Open-access Comida de Criança: doces (e) ibejadas da umbanda

Children's food: the sweets (of) umbanda's ibejadas

Resumos

Resumo: As ibejadas são entidades infantis que, junto aos caboclos, pretos-velhos, exus e pombagiras, habitam o panteão da Umbanda. Em uma gira de ibejada, doce é comida, comida de Criança. Nos doces, funde-se o sabor à qualidade, o substantivo ao adjetivo - os doces alimentam e qualificam as entidades infantis e seus rituais. Neste artigo, veremos como suspiros, cocadas, frutas e bolos compõem um banquete que é minuciosamente preparado para homenagear as Crianças, entidades que se caracterizam pela alegria, pureza e doçura. Nas giras, a doçura não é apenas uma qualidade dessas entidades. Ela tem cheiro, gosto, sons, cores, textura, invadem nossas narinas e boca; e sentir toda essa doçura é sentir as Crianças.

Palavras-chave: umbanda; ibejada; doce; sinestesia.


Abstract: The ibejadas are child entities that, along with caboclos, pretos-velhos, exus, and pombagiras, inhabit the pantheon of Umbanda. In a gira of an ibejada, candies are food, Child’s food. In sweets, flavor merges with quality, the noun with the adjective - the sweets feed and qualify the child entities and their rituals. In this article we will see how suspiros, cocadas, fruits, and cakes make up a banquet that is meticulously prepared to honor the Children, entities that are characterized by joy, purity, and sweetness. As we will see, in the giras de ibejada, sweetness is not only a quality of those entities. The sweetness of the ibejadas has smell, taste, sounds, colors, they melt our hands, invade our noses and mouths; and to feel all this sweetness is to feel the Children.

Keywords: umbanda; ibejada; candy; synesthesia.


Doce

do.ce adj. [adjetivo] 1. Que possui sabor de açúcar ou de mel. 2. Temperado com açúcar, mel ou qualquer outro ingrediente sacarino (diz-se de alimento). 3. Que exerce nos sentidos uma impressão agradável por ser saboroso como mel; apetitoso. 4. fig. Que não é amargo ou que não amarga. 5. fig. Que agrada ao coração, ao espírito. 6. fig. Que apresenta suavidade; suave, sereno. 7. fig. Que se apresenta com tranquilidade; despreocupado, calmo (diz-se de situações, acontecimentos). 8. fig. Que se mostra feliz; alegre, ditoso, risonho. 9. fig. Que não é chocante, escabroso, pesado, violento: Doces sonhos da infância os que vivi naquele tempo! 10. fig. Que é terno, meigo, amoroso, carinhoso. 11. gír. Cujo funcionamento é perfeito; que não emperra (diz-se de uma engrenagem ou eixo de uma máquina, fechadura etc.). s. m. [substantivo masculino] 1. cul. Qualquer iguaria que leva açúcar, mel ou outra substância sacarina como ingrediente; guloseima, rebuçado. 2. Tudo que tem sabor de açúcar ou açucarado. 3. Aquilo que é agradável ao paladar em razão da doçura. 4. fig. Pessoa dócil, meiga, educada, carinhosa, obediente. (Michaelis [s. d.])1

Nas giras de ibejada, doce é comida que tem sabor de açúcar e que agrada aos sentidos de pessoas e entidades que fazem o ritual. Essas giras também são doces por serem alegres, risonhas e por agradarem ao espírito daqueles que se dirigem aos centros para ver e sentir as Crianças. Suspiros, cocadas, bolos e balas são doces que alimentam Pedrinhos e Mariazinhas, que com sua doçura, pureza e alegria encantam e cuidam daqueles que vão aos centros para cultuá-los. Neste artigo, veremos como, nas giras de ibejada, doces são substantivo e adjetivo que alimentam e qualificam as entidades infantis e seus rituais.

As ibejadas são entidades que junto aos caboclos, pretos-velhos, exus e pombagiras habitam o panteão umbandista. Se os caboclos são manifestação de espíritos de antepassados indígenas, pretos-velhos associados aos ancestrais negros, exus e pombagiras entidades das ruas e encruzilhadas; as ibejadas são os anjinhos,2 as entidades infantis da pureza, da alegria e da doçura. As ibejadas podem ser compreendidas enquanto manifestação de espíritos que desencarnaram ainda crianças, ou enquanto uma forma através da qual espíritos evoluídos se manifestam; em ambos os casos, estamos falando de entidades que se caracterizam e se apresentam de maneira infantil - e é assim que as compreendemos neste artigo.

De tal modo como não há uma única definição de quem são essas entidades, também não temos apenas um nome pelo qual podemos chamá-las. Ibejada - e seus correlatos ibeijada, beijada, bejada - erê, crianças; termos que podem ser acionados para nomear essas entidades infantis, mas nem sempre devem ser usados indistintamente. Em alguns casos, a distinção entre erê e ibejada é acionada para se falar nas diferenças entre religiões afro-brasileiras3 - de maneira mais abrangente e simplificadora, entre candomblé e umbanda. Erês seriam, nos terreiros de candomblé, compreendidos como orixás ou um estado de intermediário de transe; e ibejadas seriam entidades cultuadas nos centros umbandistas. Mas há também ocasiões em que o termo erê assume um caráter mais abrangente, nomeando as entidades e/ou manifestações infantis, tornando-se, por vezes, sinônimo de criança (Serra 1978:80).4

Aqui destaco dois termos: ibejada e Criança. Falo em ibejada para evidenciar que meu recorte é a entidade infantil do panteão umbandista e porque assim ela é chamada no centro onde realizei parte significativa de meu campo - e, por isso, não falo em bejada ou ibeijada. A inicial maiúscula em Criança é usada para ressaltar que estamos nos referindo a entidades religiosas e, nesse caso, infantis.

Joãozinho, Mariazinha, Ritinha, Sereinha de Iemanjá, Doum da Cachoeira, Pedrinho da Cachoeira, Flechinha da Mata, Rosinha da Cachoeira, Pedrinho da Praia, Folhinha da Mata, Mariazinha da Cachoeira, Raio de Iansã, Estrelinha de Xangô, Joãozinho da Cachoeira, Mariazinha da Beira da Praia, Rosinha da Cachoeira, Ventinho de Iansã, Rosinha da Pedreira, Crispim da Mata, Estrelinha do Oriente, Pedrinho da Praia, Caboclinho da Beira da Mata, Solzinho de Iemanjá, Doum da Cachoeira, Crispim da Cachoeira, Jandirinha e Moisés. Esses são nomes de algumas das Crianças que conheci pelas giras em diversos centros de umbanda do Rio de Janeiro.

