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O inacessível à fala: fenômenos borderlines e o manejo clínico da esfera não verbal

The inaccessible to speech: borderline phenomena and the clinical management of the non-verbal sphere

L’inaccessible à la parole: les phénomènes borderline et la gestion clinique de la sphère non verbale

Lo inaccesible al habla: fenómenos borderlines y el manejo clínico de la esfera no verbal

O artigo tem como objetivo investigar os processos de comunicação subjacentes à linguagem verbal presentes na relação analítica. Analisaremos como o conceito de transferência se modifica na literatura psicanalítica, abrindo espaço para as dinâmicas intersubjetivas do setting. Dialogando com a teoria do apego e seus fundamentos etológicos, apresentaremos os fenômenos borderlines, marcados por intensas manifestações corporais no contexto das relações interpessoais. Em seguida, defenderemos a hipótese de que há em todo sujeito um núcleo inacessível à fala, que aparece como material clínico principalmente na análise de pacientes graves, onde a experiência traumática se inscreve em níveis sensoriais.

Palavras-chave:
Psicanálise; clínica; manejo; borderline


Resumos

This article aims to investigate the communication processes underlying verbal language found in the analytical relationship. We will analyze how the concept of transference changes in psychoanalytic literature, opening space for the intersubjective dynamics present in the setting. Dialoging with attachment theory and ethology, we will present borderline phenomena, marked by intense bodily manifestations in the context of interpersonal relationships. Then, we will defend the hypothesis that an inaccessible nucleus to speech lies in every subject, which appears as clinical material mostly in the analysis of severely ill patients, where traumatic experience is inscribed in sensory levels..

Key words:
Psychoanalysis; clinic; management; borderline

L’article vise à étudier les processus de communication qui sous-tendent le langage verbal présent dans la relation analytique. Nous analyserons l’évolution du 29 concept de transfert dans la littérature psychanalytique, en ouvrant un espace à la dynamique intersubjective du cadre. En dialogue avec la théorie de l’attachement et ses fondements éthologiques, nous présenterons les phénomènes limites, marqués par des manifestations corporelles intenses dans le contexte des relations interpersonnelles. Nous défendrons ensuite l’hypothèse qu’il existe chez tout sujet un noyau inaccessible à la parole, qui apparaît comme matériel clinique principalement dans l’analyse des patients sévères où l’expérience traumatique s’inscrit sur les plans sensoriels..

Mots clés:
Psychanalyse; clinique; gestion; borderline


Este artículo tiene como objetivo investigar los procesos de comunicación subyacentes al lenguaje verbal que se presentan en la relación analítica. Analizaremos cómo el concepto de transferencia cambia en la literatura psicoanalítica, abriendo espacio a las dinámicas intersubjetivas presentes en el setting. En diálogo con la teoría del apego y sus fundamentos etológicos, presentaremos fenómenos borderlines, marcados por intensas manifestaciones corporales en el contexto de las relaciones interpersonales. A continuación, defenderemos la hipótesis de que existe en todo sujeto un núcleo inaccesible al habla, que aparece como material clínico principalmente en el análisis de pacientes críticamente enfermos, en que la experiencia traumática se inscribe en niveles sensoriales.

Palabras clave:
Psicoanálisis; clínica; manejo; borderline


Introdução

Podemos dizer que a psicanálise pós-freudiana confirgura-se como um vasto e ramificado arcabouço teórico e clínico (Mezan, 2014Mezan, R. (2014). O tronco e os ramos: estudos de história da psicanálise. Companhia das Letras.), que ao longo dos últimos anos nos ofereceu — e segue oferencendo — matizes significativas sobre diferentes modos de se encarar as conceituações deixadas por Freud. Diante de tais matizes, que em sua pluraridade conceitual enriquecem o legado e a perpetuação da psicanálise, gostaríamos de definir dois importantes vértices teóricos que se configuram como caminhos distintos em direção ao fazer psicanalítico: por um lado, um grupo de psicanalistas (Laplanhe, 1970/1985Laplanche, J. (1985). Vida e morte em psicanálise. Artes médicas. (Trabalho original publicado em 1970).; Green, 1972/1994Green, A. (1994). De loucuras privadas. Amorrortu. (Trabalho original publicado em 1972).; dentre outros) que se manteve dedicado aos conceitos freudianos mais fundamentais como as pulsões, a sexualidade, a tópica do aparato psíquico transformada nas instâncias de ego, id e superego. De outro lado, um segundo grupo que se dedicou aos fenômenos para os quais Freud chamou atenção, ou seja, o ponto de partida de suas hipóteses e, consequentemente, os aspectos transferenciais da relação analítica. Nesse grupo certamente identificamos os teóricos da psicanálise relacional, tais como Ferenczi, Melanie Klein, Winnicott, Bion, Balint e mais especificamente Bowlby (1969/1990)Bowlby, J. (1990). Apego e perda – Volume I: Apego. Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1969). que, com a edificação da teoria biológica do apego, aponta para três fenômenos claramente observados por Freud: 1) o papel desempenhado pelas interações entre os fatores biológico e o meio ambiente na formação dos sintomas, 2) os efeitos duradouros das experiências traumáticas e 3) a repercussão dos fatores inconscientes na vida física e mental do sujeito.

A partir dos anos 1960, as pesquisas no campo da psicologia do desenvolvimento inauguram um novo olhar sobre o desenvolvimento infantil e impactam consideravelmente a prática clínica da psicanálise. É nessa linha investigativa que a teoria do apego surge no debate psicanalítico e acrescenta à discussão os fatores biológicos presentes na formação de vínculos. Bowlby (1969/1990)Bowlby, J. (1990). Apego e perda – Volume I: Apego. Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1969). remodela a teoria da motivação freudiana através de uma perspectiva interdisciplinar, que comporta em suas bases a teoria psicanalítica das relações objetais, a psicologia do desenvolvimento e a etologia. Esse tripé conceitual acaba por solidificar uma teoria da clínica voltada para os aspectos inconscientes do adoecer mental, as relações primordiais que fundam o psiquismo e os modos de comunicação não verbal que perduram ao longo de toda a vida humana e se manifestam na relação entre analista e paciente.

A transição para uma dinâmica voltada à ação terapêutica intersubjetiva marca a diferenciação entre duas formas distintas de se pensar o diálogo clínico. De um lado localizamos modelos bem delimitados sobre as funções da transferência e da contratransferência; dois polos que pressupõem interação, mas que mantêm suas conceituações específicas. De outro, enxergamos os modelos que partem da interação propriamente dita, dos processos comunicativos estabelecidos na interseção entre os mundos subjetivos do analista e do paciente. Neste sentido, os fenômenos interpessoais que fundamentam as teorias sobre o campo analítico ganham relevância significativa e lançam luz sobre o diálogo paralinguístico. O espaço físico e mental existente entre os polos da transferência e da contratransferência abre caminho para uma clínica do encontro. Como entender esse hiato existente entre a palavra e o ato? Entre a bergère e o divã a ação intersubjetiva acontece indiscutível e silenciosamente. Entre o biológico e o mental o afeto se desenha como a linha condutora que molda os processos de comunicação.

É sobre esse solo que discutiremos as dinâmicas relacionais presentes no setting analítico, cujos fenômenos parecem indicar os substratos não verbais encenados pela dupla analista-paciente. A constatação desses fenômenos como partes fundamentais da comunicação, convoca ambos a participarem e contribuírem para a ação terapêutica intersubjetiva. Discutiremos as manifestações dos fenômenos borderlines no espaço analítico, pelo enfoque da teoria biológica do apego consolidada por Bowlby. A contribuição de sua teoria à psicanálise abriu espaço para um diálogo até então improvável com a etologia e suas comparações entre comportamentos de diferentes espécies. Diante das intensas vivências corporais que determinados pacientes apresentam na clínica, veremos como os mecanismos de mentalização e de identificação projetiva se consolidam como ferramentas essenciais no manejo clínico, auxiliando o analista na compreensão de outras dimensões comunicativas. Por fim, apresentaremos a ideia de que há em todo o sujeito um núcleo inacessível à fala, que guarda as marcas de intensas experiências sensoriais e que deve ser contemplado no processo terapêutico através das modulações corporais presentes na relação interpessoal.

Dinâmicas do setting: da transferência à ação terapêutica intersubjetiva

Ao longo das últimas décadas, as teorias que se dedicaram à relação transferencial-contratransferencial ganharam força e se tornaram, para muitos psicanalistas (Ogden, 1994/1996Ogden, T. (1996). Os sujeitos da psicanálise. Casa do Psicólogo. (Trabalho original publicado em 1994).; Mitchell, 2000Mitchell, S. A. (2000). Relationality: From Attachment to intersubjetivity. Routledge., dentre outros), o objeto de estudo principal. Ao descobrir a dinâmica da transferência, Freud lançou luz sobre um importante fenômeno, essencial para que o processo analítico se desenvolvesse satisfatoriamente e atingisse seus objetivos finais, ou seja, a diminuição do sofrimento psíquico, a cessação dos sintomas e a elaboração das experiências traumáticas causadoras dos dois últimos fatores. A projeção sobre o analista permitiria que as atuações fossem interpretadas, religando a representação recalcada com o afeto correspondente. Para isso, era necessário que o analista se mantivesse como uma tela em branco, exercendo uma postura de neutralidade. Só assim o paciente dirigiria à figura do analista as moções pulsionais que foram impedidas de se tornarem conscientes (Freud, 1912/2010bFreud, S. (2010b). A dinâmica da transferência. In Obras Completas (Vol. X; pp. 133146). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1912).).

