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Força é mudares de vida: a psicanálise utópica de Edson de Sousa

Força é mudares de vida: the utopian psychoanalysis of Edson de Sousa

Furos no futuro: psicanálise e utopia. . Souza, Edson Luiz André de. Artes e Ecos, 2022. 170 págs

Durante anos o filósofo Georges Bataille buscou construir um dicionário às avessas. Publicado em diversos números da revista Documents, esse dicionário crítico buscava discutir não o sentido, mas as obrigações das palavras, afastando-as de sua suposta semelhança com o mundo. Em dezembro de 1929, no escopo dessa empreitada, Georges Bataille publica um verbete denominado informe cuja obrigação, segundo o filósofo, seria a de desorganizar.

Assim como o informe de Bataille, também este Furos no futuro: psicanálise e utopia, do psicanalista Edson Luiz André de Sousa, pode ser lido como um gesto de perturbação. Híbrido entre teoria psicanalítica, arte, literatura e crônica do seu tempo, este livro se deixa ler como força ou, dito de outra forma, como pensamento que se aproxima homologicamente de seus objetos. Tal como Walter Benjamin que escreveu barrocamente a respeito do barroco ou Pascal Quignard que escreveu musicalmente sobre a música, Edson Sousa escreve utopicamente sobre a utopia: este nome que falta, este espaço negativo (u-topos) e sempre por vir.

O livro Furos no futuro: psicanálise e utopia é composto por oito ensaios cujo fio condutor é o enlace entre utopia, psicanálise, arte, literatura e crítica do presente. Ainda que estes temas se frequentem mutuamente e acabem inspirando uma mesma inquietação de linguagem que atravessa o livro inteiro, podemos destacar, no entanto, três chaves de leitura que funcionam como uma forma de entrada no livro. São elas: 1) psicanálise e utopia; 2) utopia, literatura e arte; 3) utopia e crítica do presente.

O primeiro ensaio, intitulado “Psicanálise e desejo de utopia”, poderia ser situado na chave de leitura que visa traçar os parentescos entre psicanálise e utopia. Aqui, o dispositivo fundado por Freud é revisto e arejado à luz de alguns fundamentos dos estudos utópicos, sobretudo aqueles trabalhados por Ernst Bloch em sua trilogia “O princípio esperança”. Esses fundamentos remontam à função da espera; o enigma colocado pelo desejo humano; a coexistência entre o mundo onírico e a realidade e o “ainda não” como uma das categorias essenciais da esperança.

Na sequência, poderíamos aglutinar alguns ensaios do livro como pertencentes a uma segunda chave de leitura formado pela tríade: utopia, literatura e arte. Neste arranjo, os textos abordam desde um conto do escritor Yukio Mishima até um poema de Joaquim Cardozo, passando por alguns trabalhos de Arthur Bispo do Rosário e, ainda, uma discussão sobre a função da transgressão no campo das artes.

Neste conjunto de textos, o que parece estar fundamentalmente em causa são os efeitos de transmissão da literatura e das artes situadas pelo autor como operação de linguagem que coloca o signo em dificuldade, isto é, que busca ativar outras categorias de apreensão da realidade através de uma frequentação incomum da linguagem. “O que pode a arte?”, pergunta-se o autor no ensaio “A transgressão que salva”, ao que responde: “A obra de arte instaura desordem, funda um fora de lugar, cria uma espécie de colapso no sujeito, lembrando que o desafio do artista (e do psicanalista) é de encontrar o corte entre estrutura e colapso” (Sousa, 2022Sousa, E. L. A. (2022). Furos no futuro:psicanálise e utopia. Artes e Ecos., p. 98). É nesses termos, portanto, que Edson Sousa retraça o fio invisível que liga o pensamento utópico à psicanálise, à literatura e às artes.

Um terceiro e último campo de questões parece orbitar em torno da chave de leitura “utopia e crítica do presente”. Formado pelos ensaios “O que o poder não pode? O inconsciente utópico” e “Eclipses: propaganda e utopia”, os textos dessa chave parecem colocar em relevo a força do pensamento utópico em termos de renovação das gramáticas de crítica atualmente disponíveis.

