Resumos
Neste artigo, dedicado à problemática da adicção sexual em psicanálise, é mostrado inicialmente que a base de sua teorização se encontra nos primórdios da obra freudiana, no campo das neuroses atuais. Contudo, em estudos psicanalíticos posteriores, essa situação clínica tende a ser aproximada da perversão sexual. No presente texto é explorado o entrecruzamento desses dois quadros com o objetivo de identificar os pontos de convergência e divergência entre eles, sublinhando-se, no entanto, o caráter singular da adicção sexual.
Palavras-chave: Adicção sexual; perversão; compulsão; psicanálise
In this paper, focused on the problem of sexual addiction within psychoanalysis, the authors initially reveal that the basis of their theory can be found in the early days of Freud's work in the field of present neuroses. In later psychoanalytical research, this clinical situation tends to be considered close to sexual perversion. In this paper, the intertwining of these two clinical pictures is explored to identify points of convergence and divergence, emphasizing, however, the singular nature of sexual addiction.
Key words: Sexual addiction; perversion; compulsion; psychoanalysis
Cet article, consacré au problème de l'addiction sexuelle sous l'angle de la psychanalyse, démontre que la théorie à ce sujet est basée sur les premières œuvre de Freud, soit dans le domaine des névroses actuelles. Cependant, dans les études psychanalytiques postérieures, cette situation clinique aura tendance à être associée à la perversion sexuelle. Cet article explore les recoupements de ces deux cadres pour identifier leurs points de convergence et de divergence en soulignant, néanmoins, le caractère unique de l'addiction sexuelle.
Mots clés: Addiction sexuelle; perversion; compulsion; psychanalyse
En este artículo, dedicado a la problemática de la adicción sexual en la visión del psicoanálisis, se muestra, inicialmente, que la base de su teorización se encuentra en los inicios de la obra freudiana, en el campo de las neurosis actuales. Sin embargo, en estudios psicoanalíticos posteriores, esta situación clínica tiende a ser aproximada a la perversión sexual. En el presente texto, se estudia el cruce de estos dos cuadros clínicos con el objetivo de identificar los puntos de convergencia y divergencia entre ellos, subrayando, sin embargo, el carácter singular de la adicción sexual.
Palabras clave: Adicción sexual; perversión; compulsión; psicoanálisis
In diesem Artikel, der die Sexsucht in der Psychoanalyse thematisiert, wird zunächst gezeigt, dass die Basis dieser Theorie in den Ursprüngen der freudschen Arbeit über Aktualneurosen liegt. In späteren psychoanalytischen Studien wird dieses klinische Phänomen hingegen vermehrt der sexuellen Perversion zugeschrieben. Im vorliegenden Text wird die Verflechtung dieser zwei Perspektiven erforscht, um Überschneidungen und Abweichungen zu identifizieren. Dabei wird allerdings der einzigartige Charakter der Sexsucht unterstrichen.
Schlüsselworte: Sexsucht; Perversion; Zwang; Psychoanalyse
O objetivo do presente artigo é reconstruir alguns aspectos relativos à emergência da noção de adicção sexual na teoria psicanalítica. Para Décio Gurfinkel (1993), do ponto de vista da psicanálise, a adicção pode ser definida como “tentativa compulsiva à realização de uma ação, ação que se repete incessantemente e é dirigida a um mesmo objeto (ou tipo de objeto)” (p. 141). Pontua o autor que a base da abordagem psicanalítica sobre as adicções encontra-se, historicamente, na teoria da sexualidade.
A adicção sexual constitui quadro psicopatológico no qual a realização do ato sexual se impõe ao sujeito de modo compulsivo. Essencialmente, o sujeito é impelido a agir, a buscar a satisfação sexual, não importando as consequências a curto ou longo prazo. O adicto sexual ou sex-addict está continuamente obcecado pela busca de situações sexuais diversas: inúmeros parceiros, multiplicação de aventuras sexuais, assédio frenético, sexo virtual, consumo desenfreado de pornografia, masturbação compulsiva, frequentação de clubes de sexo, prostíbulos etc. (André, 2011). Essa adesão incontrolável a práticas sexuais revela em sua base graves prejuízos na economia e na dinâmica psíquica do sujeito adicto.
A obra freudiana oferece os fundamentos para uma apreciação desse quadro clínico, mas a tematização direta deste se encontra inicialmente nos estudos sobre a perversão sexual, os quais trouxeram à tona a problemática do sexo como possível adicção. Contudo, como nos empenharemos em mostrar ao longo de nossa reflexão, os registros da organização perversa e o do quadro adictivo, apesar dos pontos de convergência, não podem, no nosso entender, ser tomados como equivalentes entre si. Trata-se de explorar a questão do entrecruzamento dos quadros da adicção sexual e da perversão, examinando seus pontos de convergência e divergência, especialmente através das contribuições de Joyce McDougall (1995/1997) — buscando, em última instância, diferenciar os dois registros, elucidando a singularidade de cada um. Apesar de eventuais semelhanças no que concerne à economia psíquica, ou seja, aos aspectos quantitativos da vida sexual, os aspectos qualitativos que caracterizam a adicção sexual e a perversão nos parecem distintos.
Iniciaremos nossa investigação buscando na obra freudiana alguns subsídios para uma abordagem psicanalítica da adicção sexual, concentrando-nos nas noções de intoxicação libidinal e de compulsão à repetição. A primeira, própria às neuroses atuais, é paradigmática de uma vertente desestruturante, excessiva e não mentalizada da vida sexual. Já a última, referente ao segundo modelo pulsional, reviravolta teórica operada por Freud em 1920, oferece os fundamentos de análise do espectro de respostas defensivas elementares diante da ação do traumático no funcionamento psíquico.
A adicção sexual em Freud: da intoxicação libidinal à compulsão à repetição
Freud não se dedicou de modo sistemático ao tema das adicções, mas ao complexificar sua teoria da psicossexualidade, alcançando novas camadas de compreensão do funcionamento psíquico através dos conceitos de pulsão, princípio de prazer e, enfim, compulsão à repetição — mecanismo de funcionamento aquém do campo do sexual e do prazer —, ele ofereceu os elementos de base para a construção de uma concepção psicanalítica das adicções.