De acordo com Freud, o sujeito desenvolve, a partir da combinação de fatores inatos e das influências sofridas durante os primeiros anos de vida, “um clichê” (Freud, 1912/2010b, p. 135Freud, S. (2010b). A dinâmica da transferência. In Obras Completas (Vol. X; pp. 133146). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1912).), constantemente repetido e reimpresso. Esse processo se refletiria não só na escolha de objeto amoroso no curso da vida como também definiria a relação entre o analista e o paciente. Como nos diz:

É perfeitamente normal e compreensível, portanto, que o investimento libidinal de uma pessoa em parte insatisfeita, mantido esperançosamente em prontidão, também se volte para a pessoa do médico. Conforme nossa premissa, tal investimento se apegará a modelos, se ligará a um dos clichês presentes no indivíduo em questão ou, como podemos também dizer, ele incluirá o médico numa das “séries” que o doente formou até então. (p. 136)

Para Freud a transferência se anuncia por sinais de resistência, já que a ideia transferencial penetra na consciência à frente de quaisquer associações possíveis, satisfazendo a resistência. Ele parte do pressuposto básico de que o conteúdo recalcado do paciente retorna na relação com o analista. “Tal como nos sonhos, o doente atribui realidade e atualidade aos produtos do despertar de seus impulsos inconscientes; ele quer dar corpo a suas paixões, sem considerar a situação real” (p. 146).

Além disso, Freud relaciona todos os conteúdos transferenciais às expe riências eróticas da vida infantil. Para ele as relações emocionais de simpatia, confiança e amizade estão geneticamente vinculadas à sexualidade e se desenvolvem a partir de desejos puramente sexuais. Esses desejos e impulsos surgem a partir de pensamentos, sentimentos, e comportamentos fundamental-mente gerados dentro do indivíduo, ou seja, dos processos internos mediados pela pulsão. A atenção do analista, portanto, deveria estar concentrada nos processos intrapsíquicos. De acordo com Mitchell (2000)Mitchell, S. A. (2000). Relationality: From Attachment to intersubjetivity. Routledge., a teoria clássica da técnica psicanalítica, em suas “práticas antissépticas” (p. 126; tradução livre), era excessivamente proibitiva. Os analistas eram guiados por princípios negativos como neutralidade, anonimato, abstinência, que, em sua essência, descreviam o que não deveria ser feito. “Na dúvida, não responda, não fale, não expresse, não se exponha. Silêncio e constrição emocional são seguros” (p. 126).

A observação neutra e a redução do envolvimento pessoal colocam a contratransferência como um fenômeno a ser superado, ou mesmo rechaçado, pelo analista. Ou seja, os sentimentos, pensamentos e comportamentos despertados no analista pelo paciente, deveriam ser ignorados em benefício do processo terapêutico. Sendo assim, transferência e contratransferência eram produtos das resistências pessoais. Por esse motivo, a subjetividade do analista sairia de cena e daria lugar à subjetividade do paciente, seus impulsos reprimidos, suas representações recalcadas e suas fantasias.

Entretanto, a clínica com pacientes severamente traumatizados no pós-guerra abriu caminho para se pensar os efeitos psíquicos da separação precoce do bebê de sua principal figura de cuidado. Esse momento pode ser descrito como a virada relacional, que institui novos paradigmas para a teoria da clínica. A passagem de um pensamento pautado na psicologia de uma pessoa para a psicologia de duas pessoas, impacta de forma considerável as teorizações acerca da subjetividade do analista e seu papel fundamental no processo terapêutico. De acordo com Mitchell (2000)Mitchell, S. A. (2000). Relationality: From Attachment to intersubjetivity. Routledge., os analistas relacionais instituíram um “senso de liberação” (p. 126; tradução livre) e passaram a levar em consideração a autorrevelação do analista, uma grande variedade de quebras no enquadramento analítico e um profundo envolvimento emocional com o paciente. De acordo com Wallin (2007/2015)Wallin, D. J. (2015). Attachment in Psychotherapy. The Guilford Press. (Trabalho original publicado em 2007)., “Nosso autêntico envolvimento pessoal, nossa responsividade emocional e nossa subjetividade inevitável, longe de interferirem, são características essenciais para toda psicoterapia bem-sucedida” (p. 117; tradução livre). O foco sobre os aspectos contratransferenciais inaugura um modelo terapêutico pautado na intersubjetividade e oferece um novo olhar sobre a dinâmica clínica. A interpretação dos conteúdos recalcados passa a ser considerada menos eficaz no tratamento de pacientes regredidos (Winnicott, 1954/2000Winnicott, D. W. (2000). Aspectos clínicos e metapsicológicos da regressão no contexto psicanalítico. In Da pediatria à psicanálise: Obras escolhidas. (pp. 374-392). Imago. (Trabalho original publicado em 1954).), abrindo espaço para o manejo dos estágios iniciais do desenvolvimento.

De acordo com Balint (1968/1993)Balint, M. (1993). A falha básica: aspectos terapêuticos da regressão. Artes Médicas. (Trabalho original publicado em 1968)., as interpretações “exigem com-preensão intelectual, raciocínio ou um novo insight. Todas essas descrições estão intimamente relacionadas com o ver ou o suportar, isto é, com atividades filobáticas, que podem ser realizadas a sós” (p. 148). Em seguida ele contrasta essa visão com o efeito das relações objetais que são sempre uma interação entre duas pessoas, criadas e conservadas também por meios não verbais. Porém, cabe a questão: como, mais precisamente, a lógica intrapsíquica dá lugar ao modelo intersubjetivo na clínica psicanalítica? Como as dinâmicas do setting passam a ocupar o lugar central do interesse psicanalítico? De acordo com Stolorow & Atwood (1984)Stolorow, R. D., Atwood, G. E. (1984). Psychoanalytic phenomenology: Toward a science of human experience. Psychoanalytic Inquiry, 4(1), 87-105. Stolorow, R. D., Atwood, G. E. (1996). The intersubjective perspective. Psychoanalytic Review, 83, 181-194. Tronick, E. (1989). Emotions and emotional communication in infants. American Psychologist , 44(2), 112-119.:

A teoria da intersubjetividade é uma teoria do campo ou uma teoria de sistemas que busca compreender fenômenos psicológicos não como produtos de mecanismos intrapsíquicos isolados, mas como formados na interface de mundos de experiência que interagem reciprocamente. Os fenômenos psicológicos, temos enfatizado repetidamente, “não podem ser compreendidos à parte dos contextos intersubjetivos em que tomam forma”. (p. 64)

O determinismo intrapsíquico dá lugar, portanto, a um contextualismo intersubjetivo incessante. Argumentamos que não é a mente individual isolada, mas o sistema mais amplo gerado pela interação mútua dos mundos subjetivos do paciente e do analista, ou da criança e do cuidador, que constitui o domínio próprio da investigação psicanalítica. Na verdade, como mostramos, o conceito de uma mente ou psique individual é em si um produto psicológico que se cristaliza em um nexo de exaltação intersubjetiva e serve a propósitos psicológicos específicos. (Stolorow & Atwood, 1996, pp. 180-181Stolorow, R. D., Atwood, G. E. (1996). The intersubjective perspective. Psychoanalytic Review, 83, 181-194.; tradução livre)

De acordo com os autores, o inconsciente dinâmico passa a ser visto não como produto dos impulsos instintivos reprimidos, mas como estados afetivos que foram bloqueados defensivamente porque evocaram uma maciça dissintonia do ambiente inicial. Desse modo, a mudança das pulsões para a afetividade como base do inconsciente dinâmico não é apenas uma questão de terminologia. Sobre isso, Fonagy (2007)Fonagy P., & Target, M. (2007). Playing with reality: IV. A theory of external reality rooted in intersubjectivity. International Journal of Psychoanalysis, 88, 917-937. demonstra que a teoria psicanalítica da motivação também sofreu uma mudança considerável nos anos do pós-guerra. A transição do modelo pulsional para o modelo dos afetos foi aceito pela maioria dos teóricos das relações objetais como uma nova forma de se pensar a motivação humana (Kernberg, 1982Kernberg, O. F. (1982). Self, ego, affects, and drives. Journal of the American Psychoanalytic Association, 30(4), 893-917.; Kohut, 1982Kohut, H. (1982). Introspection, Empathy, and the Semi-Circle of Mental-Health. International Journal of Psycho-Analysis, 63, 395-407.; Sandler, 1989Sandler, J. (1989). Toward a reconsideration of the psychoanalytic theory of motivation. In A. M. CooperR, O. F. Kernberg, & E. S. Person (Eds.), Psychoanalysis: Toward the Second Century (pp. 91-110). Yale University Press.). Portanto, a regulação da experiência afetiva não é um produto de mecanismos intrapsíquicos, mas uma propriedade do sistema de influência de reciprocidade mútua criança-cuidador. “Se entendermos que o inconsciente dinâmico toma forma dentro de tal sistema, torna-se aparente que a fronteira entre o consciente e o inconsciente é sempre o produto de um contexto intersubjetivo específico” (Stolorow & Atwood, 1996, p. 183Stolorow, R. D., Atwood, G. E. (1996). The intersubjective perspective. Psychoanalytic Review, 83, 181-194.; tradução livre). Assim, a resistência do paciente também não é mais vista como produto isolado, mas como algo que flutua em conjunto com as percepções de receptividade e sintonia do analista com a experiência emocional do paciente.

A revisão do conceito de identificação projetiva e a noção de enactment definem novos modelos comunicacionais e implementam técnicas clínicas menos marcadas pela narrativa verbal. Diferente do conceito de acting out, o enactemnt seria uma forma de representação teatral, uma encenação, um colocar em cena, muito mais próximo de termos como to act, to play. Ou seja, esse fenômeno se apresentaria mais como um jogo entre o par analítico do que uma ação individual ou uma manifestação derivada de mecanismos intra- psíquicos. A partir dos anos 1990, o termo ganha um novo significado, desta vez no mundo jurídico, denotando algo que deve ser cumprido, que deve ser obrigatoriamente obedecido (Panel, 1999Panel (1999). Enactment: an open panel discussion. Journal Clinical Psychoanalysis, 8, 32-82.). Sendo assim, a ideia de enactment assume um duplo vértice de significação na prática clínica: a impossibilidade de recusar a — ou se retirar da — encenação conjunta.