O primeiro nome quase sempre está no diminutivo, e o sobrenome nos diz a quais lugares e entidades a ibejada pertence e particulariza a entidade.5 Nos corpos dos médiuns, as ibejadas se associam aos orixás que regem a cabeça de quem as recebe. Praia, Cachoeira, Mata, Oriente, Iemanjá, Iansã e Xangô são sobrenomes que identificam sob quais influências as Crianças trabalham. Aquelas que são de Iemanjá ou da praia atuam sob a energia das águas salgadas e do orixá que as rege, enquanto as da Cachoeira se aproximam das doces águas de Oxum. Oxóssi influencia as Crianças da Mata e quem é da Pedreira mantém relação com Xangô. Esse entrecruzamento de energias também é perceptível nas cores de roupas e brinquedos das ibejadas, onde percebemos que quem é da Praia gosta de azul, os da Cachoeira gostam do amarelo, cor relacionada à mamãe Oxum, enquanto o vermelho colore as coisas de quem tem uma relação próxima com Iansã ou com São Jorge e Ogum.

Ainda que consideradas uma das entidades centrais da umbanda, junto aos caboclos e pretos-velhos, as ibejadas costumam ser menos frequentes nos centros, estando mais associadas a datas festivas do que às atividades regulares.6 Nos calendários dos centros umbandistas, as giras em celebração às Crianças têm como referências os dias de São Cosme e São Damião (27 de setembro), o Dia das Crianças (12 de outubro) e o dia de São Crispim e São Crispiniano (celebrados em 25 de outubro). Entre setembro e outubro temos, portanto, um ciclo festivo em homenagem aos santos gêmeos e às (C)crianças. Para falar sobre como é preparada e vivenciada uma gira festiva em homenagem às Crianças, retomo minha experiência de campo em um centro de umbanda da zona norte carioca.

Em maio de 2005, Gregório e Marilene, sob o comando de Pai Joaquim e Vovó Cambinda, seus pretos-velhos, e apadrinhados por São Francisco de Assis, realizaram a sessão inaugural do Centro de Umbanda Caminho de Aruanda. O Cuca, como é chamado, é um centro localizado na zona norte do Rio de Janeiro, alinhado à chamada umbanda tradicional 7 e associado a centros e entidades fundamentais na história da umbanda no Rio de Janeiro, como a União Espiritista de Umbanda do Brasil (UEUB).8 Ele é formado por um expressivo número de médiuns (são mais de duas centenas) e tem um intenso calendário de atividades e ações caritativas que o tornam referência para a comunidade do entorno.

Enquanto nos demais centros as ibejadas aparecem somente uma vez no ano, no Cuca elas estão presentes pelo menos uma vez por mês, nas sessões de consulta, quando são chamadas para trabalhar,9 para falar e cuidar daqueles que procuram por sua proteção. Ao frequentar mensalmente o Cuca, pude me aproximar e conhecer melhor as Crianças. Neste artigo, no entanto, não nos debruçaremos sobre as sessões de consulta mensais, mas sobre a gira festiva de ibejada, ocasião anual em que as Crianças são chamadas para festejar, brincar e comer.10

Quem deseja cultuar, agradecer, pedir ou agradar as Crianças, oferece-lhe doces. Cocadas, pirulitos, suspiros, balas, bolos e frutas alimentam as ibejadas, são comidas de Criança. Como veremos, nas giras de ibejada doce é adjetivo e substantivo, utilizado em seus sentidos figurados e denotativos. Durante a gira, repleta de pessoas, entidades e coisas, podemos perceber como se misturam e se confundem sabores, cores, texturas e sons que nos permitem ver, degustar e ouvir a doçura das Crianças, que se espalha por doces e corpos açucarados.

Aqui, gostaria de considerar os doces tanto em sua materialidade quanto em seus sentidos e, assim, avaliar uma doçura que é simbólica, mas também sensível. O que aqui proponho é uma gustemologia 11 (Sutton 2010) das Crianças: apreendê-las a partir da doçura que caracteriza não só o que ingerem, mas elas próprias; doçura que é também colorida e melada, que consumimos e cujo excesso nos causa alegria e entojo. Os doces, portanto, nos permitem pensar as Crianças sinestesicamente.12

Em um primeiro momento, proponho pensar os doces enquanto comida, mais precisamente enquanto comida de santo, aproximando-os do dendê, do quiabo, da feijoada e demais ingredientes e pratos que compõem um sistema culinário das religiões afro-brasileiras (Gonçalves 2004). Em seguida, veremos como a festa é organizada na véspera, quando pude observar e aprender sobre os gestos e cuidados que preparam o banquete das Crianças. Por fim, veremos como os doces são dados, recebidos e compartilhados no dia 27 de setembro em dois momentos: na distribuição de saquinhos realizada à tarde e na gira festiva que ocorre à noite.

Santo come doce?

Os deuses são grandes comilões. Os mitos que relatam suas vidas estão cheios de comezainas pantagruélicas, de voracidade homéricas. Portanto não há nada de espantoso, quando penetramos no peji dos orixás, em ver ali a abundância de pratos, de cores ou de formas diversas, segundo os deuses e contendo iguarias saborosas. [...] Os deuses não são apenas comilões, mas também finos gourmets. Sabem apreciar o que é bom e, como o comum dos mortais, não comem de tudo. (Bastide 2001:331-2)

Doce é comida? Para alguns, doce é um agrado, um supérfluo, especialmente apreciado pelas crianças, que não é nutritivo e, por isso, não tem um real valor alimentar. Segundo Gonçalves (2004), o alimento estaria mais associado à fome e ao ato de suprir uma necessidade fisiológica, enquanto a comida se relacionaria ao paladar e à constituição de culturas e identidades. Nesse sentido, poderíamos dizer que, ainda que não seja alimento, doce é comida, e, como veremos, comida de (C)crianças.

Ao pensarmos nos doces enquanto comida de Criança, aproximamo-nos às chamadas comidas de santo. Na literatura sobre comida em religiões afro-brasileiras muito se fala sobre dendê, camarão seco, acarajé, quiabo, caruru, pimenta, feijoada, galinhas, bodes, cabras; mas e os doces? A pergunta, agora, se recoloca: doce é comida de santo?