A noção do sexo como uma adicção foi sugerida por ele no final da década de 1890. Em 1897, em carta a Fliess, o fundador da psicanálise cogitou conceber a masturbação como “vício primário” do sujeito: “Comecei a compreender que a masturbação é o grande hábito, o ‘vício primário’, e que é somente como sucedâneo e substituto dela que outros vícios — álcool, morfina, tabaco etc. — adquirem existência” (Freud, 1897/1996b, p. 323). Apesar de essa ideia não ter sido propriamente desenvolvida por ele em publicações que vieram a emergir posteriormente, ela contém em sua essência aspectos importantes que auxiliam no exame do quadro que hoje é denominado “adicção sexual”.
A atividade masturbatória, do ponto de vista do “agir”, prenuncia novas perspectivas para a investigação psicanalítica, cujo ponto de partida pode ser situado na teorização sobre as neuroses atuais. Nos primórdios da teoria freudiana, essa teorização possibilitou uma primeira e elementar articulação entre sexualidade e adicção. A ideia principal se refere ao acúmulo de excitação sexual que não encontra descarga no campo psíquico, sendo análogo a um estado de “intoxicação libidinal”.
Freud (1894/1996a) postulou que o ingresso da excitação sexual na esfera psíquica desemboca na formação do afeto sexual. Este, por sua vez, vincula-se a representações, “dando vida” a elas. Diferentemente do que ocorre nas psiconeuroses, nas neuroses atuais — grupo que, inicialmente, abrange a neurastenia e a neurose de angústia — haveria uma falha nesse processo de transposição psíquica da sexualidade. Ou seja, a excitação sexual somática não se transformaria em estímulo psíquico (afeto sexual), ficando à margem do campo representativo.
“Logo ficou claro para mim que a angústia de meus pacientes (…) tinha muito a ver com a sexualidade”, escreve Freud (1894/1996a, p. 235). Na neurose de angústia, por exemplo, haveria acúmulo de excitação somática, de natureza sexual. Esse acúmulo “intoxicante” seria acompanhado de um “decréscimo da participação psíquica dos processos sexuais”, sendo o estopim para a emergência da angústia (Freud, 1895/1996c, p. 109).
Gurfinkel (2011) indica que “a gênese dos sintomas das neuroses atuais só pode ser qualificada de tóxica. Ou seja: há uma toxicidade da dimensão somática da libido que está ligada a um regime econômico do atual (…)” (p. 155). O autor lembra ainda que Freud, ao supor a existência de substâncias químicas de natureza sexual no organismo, fez explícita correspondência entre as mesmas e os efeitos do uso adictivo de substâncias psicoativas. Em relação à neurose atual e ao acúmulo de excitação correspondente é possível entrever que:
(…) nos detalhes de seus sintomas e (…) sua característica de exercer influência em todo sistema orgânico (…), mostram uma inconfundível semelhança com os estados patológicos que surgem da influência crônica de substâncias tóxicas externas e de uma suspensão brusca das mesmas — as intoxicações e as situações de abstinência. (Freud, 1917/1996f, p. 388)
Fora do âmbito do sentido e da história representativa pregressa do sujeito, a neurose atual é prototípica de estados psicopatológicos que não se enquadram no paradigma clássico da neurose e do recalque da sexualidade. O excesso de excitação sexual somática se converte em intensa angústia (neurose de angústia) ou em sintomas físicos (neurastenia) como pressão intracraniana, dispepsia, sensações de dor, estado de irritação em um órgão, enfraquecimento ou inibição de uma função, inclusive a sexual (Freud, 1895/1996c). Há emprego anormal da excitação. A etiologia dessa disfunção estaria literalmente na vida sexual corrente do homem ou da mulher: episódios de coito interrompido, relações sexuais insatisfatórias e frustrantes com o cônjuge, masturbação excessiva obstruindo a potência sexual na relação com a(o) parceira(o) sexual; entre outros padrões de comportamento sexual desfavoráveis. A libido, consequentemente, assume teor excessivo, tóxico e sem absorção psíquica.
Na adicção sexual, este mesmo excesso excitatório rende o sujeito em repetidas passagens ao ato que nunca atingem limiar satisfatório. Em comum na lógica de ambos os quadros está a intoxicação direta pela excitabilidade sexual somática que não encontra encaminhamento psíquico. Entretanto, como bem interroga Estellon (2002), ao contrário das neuroses atuais que acumulam tensão libidinal — amontoamento gerador de angústia e outros sintomas físicos —, como explicar na adicção sexual a misteriosa e indefinível alavanca que empurra o sujeito à insaciável tentativa de evacuação dessa tensão?
Ao sugerir que frequentemente casos de neurastenia tinham como causa principal a masturbação incontida, que extraía toda a potência sexual do sujeito, tornando sua vida sexual demasiadamente insípida, Freud (1898/1996d) propõe que o tratamento desses casos é similar ao dos toxicômanos, trazendo à tona a questão da abstinência: o médico precisa privar o paciente da masturbação imoderada com a finalidade de equilibrar os investimentos de sua força libidinal, restituindo-lhe a possibilidade de contato sexual “normal”.
No que tange aos métodos de tratamento, o sucesso da “abstinência”, tanto no caso das neurastenias quanto no das toxicomanias, seria apenas efêmero e superficial à medida que o médico se contenta apenas em privar seus pacientes da masturbação ou da substância narcótica, respectivamente, sem legitimamente preocupar-se com a fonte da qual brota a “necessidade imperativa” (Freud, 1898/1996d, p. 262). Em ambos os casos, Freud localiza a fonte desse impulso irrefreável no fator sexual.
Aqui, Freud (1898/1996d) chega ao ponto essencial de sua concepção sobre a relação entre sexualidade e adicção: a pesquisa psicanalítica evidencia que o uso crônico de narcóticos ou substâncias tóxicas serve como recurso substitutivo, direto ou indireto, para a falta de satisfação sexual. Com a inviabilidade de restituir uma vida sexual satisfatória — prazerosa e salutar —, inevitavelmente o paciente sofreria uma recaída, sendo novamente “arrastado” pela dependência.