Lyons-Ruth (1999)Lyons-Ruth, K. (1999). The two-person unconscious: intersubjective dialogue, enactive relational representation, and the emergence of new forms of relational organization. Psychoanal. Inq. 19, 576-617. participa dessa discussão quando cria o termo enactive representations para descrever as internalizações pré-simbólicas das experiências iniciais, e que fornecem as bases para o que Bowlby (1969/1990)Bowlby, J. (1990). Apego e perda – Volume I: Apego. Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1969). classificou como modelos funcionais internos. Essas representações fazem parte daquilo que analista e paciente encenam um com o outro a partir de suas figuras de apego. Segundo ela: “a organização da memória e do significado no domínio do implícito e do encenado, apenas se tornam manifestos no fazer. De acordo com o interesse psicanalítico atual em relação aos enactments no tratamento analítico, irei me referir ao ‘saber como fazer’ como representações encenadas” (Lyons-Ruth, 1999, p. 577Lyons-Ruth, K. (1999). The two-person unconscious: intersubjective dialogue, enactive relational representation, and the emergence of new forms of relational organization. Psychoanal. Inq. 19, 576-617.). Essa perspectiva advém da ideia de que muito da nossa experiência emocional é representada de forma implícita, processual ou encenada.

Observamos, portanto, que a perspectiva relacional abre caminho para que as múltiplas dimensões da transferência e da contratransferência tomem forma através do sistema de continuidade intersubjetiva, composto pelos mundos interativos do paciente e do analista. Essas dimensões travam diálogo com experiências primitivas e arcaicas, localizadas fora do registro verbal. O enactment, assim como a identificação projetiva (Bion, 1962/1994Bion, W. (1994). Uma teoria sobre o pensar. In Estudos psicanalíticos revisados. Imago. (Trabalho original publicado em 1962); Ogden, 1982/2004Ogden, T. (2004). Projective identification and psychoterapeutic technique. Oxford: Jason Aronson. (Trabalho original publicado em 1982).), seria uma forma de comunicação que assume o espaço vazio deixado pelas falhas no processo de simbolização. Porém, ainda que esses fenômenos sejam mais notoriamente observáveis em pacientes severamente traumatizados, eles apontam para dimensões sensoriais e não verbais presentes em todo o indivíduo.

Com isso, processo analítico passa a contemplar em seu âmago algo que está para além do campo transferencial-contratransferencial e que se configura como uma postura do analista em direção à ação terapêutica intersubjetiva, da qual fazem parte tanto as dimensões da transferência e da contratransferência, como os aspectos sensórios dos rudimentos para-representativos do paciente e do analista. Há algo dessa comunicação silenciosa que não se manifesta apenas como transferência, mas sim como parte de uma ação terapêutica intersubjetiva, desempenhada pela dupla em sua atividade comunicacional.

Fenômenos borderlines e a teoria biológica do apego

O estudo sobre os estados borderlines vem sendo extensamente aprimorado tanto no campo da teoria psicanalítica como no âmbito da psicologia do desenvolvimento (Fonagy, 2001Fonagy, P. (2001). Attachment Theory and Psychoanalysis. Other Press.; Van der Kolk, 2014Van der Kolk, B. A. (2014). The Body Keeps the Score: Brain, Mind, and Body in the Healing of Trauma. Penguin Books.). De acordo com a 5ª edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (2014), o Transtorno de Personalidade Borderline abarca uma série de critérios diagnósticos, dentre eles a apresentação de um padrão de relacionamentos interpessoais instáveis e intensos com alternância entre idealização/desvalorização e o esforço para evitar o abandono real ou imaginado. Impulsividade, gestos ou ameaças suicidas, sentimentos de vazio, raiva intensa e ideação paranoide transitória também são sintomas caraterísticos do transtorno.

Porém, a classificação diagnóstica traduzida como Transtorno de Personalidade Borderline, guarda certas diferenças daquilo que, atualmente, tem sido descrito como fenômenos borderlines clinicamente observáveis. Nesse sentido, existem dois usos psicanalíticos principais do termo, um deles enraizado na psiquiatria (Kernberg, 1987Kernberg, O. F. (1982). Self, ego, affects, and drives. Journal of the American Psychoanalytic Association, 30(4), 893-917.) e outro enraizado na prática psicanalítica. Aqui, nos dedicaremos ao segundo uso, visando compreender os estados borderline não apenas naqueles indivíduos que preenchem os critérios diagnósticos do transtorno referido no Manual. Tal como Fonagy et al. (2002/2004)Fonagy, P. et al. (2004). Affect Regulation, Mentalization and the Development of the Self. Other Press. (Trabalho original publicado em 2002). propõem, nosso objetivo é “elucidar o funcionamento mental de um amplo grupo de pacientes cujas experiências de pensar e sentir se tornam maciçamente desorganizadas no setting clínico, assim como em outros âmbitos” (p. 345; tradução livre).

Algumas descrições clínicas sobre o fenômeno borderline são propostas como características (Rey, 1979Rey, J. H. (1979). Schizoid phenomena in the borderline” In J. Le Boit, & A. Capponi (Eds.), Advances in the Psychotherapy of the Borderline Patient. Jason Aronson.): pacientes que regridem dramaticamente no tratamento psicanalítico, apresentando fenômenos próximos da psicose e que evocam intensos sentimentos no analista. Muitas vezes demonstram atitudes violentas em relação ao próprio corpo, o que indica uma predisposição a atuarem sobre o corpo e não sobre a mente. Fonagy et al. (2002/2004)Fonagy, P. et al. (2004). Affect Regulation, Mentalization and the Development of the Self. Other Press. (Trabalho original publicado em 2002). e Lyons-Ruth e col. (2004)Lyons-Ruth, K. et al. (2004). Attachament Studies with Borderline Patients: A Review. Harv. Rev. Psychiatry., 12(2), 94-104. compreendem os estados borderlines de acordo com as classificações de apego propostas por Bowlby (1969/1990)Bowlby, J. (1990). Apego e perda – Volume I: Apego. Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1969).. Para ambos, a personalidade borderline se desenvolve a partir de modelos funcionais internos vinculados ao apego desorganizado. Este tipo de apego foi categorizado por Main & Solomon (1990)Main, M., & Salomon, J. (1990). Procedures for identifying infants as desorganized/ disoriented during the Ainsworth Strange Situation. In M. Greenberg, D. Cicchetti, & E. M. Cummings (Eds.), Attachment During the Preschool Years: Theory, Research and Intervention (pp. 121-160). University of Chicago Press. e adicionado às outras categorias de apego propostas inicialmente por Bowlby (1969/1990)Bowlby, J. (1990). Apego e perda – Volume I: Apego. Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1969). e Ainsworth (1963Ainsworth, M. (1963) The development of infant-mother interaction among the Ganda. In Determinants of Infant Behaviour. Wiley. Vol. 2., 1967)Ainsworth, M. (1967). Infancy in Uganda: Infant Care and the Growth of Attachment. The Johns Hopkins Press.. De acordo com Main e Solomon (1990)Main, M., & Salomon, J. (1990). Procedures for identifying infants as desorganized/ disoriented during the Ainsworth Strange Situation. In M. Greenberg, D. Cicchetti, & E. M. Cummings (Eds.), Attachment During the Preschool Years: Theory, Research and Intervention (pp. 121-160). University of Chicago Press., o comportamento de apego desorganizado estaria associado a ambientes familiares de risco aumentado, como depressão materna, conflito conjugal ou maus-tratos infantis. Esse tipo de apego também se refere a comportamentos mais consistentemente associados à psicopatologia infantil, incluindo sintomas dissociativos no final da adolescência. De acordo com Wallin (2007/2015)Wallin, D. J. (2015). Attachment in Psychotherapy. The Guilford Press. (Trabalho original publicado em 2007)., o fator de maior relevância para o apego desorganizado não é a experiência traumática em si, mas sim como essa experiência foi ou não integrada ao self e compreendida.

Fonagy et al. (2002/2004)Fonagy, P. et al. (2004). Affect Regulation, Mentalization and the Development of the Self. Other Press. (Trabalho original publicado em 2002). propõem que a criança que desenvolve um padrão de apego predominantemente seguro, apresenta a capacidade de representar e reconhecer o que está na mente de seus cuidadores. Essa capacidade de representar estados internos depende da sensibilidade reflexiva do cuidador. “O conceito de afeto para a criança não surge da introspecção; pelo contrário, a expressão emocional do cuidador, congruente com o estado da criança, é internalizada e passa a ser sua ‘representação’” (Fonagy et al., 2002/2004, p. 349;Fonagy, P. et al. (2004). Affect Regulation, Mentalization and the Development of the Self. Other Press. (Trabalho original publicado em 2002). tradução livre). Ou seja, a representação das experiências pessoais combinadas à representação das reações do cuidador permite que a criança interprete e compreenda as exibições afetivas dos outros, assim como adquira a capacidade de controlar suas próprias emoções.