Diversos autores já trataram das comidas feitas nas cozinhas de centros e terreiros, ofertadas aos pés dos congás, pejis, encruzilhadas, árvores; que alimentam orixás, espíritos, entidades e pessoas. Além das comidas serem centrais nos rituais das religiões afro-brasileiras, elas são também abundantes - mas não é porque se come muito que se come de tudo. Poderíamos pensar em sistemas culinários das religiões afro-brasileiras, considerando que,

Os “sistemas culinários” estão intimamente integrados a determinadas cosmologias, unindo a pessoa, a sociedade e o universo, e identificando a posição e o comportamento do ser humano nessa totalidade. As preferências alimentares, os modos de cozinhar, as formas de apresentação dos alimentos, as maneiras de mesa, as categorias de paladar ou gosto, todos esses elementos inter-relacionados compõem um código cultural por meio do qual mediações sociais e simbólicas são realizadas entre os seres humanos e o universo. Como estágios em um longo e complexo processo, esse sistema opera uma importante transformação simbólica da natureza à cultura, da fome ao paladar, do alimento à comida, e da comida às refeições, assim como opera mediações não menos importantes entre distintos domínios sociais e culturais. (Gonçalves 2004:47)

Tabus alimentares, preceitos nos preparos, ingredientes específicos, formas e utensílios próprios de fazer e servir, prescrições para o consumo; são todas questões pertinentes ao pensarmos em como as comidas circulam e alimentam entidades, espíritos, orixás, inquices, voduns, encantados e pessoas. Mesmo um visitante, em uma festa ou nas giras em terreiros e centros, perceberá a presença da comida - em um lanche ou refeição oferecidas nos intervalos ou ao fim da festa, pelas gamelas e travessas com diversos quitutes aos pés dos altares ou pejis, ou que são carregadas às cabeças dos filhos e filhas da casa antes de serem entregues às entidades. É difícil imaginar um ritual sem comida; e, de modo mais amplo, pensar nessas religiões sem tematizar suas comidas e seus sistemas culinários.

Além dos ingredientes, sabores e receitas, um sistema culinário também se caracteriza pelos modos de fazer, de apresentar, de comer. Nesse sentido, o caruru do cardápio do restaurante não é o mesmo ofertado a xangô - como diria Vivaldo da Costa Lima, “hoje, os homens comem a comida estilizada dos santos” (Costa Lima 1997:324). Desde a escolha dos ingredientes à forma de sacrificar e tratar dos bichos, passando pelas mãos eleitas para temperar, cortar e cozinhar, até os utensílios e as apresentações dos pratos na hora de servir; tudo isso singulariza uma comida e caracteriza um sistema culinário.

A comida é chave importante para entendermos o tipo de relacionalidade que vigora no candomblé - uma relacionalidade que envolve misturas, transformações, fluxos. [...] além de oferecer entrada à ontologia do candomblé, a comida é também porta de acesso à ética que lhe é própria: afinal o preparo, oferta, distribuição e consumo do alimento são definidores da complexa dinâmica de cuidado que modula a vida no terreiro. [...] os percursos da comida delineiam um campo de ação ética em que fruição estética e julgamento moral, exercício da agência e submissão, dispêndio de energia e entrega passiva são dimensões entrelaçadas e reversíveis. (Rabelo 2014:107)

Para nos falar melhor dessa abordagem que considera a comida chave para compreender ontologias e éticas próprias ao candomblé, Miriam Rabelo (2014) nos traz três rituais em que a comida, em distintos fluxos e formas, está presente. No ebó 13 feito para Iemanjá, as comidas eram passadas pelos corpos ajoelhados à beira do mar, e o que não ficava grudado ao corpo, era levado pelas ondas. No bori,14 há uma mesa repleta de comidas, como xinxim de galinha, acaçá, manjar de coco, frutas; que alimentam o ori - a cabeça, centro do ritual - sendo depositadas diretamente sobre a cabeça, e as pessoas que fazem parte do ritual, para quem são servidas as iguarias em pratos, de onde deve-se comer diretamente com as mãos. Nos assentamentos, as comidas são oferecidas aos pés dos orixás em louças e gamelas, em arranjos cuidadosos, que conferem beleza ao banquete servido.

Nos casos trazidos por Rabelo, podemos compreender distintos fluxos das comidas, que circulam por corpos, ondas, cabeças, mãos, pratos, mesas, gamelas e louças. Através da comida os laços entre orixás e pessoas, entre a pessoa e sua cabeça, entre pai ou mãe e filhos e filhas são estabelecidos e reforçados. As comidas mobilizam pessoas que são responsáveis pelo seu preparo e oferta, ambas atividades que requerem uma série de cuidados; e mobilizam também os orixás, que recebem, junto com as comidas que lhes agradam, os pedidos e agradecimentos daqueles que lhes alimentam. A comida nos rituais alimenta, embeleza, vincula, aproxima e distingue, e circula entre mãos, panelas, gamelas, louças, pratos, corpos, bocas, cabeças e nessa circulação vemos suas cores, sentimos seus cheiros, sabores e texturas.

Na umbanda, a comida parece não ter a mesma centralidade que no candomblé - ou pelo menos os antropólogos não dão a mesma atenção às comidas do centro como àquelas feitas nas cozinhas dos terreiros. Na literatura são menos detalhadas as referências aos banquetes das giras festivas, ocasiões muitas vezes marcadas pela fartura. Nos centros, as comidas também costumam ser abundantes, as mesas são fartas, os pratos servidos são cheios e é praticamente um interdito sair com fome de uma gira. Nessas ocasiões de festiva comensalidade, as portas dos centros são abertas e há expressiva presença de convidados.

O banquete é sempre um momento importante e concorrido, sobretudo em ambientes mais pobres, constituindo elemento imprescindível, mesmo quando não há grande fartura. A festa é também um momento de abertura do terreiro à comunidade mais ampla, contando com a presença de amigos e colaboradores. Torna-se assim uma oportunidade de reconhecimento público da casa, de seus dirigentes e das entidades sobrenaturais homenageadas. Fato a ser destacado nestas festas de terreiro é o montante de despesas efetuadas, e o luxo das vestimentas e das mesas de doce. (Ferretti 2011:246)

Vemos, então, que, a partir da comida, o centro também constrói sua reputação. A realização de giras festivas com fartos banquetes é uma forma não só de celebrar e cultuar as entidades, mas também de adquirir reconhecimento público e ser prestigiado. E, além de ser trabalhoso, o preparo desses banquetes é também custoso. É costume que, além de recolher as contribuições dos filhos da casa, sejam feitas campanhas de arrecadação de dinheiro ou alimentos para realização das giras. A comida é, portanto, coletivamente custeada, preparada e consumida; e no preparo e realização do banquete estreitam-se ou têm início as relações entre o centro e seus visitantes.