Para fundamentar a sua descoberta dos fatores sexuais na etiologia de diferentes quadros psicopatológicos, Freud (1905/1996e) recorreu ao termo pulsão (Trieb), definindo-o como o “representante psíquico de uma fonte endossomática e contínua de excitação” (p. 159). Diferentemente dos estímulos exteriores que chegam ao organismo, as pulsões são estímulos de origem interna e ininterrupta. A ancoragem da pulsão no corpo somático é uma constante em sua obra. A ordem psíquica, tendo a força pulsional como motor para o seu funcionamento, seria um território aberto, enquanto a pulsão, por sua vez, seria uma espécie de instinto perdido, sem predeterminações e objetos fixos para alcançar a satisfação.
Quanto ao estatuto do objeto, pode-se dizer que o objeto da pulsão “é aquilo em que, ou por meio de que, a pulsão pode alcançar a sua meta. Ele é o elemento mais variável da pulsão e não está originalmente vinculado a ela” (Freud, 1915/2004, p. 149). O objeto é o que está contraposto ao sujeito, e não necessariamente é uma pessoa inteira, mas pode assumir diversas formas: determinada parte do próprio corpo ou do corpo alheio, um objeto inanimado, uma atividade, etc. É algo em direção a que o sujeito se lança, impulsionado pela pressão da força pulsional (Gurfinkel, 1993). “Ao longo dos diversos destinos, (…) o objeto poderá ser substituído por intermináveis outros objetos (…)” (Freud, 1915/2004, p. 149). De acordo com essa perspectiva, o problema das dependências patológicas estaria relacionado à fixação exacerbada a determinado objeto, indo justamente contra o pressuposto de sua contingência (Gurfinkel, 1993).
A primeira teoria das pulsões (Freud, 1915/2004), tendo como eixo o princípio de prazer-realidade, opôs a pulsão sexual à pulsão de autoconservação, oposição na qual as exigências da sexualidade colocariam em perigo a integridade do ego. No pano de fundo dessa lógica, está o funcionamento do princípio de prazer. Esse princípio, relacionado às exigências da sexualidade, regula os processos psíquicos, direcionando-os para a obtenção de prazer e evitação do desprazer. O princípio de realidade, por sua vez, expressa as exigências da realidade externa que frequentemente se sobrepõem ao princípio de prazer e aos imperativos da pulsão sexual, mas não os contradiz, servindo para uma adequação desses impulsos aos propósitos da vida social e cultural (Freud, 1920/2006).
Os impasses e limites do primeiro modelo para abarcar os fenômenos da vida psíquica em sua totalidade, especialmente os de cunho traumático, levaram Freud (1920/2006) a uma segunda teoria — que, apesar de não anular a primeira, possibilitou novas perspectivas de compreensão para os entraves do funcionamento psíquico. O questionamento sobre a predominância absoluta do princípio de prazer foi o fator-chave para a mudança. Isso porque a observação de situações de sofrimento psíquico onde se impunha a atualização compulsiva de experiências desprazerosas não poderia ser apropriadamente explicada pelo primeiro modelo. Ao avaliar esses fenômenos através de diferentes caminhos, especialmente o dos sintomas da neurose traumática, Freud (1920/2006) chega à noção-chave de compulsão à repetição. Nela, a insistente repetição de experiências penosas no plano psíquico, onde nenhuma obtenção de prazer pode realmente estar em jogo, não se confunde com os efeitos do desejo recalcado nem com as privações decorrentes do princípio de realidade. A compulsão à repetição expressa uma tendência “mais arcaica, mais elementar e mais pulsional do que o princípio de prazer, o qual ela suplanta” (Freud, 1920/2006, p. 148).
Todavia, essa compulsão a repetir já diz respeito a uma tentativa elementar de trabalho psíquico, sendo a resposta possível perante uma circunstância traumática. O trauma, nesse contexto, resulta de afluxo inassimilável de excitação, que cria grave perturbação no funcionamento psíquico, impedindo temporariamente a atuação do princípio de prazer. A compulsão à repetição, portanto, pode ser entendida como o esforço de “captura” e “enlaçamento” desse excesso excitatório traumático que não pôde ser assimilado (Freud, 1920/2006).
O processamento das excitações coloca-se como tarefa primordial do aparelho psíquico, sendo anterior à instauração do princípio de prazer — que depende desse “enlaçamento” das excitações psíquicas para entrar em execução e assim regular os processos psíquicos em direção à obtenção de prazer. As manifestações da compulsão à repetição exibem caráter “altamente pulsional” (Freud, 1920/2006, p. 159), pois sinalizam uma tentativa imprescindível de domínio das excitações — evitando, dessa forma, uma perturbação extrema do funcionamento psíquico, inundado por “excesso” pulsional. A partir dessa proposição, Freud chega a uma nova concepção de pulsão.
Numa linha de continuidade com essas descobertas, a pulsão é caracterizada em 1920 como “força impelente interna ao organismo vivo que visa a restabelecer um estado anterior que o ser vivo precisou abandonar devido à influência de forças perturbadoras externas” (Freud, 1920/2006, p. 160). Trata-se de uma força que se distingue em duas espécies: a pulsão de morte, que visa ao retorno a esse “estado anterior” — o estado inorgânico — e Eros, conjunto das pulsões de vida, que está continuamente realizando a renovação da vida, impedindo a inércia psíquica e a biológica. Cabe ressaltar que Eros reúne em seu conjunto as pulsões tematizadas no primeiro modelo: as sexuais e as de autoconservação.
O caráter regressivo, compulsivo e irredutível da repetição nos fenômenos de cunho traumático corresponderia justamente à essência da pulsão. Todavia, esse caráter regressivo seria próprio da pulsão de morte e não da sexual. “… O que ainda nos incomoda é o fato de não podermos provar, justamente no caso da pulsão sexual, a existência de um caráter de compulsão à repetição” (Freud, 1920/2006, p. 176). A sexualidade deixa de ser o protótipo para a definição de pulsão. Esse fato tem particular relevância numa leitura psicanalítica das adicções.
