o campo semântico que o logos organiza são os dois pontos presentes na voz fenomenológica (a voz no sentido comum). Esses dois pontos estão ausentes no objeto voz por ele ser tomado por Lacan como um objeto negativo.
  • 9
    Dar um conteúdo ao desejo do Outro, um conteúdo que acima de tudo evoca a organização totêmica, hegemônica em nossa sociedade, é de certa forma se comprometer com a falta no vetor da culpa. Lembrar disso pode parecer inicialmente estranho, pois estamos muito acostumados, no campo lacaniano, a apenas falar de falta no aspecto vinculado ao desejo. No entanto, que Lacan frise, dentro da discussão sobre o shofar, a resolução da angústia por meio da culpa não quer dizer que essa seja a única resolução possível. A experiência analítica é, de certa forma, a procura por questionar o conteúdo fornecido ao desejo do Outro, a colocar muito mais “um ponto de enigma” para esse desejo a fim de que a dinâmica da falta enquanto desejo possa, mais uma vez, reaparecer. Como lembrará Bruce Fink (2018)Fink, B. (2018). Introdução clínica à psicanálise lacaniana. Zahar., técnicas como a fala oracular e a sessão de duração variável na psicanálise lacaniana visam confrontar “(...) o analisando com a questão do desejo enigmático [sem conteúdo] do analista (o desejo do Outro) e lhe demonstrar continuamente que o desejo do Outro não é o que ele presume [não é o conteúdo que foi inicialmente fornecido a esse desejo]” (p. 236).
  • 10
    É por isso que Vladimir Safatle (2017)Safatle, V. (2017). Introdução a Lacan. Autêntica. pergunta: “Como podemos, pois, compreender esse paradoxo de algo que é, ao mesmo tempo, o fundamento de um processo e o que deve ser perdido para que esse mesmo processo possa operar?” (p. 70).
  • 11
    É bastante comum pensar os afetos como o campo da “sensibilidade individual” de determinada pessoa. O que toda essa discussão lacaniana em torno do objeto voz visa é desmontar essa concepção hegemônica sobre os afetos, levando a pensar como é o objeto a (e suas formas) que produz a afecção entre o sujeito e o Outro. Se damos consequência a uma formulação dessa natureza, teríamos que aceitar que alguém não pode ter completa autonomia ao longo desse processo, pois é um objeto que afeta, é um objeto que age. Isso nos convidaria a repensar o que significa “ação” e “responsabilidade” no interior desse debate. Somos os primeiros a reconhecer que o que apresentamos aqui mereceria ser desenvolvido com muito mais vagar em outro espaço, mas não teríamos como deixar de escrever essa intuição, que, como a própria expressão já sugere, permanece, no âmbito deste ensaio, apenas como uma intuição.
  • 12
    Também temos notícias disso nas considerações sobre o shofar: os fiéis, como consta em passagem bíblica, estão aterrorizados quando escutam o shofar, pois eles não conseguem compreender “o berro” do instrumento, é algo estranho a eles. Poderíamos imaginar que isso desestabiliza a imagem narcísica e os coloca próximos da dimensão negativa (e perigosa) da vida, que é “o encontro” com aquilo que é Real.
  • 13
    Nesse caso, há que se reconhecer que Derrida havia chegado à mesma conclusão ao desconfiar da noção de autoafecção. No pensamento derridiano, algo perturba os fundamentos morais, pois a autonomia está, como dirá Leonard Lawlor (2015)Lawlor, L. (2015). Auto-affection. In C. Colebrook (Org.), Jacques Derrida: key concepts (pp. 130-138). Routledge., contaminada pela heteronomia.
  • 14
    Apesar de ser possível pensar como certas experiências dissonantes no campo musical podem evocar o objeto voz, Colette Soler está pensando aqui na música como uma produção de significação que teria força suficiente para produzir uma defesa ao que não é passível de significação, o objeto voz.
  • 15
    Falar em um inaudível que grita é a maneira metafórica de lembrar como o objeto voz não é apenas o silêncio, mas um silêncio muito específico, que nos interpela a partir de um lugar que “grita” à sua maneira. Sobre isso, basta lembrar daqueles momentos singulares em que paira um silêncio entre uma frase e outra do analisante, não deixando de angustiá-lo. Esse silêncio angustia porque não se é indiferente a ele. O “silêncio gritante” produz uma forma de incômodo vinculada à natureza negativa do objeto voz.

Referências

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    02 Set 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    29 Out 2022
  • Revisado
    30 Set 2023
  • Aceito
    27 Nov 2023
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