Vovó contava uma estória no meio de uma prece, ao mesmo tempo em que suplicava a Nosso Sr. do Bonfim em nome de sua audiência, os filhos de santo. Mas ao continuar sua estória, ela também lhes dizia que tinha sido seu suor escravo que havia temperado a feijoada que os alimentava física e espiritualmente naquela festa de preto velho. (Cardoso 2013:53)

Abril e junho são meses de feijoada nos centros de umbanda. A comida celebra e alimenta Ogum e pretos-velhos, nas giras festivas realizadas nas datas em que também são homenageados São Jorge e Santo Antônio. Catar o feijão, dessalgar as carnes, cortar a couve. As longas horas com os panelões, de ferro ou de barro, no fogão a gás ou a lenha, para o lento cozinhar do feijão e das carnes. Muitos quilos de arroz e farinha, dúzias de laranjas. O preparo da feijoada costuma levar muitas horas, e é realizado a muitas mãos, em sua maioria femininas. Antes de ser repartida entre todos, reza-se perante as panelas e, em muitas ocasiões, são as próprias pretas-velhas, auxiliadas por cambonos, que servem o prato que alimenta os corpos e espíritos de seus filhos e convidados (Fontes 2016).

Além das feijoadas para ogum e pretos-velhos, as festas de exu também costumam ser bastante cheias - de gente, de comida e de bebidas e cigarrilhas. Nessas ocasiões, as entidades costumam beber e fumar mais que comer, e a comensalidade é mais reservada aos momentos em que não se fazem presentes os exus e pombagiras, como intervalos ou mesmo ao fim da gira. Um churrasco ou mesmo um buffet self-service (Campos; Maia 2016) é o momento de celebração entre assistentes e médiuns, ao fim de uma noite de trabalhos.

Kosby (2015) nos fala sobre a oferta de doces aos orixás em terreiros do sul do Brasil.15 Com base em seus interlocutores, percebemos que os doces são ofertados como uma espécie de agrado. As grandes oferendas são, geralmente, compostas por comidas salgadas, vários animais e outros quitutes e os doces aparecem como um elemento extra, algo que é além do pedido, que ultrapassa a obrigação e reforça os afetos e a crença com e nos orixás. Os doces não são, portanto, centrais nas oferendas, sendo bem-vindos, mas não indispensáveis.

As giras de ibejada são um caso um tanto particular, pois a comida que circula nesses rituais por vezes nem são exatamente reconhecidas enquanto comida. Cocada, suspiro, bolo, pirulito, bala e frutas são alguns dos itens do cardápio das Crianças. Considerando que, como veremos mais adiante, o doce banquete das ibejadas é zelosamente organizado, seu preparo envolve uma série de cuidados e que há também entre os doces os preferidos e os interditos, doce aqui é comida - comida de santo, comida de Criança.

Nas giras de ibejada, os doces são a oferenda principal, e não são ofertados em pequena quantidade, mas em abundância. O doce é comida e não um agrado, um algo a mais. Estamos, portanto, falando em rituais em que doce é comida de entidades e pessoas; e, como veremos, os cuidados que devem ser dispensados com as demais comidas de santo, também envolvem os preparos do banquete das Crianças. Doces são comidas de ibejada, e entre setembro e outubro circulam abundantemente por centros e terreiros.

Preparando um banquete

Para que uma festa aconteça ela precisa, antes, ser preparada. No caso de uma gira festiva das Crianças, desde a lista dos ingredientes, passando pelas compras e preparo dos pratos, até a arrumação da mesa há uma série de etapas que envolvem cálculos, custos, trabalhos e cuidados que precisam ser considerados. Em nosso caso, a festa começa a ser preparada no início do mês de setembro, quando começam a anunciar, em todos os eventos do centro, que já está disponível no caixa a lista de contribuições para viabilizá-la. Há três maneiras de contribuir: doando uma quantia, oferecendo saquinhos de doces - que devem ser entregues já montados - ou tornando-se responsável por comprar algum dos itens da lista. Qualquer contribuição deve ser entregue até, no máximo, o dia 26 de setembro, véspera do grande dia; e a cada ano algum membro da casa fica responsável pela lista e por contactar aqueles que se comprometeram em ajudar.

Em 2016, constavam na lista os seguintes itens e quantidades: duas unidades de melão, seis mangas, dois quilos de pêssego, um quilo de ameixa, dois quilos de maçã verde e um quilo da vermelha, dois pratos de carambola, dois quilos de uvas roxa e verde, um quilo de goiaba, três dúzias de banana, duas caixas de fruta do conde, três pacotes de bananada, oito de jujuba, dois sacos de pirulito de coração, quatro de marshmallow, duas caixas de cocada branca e uma da preta, uma caixa de geleia, uma de doce de abóbora, dois sacos de balas coloridas, um quindim e havia ainda queijadinha, beijinho de coco, brigadeiro e docinhos cor de rosa em quantidades não especificadas. Dentre as comidas, percebemos que, além dos doces, as frutas também fazem parte do banquete. Na parte de bebidas, 24 litros de refrigerante de guaraná, oito litros de refrigerante de cola e outros oito de limão, e quatro litros de água de coco. Para os saquinhos, colocava-se na lista, ao lado do nome e telefone, a quantidade que seria dada - naquele ano foram arrecadados quase mil saquinhos.

Um item que não estava listado, mas que certamente estaria presente na festa eram os bolos. Contou-me Marilene, a dirigente do Cuca, que “sempre tem alguém que quer dar um bolo”, como forma de agradecimento ou em celebração do aniversário de sua Criança. Era preciso, então, estabelecer uma quantidade máxima para os bolos, que não deveriam passar de seis, e essa doação precisava ser autorizada pessoalmente pela dirigente da casa. No caso das comidas mais perecíveis, como o bolo, havia uma preocupação que a quantidade não fosse excessiva, para que não tivessem que jogar comida fora. Os doces e frutas que sobravam, quando isso acontecia, eram entregues a uma escola próxima, para a merenda das crianças. A intenção era fazer uma festa com muita comida, mas sem desperdícios.