No primeiro ensaio desse conjunto, o autor realiza um diálogo com o texto de Etienne de La Boétie acerca da servidão voluntária colocando-o em diálogo com uma série de circunstâncias traumáticas do nosso presente. Afinal, o que o poder não pode? Para fazer trabalhar esta pergunta, Edson Sousa rememora, entre outros, o trabalho do artista chinês Ai Wei Wei que, diante dos desabamentos de escolas por força de um terremoto ocorrido na China em 2008 (e da precariedade dos materiais utilizados para a construção delas), resolve recolher 164 toneladas de vergalhões retorcidos e, um a um, desentortá-los, como uma espécie de memorial em homenagem aos mortos. Eis aqui algo que diz respeito à função de contrafluxo do pensamento utópico, isto é, sua vocação de inscrever um gesto de recusa radical diante do presente tal como ele se apresenta:

Nem sempre os memoriais precisam ser monumentais. [...] São estas produções discursivas que acionam o sentido mais radical de uma responsabilidade diante da memória e que Freud tão bem nos sinalizou com seu Wo es War, sol Ich Werden. Temos aqui neste campo do inconsciente, o insertão freudiano: a insistência, a surpresa, a coragem, a falta, a utopia como horizonte do que ainda podemos imaginar. (Sousa, 2022Sousa, E. L. A. (2022). Furos no futuro:psicanálise e utopia. Artes e Ecos., p. 67)

Ainda sobre esse ponto, é preciso que se diga que esse é um livro fundamentalmente preocupado com as questões do seu tempo. Não por acaso o autor convoca um poeta ucraniano na epígrafe da sessão de Abertura: “Pegue apenas o que é mais importante. Pegue as cartas. Pegue apenas o que puder carregar”. Essa epígrafe parece funcionar como premissa poética do livro inteiro. Efetivamente, temos nas mãos um livro que busca acender as luzes de emergência; que busca dizer um NÃO às invasões de toda ordem e à corrosão da palavra como instância mediadora das nossas diferenças. O livro de Edson de Sousa reflete o presente, mas não como um espelho, antes como um escudo: uma força contra.

A guisa de conclusão, outro aspecto que merece ser posto em relevo nesse livro é o seu aceno ao tema da comunidade. É digno de nota que todos os ensaios sejam precedidos por imagens. Extraídas de trabalhos de artistas, essas imagens estão muito longe da ilustração, do anexo ou do mero comentário e parecem, de fato, tomar posição no livro por força própria. Assim, elas aparecem situadas como uma espécie de antessala onde o psicanalista arma um espaço entre, um limiar: uma passagem que convida e prepara o leitor a embarcar em uma relação outra com a linguagem. Aliás, não seria esta a função da antessala em um consultório de psicanálise?

Outro aspecto comunitário deste livro reside em suas dedicatórias. Praticamente todos os ensaios são dedicados a alguém, isto é, são textos que se apresentam como cartas, correspondências, tentativas de contato com o outro. Construídos a partir de endereçamentos, esses ensaios são também envios, e aqueles que não o são — os dois últimos do livro — são escritos em parceria, ou seja, são frutos de uma partilha. Ainda que aparentemente banais, esses detalhes deixam transparecer uma verdadeira posição enunciativa do autor cuja tônica parece nos querer indicar o caráter propriamente partilhado e partilhável do pensamento: o fato de que ele nunca é resultado de um trabalho solitário e egocentrado, mas sempre constituído como conversa, como atrito, como corpo-a-corpo com uma comunidade.

Por fim, é preciso que se diga que se esse livro se deixasse ler sob o prisma da escuta psicanalítica, isto é, com atenção aos significantes que se repetem e se deslocam, seria fundamental sublinhar a forma como a pulsação do texto inteiro parece orbitar em torno de um mesmo enigma, ou melhor, de um mesmo verso, de Rainer Maria Rilke, magistralmente traduzido por Manuel Bandeira e que diz, talvez, a mensagem utópica por excelência: força é mudares de vida.

Referências

  • Bataille, G. (1992). Documents: doctrines, archéologie, beaux-arts, ethnographie: magazine illustré paraissant dix fois par an /sécretaire général, 1(4) Bibliothèque Nationale de France. (Trabalho original publicado em 1929).
  • Benjamin, W. (2016). Origem do drama trágico alemão. (João Barrento, Trad.). Autêntica. (Trabalho original publicado em 1928).
  • Quignard, P. (1999). Ódio à música. Rocco. (Trabalho original publicado em 1996).
  • Sousa, E. L. A. (2022). Furos no futuro:psicanálise e utopia Artes e Ecos.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Out 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    25 Nov 2022
  • Aceito
    30 Jan 2023
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