Resgatar o que foi perdido no mundo atual não é uma tarefa simples, pois demanda iluminar os fios entre os pontos cegos daquilo que já se transformou pela influência do capitalismo. Em Ecological Epistemologies and Spiritualities in Brazilian Ecovillages (2023), Luz Gonçalves Brito, doutora em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), consegue reacender a esperança de ver um mundo diferente, já muito vivido, mas corrompido pelas ideias hegemônicas alimentadas no capitaloceno (Cf. Giddens, 2002).
A desconstrução das dicotomias exercidas pelas ideias posteriores ao pensamento cartesiano fez com que separássemos coisas inseparáveis - como indivíduo e sociedade; pessoa e mundo; humano e natureza; corpo e mente etc. Tais relações (naturais) foram divididas por um projeto de modernidade que se preocupa em quebrar sentidos e valores ontológicos de uma coletividade. Nas palavras de Anthony Giddens,
a modernidade, pode-se dizer, rompe o referencial protetor da pequena comunidade e da tradição, substituindo-as por organizações muito maiores e impessoais. O indivíduo se sente privado e só num mundo em que lhe falta o apoio psicológico e o sentido de segurança oferecidos em ambientes mais tradicionais (Giddens 2002:38).
Esse projeto, elaborado pela hegemonia capitalista, criou um mundo em que existir se torna um ato solitário, resumido em trabalhar para viver. A consequência disso, hoje, é uma sociedade já adoecida pela obrigação de viver em um sistema cansado, mas que, graças à globalização, “as ações cotidianas de um indivíduo produzem consequências globais. Minha decisão de comprar uma determinada peça de roupa, por exemplo, ou um tipo específico de alimento, tem múltiplas implicações globais” (Beck, Giddens & Lash 1997:75).
Destarte, Gonçalves Brito está preocupada em entender como a autotransformação pregada pelas conceitualizações difundidas pelo movimento Nova Era1 reflete nas mudanças que ocorrem no mundo, em busca de valores já esquecidos. Assim, ela explora as influências da epistemologia ecológica - que, consequentemente, é também entendida como espiritualidade - nas Ecovilas, assumidas como comunidades sustentáveis com filosofias e políticas ecológicas. Além disso, entende-se que essas comunidades, ao rejeitar a visão de mundo dominante, engajam-se em outras formas de vida e construção de mundo, compreendendo e participando de uma existência interdependente (Ergas 2010:41) e relacional entre os seres que compõem o mesmo ambiente e sistema, adequando-se às questões ambientais e socioculturais (Kasper 2008:2).
Após o prefácio escrito por Tim Ingold, a autora inicia seu livro abordando as pautas motivadoras da pesquisa e contextualizando o ambiente no qual essas ideias tomaram forma. A obra está estruturada em quatro capítulos: o capítulo 1, “Explorando um labirinto fractal”, apresenta os temas centrais do texto, contextualizando o leitor e esclarecendo alguns pontos, mas ainda deixando questões em aberto para um aprofundamento futuro; o capítulo 2, “O caminho de Muriqui-Assu”, é dedicado mais especificamente ao início do movimento etnográfico da pesquisa; os capítulos 3 e 4, “Gaudya Vaishnavismo in Serra da Bocaina (Rio de Janeiro)” e “Gaudya Vaishnavismo in Serra da Mantiqueira (Baependi-MG)”, exploram as demandas do vaishnavismo, além de se aprofundar nas práticas ecológicas e debates espirituais que subsidiam toda a problemática do assunto. O livro ainda conta com um prelúdio e um interlúdio intitulados, respectivamente, “espiritualidade além da Nova Era” e “sociabilidade das galinhas”; e, finalmente, um desfecho: “Atravessando a membrana social”. É importante destacar as bases teórico-metodológicas da obra, descritas como “teorias fenomenológicas de Maurice Merleau-Ponty, Tim Ingold e Alfred Schutz combinadas com conceitos pós-estruturalistas das relações entre pessoa, mundo e sociedade” (:2).