O dia que antecede a festa é o dia de organizá-la. O salão é adornado com bolas e tecidos que colorem o espaço, o congá é reordenado, e os santos homenageados ganham destaque e flores. Na cozinha são preparadas as comidas feitas pelos médiuns do centro: alguns manjares, bolos e o caruru, a única comida salgada da festa. Na semana anterior à festa, quando perguntei à Kátia, médium responsável pelas arrecadações, a que horas eu poderia chegar para ajudar nos preparos, ela me disse que a partir das oito da manhã já teria gente no centro; mas quando fui falar com a dirigente, ela me disse para chegar a partir das 11 horas, e assim o fiz. Quando cheguei, ouvi sobre o preparo do caruru, mas não pude observá-lo. A comida já estava pronta e dava para sentir seu cheiro que vinha da cozinha. Contaram-me que ficaram responsáveis pelo corte dos cinco quilos de quiabo dona Marilene e sua filha, e duas médiuns cuidaram dos demais processos e do cozimento. As cozinhas e o cozinhar são espaços e atos envoltos em muitos preceitos e, por isso, mais reservados; não são quaisquer mãos que podem cortar os quiabos ou mexer as panelas, assim como não é todo mundo que pode circular nesse espaço. Sentada no corredor, eu esperava que me indicassem no que eu poderia ajudar.

Ao que parece, há alguns níveis de acesso às comidas. De modo mais geral, o fato de ser mulher permitiria uma maior, e mais rápida, aproximação da cozinha e do preparo da comida, lugar e trabalho majoritariamente ocupado e realizado por mulheres. No que tange às cozinhas dos centros e terreiros, ainda mais longe podem ir as filhas e médiuns da casa; nestes casos, além de uma distinção de gênero, é também considerada a hierarquia. Enquanto pesquisadora, mulher, porém (quase) estranha, coube-me ajudar na arrumação dos doces e frutas, que seria feita ali mesmo no corredor, junto à Cláudia e Carol, mãe e filha, que ainda não eram devidamente membros da casa, mas estavam em fase de conclusão do curso de formação;16 ou seja, meu lugar era fora da cozinha e junto às novatas.

Em um dos corredores laterais estavam dispostas duas grandes mesas e, sobre elas, várias sacolas, bandejas e cestas de vime. Sobre as mesas, oito bandejas de plástico, coloridas e com as bordas enfeitadas com um babado de papel crepom, onde iríamos dispor os doces. Até o momento tínhamos marshmallow, pirulitos, balas e jujubas; além de cocadas, pés-de-moleque e bananadas. Mesmo que ainda estivessem faltando muitos doces, era preciso dar início aos trabalhos - a maior preocupação era com a falta de doces brancos, e Mari (irmã da dirigente e comandante na organização das festas) já estava a ligar para os responsáveis. Os doces brancos - suspiro, cocada, manjar, maria-mole - são muito importantes nas celebrações do dia 27 de setembro, estando sempre presente nas giras e nos saquinhos. Além de doces, as Crianças são puras e nenhum doce as agrada e as representa melhor que os doces brancos.17

A princípio fiquei um pouco insegura para desempenhar essa tarefa e passei, então, um tempo a tirar as coisas das sacolas, rasgar embalagens, jogá-las no lixo, enquanto prestava atenção ao que elas faziam, para ter alguma ideia do que eu deveria imitar. A todo momento Carol perguntava à mãe se estava fazendo as coisas corretamente, sempre alegando não levar jeito para aquilo. Enquanto a filha queria simplesmente colocar os doces sobre a bandeja sem um arranjo específico, Cláudia insistia que tinham que arrumar as coisas direitinho, com jeitinho, para que tudo ficasse bonito.

Cláudia me falava que a falta de delicadeza de sua filha era por causa de seu orixá, Iansã, que queria fazer tudo rápido e não tinha paciência para esses detalhes. Por outro lado, a paciência de Cláudia, filha de Iemanjá, parecia ser infinita. Ela dedicava bastante tempo a arrumação de uma só bandeja, testando vários arranjos até que chegasse a um cujas cores e formatos estivessem de seu agrado. Nesse processo eu me aproximava mais da impaciência e da concepção de Carol, mas me esforçava para alcançar os padrões estéticos de Cláudia - o cuidado no manejo dos doces, a elaboração de um desenho na bandeja, formado a partir dos doces em seus diferentes tamanhos e cores.

Se havia uma minuciosa atenção à composição, poucos cálculos eram feitos, pois logo nas primeiras bandejas já tínhamos usado boa parte dos doces. Depois de quatro bandejas, alguns doces já tinham acabado - na verdade só restavam pirulito, bananada, algumas jujubas e balas. Estava difícil fazer algo bonito com isso, a bananada era muito escura, e as balas e pirulitos também não davam muita cor. Com os doces que tínhamos à disposição conseguimos, por fim, arrumar seis bandejas. Passaríamos, então, à arrumação das frutas nas cestas.

Nosso trabalho seria de adornar as cestas - com papel crepom e fitilhos coloridos fixados com cola quente. Mais uma vez, fui mimetizando o que Cláudia fazia, já que esta seria minha primeira vez decorando cestas. Se com as bandejas já estava aprendendo sobre como manejar os doces sem quebrar ou amassá-los, entendendo quais arranjos eram possíveis, agora precisaria fazer babados de papel crepom, laços com fitilhos; uma outra aprendizagem gestual. Cláudia seguia sendo tão minuciosa e cuidadosa como fora com as bandejas. Enquanto íamos arrumando as cestas, fomos conversando e acabei descobrindo que Cláudia trabalhava com decoração de festas - e finalmente entendi tamanha habilidade. Sua filha também a ajudava, mas sempre preferia trabalhos menos minuciosos e se dedicava à arrumação das bolas - e o mesmo acontecera naquela tarde, já que depois das bandejas Carol nos deixou e foi encher bolas no salão.

Depois que todas as cestas estavam devidamente enfeitadas, Cláudia chamou Mari para nos instruir sobre a arrumação das frutas. Primeiro, era preciso forrar o fundo com papel manteiga para que as frutas não ficassem em contato direto com as cestas, já que estas não estavam muito limpas e as frutas já estavam lavadas e prontas para o consumo. Além das seis cestas de frutas, utilizamos duas bandejas que eram para os doces, mas que não foram usadas. Eu fui arrumando as cestas e bandejas de forma autônoma, afinal, agora eu não contava com o exemplo de Cláudia, que ainda estava ocupada nos enfeites. A arrumação das frutas foi bem mais simples que a dos doces e acabei em pouco tempo - bom, pelo menos achava que tinha feito tudo, até Cláudia se aproximar. Ela desfez tudo que eu tinha arrumado, refazendo todas as cestas e bandejas para que ficassem mais adequados - ou do seu jeito. Ao fim, tínhamos sete bandejas de doces, uma cesta de bala de coco coberta com papel celofane, seis cestas e uma bandeja de frutas.