Winnicott em seu artigo “O papel do espelho da mãe e da família no desenvolvimento infantil” (1967/1975), reforça a importância da função de espelho que a mãe exerce junto a criança. Ao olhar para a mãe o bebê vê a si mesmo refletido. Entretanto, em determinadas situações, alguns bebês têm a experiência de não receberem o que estão esperando: “eles olham e não veem a si mesmos. Há consequências. Primeiro, sua própria capacidade criativa começa a atrofiar-se e, de uma ou outra maneira, procuram outros meios de obter algo de si mesmos de volta, a partir do ambiente” (Winnicott, 1967/1975, pp. 154-155Winnicott, D. (1975). O papel do espelho da mãe e da família no desenvolvimento infantil. In O brincar e a realidade (pp. 153-162). Imago. (Trabalho original publicado em 1967).). Sendo assim, na leitura de Winnicott, uma criança que não consegue encontrar seu estado atual espelhado, provavelmente internalizará o estado real da mãe como parte de sua própria estrutura egoica. Nesse campo, pesquisadores como Beebe, Jaffe e Lachmann (1992)Beebe, B., Jaffe, J., & Lachmann, F. (1992). A dyadic systems view of communication. In Skolnick, N., & Warshaw, S. (Orgs.), Relational Views of Psychoanalysis (pp. 61-81). Analytic Press., Tronick (1989), Meltzoff & Moore (1977Meltzoff, A. N., Moore, M. K. (1977). Imitation of facial and manual gestures by human neonates. Science, New Series, 198, 75-78., 1989)Meltzoff, A. N., Moore, M. K. (1989). Imitation in newborn infants: Exploring 27 the range of gestures imitated and the underlying mechanisms. Developmental Psychology, 25(6), 954-962. e Ekman (1992aEkman, P. (1992a). Are there basic emotions? Psychological Review, 99(3), 550-553., 1992bEkman, P. (1992b). An argument for basic emotions. Cognition and Emotion, 6, 169-200., 1993)Ekman, P. (1993). Facial expression and emotion. American Psychologist Association, 48(4), 376-379. desenvolveram trabalhos pautados na teoria da interação. Meltzoff e Gopnik (1993)Meltzoff, A. N, & Gopnik, A. (1993). The role of imitation in understanding persons and developing a theory of mind In S. Baron-Cohen, H. Tager-Flusberg, & D. J. Cohen (Eds.), Understanding other minds (pp. 335-366). Oxford University Press., baseados nas pesquisas de Ekman, afirmaram que “a imitação do comportamento fornece a ponte que permite que o estado mental interno de outro ‘se transporte’ para e se torne o próprio estado mental experimentado” (p. 358; tradução livre).

Em indivíduos que apresentam quadros tipicamente borderlines, confirmamos uma diminuição da capacidade de formar representações sobre os estados internos de seus cuidadores. Isso decorre de um modelo funcional interno pautado no padrão de apego desorganizado, no qual a figura de cuidado frequentemente responde à angústia da criança com uma atitude hostil. Essa atitude desencadeia um afastamento massivo da criança, fazendo-a experimentar sua própria excitação como um sinal perigoso de abandono. De acordo com Lyons-Ruth et al. (2004)Lyons-Ruth, K. et al. (2004). Attachament Studies with Borderline Patients: A Review. Harv. Rev. Psychiatry., 12(2), 94-104.:

Deste modo, a criança se protege defensivamente de ter que reconhecer a hostilidade ou o desejo de lhe fazerem mal que pode estar presente na mente dos pais. Na teoria de Fonagy, essa capacidade diminuída de formular representações mentais dos sentimentos e pensamentos de si mesmo e dos outros é responsável por muitos dos principais sintomas do TPB, incluindo um senso instável do eu, impulsividade e sentimentos crônicos de vazio. (p. 2; tradução livre)

A construção do padrão de apego é simultânea à constituição do self, e cada um desses processos influencia, preserva e enriquece o outro. Mais uma vez, Fonagy et al. (2002/2004)Fonagy, P. et al. (2004). Affect Regulation, Mentalization and the Development of the Self. Other Press. (Trabalho original publicado em 2002). afirmam que através dos sistemas de apego, a criança busca fora de si aspectos do ambiente que são contingencialmente relacionados às suas próprias expressões. Esse processo é o que forma as representações de self do bebê, as quais irão mapear aquilo que o autor chama de self primário ou constitucional. Se ele ocorre de forma satisfatória, a criança se encaminha para o desenvolvimento de um apego seguro, onde é capaz de ler e perceber os estados internos de seu cuidador. Em estados borderlines, o que se observa é que esse processo sofre a interferência de falhas muito primitivas, que incidem diretamente na construção desse self constitucional. Porém, Fonagy afirma a existência de um impulso biológico em todo o indivíduo para construir uma representação secundária do self constitucional. Ela ocorre mesmo quando a figura de apego é não reflexiva, negligente ou abusiva.

Nesses casos, o outro internalizado permanecerá como estranho e desconectado das estruturas do self constitucional. Além disso, em ambientes seriamente abusivos e de maus tratos, a parte estranha internalizada do self será persecutória e representará um perigo contínuo de automutilação e uma consequente falta de sensação de segurança de apego (Fonagy et al., 2002/2004, p. 358Fonagy, P. et al. (2004). Affect Regulation, Mentalization and the Development of the Self. Other Press. (Trabalho original publicado em 2002).).

Fonagy chama esse modo de representação secundária dos estados borderlines de representação alienígena,1 1 Do original, “alien representation” (Fonagy et al., 2002/2004). sobre a qual somam-se dois fatores: o estranho internalizado não está fundamentado ou ligado aos estados reais do self constitucional e ele representa uma ameaça persecutória ao self, o que motiva uma forte tendência defensiva de externalizar a parte alienígena do self, projetando-a nos outros. Portanto, quando o indivíduo se encontra sozinho, sentimentos de insegurança e vulnerabilidade tomam conta, em função da proximidade do self com a representação torturante e destrutiva da qual ele não pode escapar. Essa representação é experienciada de dentro do self e transforma-se em um mecanismo defensivo, clinicamente observável. O indivíduo inconscientemente se impede de organizar suas percepções e não consegue atribuir significado aos registros sensoriais. Essa proibição exerce a função de uma medida protetiva que o sujeito cria patologicamente para preservar a parte saudável do self e pode ser equiparada à personalidade falso self descrita por Winnicott (1960/1983a)Winnicott, D. (1983). Distorção do ego em termos de falso e verdadeiro self. In O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional (pp. 128-139). Artmed. (Trabalho original publicado em 1960).. Mais uma vez, toda a patologia psíquica é, antes de tudo, uma tentativa de restabelecer o equilíbrio interno mediado pelas relações, uma tentativa ineficaz de salvar o sujeito do colapso.

Mentalização e identificação projetiva: o manejo clínico dos aspectos não verbais

A partir do estudo sobre os fenômenos borderlines, a técnica psicanalítica atravessa modificações consistentes. As falhas no processo de simbolização abrem caminho para se pensar outros modos de comunicação presentes no diálogo analítico e redefinem a escuta clínica e a posição do analista. Bion (1962/1994)Bion, W. (1994). Uma teoria sobre o pensar. In Estudos psicanalíticos revisados. Imago. (Trabalho original publicado em 1962) e Ogden (1982/2004 )Ogden, T. (2004). Projective identification and psychoterapeutic technique. Oxford: Jason Aronson. (Trabalho original publicado em 1982)., ao conferirem valor comunicativo ao mecanismo de identificação projetiva, apontam para uma dimensão menos interpretativa do processo terapêutico e mais coparticipativa. Nessa mesma linha, Fonagy (2002/2004Fonagy, P. et al. (2004). Affect Regulation, Mentalization and the Development of the Self. Other Press. (Trabalho original publicado em 2002).; Fonagy & Target, 2006)Fonagy, P., & Target, M. (2006) The mentalization-focused approach to self pathology. Journal of Personality Disorders, 20(6), 544-576. acrescenta à discussão a noção de mentalização, que a nosso ver, estabelece a ponte entre as experiências sensoriais e a conquista da capacidade de conferir sentido a elas.

Originalmente, a criança aprende os significados emocionais das sensações que percorrem seu corpo através das manifestações corporais de sua figura de apego, que sintoniza com o bebê estabelecendo uma sensibilidade responsiva. O diálogo inicial é essencialmente corporal, as trocas afetivas são realizadas num corpo a corpo constante em que perguntas e respostas são formuladas por meio de ações e reações somáticas que comunicam e, pouco a pouco, ganham sentido e significado. Quando essa comunicação sintonizada é interrompida, a capacidade de regular as emoções torna-se comprometida e, dependendo da frequência e intensidade da ruptura, o indivíduo passa cada vez mais a vivenciar suas emoções apenas como sensações somáticas desprovidas de sentido. Ao falarmos sobre a capacidade de dar sentido às nossas sensações corporais estamos nos referindo à capacidade de mentalizarmos. De acordo com Fonagy (2008)Fonagy, P., & Target, M. (2006) The mentalization-focused approach to self pathology. Journal of Personality Disorders, 20(6), 544-576., mentalização é o processo através do qual damos sentido aos outros e a nós mesmos, implícita e explicitamente, através de estados subjetivos. Compreender o comportamento de outras pessoas em termos de pensamentos, desejos e sentimentos é uma conquista importante que se origina no contexto da relação de apego, ou seja, na possibilidade de olhar-se no outro e sentir-se conectado, compreendido e não ameaçado.

Nesse sentido, a função reflexiva — ou a mentalização — deve ser encarada como algo além do mundo representacional. Ela seria uma função simbólica específica que liga a teoria do apego às noções da psicanálise clássica como Bindung (Freud, 1911/2010cFreud, S. (2010c). Formulações sobre os dois princípios do funcionamento psíquico. In Obras Completas (Vol. X; pp. 108-121). Companhia das Letras. (Trabalho original publicado em 1911).), posição depressiva (Klein, 1946/1991Klein, M. (1991). Notas sobre alguns mecanismos esquizoides. In Inveja e gratidão (pp. 17-43). Imago. (Trabalho original publicado em 1946).) e função-alfa (Bion, 1962/1994Bion, W. (1994). Uma teoria sobre o pensar. In Estudos psicanalíticos revisados. Imago. (Trabalho original publicado em 1962)). Cada um desses conceitos, a seu modo, versa sobre os processos pelos quais o sujeito transforma certos estados internos experimentados de forma concreta e imediata, em algo tolerável de se pensar em um nível associativo.