Conforme assinala Gurfinkel (1993), “sabe-se que Freud utilizou a compulsão à repetição como o primeiro modelo da pulsão de morte. E, curiosamente, a compulsão repetitiva é a própria marca da adicção” (p. 172). Para o autor (2011), a adicção é uma das figuras mais características da compulsão à repetição, em que o fenômeno se apresenta de forma extremamente crua e direta. Porém, como já havíamos indicado anteriormente, “ainda que se suponha que a adicção é pura compulsão à repetição, uma espécie de neurose atual (…), pode-se vislumbrar nela também uma função defensiva para o Eu” (Gurfinkel, 2011, p. 63). Em outras palavras, a compulsão à repetição não se confunde com o pulsional mortífero, pois é justamente uma tentativa de defesa e de domínio do ego perante o “traumático” da pulsão.
É importante observar que após a introdução do conceito de pulsão de morte, Freud desfaz a equivalência absoluta entre prazer e redução de tensão, enfatizando que o acúmulo de excitação pode ser sentido como prazeroso no psiquismo, assim como a diminuição da tensão pode ser sentida como desprazerosa. “(…) Muito embora prazer e desprazer estejam ligados a esse fator, não podemos mais associá-los de modo direto ao aumento ou à diminuição dessa quantidade de estimulação (…)” (Freud, 1924/2007, p. 106). O prazer e o desprazer dependeriam não apenas de um fator quantitativo, mas também de um fator qualitativo — que, por sua vez, Freud reconhece ser difícil de delimitar.
Não é difícil perceber que no panorama apresentado acima está essencialmente o embrião da problemática da adicção sexual, em que a atividade sexual se torna uma modalidade de defesa ante o traumático da vida psíquica, sendo regida pelo mecanismo da compulsão à repetição, trazendo à tona duas importantes questões: (1) quais seriam as determinações desse estado de submissão do sujeito aos imperativos do ato sexual?; e (2) qual seria a especificidade e a qualidade do prazer sexual nessa resposta particular à erupção excitatória?
Com o intuito de elaboramos tais questões, revisitaremos pontos fundamentais da obra de Joyce McDougall a respeito da proposição de “sexualidade adictiva”, tendo em vista o fato de que a autora foi a primeira pesquisadora no campo da psicanálise a articular a questão do exercício compulsivo da sexualidade com a noção de adicção.
O ato sexual como “mise-en-scène” nas perversões
Na literatura psicanalítica, a prática compulsiva da sexualidade foi primeira e principalmente tematizada pelos estudos sobre a perversão sexual. A primeira autora a se dedicar exaustivamente ao tema foi Joyce McDougall (1978/1992). Ao consultarmos a bibliografia sobre o assunto, identificamos certa indissociação entre os registros da organização perversa e o da compulsão sexual — fato que nos leva a indagar se poderíamos realmente tomar como equivalentes ambas as categorias. Ao separarmos um registro do outro, o nosso esforço se dirige a demarcar os pontos de semelhança e diferença entre perversão e adicção sexual, com o objetivo último de elucidar a singularidade da última nesse panorama. O exame dessa questão nos orienta em direção à fundamentação de quais seriam as determinações do estado de submissão do sujeito aos imperativos do ato sexual.
Ao se propor a examinar a economia psíquica da sexualidade quando esta cumpre a função de uma droga, McDougall (1995/1997) traça importante paralelo entre as sexualidades desviantes e as sexualidades adictivas, denominando-as respectivamente “neossexualidades” e “neonecessidades”. Para a autora (1982/2012), a sexualidade perversa não está referida apenas aos desvios no caminho para a satisfação sexual, mas sim a uma organização psíquica complexa e estável cujo propósito é o de reparar fendas profundas no processo de constituição narcísica. A autora, de certa forma inspirada pelo trabalho de Robert J. Stoller (1975/2012), enxerga nessa organização uma dimensão de particular compulsividade no campo da sexualidade.
Contudo, McDougall (1995/1997) mostra-se cautelosa com o uso do termo “perversão”, pois este constantemente leva o interlocutor a uma conotação depreciativa, implicando degradação da vida psíquica e sexual. Ela prioriza então a denominação “neossexualidades” para a categoria que abrange as práticas exibicionistas, voyeuristas, sadomasoquistas, fetichistas, entre outras. Busca, desse modo, não somente evitar julgamentos de valor atrelados ao uso do termo “perversão”, mas evocar algo semelhante a “neorrealidades” que certos pacientes frágeis ou psicóticos criam com a finalidade de encontrar soluções para o seu sofrimento psíquico (Pirlot, 2006).
Em conformidade com a proposta de McDougall, Eiguer (2010), em seu trabalho de pesquisa sobre as perversões, esclarece algumas imprecisões relativas ao tema. O autor destaca a importância do uso do termo para a compreensão de funcionamentos comuns a diferentes pacientes. A perversão, em sua estrutura inconsciente, seria a expressão generalizada de certa ausência de juízo ético, da ignorância do desejo do outro, do recurso ao mesmo dispositivo defensivo — a clivagem ou a negação —, da teorização de doutrinas que necessitam de confirmação pela prática, através de atuações compulsivas.
Mais significativamente, Eiguer (2010) menciona essas características como denominador comum de duas modalidades distintas de perversão: as perversões morais e as sexuais. As primeiras condizem com a noção de “perversidade”, nas quais se incluem a perversão narcísica, o sadomasoquismo moral, a mentira compulsiva (mitomania), a impostura, o jogo patológico, a piromania, a cleptomania, a predação moral etc. As perversões morais se expressam por meio de comportamentos de manipulação do outro, que o sujeito tenta dominar, utilizar, degradar ou depreciar. Ele é movido pelo prazer de fazer mal, pela malevolência, embora com frequência mostre-se superficialmente amigável (Eiguer, 2010).
