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O método clínico - 2

EDITORIAL

O método clínico – 2

Manoel Tosta Berlinck

Naturalismo e Iluminismo são os dois movimentos culturais ocorridos no século XVIII que fundamentam o método clínico plenamente formulado na psiquiatria alemã, na Inglaterra e na França durante o século XIX e que sofre o impacto da revolução epistemológica formulada por Freud.

O Naturalismo, baseando-se na observação desinteressada da natureza, acabou por criar sistemas classificatórios que até hoje predominam, como parte do método clínico.

A noção de "observação desinteressada" irá evoluir para aquilo que, mais tarde, passou a ser conhecido como "neutralidade valorativa" que determina, em parte, o método clínico. Assim, Freud faz questão de lançar mão dessa noção quando elabora a posição clínica ocupada pelo psicanalista. A idéia de neutralidade valorativa, que pretende captar o objeto "tal como ele se manifesta na natureza", influenciará as ciências exatas e as ciências humanas. A antropologia, por exemplo, é profundamente marcada por essa complexa noção.

Como esclarece Martin Heidegger em Nietzsche I (Rio de Janeiro: Forense, 2007), a observação desinteressada da natureza é proposta por Kant, quando trata da estética e implica a forma e a figura como recursos do pensamento. Em outras palavras, o naturalismo é observação desinteressada da natureza e implica dar forma e figura àquilo que se manifesta através do pensamento. Já na noção de observação desinteressada da natureza, proposta por Kant, não há dados, ou melhor, o que é dado é apreendido sensivelmente e passa por um pensamento.

No naturalismo, a questão da verdade como determinante para o comportamento pensante-cognitivo se articula com o belo, determinante para o estado estético.

Para Kant, em Crítica da faculdade de julgar, obra na qual a estética é apresentada, "belo" é aquilo que pura e simplesmente agrada. O belo é o objeto de um "mero" deleite. Esse sentimento agradável no qual o belo se nos abre como belo é, segundo as palavras de Kant, "desprovido de todo interesse". Ele nos diz:

Gosto é a faculdade de ajuizamento de um objeto ou de um modo de representação que se dá por meio de um deleite ou de um desprazer, desprovido de todo interesse. O objeto de tal deleite chama-se belo. (Immanuel Kant, Crítica da faculdade de juízo, Akademieausgabe, B 16)

Heidegger observa, então, que o comportamento estético, isto é, o comportamento em relação ao belo é o "deleite desprovido de todo interesse". Segundo o conceito comum, desinteresse é indiferença ante uma coisa ou um homem: não colocamos nada de nossa vontade na ligação com a coisa e com o homem. Se a relação com o belo, o deleite, é determinada como "desinteressada", então o estado estético se mostra, de acordo com Schopenhauer, como uma suspensão ("suspensação") da vontade, um aquietamento de toda a aspiração, o puro aquietar-se, o puro não-mais-querer, o puro pairar na ausência de participação. Nietzsche, por sua vez, afirma que o estado estético é a embriaguez. Isso é, evidentemente, o oposto de todo o "deleite desinteressado", e, com isso, ao mesmo tempo, no que concerne à determinação do comportamento ante o belo, o antagonismo mais acentuado possível em relação a Kant.

Em outras palavras, o próprio Nietzsche observa que, desde Kant, todo discurso sobre a arte, a beleza, o conhecimento, a sabedoria está manchado e enlameado pelo conceito "desprovido de interesse". Este, por sua vez, está, no Naturalismo e no Iluminismo, essencialmente relacionado à noção de verdade.

O que, então, Kant tem em vista com aquela determinação do belo como objeto do deleite "desinteressado"? O que significa "desprovido de todo interesse"? Heidegger lembra que "interesse" é uma palavra que remonta ao latim mihi interest, algo possui uma importância para mim; tomar um interesse por algo diz: querer ter algo para si, a saber, querer se apossar de algo, querer empregá-lo e colocá-lo à sua disposição. Quando tomamos um interesse por algo, o estabelecemos em vista de algo que queremos empreender e a que, com isso, aspiramos. Isso pelo que tomamos um interesse é sempre tomado, representado já em vista de algo diverso.

Para Kant, então, o belo é o que nunca pode e nunca precisa se impor como o fundamento de determinação: um interesse. O que o juízo "isso é belo" exige de nós jamais pode ser um interesse. Quer dizer: para acharmos algo belo precisamos deixar aquilo mesmo que vem ao nosso encontro vir até diante de nós puramente como ele mesmo, em sua própria estatura e dignidade. Não podemos contabilizá-lo de antemão em vista de algo diverso, em vista de nossas metas e intuitos, de um possível gozo e de uma possível vantagem. O comportamento em relação ao belo como tal, diz Kant, é o livre favor: precisamos liberar o que vem ao encontro como tal no que ele é, deixar e permitir-lhe alcançar o que pertence a ele mesmo e o que ele pode trazer para nós.

As objeções à concepção kantiana de belo, que tem início em Schopenhauer e Nietzsche, encontram em Karl Marx a mais devastadora crítica. Para Marx, não há possibilidade de observação desinteressada daquilo que se manifesta porque a posição socioeconômica mesma ocupada pelo observador determina sua observação. Essa objeção resultou na noção de "relativismo cultural" não há uma única verdade sobre a natureza, mas múltiplas verdades determinadas pelas posições ocupadas pelos observadores formulada pela antropologia e, logo em seguida, pela sociologia do conhecimento. Esse relativismo vai se estender para a física e, por conseqüência, para todas as ciências exatas com a Teoria Geral da Relatividade formulada por Albert Einstein.

Entretanto, apesar dessas críticas ao objetivismo kantiano, ele persiste nas ciências e determina uma certa psiquiatria que se opõe ao subjetivismo.

Sustentar, porém, as posições iluminista e naturalista tem sido de grande valia para o conhecimento da natureza. Ainda que essas posições não atendam ao ideal do conhecimento científico, o esforço metodológico por uma observação desinteressada da natureza contribuiu decisivamente para o desenvolvimento do conhecimento científico e é indispensável para o método clínico.

Dois recursos foram desenvolvidos pelos cientistas para minimizar as críticas à noção de observação desinteressada da natureza.

O primeiro propõe que o observador formule, de maneira a mais precisa possível, os seus preconceitos e valores decorrentes da posição que ocupa. Assim, é possível minimizar o viés e assegurar uma observação um pouco mais objetiva.

O segundo, proposto por Freud, é o de reconhecer que a natureza é inapreensível e que a narrativa científica ocorre tendo como paradigma a ficção. Assim, o relato do caso clínico não corresponde à realidade objetiva porque inclui não só aquilo que determina a posição do observador, mas, também, aquilo que, provindo do objeto, determina o pensamento do observador.

A interação dessas duas posições (a do observador e a do observado) produz a subjetividade que determina a narrativa do caso clínico.

Mas antes de Freud é necessário falar sobre o método clínico adotado pelos psiquiatras, durante o século XIX. Essa é uma próxima história a ser contada.

Manoel Tosta Berlinck

Sociólogo; psicanalista; Ph.D. pela Cornell University; Professor do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP, onde dirige o Laboratório de Psicopatologia Fundamental; presidente da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental; coordenador do Laboratório de Saúde Mental da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental; editor responsável pela Pulsional Revista de Psicanálise e Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental; diretor da Editora Escuta e da Livraria Pulsional - Centro de Psicanálise; autor de Psicopatologia fundamental (São Paulo: Escuta), entre outros.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    25 Mar 2011
  • Data do Fascículo
    Dez 2007
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