Definimos mentalização como uma forma de atividade mental imaginativa principalmente pré-consciente, ou seja, interpretar o comportamento humano em termos de estados mentais intencionais (por exemplo, necessidades, desejos, sentimentos, crenças, objetivos, propósitos e razões). A mentalização é imaginativa porque temos que imaginar o que outras pessoas podem estar pensando ou sentindo; um indicador importante de alta qualidade de mentalização é a consciência de que não sabemos e não podemos saber absolutamente o que está na mente de outra pessoa. Sugerimos que um tipo semelhante de salto imaginativo é necessário para compreender a própria experiência mental de alguém, particularmente em relação a questões emocionalmente carregadas. Para conceber os outros como tendo uma mente, o indivíduo precisa de um sistema representacional simbólico para os estados mentais e também deve ser capaz de ativar seletivamente estados mentais de acordo com intenções particulares, o que requer controle atencional (Fonagy, 2008, p. 4Fonagy P. (2008). The mentalization-focused approach to social development.In F. Busch (Ed.), Mentalization: Theoretical Considerations, Research Findings, and Clinical Implications (pp. 3-56). The Analytic Press.).

Um importante aspecto observado em quadros borderlines é a interrupção desse processo, que resulta na diminuição da capacidade de pensar sobre estados mentais e criar relatos narrativos sobre os relacionamentos. Isso decorre, geralmente, da experiência traumática vivenciada no início ou no final da infância e acarreta prejuízos até mesmo na capacidade de identificar estados mentais associados a expressões faciais. A experiência traumática ativa o sistema de apego e a busca por segurança. Porém, quando a relação de apego é em si traumatizante, a excitação que provocou a busca torna-se ainda mais exacerbada, já que a principal figura não é capaz de oferecer o conforto e a proteção necessários. O trauma, portanto, se funda nas várias formas de dissintonia que acabam por constituir um modelo funcional interno pautado na ameaça de ser constantemente atacado, seja pelo ambiente, seja pelo próprio self.

Partindo do pressuposto de que o trauma se inscreve no indivíduo pela via sensorial, deixando sua marca mais profunda no corpo, nos parece clara a conclusão de que a expressão emocional do sujeito diante de determinadas situações insuportáveis guardará os resquícios e os traços dessas marcas corporais. As atitudes impulsivas voltadas para o próprio eu sinalizam, de acordo com Fonagy (2002/2004)Fonagy, P. et al. (2004). Affect Regulation, Mentalization and the Development of the Self. Other Press. (Trabalho original publicado em 2002)., a dificuldade que esses pacientes apresentam em controlar as excitações internas erigidas no campo das relações interpessoais primárias. Onde há uma diminuição da capacidade de mentalizar, as reações corporais assumem o seu lugar; onde a insegurança mental alcança dimensões insuportáveis, é o corpo que reage.2 2 A escola psicossomática de Paris desenvolveu uma compreensão diferente sobre a noção de mentalização, amplamente enraizada no ponto de vista econômico. Para Pierre Marty (1968, 1991) a mentalização seria uma capa protetora no sistema pré-consciente, com capacidade de prevenir a desorganização progressiva. Ele via a mentalização como a função que ligava as excitações pulsionais e as representações internas. Isto difere daquilo que Fonagy (2001) propõe. Para este último a mentalização não seria um processo intrapsíquico e sim a capacidade para estabelecer conexão entre os estados internos e a realidade externa, ou seja, a capacidade de perceber e dar sentido aos pensamentos e sentimentos dos outros e, consequentemente, os seus. As reações corporais surgiriam, portanto, das dificuldades interpessoais e não das regulações internas pautadas no binômio pulsão-representação. Elas não seriam consequência de uma insuficiência psíquica decorrente da incapacidade do sujeito em lidar com as próprias excitações, mas uma tentativa inconsciente de estabelecer novos equilíbrios entre os estados internos e o meio externo, no contexto das relações objetais. As atitudes de automutilação ilustram a tentativa de aliviar a pressão interna exercida pelas sensações igualmente insuportáveis. Diante da incapacidade de alcançar representações, como ideias e sentimentos através de estados mentais, eles se tornam representados no domínio corporal. “Sugerimos que as automutilações, em particular, são usadas para criar um senso de reflexão que normal-mente poderia ser intrapsíquico, mas que precisa ser estabelecido por algumas pessoas através de relações externas ou através de ataques físicos aos seus corpos” (Fonagy, 2002/2004, p. 406Fonagy, P. et al. (2004). Affect Regulation, Mentalization and the Development of the Self. Other Press. (Trabalho original publicado em 2002).; tradução livre).

Nessa mesma linha, os casos de anorexia nervosa apontam para a mesma tentativa de controlar no corpo algo que parece insuportável ou até mesmo impossível de mentalizar. Discutindo o caso da paciente Emma, Fonagy (2002/2004)Fonagy, P. et al. (2004). Affect Regulation, Mentalization and the Development of the Self. Other Press. (Trabalho original publicado em 2002). percebe que sua exaustiva tentativa de emagrecer não se relacionava com a ideia de se achar gorda, mas porque sentia que havia coisas inaceitáveis dentro de si que ela poderia controlar, manipulando sua dieta e seus níveis de insulina, ou mesmo se livrar delas induzindo estados hiperglicêmicos de confusão ou coma. A paciente mantinha-se horas sem comer ou beber na expectativa de conseguir ficar inconsciente e se livrar da um self alienígena (alien self), internalizado como produto da dissociação.

O manejo dos aspectos não verbais no espaço analítico é fundamental diante dos fenômenos borderlines, justamente por carregarem em sua origem as impressões sensoriais do trauma precoce. A projeção feita por esses pacientes das partes estranhas do self para fora de si é marcada pela manifestação corporal que a acompanha. Em seus diálogos com o analista o corpo protagoniza a cena, o que torna impossível para o clínico desviar-se de seu significado. Wallin (2007/2015)Wallin, D. J. (2015). Attachment in Psychotherapy. The Guilford Press. (Trabalho original publicado em 2007). pontua que “enquanto a consciência humana tem sido descrita como um ‘teatro da mente’ (ver Blackmore, 2004Blackmore, S. (2004). Consciousness: An introduction. Oxford University Press.), pacientes não resolvidos3 3 Do original “unresolved patients”. Esse termo é também utilizado para descrever o tipo de apego desorganizado, classificado por Mary Main (1985, 1995). Ele se refere a crianças cuja experiência traumática permanece não resolvida. frequentemente parecem viver em um ‘teatro do corpo’, no qual dissociação e ‘explosões psicossomáticas’ podem ser a única saída” (Wallin, 2007/2015, p. 304Wallin, D. J. (2015). Attachment in Psychotherapy. The Guilford Press. (Trabalho original publicado em 2007)., tradução livre).

É sobre esse solo que a teoria da clínica psicanalítica ressaltou a identificação projetiva como um modo de comunicação frequentemente utilizado por tais pacientes (Ogden, 1982/2004, 2004Ogden, T. (2004). Projective identification and psychoterapeutic technique. Oxford: Jason Aronson. (Trabalho original publicado em 1982).; Bion 1962/1994Bion, W. (1994). Uma teoria sobre o pensar. In Estudos psicanalíticos revisados. Imago. (Trabalho original publicado em 1962)). A única maneira que eles encontram de lidar com as introjeções é externalizando constantemente essas partes estranhas do self em outra pessoa. Sendo assim, a identificação projetiva é uma necessidade vital, que mantém o indivíduo protegido de suas partes perigosas e ao mesmo tempo conectado àquele que recebe suas projeções. No exercício dessa identificação em contexto analítico, dois eixos fundamentais são preservados para esses pacientes: a necessidade de proximidade de uma figura equivalente à de apego e a expulsão das sensações inomináveis e insuportáveis. A identificação do receptor com as partes projetadas do projetor promove um tipo de vínculo que, de certa forma, o protege do abandono total. A estratégia de manipulação observada na identificação projetiva não é apenas uma necessidade de estabelecer a continuidade básica das experiências do self, mas uma tentativa de evitar o abandono massivo e insuportável, ainda que pelas vias mais dolorosas.

Se partimos do pressuposto de que a busca pelo apego é um impulso biológico em direção à sobrevivência, a identificação projetiva torna-se para determinados pacientes a única forma de satisfazer essa necessidade. Eles clamam por uma relação que ofereça alguma sensação de segurança. Ainda que não haja uma intenção consciente nesse mecanismo defensivo/comunicativo, a manutenção de uma relação tóxica com o outro é melhor do que nenhuma relação, do que abandono aos seus próprios vazios. A constatação de Fairbairn (1940/1980)Fairbairn, R. (1980). Fatores esquizoides na personalidade. In Estudos psicanalíticos da personalidade (pp. 3-22). Interamericana. (Trabalho original publicado em 1940). de que todos somos, em maior ou menor grau, essencialmente esquizoides, marca uma concepção do psiquismo pautada na cisão constitutiva da mente que aqui se faz notar com clareza. Os fenômenos borderlines surgem a partir dessa dissociação básica, que pode muitas vezes se restringir a experiências sutis de ruptura, como uma dificuldade inicial de comunicação na relação primária (Beebe et al., 1992Beebe, B., Jaffe, J., & Lachmann, F. (1992). A dyadic systems view of communication. In Skolnick, N., & Warshaw, S. (Orgs.), Relational Views of Psychoanalysis (pp. 61-81). Analytic Press., 2000Beebe, B., Jaffe, J., Lachmann, F., Feldstein, S., Crown, C., & Jasnow, J. (2000). Systems models in development and psychoanalysis: The case of vocal rhythm coordination and attachment. Infant Mental Health Journal, 21, 99-122.; Tronick, 1989), ou remeter a traumatismos mais severos e recorrentes, que seriam fundadores de uma personalidade borderline.