Já as perversões sexuais, evidentemente, incidem na esfera do prazer sexual, por desvios de alvo e objeto, conforme Freud (1905/1996e) postulou em sua teoria clássica. Pode-se citar como exemplos o sadomasoquismo sexual, o exibicionismo, o voyeurismo, o fetichismo, a sexualidade de grupo ou grupal — échangisme —, a pedofilia, o travestismo, o frotteurisme, a bestialidade.
Um aspecto extremamente importante a ser destacado é o fato de que as perversões sexuais “tornam-se particularmente perniciosas quando existem em concomitância com a perversão moral” (Eiguer, 2010, p. 19; tradução nossa) — proposição que nos leva à seguinte premissa: não necessariamente uma perversão sexual é paralela a uma perversão moral. Nesse sentido, estamos atentos ao fato de que não obrigatoriamente a estrutura perversa da vida sexual esteja acompanhada de perversidade manifesta na relação do sujeito com o objeto. E vice-versa. Feita essa distinção, Eiguer (2010) afirma que não se pode esperar do perverso qualquer sentimento de culpabilidade, arrependimento e até mesmo vergonha, seja no campo da relação com o outro, seja no campo das práticas sexuais.
Seguindo essa lógica, para McDougall (1995/1997), no que se refere ao erotismo, “o único aspecto de uma fantasia que poderia legitimamente ser descrito como perverso seria a tentativa de impor a imaginação erótica a um outro que não consentisse nisso ou que não fosse responsável” (p. 192). Tratar-se-ia da circunstância onde
(…) um indivíduo impõe desejos e condições pessoais a alguém que não deseja ser incluído naquele roteiro sexual (como no caso do estupro, do voyeurismo e do exibicionismo) ou (…) seduz um indivíduo não responsável (como uma criança ou um adulto mentalmente perturbado). (p. 192)
A perversão sexual ou “neossexualidade”, por sua vez, não pressupõe obrigatoriamente esse aspecto de imposição das próprias demandas sexuais ao outro. Em última instância, McDougall sugere que apenas os relacionamentos poderiam ser intitulados perversos. Entretanto, apesar da ressalva, a autora não abandona totalmente o uso do termo “perversão”, independentemente do teor da relação com o objeto.
Fatores psíquicos tanto qualitativos quanto quantitativos desempenham papel fundamental nesse quadro: “os aspectos qualitativos se referem à estrutura psicossexual dinâmica do indivíduo, e os quantitativos ao papel da atividade sexual na sua economia psíquica” (p. 192). No que se refere à dimensão qualitativa, o aspecto de criação, de construção de algo distinto e particular que vem a reger a vida sexual do sujeito, é o fator substancial que vem definir as neossexualidades.
“Muitos desvios sexuais são verdadeiras criações” — afirma McDougall (p. 190). Em seus analisandos, a autora observa
uma variedade infinita de roteiros eróticos, inclusive travestismo, o uso de objetos e adornos fetichistas, jogos sadomasoquistas etc., que acontecem na qualidade de interlúdios em suas relações sexuais, talvez pondo fogo no prazer erótico dentro de um relacionamento amoroso estável. (p. 187)
Contudo, não é disso que se trata na organização sexual perversa. O que realmente a caracteriza é a criação de um roteiro, que aprisiona o sujeito em determinadas condições às quais ele precisa se submeter para desfrutar o gozo sexual. A singularidade de cada roteiro se constitui como condição sine qua non, peça única e imprescindível do teatro erótico que permite ao sujeito o acesso às relações sexuais. Ao descrever em seus relatos clínicos a sintomatologia de um exibicionista, de um fetichista e de um pedófilo, a autora observa:
uma característica que me impressionou nesses analisandos que tinham construído desvios complexos era que, frequentemente, eles eram incapazes — ou mesmo ficavam aterrorizados — de imaginar mínima modificação em seus roteiros ritualizados. Muitas vezes pareciam incapazes de devanear livremente a propósito de temas sexuais. (p. 190)
O universo fantasístico, cuja plasticidade é essencial para a consolidação do vínculo libidinal com o outro, apesar de precário, obedece a determinado roteiro simbólico, implicando algo próximo a uma mise en scène por parte do sujeito. Nesse campo, as relações sexuais exigem complicadas manobras, condições e figurinos, de modo semelhante às encenações teatrais. O gozo sexual é alcançado apenas mediante condições peculiares e fixadas.
Na argumentação de McDougall (1995/1997), as neossexualidades vêm responder a um conjunto duplo de problemas, os relacionados ao conflito edipiano e aqueles que incidem na esfera da sexualidade primitiva — as primeiras concepções da criança sobre o corpo erógeno, as estimulações corporais internas e externas, suas satisfações e frustrações arcaicas etc. Na perpetuação da cena neossexual, os conflitos que se instauram em ambos os níveis, em vez de serem elaborados, são continuamente recusados, rejeitados. Mantém-se assim, a duras penas, a homeostase narcísica e libidinal.
As neossexualidades constituem as soluções possíveis que o indivíduo, em sua vida infantil, foi capaz de forjar diante de comunicações parentais contraditórias e desencaminhadoras a propósito da sexualidade e suas manifestações: identidade de gênero, os papéis sexuais, as noções de masculinidade e feminilidade etc. Basicamente, são criações cujo objetivo principal é o combate a sentimentos avassaladores de perda de identidade e estados de vazio — luta continuamente perpetuada que, segundo a autora, desemboca em uma espécie de adicção ao sexo. “Um fator que pode caracterizar o perverso (…) é o fato de que ele não tem escolha, sua sexualidade é fundamentalmente compulsiva” (McDougall, 1978/1992, p. 55; tradução nossa).
Ao comentar a obra de McDougall, assinala Ferraz (2010) que o ato sexual perverso corresponde a uma mise-en-scène, equivalente à produção de uma castração lúdica, cujo objetivo é provar simbolicamente que a castração não é perigosa nem mutilante, mas sim prazerosa e até mesmo condição para o gozo. O aterrorizante medo de ser castrado passa a ser coercitivamente encenado para provar ao sujeito que o desfecho da situação é passível de ser alterado.