Enquanto estávamos arrumando as frutas, chegaram mais doces - queijadinhas, brigadeiros e beijinhos - que deveriam ser arrumados em duas bandejas. Cláudia rapidamente tomou para si a tarefa e pediu que eu fosse arrumando e limpando o corredor. Já passava das 19 horas, e tínhamos feito apenas um breve intervalo para o almoço. No salão, seis mulheres estavam a juntar em cachos as bolas que foram cheias durante a tarde. Pouco depois das 21 horas, os 48 cachos de bolas estavam pendurados sobre o salão e bancos de assistência, ainda tínhamos que limpar o chão e transportar para o salão as cestas e bandejas de frutas e doces, que ficariam num canto do salão, sobre o chão, cobertas por um grande tecido. Até as 22h30, quando deixamos o centro, o salão estava todo ornamentado.

Figura 1:
As Coloridas e Enfeitadas Bandejas de Frutas e Doces.

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As Coloridas e Enfeitadas Bandejas de Frutas e Doces.

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As Coloridas e Enfeitadas Bandejas de Frutas e Doces.

figura 4:
Os Doces, Frutas e Bolos aos Pés das Crianças

Pela descrição e fotos, compreendemos que o preparo do banquete envolve também a decoração do espaço e uma zelosa apresentação das comidas, atenta às cores, formas e simetrias. Cláudia repreendia a impaciência de Carol, explicando que arrumar os doces não era simplesmente colocá-los sobre a bandeja. O contínuo fazer e refazer era uma forma de testar diversos arranjos, até que se chegasse à melhor disposição possível, considerando as cores e formatos dos doces, além de garantir que cada bandeja tivesse uma composição singular. O banquete, além de farto, precisa ser bonito.

Para compor essa decoração é preciso, além de paciência, um olhar e um repertório gestual específicos, capazes não só de conceber, mas também realizar e avaliar os arranjos. Ondular fitilhos, usar cola quente, montar composições, encher bola, fazer cachos, pendurá-los ao teto, enfeitar bancos e paredes com panos coloridos, dispor flores sobre o congá; tarefas que envolvem a realização do banquete ritual, e que vão além do cozinhar. Há muito mais que comida em um banquete e, nessa ocasião, mesmo a comida não é apenas alimento, mas também decoração.

Como disse anteriormente, ao acionar o termo banquete, destaco algumas particularidades desse evento, uma delas o fato de pressupor uma relação, notadamente uma relação de reciprocidade (Mauss 2003). Um banquete é uma dispendiosa e trabalhosa oferta de uma pessoa a seus convidados (Benveniste 1969; Bataille 2013) e aqui estamos falando de um banquete organizado e realizado por um centro que agrupa pessoas que trabalham, custeiam e realizam essa oferta às entidades. Todos os esforços são empreendidos para agradar as Crianças, as principais comensais desse banquete. Os doces são arrumados em bonitas, coloridas e harmoniosas composições para que as bandejas e cestas sejam apreciadas e bagunçadas pelas ibejadas. Trabalho, cuidado e beleza são fundamentais para realizar esse banquete que alimenta, homenageia, reforça e atualiza os laços entre pessoas e entidades, de obrigação e agradecimento. “A gente tem esse trabalho todo, a cada festa, por eles”, disse-me Mari, apontando para o congá, depois de mais de doze horas de trabalho.

Dando, recebendo e compartilhando doces: uma gira festiva de ibejada

Depois de acompanhar como é preparado o banquete, veremos agora como os doces são dados, recebidos e consumidos no Cuca. No dia 27 de setembro, os doces circulam em dois momentos distintos: no início da tarde, com a distribuição de saquinhos, e à noite acontece o grande banquete, a gira festiva da ibejada. À tarde, podemos ver como as crianças interagem com Pedrinho, a Criança do dirigente, responsável pela distribuição dos saquinhos de doces. Nesse momento, doces são dados em troca de abraços, agradecimentos e sorrisos, ora gratos ora irônicos. À noite, quem mais come doce são as Crianças, as donas e principais convidadas do banquete. Na gira, podemos perceber que os doces nos permitem sentir as ibejadas não só pelo paladar, e a doçura das Crianças é vista nas bandejas que circulam pelo salão, ouvida no barulho do gás do refrigerante escapando da garrafa ao ser aberta, sentida no melado das mãos açucaradas.

Na segunda quinzena de setembro, a distribuição de saquinhos de doces com cartão é tradicional no dia 27 de setembro, uma modalidade geralmente eleita por quem deseja uma maior organização na hora da distribuição (Freitas 2015). Costuma-se distribuir os cartões nas semanas que antecedem a festa e no pequeno papelzinho informam o endereço e horário da distribuição, que no caso do Cuca seria, no próprio centro, entre as 13 e 15 horas.18

Em 2016, foram distribuídos 700 cartões e arrecadados quase mil saquinhos, sendo parte deles guardados para a distribuição à noite, ao fim da gira. O responsável pela entrega dos saquinhos às crianças era uma Criança: Pedrinho, a ibejada do dirigente. Pouco antes do início da distribuição, Gregório estava no salão, em frente ao congá, e no chão, à sua frente, um cabuletê19 e um copo e um pratinho azuis. Entoaram o ponto cantado de Pedrinho20 e, poucos minutos depois, ele chegou, saltitante. Pedrinho cumprimentou a todos, pediu bênção, e foi sentar-se no corredor de entrada, onde receberia as crianças e entregaria os saquinhos. Ao seu lado, uma toalhinha sobre a qual estava o seu copo, onde lhe serviram água de coco, um cacho de uvas verdes, um bolo de banana, além de seu cabuletê e um pandeiro.

Pedrinho recebia um por um, dava um abraço e beijava o saquinho antes de entregá-lo. Algumas crianças vinham acompanhadas das mães, que também ganhavam um saquinho e, quando Pedrinho gostava do abraço, dava um segundo saquinho, “pelo abraço apertado, toma mais um”. Poucas crianças se recusavam a abraçar Pedrinho, algumas que eram ainda bem pequenas pareciam ficar com medo, se afastavam e choravam um pouco, procurando consolo da mãe, que as acalmava e pegava por elas os doces. Uma menina, que devia ter uns cinco anos, estava na fila tranquilamente, mas quando viu Pedrinho saiu correndo e ficou lá fora, olhando assustada do portão. Pedrinho riu e mandou entregar um saquinho para ela lá fora. Além de abraçarem Pedrinho, as crianças o agradeciam pelo saquinho recebido - umas espontaneamente, outras depois de ouvirem de alguém a ordem “diz obrigado”.