As impressões sensórias deixadas pela dissociação básica permanecem no indivíduo como memórias processuais. O conhecimento relacional implícito guarda em seu bojo as experiências de conexão e desconexão fundamentais para a experiência constitutiva do self. Muitas vezes nos deparamos no contexto clínico, com pacientes que sofreram traumas posteriores, em uma idade já considerada madura no curso do amadurecimento emocional. A história comprova como esse núcleo é ativado diante da vivência traumática na vida adulta. No caso de sobreviventes de guerra, de sujeitos torturados, de refugiados ou de quaisquer outras situações que envolvam experiências imensuráveis de sofrimento, o núcleo que guarda a parte dissociada da personalidade será reativado e convocado a se manifestar. Nesse sentido, a vivência do trauma será sempre uma revivescência. Não é raro lidarmos com pacientes que atravessam certo momento borderline durante a análise. Pacientes que, em função de experiências traumáticas mais tardias se deparam com aspectos primitivos de sua personalidade reativados pelo trauma. Comumente, esses pacientes utilizam-se do mesmo mecanismo de identificação projetiva quando se aproximam das origens do conteúdo traumático.

O grande desafio para o analista permanece sendo o de lidar com a expressão corporal do trauma e do sofrimento de seus pacientes. Psicanalistas e teóricos do desenvolvimento reforçam a ideia de que há muito da experiência traumática que deve ser elaborada e traduzida no espaço analítico através da escuta e do suporte egoico do analista. Bion (1962/1994)Bion, W. (1994). Uma teoria sobre o pensar. In Estudos psicanalíticos revisados. Imago. (Trabalho original publicado em 1962), por exemplo, define a sua função alfa como uma função capaz de transformar dados sensoriais brutos (elementos beta) em unidades de experiência significativa (elementos alfa), que podem ser armazenadas como memória ao se ligarem no processo de pensar. Para Fonagy (2001, 2002/2004Fonagy, P. et al. (2004). Affect Regulation, Mentalization and the Development of the Self. Other Press. (Trabalho original publicado em 2002).; Fonagy & Target, 2006)Fonagy, P., & Target, M. (2006) The mentalization-focused approach to self pathology. Journal of Personality Disorders, 20(6), 544-576., o analista deverá proporcionar ao paciente a possibilidade de recuperar a capacidade de mentalização. Segundo Fonagy & Target (2006), “as consequências psicológicas do trauma, em um contexto de apego e talvez além, envolvem uma dissociação da mentalização e um ressurgimento de modos não mentalizantes de representar a realidade interna” (p. 569; tradução livre).

A tarefa de traduzir a experiência sensorial do paciente em termos de recuperação da capacidade simbólica é essencial no processo analítico. O analista, entretanto, diante da expressão psicossomática de seu paciente, deve estar atento não só ao que precisa ser traduzido sobre o passado traumático, mas também ao que aquilo representa na atualidade da relação terapêutica. Em outras palavras, o que está sendo dito sobre suas necessidades de proteção e proximidade no presente. De um ponto de vista etológico, o corpo revela muitas facetas das necessidades biológicas no aqui-e- agora, construídas sobre um passado filogenético evolutivo que equipa o ser humano para lidar com os perigos imediatos. Nesse sentido, a contribuição trazida pela etologia dialoga intimamente com aquilo que os psicanalistas relacionais apontam sobre o processo de simbolização. O que não pode ser simbolizado, metabolizado e mentalizado retorna pela via corporal, pela via ancestral.

Porém, ainda nos resta a questão: o trabalho do analista se resume a transformar em palavra todos os aspectos sensoriais e não verbalizados do paciente? Oferecer a possibilidade de construir uma narrativa para seus sofrimentos mais primitivos é sem dúvida um dos principais objetivos do tratamento analítico, mas tudo pode ser verbalizável? Apresentaremos a seguir a ideia de que há, em todo o indivíduo — e mais predominantemente em indivíduos marcados por traumatismos precoces — uma dimensão da experiência inacessível à fala, indizível e inominável, a qual deve ser preservada e trabalhada pelo analista.

O inacessível à fala: o corpo como ferramenta clínica de intervenção e cura

Pensar o corpo como ferramenta clínica de intervenção psicanalítica é também despojar-se de alguns paradigmas clássicos que colocam o corpo numa perspectiva muitas vezes limitante. Falar sobre corporeidade e experiências sensório-motoras no campo psicanalítico invoca críticas à técnica 17 clássica, que se pauta predominantemente na fala como veículo de transformação psíquica e relacional. A cura, para a psicanálise, transformou-se em um debate existencial: é realmente possível curar nossos pacientes das mazelas e sofrimentos emocionais aos quais estão invariavelmente submetidos? A psicanálise se inicia no campo científico trazendo o emblemático slogan da talking cure. A ideia de cura através da fala a definiria como uma ciência cujo objetivo principal seria curar os sofrimentos advindos da alma.

A cura em psicanálise acompanha pari passu a trajetória teórica em direção à perspectiva hermenêutica. Quanto mais ela se tornava uma filosofia da alma, menos voltada para a cura ela se mantinha. Ferenczi foi, sem sombra de dúvida, um dos principais responsáveis pelo resgate dos objetivos curativos da psicanálise. Em suas experimentações clínicas, ele radicaliza a técnica psicanalítica a ponto de ser taxado com um furor curandis. Para Ferenczi (1928/2011b)Ferecnzi, S. (2011b). Elasticidade da técnica psicanalítica. In Obras completas: Psicanálise IV (pp. 29-42). Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1928). o processo de cura do paciente dependeria da postura flexível do analista, no exercício do tato, na capacidade de sentir com, no entendimento da relação analista-paciente como um fenômeno dependente da construção de uma atmosfera de confiança. Todos esses aspectos trazidos por Ferenczi dialogam com as entrelinhas do discurso, com aquilo que não é dito, mas sentido pela díade e que ultrapassa a compreensão consciente. Tudo isso serve de base para aquilo que alguns psicanalistas (Stern et al., 1998Stern, D. et al. (1998). The process of therapeutic change involving implicit relational knowledge: Some implications of developmental observations for adult psychotherapy. Infant Mental Health Journal, 19(3), 300-308.; Lyons-Ruth, 1999Lyons-Ruth, K. (1999). The two-person unconscious: intersubjective dialogue, enactive relational representation, and the emergence of new forms of relational organization. Psychoanal. Inq. 19, 576-617.) chamam de conhecimento relacional implícito.

Essa ideia faz com que o fator representacional entre em cena, estabelecendo uma problemática dos mecanismos psíquicos. Em certo sentido, a psicanálise clássica pressupõe que o corpo é a base para que o processo de simbolização aconteça. A representação seria a forma como o psiquismo humano traduz as sensações corporais, fornecendo sentido àquilo que não passa de mera inundação pulsional. Na perspectiva dos teóricos relacionais, o corpo ganha novos contornos, assim como a noção de representação. Os aspectos não verbais da experiência inauguram um modelo de representação processual, amparado nas trocas e regulações sensoriais que a díade bebê-cuidador estabelece através dos ritmos corporais de cada um. Esses substratos permanecem implícitos e não se manifestam na vida adulta por meio da palavra. Conectar-se com o que há de incomunicável e não verbalizável no analisando exige do analista uma compreensão não só dos processos mentais, mas também dos processos corporais mais arcaicos aos da constituição do self.

Para isso, retomamos as contribuições de Winnicott sobre o verdadeiro self, mais especificamente sobre aquilo que o autor define como seu núcleo inviolável. De acordo com a formulação winnicottiana, a divisão do ego em termos de verdadeiro e falso self se origina das cisões provocadas pela relação do indivíduo com o meio que o circunda. A construção de um falso self patológico impede o indivíduo de experimentar sua existência de forma real. Ele opera como uma defesa contra as invasões externas e protege o sujeito não apenas do mundo, mas de si próprio. Na normalidade, o falso self pode variar em suas funções: desde promover as condições defensivas para que o self verdadeiro possa emergir até uma simples atitude de renúncia da onipotência, na qual a polidez, a amabilidade e a adequação social se constroem. “O falso self, se bem-sucedido em sua função, oculta o self verdadeiro ou então descobre um jeito de possibilitar ao self verdadeiro começar a existir (Winnicott, 1960/1983a, p. 135Winnicott, D. (1983). Distorção do ego em termos de falso e verdadeiro self. In O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional (pp. 128-139). Artmed. (Trabalho original publicado em 1960).).

O verdadeiro self é, por sua vez, o espaço do gesto espontâneo e provém “da vitalidade dos tecidos corporais e da atuação das funções do corpo, incluindo a ação do coração e a respiração” (p. 135). A concepção winnicottiana de verdadeiro self é enriquecida pela ideia de que há sempre um núcleo inviolável e incomunicável que será protegido a todo custo pelo indivíduo. A riqueza de detalhes que essa noção carrega é essencial para a nossa formulação sobre o inacessível à fala. Nas palavras de Winnicott (1963/1983b)Winnicott, D. (1983). Comunicação e falta de comunicação levando ao estudo de certos opostos. In O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional (pp. 163-174). Artmed. (Trabalho original publicado em 1963).: “sugiro que este núcleo nunca se comunica com o mundo dos objetos percebidos, e que a pessoa percebe que não deve nunca se comunicar com, ou ser influenciado pela realidade externa” (p. 170). A teoria da comunicação é essencial para Winnicott formular seu ponto de vista. Para ele a não comunicação é a base de toda a comunicação que se anuncia posteriormente na relação objetal e o que viabiliza essa passagem é a transformação concomitante da relação que o indivíduo estabelece com o objeto subjetivamente concebido e o objetivamente percebido. “Na medida em que o objeto é subjetivo, é desnecessário que a comunicação com ele seja explícita” (p. 166). Para ele, existe uma comunicação silenciosa e secreta com os objetos subjetivos que, em última instância, é significativa.