O livro baseia-se na etnografia realizada pela autora durante sua pesquisa de doutorado em quatro ecovilas brasileiras: “Arca Verde, situada em Campos de Cima da Serra; Vrinda Bhumi, uma ecovila Vaishnava em Baependi-MG; Goura Vrindavana, uma ecovila Vaishnava em Paraty-RJ; e a Ecovila Projeto Muriqui Assu, uma ecovila secular em Niterói-RJ.” (:2). Todas essas ecovilas compartilham ideais e técnicas sustentáveis de existência ecológica, como a permacultura,2 a agrofloresta,3 e a bioconstrução4. Além disso, duas delas se assemelham na visão espiritual-religiosa, pois são comunidades conhecidas popularmente como Hare Krishna, que praticam o Vaishnavismo - o culto ao deus Vishnu, também conhecido como Narayana e fortemente relacionado ao deus Krishna (Oliveira 2009:2).
Durante a jornada, muitas discussões são abertas em torno da espiritualidade e da epistemologia ecológica, vistas como se fossem “duas correntes do mesmo rio” (:17). Em cada ecovila, Brito experimenta diferentes - porém análogas - vivências integrativas com o meio ambiente, além de conhecer pessoas cujas visões de mundo ajudam a incrementar a noção de que a Terra não nos pertence, mas que nós pertencemos a ela. Essas experiências a levam a enxergar o “sagrado imanente”
Em um artigo publicado por Brito em coautoria com Ruiz Chiesa, intitulado “Learning to walk with turtles: Steps towards a sacred perception of the environment” (Chiesa & Brito 2022), é possível compreender melhor a interpretação sobre o sagrado em sua imanência com a natureza. Os autores discutem a percepção do sagrado através da completa imersão ao ambiente. Usando o exemplo do olhar de uma criança - que ainda não tem a mente cheia de significados que influenciam sua percepção sobre as coisas - os autores defendem que uma conexão mais “cristalina” com o ambiente colabora com o sentimento de sacralização, permitindo a percepção de “toda a complexidade e as relações intrincadas entre os fios que amarram seres e coisas no mundo” (Chiesa & Brito 2022:183), gerando, assim, o sentimento de pertencimento e união com tudo que nos envolve a nível existencial.
No caminhar do texto, é possível compreender que as técnicas de integração com o ambiente, mencionadas acima, demandam um diálogo constante com a natureza, pois não seguem padrões indiferentes aos impactos ambientais. Foi preciso ouvir quais as necessidades e caminhos que possibilitariam uma coexistência com o entorno, percebendo as sugestões do ambiente quando se está integralmente conectado a ele. Um exemplo disso é a experiência de uma integrante da Ecovila Arca Verde com o cultivo de cenouras. Inicialmente, havia dificuldade de fazê-las crescer adequadamente, mas, após muitas tentativas e mudanças, as cenouras atingiram um tamanho satisfatório, mostrando que “é necessário prestar constante atenção ao crescimento de diferentes espécies, para que elas se ajudem” (:50). Brito, ao dedicar-se a ouvir o que o ambiente lhe comunicava, desenvolveu raciocínios críticos ao longo de sua jornada, principalmente contra a visão hegemônica que separa a natureza da humanidade e a explora sob o capitalismo, contribuindo para o agravamento das crises climáticas e ambientais, cada vez mais preocupantes.
É interessante observar as diferentes nuances em cada comunidade. Harmonia coletiva com a natureza não significa estabilidade de movimento, mas fluidez. Poder observar as dificuldades que esse tipo de ambiente proporciona traz a sensação de verdade, de reconhecimento, ainda mais quando tais dificuldades são debatidas pela autora, mostrando assim uma correspondência com a compreensão de um mundo inteiramente conectado e em um movimento não linear, pois a coletividade expressa em cada comunidade não significa a falta de diversidade ou de diferença, mas a ressonância na movimentação de sua “malha”, como diz Tim Ingold (2015:148).
Ainda que tenha passado apenas alguns dias em cada ecovila - por razões não esclarecidas no texto - Brito acumulou informações suficientes para discorrer sobre o modo de vida e a percepção de mundo daqueles que lá vivem, além de refletir sobre o afetamento mútuo entre essas pessoas e o ambiente que as envolve. Podemos argumentar que a experiência da autora não chega a ser uma atividade empírica extensa e enraizada profundamente, perdendo um pouco do teor das clássicas etnografias. Mesmo assim, Brito foi capaz de estabelecer ideias do que é estar completamente imerso em tais atmosferas (Cf. Ingold 2000). Permanece, no entanto, uma lacuna sobre quão profundo poderia ter sido o estudo se a autora tivesse estendido sua permanência e imersão em cada espaço, proporcionando, tanto para si quanto para os leitores de sua obra, uma compreensão mais completa da proposta.