Nesse momento de distribuição dos saquinhos, era interessante ver a interação entre as crianças e o Pedrinho. De maneira geral, é possível notar algum nível de estranhamento. Este pode ser tão grande a ponto de assustar a criança e fazê-la chorar, sendo passageiro, uma hesitação que acaba com o abraço e os doces recebidos. Mas mesmo aqueles que já abraçam sem hesitar, parecem, por vezes, ter uma mirada ressabiada, sobretudo os maiores. As interações oscilam entre um medo, que afasta, e um estranhamento, que permite uma aproximação ainda que desconfiada. Para muitos deles, não é comum ver um adulto falar e agir como uma criança, tornando a situação um tanto surpreendente. Quem tinha o cartão nas mãos sabia que a distribuição de saquinhos seria em um centro de umbanda, mas isso não significava, necessariamente, saber que iria receber os doces de uma entidade - é comum haver distribuição de saquinhos em centros de umbanda, mas nem todas são realizadas diretamente pelas entidades. No dia 27 de setembro, portanto, muitas pessoas vão a centros de umbanda atrás de doce e não para uma aproximação ou interação com entidades.

Nas giras de ibejada, é comum ter algumas crianças, acompanhando seus pais e até indo junto com eles fazer uma consulta. Mas, nesses casos, geralmente a interação entre Crianças e crianças parece ocorrer de maneira mais fluida, com interações menos hesitantes - talvez porque nesses casos a interação já esteja enquadrada, ao ir para uma sessão de consulta de ibejada já está previsto algum tipo de contato com as entidades. Outro fator é a presença dos pais. Na distribuição de doces, só eram acompanhadas pelos pais as crianças bem pequenas, ainda de colo; para as demais, pedia-se que entrasse sozinha. Já na consulta, nunca presenciei uma criança sozinha indo falar com uma ibejada.

As crianças parecem não reconhecer em Pedrinho uma outra criança, pelo menos não imediatamente. Nesse dia, vi poucas crianças que pareciam dominar os códigos de interação na umbanda, reconhecendo ali uma entidade, pedindo sua bênção e dando o abraço característico - um abraço cruzado, quando a cabeça se apoia sobre um ombro e depois sobre o outro. Para maior parte delas, era somente à medida que Pedrinho ia falando, rindo, fazendo brincadeira e mostrando seus brinquedos, que o receio diminuía e a aproximação era possível. Os sorrisos das crianças para Pedrinho pareciam expressar simpatia, agradecimento e, por vezes, um deboche; poucos pareciam denotar uma relação de devoção.

À noite, durante a gira, a situação é bastante distinta. O centro fica cheio, repleto de pessoas que foram até lá não só para comer doces, mas para estar com as Crianças - vê-las, cultuá-las, ouvi-las, senti-las. Na noite do dia 27 de setembro, todos os bancos do Cuca são ocupados, as pessoas em pé vão se espremendo nos cantos do espaço da audiência e pelo corredor, as filas vão até a calçada na rua; além de serem muitos os médiuns no salão. O espaço fica barulhento e abafado.

Logo antes da gira começar, é comum que o dirigente da casa se dirija aos assistentes. Costumam dar avisos de ordem prática - pedem silêncio e concentração, que desliguem os celulares -, apresenta novos membros da casa, agradece a presença de todos, dá informes sobre as próximas atividades e deseja uma boa gira a todos.

Os médiuns se organizam em fila e começam a adentrar o salão.21 Todos têm logo na entrada suas mãos riscadas com pemba,22 depois se dirigem ao congá, salvam as entidades e se espalham pelo salão. A gira festiva da ibejada tem uma particularidade: nessa ocasião é incentivada a participação das crianças do centro, que adentram o salão devidamente vestidas, com batas e saias ou calças, de mãos dadas com seu pai ou sua mãe.

O primeiro ponto cantado entoado é para o defumador.

Entrei lá na mata e pedi Que a Jurema desse folhas para mim (2x) Ela me deu e eu aqui estou Com as folhas da jurema fazendo defumador (2x) Eu defumo, eu defumo, vamos defumar Eu defumo, eu defumo, com as ervas de Oxalá

O ponto de defumador é entoado sem acompanhamento de palmas ou atabaque, repetido várias vezes, enquanto o defumador passa pelo salão, envolve os médiuns em sua poderosa fumaça e depois segue para assistência, onde todos devem “pegar” um pouco da fumaça para si - estendemos os braços, com as palmas das mãos voltadas para cima, em direção ao defumador e depois passamos as mãos sobre a cabeça e o corpo, nos envolvendo naquela espessa e cheirosa fumaça.

A defumação dá início à gira preparando o espaço e nossos corpos para o ritual, as ervas dadas pela Jurema têm o poder de limpar, de dissipar energias negativas. Por isso o defumador passa por todo o espaço e segue para a rua, levando o mal para fora, e lá fica até que a brasa apague. O início da gira, além de um som, tem um cheiro.

Quando aqueles que levaram o defumador retornam ao salão, batemos palmas e dizemos, “salve o defumador!”. Damos as costas para o congá e voltamo-nos em direção à porta.

Lá na beira do caminho Esse congá tem segurança (2x) Na porteira tem vigia à meia-noite o galo canta (2x)

Seguimos cantando sem bater palmas, e agora saudamos a porteira e seu guardião, Exu. O silêncio e a concentração que são pedidos desde que chegamos já vão nos afastando da rua e nos aproximando do momento sagrado do ritual. O defumador nos limpa, carrega as energias negativas e as leva para a rua. Agora voltamo-nos ao portão, esse lugar limítrofe, que separa a rua do centro, as energias negativas das positivas, o profano do sagrado; e saudamos quem o guarda.

Em alguns centros, notadamente aqueles cuja doutrina umbandista é mais próxima ao espiritismo kardecista, como no Cuca, algumas orações espíritas são enunciadas. Rezamos o Pai-nosso, a Ave-maria23 e a oração de São Francisco de Assis. Depois do defumador, da saudação a Exu e das orações, é chegada a hora de chamar as Crianças.