Não importam as contingências do cenário, do roteiro: se exige objetos específicos como chicotes e palmatórias; se vigoram atos como superficialmente dilacerar e estrangular o parceiro ou a si próprio na prática sexual; se exige uma perda de controle de órgãos como os esfíncteres ou do próprio feito do orgasmo; se exige humilhar ou ser humilhado pelo parceiro. Em todos esses casos, o ato sexual assume a significação inconsciente de triunfo sobre a castração.
O drama pode ser fantasiado e encenado sob formas diversas: uma punição materna ou paterna, a reprodução de uma castração narcísica ou pré-genital, e até mesmo a consecução de uma ameaça que coloque em risco o corpo ou a própria vida. Mas o triunfo nesse cenário reside no fato de que a meta da castração é apenas ludicamente alcançada (…) (McDougall, 1982/2012, p. 252; tradução nossa)
Na abordagem de McDougall, a problemática da castração assume caráter mais amplo, estando referida, em termos narcísicos, à perda da representação corporal em sua integralidade, à devastação do sentimento de identidade, ao esfacelamento do senso de coesão egoica — o que de modo algum anula a concepção clássica referente às angústias edípicas em torno da representação da perda do falo e suas nuances. Assim, o terror à castração, em sua face mais arcaica, estaria relacionado a fantasias de desintegração do corpo e morte biológica.
Para a autora (1982/2012), a pessoa “que cria uma perversão reinventou, de certa forma, a sexualidade humana em seus aspectos genitais e heterossexuais” (p. 251; tradução nossa). Contudo, essa nova realidade sexual não é alcançada sem custo ou reveses para o sujeito. “O ato que sustenta a nova teoria sexual está altamente carregado de angústia, experimentado como se possuísse uma força compulsiva fora de controle” (p. 252; tradução nossa). Mesmo que a compulsividade e a angústia se tornem erotizadas através do roteiro, o sujeito tem a impressão de que não escolhe nem domina suas manifestações sexuais. Portanto, é no contexto da perversão sexual que McDougall chega à concepção de “sexualidade adictiva” — termo cunhado e defendido por ela própria.
Empobrecimento do desejo na dinâmica pulsional do adicto
Segundo Gurfinkel (2011), a “sexualidade adictiva” se refere à instrumentalização direta do sexo como objeto de adicção, numa configuração perversa, sendo a modalidade de adicção sobre a qual McDougall mais se debruçou. “Ao se entregarem a façanhas sexuais frenéticas e compulsivas, tais adictos tratam seu parceiro menos como pessoa e mais como uma droga, ou seja, um objeto inanimado” (p. 404).
Ao retomar a teoria freudiana, McDougall (1995/1997) destaca as noções de apoio, autoerotismo e pulsão parcial, imprescindíveis para o entendimento do processo de emergência da pulsão sexual. O processo de apoio da sexualidade em uma função vital, no qual a pulsão sexual emerge ao destacar-se do objeto externo original — encontrando satisfação autoerótica antes de ser novamente empregada no objeto da realidade externa (Freud, 1905/1996e) — serve como ponto fundamental para a discussão sobre o que se torna problemático não apenas nas adicções sexuais, mas nas adicções em geral. Em relação às primeiras, McDougall (1995/1997) escreve:
À noção de neossexualidades eu acrescentaria a de “neonecessidades”, nas quais o objeto, o objeto parcial ou a prática sexual são buscados incansavelmente, à maneira de uma droga. Esses indivíduos vão recorrer apenas a objetos inanimados, eroticamente investidos (chicotes, algemas, sapatos etc.), ou a uma garantia adictiva de parceiros que correm o risco de ser tratados como objetos inanimados ou intercambiáveis. (p. 198)
Ao inserir as adicções sexuais no panorama das “neonecessidades”, McDougall (1995/1997) indica o empobrecimento do plano do desejo na dinâmica pulsional do adicto. A sexualidade perde grande parte de seu potencial fantasístico, tornando-se imperativa — via única e imprescindível para que o sujeito atinja níveis basais de estabilidade e segurança intrapsíquica.
Vale ressaltar que não se trata de um retorno ao plano da necessidade stricto sensu, já que estamos diante de um sujeito habitado pela força pulsional. Por esse motivo, a autora utiliza o termo “neonecessidade”, que nos remete a uma exigência que é da ordem do pulsional e, portanto, do psíquico, mas simula algo mais primário. E é importante ser considerado que no âmbito das “neonecessidades” — âmbito do pulsional — a demanda de satisfação é ininterrupta, não há esgotamento pontual como no caso das necessidades estritas.
McDougall (1995/1997) busca assim examinar a natureza do comportamento adictivo, observando primeiramente que a etimologia do termo “adicção” se refere a um estado de escravidão, de submissão do sujeito a algo que o excede em força e poder. Embora o adicto possa sentir-se escravizado, o objeto de sua dependência — álcool, substâncias ilícitas, drogas psiquiátricas, sexo e até mesmo outras pessoas —, é vivenciado inicialmente como essencialmente “bom”, tornando-se alvo de uma busca que é frequentemente sentida como a única que fornece significação à sua vida.
Em termos gerais, “a solução adictiva é uma tentativa de cura de si mesmo diante de estados psíquicos ameaçadores” (McDougall, 1995/1997, p. 202). O recurso à substância ou ao ato adictivo, quando criado ou descoberto, torna-se frequente com a finalidade de atenuar ou anestesiar vivências emocionais para as quais o sujeito não encontra outras vias ou modos de manejo. O recurso a determinado objeto ou ato adictivo tende a corresponder a períodos do desenvolvimento nos quais fracassou a integração dos objetos internos que cuidam e apaziguam as tensões pulsionais. É possível dizer que com a ausência de uma função de contenção bem interiorizada, o sujeito encontra-se sem anteparo diante das intensidades pulsionais.