A ideia de Winnicott sobre o núcleo inviolável do verdadeiro self e da comunicação correspondente com o objeto subjetivo se conecta a pressupostos teóricos pautados na interação primária da díade (Beebe et al., 1992Beebe, B., Jaffe, J., & Lachmann, F. (1992). A dyadic systems view of communication. In Skolnick, N., & Warshaw, S. (Orgs.), Relational Views of Psychoanalysis (pp. 61-81). Analytic Press.; Tronick, 1989; Lyons-Ruth, 1999Lyons-Ruth, K. (1999). The two-person unconscious: intersubjective dialogue, enactive relational representation, and the emergence of new forms of relational organization. Psychoanal. Inq. 19, 576-617.). Ainsworth et al. (1978)Ainsworth M. et al. (1978). Patterns of attachment: a psychological study of the strange situation. Lawrence Erlbaum Associates Publishers., Main (1993)Main, M. (1993). Discourse, prediction and recente studies in attachment: implications for psychoanalysis. Journal of the American Psychoanalytic Association, 41, 209-244. e outros pesquisadores (Bretherton & Bates, 1979Bretherton, I., & Bates, E. (1979). The emergence of intentional communication. In I. Uzgiris (Ed.), Social Interaction and Communication During Infancy (pp. 81100). Jossey-Bass.; Bretherton, 1988Bretherton, I. (1988). How to do things with one word; The ontogenesis of intentional message making in infancy. In J. Osofsky (Ed.), Handbook of Infant Development (pp. 1061-1100). John Wiley.) comprovaram a existência de modelos processuais que guiam os diálogos afetivos entre os pais e a criança e exibem vários tipos de distorções e incoerências que a psicanálise dos modelos intrapsíquicos encarou como defesas. Desse modo, as falhas que ocorrem no diálogo com os substratos implícitos resultam na construção de defesas específicas, geralmente norteadas pela experiência sensorial. Para Van der Kolk (2014)Van der Kolk, B. A. (2014). The Body Keeps the Score: Brain, Mind, and Body in the Healing of Trauma. Penguin Books., “crianças que carecem de sintonia física são vulneráveis a bloquear o feedback direto de seus corpos, o lugar do prazer, do propósito e da direção” (p. 116; tradução livre).

Nossa perspectiva soma às noções de Winnicott e à teoria da interação o componente evolutivo trazido pela etologia. A construção de defesas ligadas ao conhecimento relacional implícito, circunscritas no âmbito das memórias processuais, aparecem como proteção às ameaças direcionadas ao núcleo do verdadeiro self. Quando ocorrem intrusões à necessidade do bebê de se retirar do contato direto, uma violação desse núcleo é sentida por ele em forma de ameaça. Essa experiência, se repetida insistentemente por cuidadores pouco conectados às necessidades de autorregulação do bebê, promove o desenvolvimento de um modelo funcional interno preparado para se defender contra a ameaça a esse núcleo. Formam-se então as defesas borderlines que dão origem à série de fenômenos borderlines explicitados anteriormente. O isolamento autêntico de Winnicott (1963/1983b)Winnicott, D. (1983). Comunicação e falta de comunicação levando ao estudo de certos opostos. In O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional (pp. 163-174). Artmed. (Trabalho original publicado em 1963). nada mais é do que a necessidade essencial de privacidade constitutiva de todo indivíduo, o estabelecimento de um território privado que precisa ser preservado. Nos casos mais graves “a comunicação silenciosa ou secreta com objetos subjetivos, tendo-se uma sensação de ser real, precisa sobressair periodicamente para restaurar o equilíbrio” (p. 167).

De acordo com a etologia (Vieira, 1983Vieira, A. B. (1983). Etologia e ciências humanas. Vila da Maia: Imprensa Nacional -Casa da Moeda.), quando o senso de privacidade é ameaçado, o indivíduo reage a partir de modelos filogeneticamente herdados. Esse enfoque é baseado nos três resultados “clássicos” de como o medo se manifesta em mamíferos e suas reações subsequentes, cujas possibilidades são: ataque (comparável à ameaça), fuga (comparável à retirada assustada do bebê) e congelamento (comparável ao comportamento dissociativo) (Vanderlinden et al., 1991Vanderlinden, J. et al. (1991). Dissociative experiences in the general population in the Netherlands and Belgium: A study with the Dissociative Questionnaire (DIS-Q). Dissociation, 4(4), 180-184.). No caso de pacientes que apresentam a predominância de apegos desorganizados, advindos de traumas não solucionados, o comportamento parental (assustado/assustador) inevitavelmente coloca o bebê em uma situação comportamental insolúvel, na qual a figura de apego se torna simultaneamente o refúgio de segurança e a fonte do alarme. Main & Hesse (2006)Main, M., & Hesse, E. (2006). Frightened, threatening, and dissociative parental behavior in low-risk samples: Description, discussion, and interpretations. Development and Psychopathology, 18(2), 309-43., chamam isso de situação de “medo sem solução” (p. 310), porque ela cria um insolúvel paradoxo de aproximação e fuga para o bebê.

Winnicott (1963/1983b)Winnicott, D. (1983). Comunicação e falta de comunicação levando ao estudo de certos opostos. In O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional (pp. 163-174). Artmed. (Trabalho original publicado em 1963)., ao falar sobre o papel do analista diante de casos de vivência somática extrema discorre sobre a necessidade de o analista suportar ainda ser um objeto subjetivo para o paciente. Nessas condições, o perigo residiria no uso da interpretação ao longo do processo terapêutico. Para o paciente que ainda concebe o analista como um objeto subjetivo, a interpretação pode transformar esse analista em um objeto perigoso, já que ela o aproxima demasiadamente rápido do núcleo inviolável do verdadeiro self, essencialmente silencioso e, em nossas palavras, sensorial. Winnicott continua sua explicação, dizendo que “nas pessoas, há uma necessidade de algo que corresponda ao estado da pessoa split [cindida] na qual uma parte do split [da cisão] se comunica silenciosamente com objetos subjetivos” (p. 167).

Estes indivíduos não só sofrem com as memórias de experiências trágicas e terríveis, mas também demonstram uma série de sinais e sintomas que consistem principalmente em respostas corporais a afetos desregulados. De acordo com Pat Ogden et al. (2006)Ogden, P. et al. (2006). A sensoriomotor approach to the treatment of trauma and dissociation. Psychiatric Clinics of North America, 29, 263-279., essas respostas nem sempre tem uma clara conexão subjetiva com fragmentos de sua memória narrativa. Estudiosos do trauma, de inúmeras correntes psicoterapêuticas, apontam para a necessidade de tratamentos que contemplem outras ferramentas além do diálogo verbal. Pat Ogden apresenta sua teoria sobre a psicoterapia sensório-motora, revelando a importância de manter a conexão do paciente com o presente através de técnicas baseadas no mindfulness. Ao manter o tratamento focado na experiência somática do paciente, observando atentamente o trauma na medida em que ele se manifesta através da frequência cardíaca, respiração e tônus muscular, o indivíduo é convidado a viver no ambiente protegido da análise, por meios sensoriais, aquilo que se petrificou na época do acontecimento traumático. Isso não significa expor o paciente a experiências similares à vivência traumatizante, tal como ocorreu com Ferenczi (1921/2011a)Ferecnzi, S. (2011a). Prolongamentos da “técnica ativa” em psicanálise. In Obras completas: Psicanálise III (pp. 117-135). Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1921). à época da técnica ativa, logo depois abandonada, ou como certas técnicas da terapia cognitivo-comportamental defendem. Expor o paciente a situações similares ao trauma é retraumatizá-lo e reforçar as defesas que se erigiram no curso de sua história de vida. Estar atento às sensações corporais é, ao contrário, convidar o paciente a percorrer as reações que seu corpo apresenta diante daquilo que não permite narrativa. O analista, nesse sentido, opera como um observador atento e não como um opressor tirânico.

Muitas vezes ouvimos de nossos pacientes: “nada do que eu diga vai traduzir exatamente aquilo que sinto neste momento no meu corpo”. Esta frase é o exemplo daquilo que nos aproxima cirurgicamente da problemática do trauma precoce e suas repercussões. Tais pacientes comunicam ao analista uma dupla mensagem: primeiro mostram como seu corpo reage de formas incompreensíveis e não traduzíveis; depois, expõem de forma sútil o medo de não serem compreendidos em suas sensações mais arcaicas: “se eu não posso traduzi-las, não as torno claras e você não pode compreender o que sinto, nem me ajudar”. Sentir-se pouco ou nada compreendido em seus movimentos de busca e retirada da relação, em suas manifestações corporais de ritmos, líquidos, expulsões e incorporações, faz com que o indivíduo desenvolva modelos internos pautados na extrema sensação de incompreensão. Ao mesmo tempo que se encontra inundado por essas sensações elas se tornam o objeto de sua desconexão com o outro. É notório que uma parcela grande de indivíduos borderlines manifesta uma enorme capacidade intelectual e carrega esse modus operandi para suas relações pessoais, inclusive com o analista. A intelectualização excessiva desses pacientes nada mais é do que uma reação ao medo de nunca serem essencialmente compreendidos, de se sentirem eternamente ameaçados pelas sensações que percorrem seu corpo, justamente por nunca terem experimentado uma verdadeira sintonia afetiva com seus cuidadores.