Ao considerar as ecovilas como um modo de integrar o ser-humano de volta à natureza, Brito demonstra uma compreensão perspicaz do real sentido das relações que cultivamos com o mundo que nos carrega, uma vez que a filosofia presente nesses espaços - influenciando e sendo influenciada pelas técnicas de convívio e subsistência - estimula a sensorialidade de cada um para focar no que existe no ambiente. Com isso, podemos compreender que o afastamento das dicotomias condicionadas pelo paradigma cartesiano é fundamental para resgatar as conexões empíricas que nos circundam, reestabelecendo a maneira sagrada de ser no mundo. A preocupação não está nos extremos, mas na conexão entre as extremidades. Brito, ao debater a mudança interior como forma de agir em um mundo que é inseparável da sociedade, reconquista a ideia da premissa “assim na Terra como no Céu” (:52), apontando para uma forma de viver em que a coletividade e a integração com a natureza sacralizam as existências presentes em tais espaços, criticando os efeitos individualistas desencadeados pelo capitalismo.
Ademais, a autora nos presenteia com sua poética, que além de criar uma estética textual, é extremamente didática ao transpor, por meio de metáforas e analogias, a profundidade de compreensão de um mundo que integra em si todas as coisas. Por fim, reconquistamos um relance de esperança - emaranhada com tantas outras sensações - que se apresenta ao terminar a jornada, alcançando uma maneira de ser-mundo, juntamente com a compreensão de agir em si, para, enfim, transformar o que as ideias hegemônicas tentam nos convencer de ser imutável e distante.
Bibliografia
- BECK, Ulrich; GIDDENS, Anthony & LASH, Scott. (1997), Modernidade reflexiva: trabalho e estética na ordem social moderna São Paulo: Unesp.
- CHIESA, Gustavo Ruiz & BRITO, Luz Gonçaves. (2022), “Learning to walk with turtles: Steps Towards a Sacred Perception of the Environment”. Environmental Values, vol. 31: 177-192.
- ERGAS, Christina. (2010), “A Model of Sustainable Living: Collective Identity in an Urban Ecovillage”. Organization & Environment, vol. 23, nº 1: 32-54.
- GIDDENS, Anthony. (2002), Modernidade e Identidade Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
- INGOLD, Tim. (2000), The Perception of the Environment: Essays on Livelihood, Dwelling and Skill Nova Iorque: Routledge.
- INGOLD, Tim. (2015), Estar vivo Petrópolis: Editora Vozes.
- KASPER, Debbie. (2008), “Redefining community in the ecovillage”. Human Ecology Review, vol. 15, nº 1: 12-24.
- OLIVEIRA, Arilson. (2009), “A Índia muito além do incenso: um olhar sobre as origens, preceitos e práticas do vaishnavismo”. Revista História em Reflexão, vol. 3, nº 5: 1-20.
- SOARES, André. (2007), Soluções Sustentáveis - Construção Natural. Ecocentro IPEC - Instituto de Permacultura do Cerrado Pirinópolis: Mais Calango Editora.
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IPOEMA. (s.d.), Conceitos de Agrofloresta Disponível em: Disponível em: https://ipoema.org.br/conceitos-de-agrofloresta Acesso em: 01/04/2024.
» https://ipoema.org.br/conceitos-de-agrofloresta -
UFSC. (2023), “O que é permacultura?”. UFSC Permacultura, 16 jun. 2023. Disponível em: Disponível em: https://permacultura.ufsc.br/o-que-e-permacultura Acesso em 01/04/2024.
» https://permacultura.ufsc.br/o-que-e-permacultura
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Permacultura é “considerada uma ciência socioambiental de planejamento de assentamentos humanos autossustentáveis, que evoluem naturalmente em relacionamentos dinâmicos e renováveis com o ambiente ao seu redor”. (UFSC, 2023).
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Agrofloresta pode ser definida como “um sistema de produção que imita o que a natureza faz normalmente, sem problemas com “pragas” ou “doenças”, dispensando o uso de venenos” (Ipoema, s.d.).
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A bioconstrução visa a utilização de materiais ecológicos, diminuindo o impacto ao ambiente através da adaptação de técnicas da arquitetura ancestral (Cf.Soares, 2007).
Datas de Publicação
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Publicação nesta coleção
16 Ago 2024 -
Data do Fascículo
2024
Histórico
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Recebido
05 Nov 2023 -
Aceito
30 Abr 2024