Nessas circunstâncias, as práticas sexuais compulsivas vêm representar uma tentativa de impedir que a autoimagem narcísica, precariamente construída nos estádios iniciais de desencadeamento do psicossexual, se desintegre. Basicamente, o ato sexual é utilizado não somente para reparar a imagem narcísica fragilizada e dissipar sobrecargas afetivas, mas também serve como recurso para contrainvestir forças destrutivas que ameaçam o ego com o desmoronamento.
Os parceiros e os roteiros sexuais se tornam continentes para as partes perigosas e prejudicadas no indivíduo adicto, as quais, então, são dominadas de maneira ilusória, ao adquirir controle erótico sobre um parceiro ou por meio de um jogo de domínio dentro dos parâmetros de um roteiro sexual. (McDougall, 1995/1997, pp. 204-205)
Quando vinculado ao encontro com o outro, o desejo sexual inconscientemente desperta profundos temores, devido à precariedade de interiorização das funções maternas e paternas, o que denota a fragilidade dos objetos internos essenciais. Esta ausência de constelação identificatória dá margem a um vácuo interno, vazio simbólico que serve como brecha para a criação de soluções adictivas, cuja finalidade é dispersar o conflito psíquico e a dor mental.
Se nas neossexualidades o que está em jogo é a construção de um roteiro sexual específico — ligado ao conjunto de experiências infantis — cujo objetivo maior é fazer frente aos resquícios perturbadores da comunicação parental sobre questões relativas à sexualidade, nas neonecessidades a sexualidade é utilizada de forma compulsiva e desesperada, desempenhando precariamente o papel de uma função de contenção, não conquistada previamente pela interiorização de elementos apaziguadores provenientes da relação parental. Todavia, pensamos que, no caso da sexualidade adictiva, diferentemente das sexualidades desviantes, não há obrigatoriamente a construção de um roteiro particularizado para o exercício da vida sexual.
Reconhecemos que ambos os registros facilmente se confundem, pois nas “neossexualidades” o sujeito está submetido a determinado imperativo de gozo sexual — seja qual for o roteiro criado por ele. Já nas “neonecessidades”, apesar de não envolverem necessariamente um roteiro específico e asfixiante, pois o sujeito pode fazer uso de múltiplos recursos e atos para experimentar os prazeres da sexualidade, a compulsividade ligada ao uso dessas práticas acaba desembocando também em um circuito fechado, aprisionante. E, vale ressaltar, determinadas práticas sexuais desviantes, “neossexuais”, podem tornar-se adictivas para o sujeito, aproximando-o do registro de uma “neonecessidade”. Contudo, no último caso, o roteiro sexual construído está ancorado em significações inconscientes, possui alto valor simbólico, constituindo assim uma modalidade de organização subjetiva, diferentemente do ato adictivo — que apesar de ser uma resposta ao “disruptivo” da vida psíquica, não pode ser considerado um dispositivo organizador.
Independentemente de haver ou não um caráter de perversidade na relação com o objeto, a perversão é uma forma de estruturação psicossexual cuja economia psíquica frequentemente assume proporção de excesso, aproximando-a do registro de uma adicção. Nesse sentido, apesar da semelhança no que tange aos aspectos quantitativos, os aspectos qualitativos da organização perversa não podem ser estendidos de modo absoluto para os diferentes casos de sexualidade adictiva. Os registros são amplamente diferentes, o que não quer dizer que frequentemente não se entrecruzem.
Para McDougall (1978/1992), existem traços perversos de caráter comuns a diferentes estruturas, sendo as adicções e a delinquência seguramente comparáveis até certo ponto à perversão. “(…) Todas estas categorias clínicas têm algo em comum com o desvio sexual e podem ser diferentes métodos de resolução dos mesmos conflitos inconscientes básicos, mas falta-lhes a qualidade específica de erotização consciente das defesas” (pp. 55-56; tradução nossa).
Nessa direção, a ausência da construção de roteiro distinto e particular para fruição do gozo sexual, conjugada à questão da possível ausência de significação inconsciente vinculada à recusa da castração em seus níveis diversos — narcísico, pré-genital e genital — no cerne das atuações, talvez seja o fator determinante que possa vir a distinguir a sexualidade adictiva de uma perversão. Se no território da adicção sexual propriamente dita não podemos exatamente afirmar que há uma significação inconsciente regendo as práticas adictivas, qual seria o fator de base para as consecutivas passagens ao ato do adicto?
A “coisificação” do objeto na adicção sexual
“Abordar o frágil domínio da sexualidade e de suas diversas práticas no registro das precariedades não é anódino: mal assegurada, efêmera, sujeita à revogação, dependente do outro, a sexualidade é, por essência, precária” — escreve Vincent Estellon (2005, p. 63; tradução nossa). Todavia, o autor questiona em que aspectos as sexualidades adictivas seriam mais precárias que outras. A urgência da demanda, a dependência do efeito de gozo sexual, a pobreza da criatividade, o sentimento de não existir fora do terreno adictivo e o aumento de doses para atingir a tranquilização são elementos descritos como cotidianos nos “toxicômanos da sexualidade” (Estellon, 2005, pp. 63-64; tradução nossa).
No plano psicopatológico, ainda segundo Estellon (2015), a adicção sexual representa uma forma de “hipocondria das condutas sexuais, em paralelo a uma vida amorosa esvaziada, surda ao desejo e ao sonho” (p. 111; tradução nossa). Os órgãos sexuais seriam análogos a órgãos dolorosos, que reclamam e solicitam um cuidado jamais suficiente, dando margem à repetição compulsiva. Encarcerado pela lógica da desesperança e do desinvestimento do objeto sexual, na qual os parceiros a conquistar são intercambiáveis, o sex-addict parece não esperar nada do outro, apenas uma estimulação erógena do envoltório da pele, seus orifícios e suas saliências. “Esse ‘cuidado’ sexual (…) se efetua sobre um modo funcional, operatório e pragmático, sem calor afetivo” (Estellon, 2014, p. 152; tradução nossa). No máximo, um requisito mais ou menos “fetichizado” é exigido em termos de características físicas e estéticas do corpo do parceiro (tamanho do órgão genital, porte físico, determinada característica corporal, etc.), mas não se pode dizer que esse outro “coisificado” na prática sexual seja, de fato, idealizado.