Considerações finais

O inacessível à fala é, por conseguinte, aquilo que o analista deve esperar, sintonizar com e compreender sobre o paciente. Para isso é preciso que o analista esteja atento ao que seu próprio corpo diz e aos caminhos contratransferenciais percorridos no processo analítico com cada paciente. Apesar de observarmos um alargamento cada vez maior das teorias sobre o enquadre analítico (Civitarese, 2008Civitarese, G. (2008). The Intimate Room: Theory and Technique of the Analytic Field. Routledge.; Ferro, 2009Ferro, A. (2009) Transformações em sonho e personagens no campo analítico. Rev. bras. psicaná. [online], 43(2), 89-107. ISSN 0486-641X.; Ferro & Basile, 2019;Ferro, A, & Basile, R. (eds.) (2019). The Analytic Field: A Clinical Concept. UK: Routledge. Ogden, 1994/1996Ogden, T. (1996). Os sujeitos da psicanálise. Casa do Psicólogo. (Trabalho original publicado em 1994).) — onde o corpo ganha novos significados — as dimensões sensoriais da contratransferência constituem um vasto e rico campo de investigação. O corpo do analista também responde e reage diante dos mecanismos defensivos do paciente. É com seu corpo que o analista também se conecta e acessa seus núcleos invioláveis, apenas implicitamente comunicáveis. Quando propomos a ideia de que existem conteúdos inacessíveis à fala, também contamos com a impossibilidade do analista de traduzir certos fenômenos. Muitas vezes, seus atos serão sentidos pelo paciente com menos barreiras do que a palavra.

De acordo com Van der Kolk (2014), a linguagem pode carregar consigo o milagre da cura, mas também a tirania implacável do afogamento intelectual, que desconecta o corpo do processo psíquico. Uma reação de surpresa do analista frente à narrativa do paciente, um olhar compreensível diante de um comportamento repetitivo, o abraço acolhedor, um aperto de mão assertivo, ou ainda um desconforto físico, uma irritabilidade momentânea e uma desatenção parcial, carregam grande valor comunicativo. O Sentir com ferencziano é, em última instância, sentir com o corpo, viver através de suas memórias processuais aquilo que o paciente precisa de companhia para viver. Essa dinâmica não acontece em detrimento da narrativa verbal. A verbalização dos conteúdos e experiências traumáticas é essencial, mas só se torna totalmente eficaz se os substratos para-representativos do paciente e do analista estiverem exercendo seu papel. Tal como nos mostra Civitarese (2008)Civitarese, G. (2008). The Intimate Room: Theory and Technique of the Analytic Field. Routledge.:

(…) a cura pela fala [talking cure] também parece assumir cada vez mais as características de uma cura pelo afeto [touching cure]; afinal, como sabemos, o que realmente cura são “palavras que tocam” (Charles, 2001; Quinodoz, 2002). Há um paradoxo aqui, como se o mais alto grau de simbolização — palavras que realmente atingem o coração do outro, que realmente movem o outro — acabasse se abolindo ao restabelecer um contato primitivo, primal, embora não físico, e então renascesse em um movimento contínuo de e para o objeto, de e para o corpo. (p. 49; tradução livre)

Kupermann, seguindo a lógica ferencziana, afirma que a perpetuação do silêncio sobre os episódios traumáticos sofridos eterniza os “mecanismos de desautorização traumática” (Kupermann, 2017, p. 53Kuypermann, D. (2017). Estilos do cuidado: a psicanálise e o traumático. Zagadoni.). Ao mesmo tempo, quando Ferenczi (1933/2011c)Ferecnzi, S. (2011c). Confusão de línguas entre os adultos e a criança. In Obras completas: Psicanálise IV (pp. 111-134). Martins Fontes. (Trabalho original publicado em 1933). reconhece que o traumatismo patogênico decorre de uma confusão das línguas faladas pelo par relacional, ele chama atenção para a necessidade de os analistas desenvolverem uma língua própria para aquilo que diz respeito ao inominável para determinados pacientes. Se existem memórias e sensações traumáticas insuportáveis, como deixá-las falar quando não há palavra para descrevê-las? Sobre isso, Kupermann recorda a ideia de Roland Barthes em relação aos efeitos contrários do testemunho traumático: “Obrigar a dizer pode ser tão violento quanto forçar a calar” (Kupermann, 2017, p. 54Kuypermann, D. (2017). Estilos do cuidado: a psicanálise e o traumático. Zagadoni.).

Quando levamos ao extremo a ideia de que traduzir as sensações e emoções violentas causadas pelo trauma é a única saída para a sua elaboração, deixamos de lado os efeitos danosos que daí podem advir. Assim como uma criança necessita que sua comunicação silenciosa seja respeitada pela figura de apego – em função do alto nível de estimulação sensorial à qual está exposta, interna e externamente – o paciente muitas vezes necessitará que o analista se comunique silenciosa e respeitosamente com experiências insuportáveis de lembrar. Sintonizar com as emoções mais arcaicas e sensoriais de nossos pacientes é permitir que eles vivam em análise o que lhes foi negado em outras circunstâncias e momentos de suas vidas.

O trabalho do analista, portanto, passa também por tentar oferecer ao paciente certas “ilhas de segurança” (Van der Kolk, 2014, p. 247) dentro de seu corpo. Isso significa ajudá-los a identificar partes corporais, posturas ou movimentos onde eles possam se alojar sempre que se sentirem presos, apavorados, com raiva ou perdidos e abandonados aos próprios terrores inomináveis. Pedir que eles reparem no que estão sentindo ao invés de pedir que falem sobre o que sentem pode ser uma técnica eficaz para determinados pacientes que atravessam momentos específicos do processo analítico. Para alguns indivíduos que parecem estar colapsados no silêncio, pedir que se sentem de forma ereta, que plantem seus pés no chão, que sintam sua respiração, ou ainda que simplesmente segurem a mão do analista por alguns minutos, pode servir como uma âncora que encontra um solo para se fincar. Esses movimentos auxiliam o sujeito a se reconectar com certas balizas necessárias ao enfrentamento de situações ameaçadoras. Da mesma forma que as mensagens de pânico visíveis nas bochechas, no abdômen, na garganta e na postura indicam que o indivíduo está próximo de algo insuportavelmente ameaçador. Intervenções como estas podem até mesmo atingir e se comunicar com o inacessível à fala, garantindo momentaneamente que o paciente se sinta menos aterrorizado pelo que emerge de dentro e pelo que porventura possa invadi-lo de fora.

Nessas condições o analista torna possível um movimento pendular entre estados de exploração e de segurança, entre a linguagem verbal e o corpo, entre a rememoração do passado e a sensação de estar vivo no presente. Essa oscilação cuidadosa prepara o terreno para a cura e resolução do trauma. A atenção flutuante do analista flutua também entre a prosódia verbal e a prosódia corporal desses pacientes, ambas preservando, enriquecendo e, muitas vezes, negando uma à outra. Usar as sensações corporais que comunicam estados relacionais como aliadas no tratamento, portanto, pode salvar o paciente da tirania sensório-motora a qual está submetido e criar ilhas de segurança onde ele possa existir.

Financiamento: Trabalho realizado com auxílio de Bolsa de Doutorado CAPES, da autora.

  • Financiamento: Trabalho realizado com auxílio de Bolsa de Doutorado CAPES, da autora.
  • 1
    Do original, “alien representation” (Fonagy et al., 2002/2004Fonagy, P. et al. (2004). Affect Regulation, Mentalization and the Development of the Self. Other Press. (Trabalho original publicado em 2002).).
  • 2
    A escola psicossomática de Paris desenvolveu uma compreensão diferente sobre a noção de mentalização, amplamente enraizada no ponto de vista econômico. Para Pierre Marty (1968,Marty, P. (1968). A major process of somatization: the progressive desorganization. International Journal of Psycho-Analysis, 49, 246-249. 1991)Marty, P. (1991). Mentalisation et Psychosomatique. Laboratoire Delagrange. a mentalização seria uma capa protetora no sistema pré-consciente, com capacidade de prevenir a desorganização progressiva. Ele via a mentalização como a função que ligava as excitações pulsionais e as representações internas. Isto difere daquilo que Fonagy (2001)Fonagy, P. (2001). Attachment Theory and Psychoanalysis. Other Press. propõe. Para este último a mentalização não seria um processo intrapsíquico e sim a capacidade para estabelecer conexão entre os estados internos e a realidade externa, ou seja, a capacidade de perceber e dar sentido aos pensamentos e sentimentos dos outros e, consequentemente, os seus. As reações corporais surgiriam, portanto, das dificuldades interpessoais e não das regulações internas pautadas no binômio pulsão-representação. Elas não seriam consequência de uma insuficiência psíquica decorrente da incapacidade do sujeito em lidar com as próprias excitações, mas uma tentativa inconsciente de estabelecer novos equilíbrios entre os estados internos e o meio externo, no contexto das relações objetais.
  • 3
    Do original “unresolved patients”. Esse termo é também utilizado para descrever o tipo de apego desorganizado, classificado por Mary Main (1985,Main, M., Kaplan, N., & Cassidy, J. (1985). Security in infancy, childhood, and adulthood: a move to the level of representation. Monographs of the society for research in Child Development, 50(1-2). 66-104. 1995)Main, M. (1995). Recent studies in attachment: Overview, with selected implications for clinical work. In S. Goldberg, R. Muir, & J. Kerr (Eds.), Attachment theory: Social, developmental, and clinical perspectives (pp. 407-474). Analytic Press, Inc.. Ele se refere a crianças cuja experiência traumática permanece não resolvida.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Jun 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    15 Mar 2021
  • Revisado
    03 Ago 2023
  • Aceito
    17 Out 2023
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