A busca incessante por um objeto sexual, dessa forma, resulta em uma espécie de “troca-troca” desvairado, onde o parceiro existe para o sujeito apenas como um corpo sem rosto, sem história e sem importância, sendo facilmente descartado e substituído. As noções de duração, de conquista e de laço associativo se encontram aqui extensivamente suprimidas. Quando a relação de objeto chega a esse nível de precariedade, assinala Estellon (2015), não fica claro qual seria o motor inconsciente de tal busca “maníaca”, frenética: se seria o amor, o ódio, ou pura excitação. Sob o disfarce manifesto da sedução transitória do objeto haveria uma valência agressiva: “acoplar” se transforma em “abandonar”, “destituir” e, finalmente, em “destruir”.
Os próprios adjetivos utilizados na prática clínica para qualificar essas práticas não são triviais do ponto de vista do teor agressivo que comportam — como, por exemplo, “partir para a caça”. Cada corpo novo é um corpo a ser sacrificado para que a “caça” possa continuar. A sedução e a conquista do objeto seriam apenas disfarces para um uso particular e desumanizado do mesmo.
Quando esse objeto desaparece, o ego não é de forma alguma afetado. Isso faz com que ele não seja frio nem quente. Esta lógica desobjetalizante leva de maneira muito pragmática a uma utilização do objeto até o seu abandono-destruição na indiferença absoluta. (Estellon, 2015, p. 113; tradução nossa)
O esquecimento do objeto por parte do sex-addict, o desaparecimento de seus traços na memória psíquica, procede de um movimento de “assassinato psíquico” do parceiro, o qual deve desaparecer, tanto em sua singularidade, quanto em sua estraneidade. Não à toa, durante muito tempo os estudos psicanalíticos sobre a adicção sexual permaneceram atrelados à lógica da relação perversa com o objeto sexual.
A desconsideração muitas vezes traiçoeira do parceiro, a indiferença perante os seus aspectos singulares e subjetivos, bem como, frequentemente, dos riscos da contaminação possível via prática sexual, poderia ser entendida como traço de perversidade, mas a questão é, na verdade, bem mais complexa, porque o sex-addict não impõe, no sentido de forçar, suas demandas sexuais a ninguém; suas relações se dão em comum acordo com parceiros anônimos cujos nomes não serão lembrados no dia seguinte. Usualmente, não há coação ou violência manifesta contra o parceiro sexual.
Junto ao rebaixamento dos parceiros que coisifica, o sex-addict rebaixa sua própria sexualidade, porque é proibido amar e ser amado, é proibido desejar, experimentar e dividir afetos humanizantes. Fazê-lo “funcionar” requer que os parceiros se rendam às suas exigências, mas, sobretudo, que não se apeguem a ele (Estellon, 2015, p. 116; tradução nossa).
Vale questionar se, ao descartar compulsivamente os objetos, através de sua extrema destituição subjetiva, o sex-addict não se encontraria profundamente a eles aprisionado. O apelo ao sexo parece constituir uma retranscrição profunda e desconcertante de um sufocado apelo ao outro, mascarado nessa modalidade de prática, em que o verdadeiro encontro se revela impraticável.
Desvencilhada do universo da fantasia e do das trocas objetais, a prática sexual, por conseguinte, assume condição crua e abrasiva. A vida sexual termina por se apresentar amplamente insípida, frustrante e insatisfatória, o sujeito tendendo a ser consumido por sentimentos extremos de vazio, desespero e dor psíquica.
Considerações finais
Em sua dinâmica de funcionamento, a adicção sexual não pode ser confundida com um simples e excessivo exercício da sexualidade, mas traz, em sua base, a dimensão de “compulsão”, de resposta defensiva que é acionada diante da insistência de um excesso pulsional, correlativo aos limites egoicos de ligação, simbolização e representação de determinados elementos “intraduzíveis”.
Nas fronteiras da perversão, o exercício compulsivo da sexualidade na situação de adicção, contudo, tende a girar fora de qualquer circuito simbólico rigorosamente preestabelecido. A proximidade entre ambas as categorias psicopatológicas incide predominantemente nos aspectos relativos à economia psíquica da vida sexual, à proporção de excesso que essa atividade assume para a manutenção de níveis basais de equilíbrio psíquico tanto para o adicto quanto para o perverso. No entanto, os aspectos qualitativos que caracterizam a adicção e a perversão sexual não seriam equivalentes, já que a dinâmica da estrutura psicossexual em ambos os casos parece ser bastante distinta.
Como foi visto anteriormente, na perversão sexual ou “neossexualidade”, o imperativo que comanda o ato sexual é revestido de significações inconscientes altamente especializadas, tendo estreita relação com vivências traumáticas específicas da história pregressa do sujeito. Apresentando-se a partir de um certo “roteiro”, o ato sexual está permeado de significado, de sentido simbólico, a despeito do caráter compulsivo que possa vir a assumir. A adicção sexual ou “neonecessidade”, em seu sentido estrito, não pressupõe a execução de um roteiro fixado e particularizado para o exercício da vida sexual. Ocorre justamente o contrário, pois, nesse caso, a prática sexual tende a progressivamente se desvencilhar de coordenadas simbólicas significativas.
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Este artigo é derivado da tese de doutorado “Adicção sexual: um combate contra Eros?” (2017), realizada no programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, com o auxílio financeiro da CAPES, sob orientação da Profa. dra. Marta Rezende Cardoso.
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Financiamento/Funding: Pesquisa financiada pela Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES (Brasília, DF, Br) e pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq (Brasília, DF, Br) / This research is funded by the Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – CAPES (Brasília, DF, Br) and by the Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq (Brasília, DF, Br)
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Editores do artigo/Editors: Profa. Dra. Ana Maria Rudge e Profa. Dra. Sonia Leite.
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
Dez 2017
Histórico
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Recebido
12 Abr 2017 -
Aceito
08 Jun 2017