Papai me mande um balão Com todas as crianças que têm lá no céu Tem doce papai, tem doce mamãe Tem doce lá no jardim 1,2,3,4,5,6 Eu quero ver criança na cabeça de vocês

Esses são alguns pontos de chamada das ibejadas.24 Os pontos são repetidos até que as ibejadas comecem a chegar - ou seja, a chamada é repetida até que seja escutada e atendida, até que faça efeito. Há uma ordem para essa chegada, e primeiro vemos as Crianças dos dirigentes do centro. Logo em seguida chegam as ibejadas dos médiuns mais antigos e, por último, vão chegando as dos mais novos - ou seja, há um ordenamento na descida das entidades que segue a hierarquia dos médiuns, do mais velho ao mais novo. Enquanto nós, da assistência, cantamos e batemos palmas, as Crianças quando chegam também batem palmas, nos mandam beijinhos, pedem a bênção - “bença, tiazinha!”.25

Quando as Crianças chegam, uma outra ordem se instaura: nos bancos da assistência, muita gente quer ficar em pé para conseguir ver o salão, que também está cheio e por onde se espalham médiuns que estão incorporando, outros que auxiliam, as ibejadas que já chegaram estão a correr e saltitar, além das crianças - algumas parecendo um pouco perdidas naquela situação, com olhares um tanto espantados para suas mães, que agora se comportam de maneira totalmente distinta; enquanto outras se divertem e interagem com as Crianças e seus brinquedos. Há muita gente, todos em movimento, vários sons e muito calor. É chegada a hora de servir o banquete.

Os médiuns não incorporados vão equilibrando as bandejas enquanto andam pelo salão oferecendo doces e frutas às ibejadas e às crianças, enchendo seus copos com refrigerantes. Da assistência quase não se vê o banquete disposto aos pés do congá, mas é possível sentir cheiro de doce, ouvir o chiado do gás do refrigerante sendo aberto. Vemos também as Crianças devorando os quitutes, enchendo as mãos se servindo das bandejas, mergulhando balas, suspiros e uvas nos copos cheios de guaraná. As ibejadas comem, bebem, brincam e dançam pelo salão, pedem a bênção, um brinquedo, um doce, uma fruta, um penteado. Chegam até o cordão que limita o salão e se aproximam da assistência, mandando beijos e sorrisos.

Depois de muito circularem pelo salão, entre Crianças e crianças, as bandejas circulam pelos bancos da assistência. Algumas bandejas já chegam vazias na terceira fila, ou por já chegarem à assistência já desguarnecidas ou porque quem estava nas primeiras fileiras se serviu de mão cheia. Algumas bandejas chegam à assistência com vários doces misturados, o açúcar da bananada vai parar em cima das balas, o farelo de suspiro envolve as frutas, e a maria-mole já está desmilinguida. Rapidamente os cuidadosos arranjos feitos no dia anterior são desmanchados, os doces estão todos misturados, e as mãos, agora, sem nenhum cuidado ou delicadeza, estão mais preocupadas em conseguir alcançar o doce preferido. Muitos dos doces pegos não são imediatamente consumidos, mas guardados em sacolas, onde o que antes estava arrumado com cuidado e delicadeza se mistura.

O doce torna-se cada vez mais presente e agora também é sentido nas mãos meladas por tantos açúcares. Seu cheiro sobe e se espalha, das bolsas, das bandejas, no salão, na assistência. Vemos as Crianças com os rostos e mãos meladas de doces e frutas, ao nosso redor todos também estão açucarados, perto dos atabaques são entoados pontos que estão cantando sobre doçuras. E quando vem a sede provocada pelo calor e pela ingestão das guloseimas, nos é servido um copo cheio de refrigerante - mais açúcar, mas agora em estado líquido e gelado. E quando achamos que nossas mãos já estão muito lambuzadas, são servidos os pedaços de bolo que agora nos envolvem em coberturas, recheios e glacês. Vemos, comemos, bebemos e sentimos o cheiro e textura da doçura.

Antes que as Crianças partam, elas se juntam em um semicírculo, no centro do salão, para receber os assistentes. Nos organizamos numa fila, que se estende por todo o centro e vai até o portão, se enrolando em algumas voltas. Quando chegamos à entrada do salão, somos conduzidos até uma Criança. Em 2016, fui levada ao Joãozinho da Cachoeira, de quem recebi um passe,26 três balas e um abraço. Depois, fui conduzida até Pedrinho da Cachoeira e dele recebi um saquinho de doces. Levaram-me até a saída do salão e sentei-me no banco. Depois de passar pela corrente, muitos pegavam suas bolsas e iam embora. Com todos os saquinhos distribuídos, era chegada a hora de as Crianças partirem. Era quase meia-noite, o espaço estava mais vazio e era possível ver no chão balas, pedaços de bolo e suspiros pisoteados.

Considerações finais

Quando perguntava sobre as Crianças em entrevistas a dirigentes e médiuns, sempre ouvia que elas eram alegres, poderosas e doces. É impossível assistir a uma gira de ibejada sem sentir essa doçura. Cocada, bolo, suspiro, maria-mole, bala, pirulito, banana, maçã, uvas, refrigerante, água de coco; tudo isso circula em abundância pelas giras, e sentimos no ar um cheiro doce, sentimos as mãos meladas, uma sede que o refrigerante parece apenas atenuar e, às vezes, pelo excesso, até entojo. Numa gira de ibejada a doçura das Crianças é inescapável, e de uma forma ou de outra, a sentimos e somos por ela envolvidos.

Em “A estética da persuasão”, Birgit Meyer (2018) propõe uma retomada da estética no estudo da religião - em seu caso, o pentecostalismo. Antes de tudo, segundo a autora, é preciso retomar a compreensão da religião como estética, sendo esta considerada em seu sentido mais amplo, quando “se refere à capacidade humana de perceber o mundo com seus cinco sentidos e interpretá-los através dessas percepções” (ibid. :23). Se pensássemos em uma estética das ibejadas, os doces seriam, certamente, elemento central. Em um primeiro plano, pensando estética em seu sentido mais genérico - enquanto uma composição harmônica entre formas e cores -, uma gira festiva de ibejada é decorada por bandejas e cestas de doces e frutas que, cuidadosamente preparadas e junto às flores e balões, enfeitam o salão. No sentido mais amplo, tal qual proposto por Meyer, os doces nos permitem perceber e interpretar as ibejadas, cultuá-las e experienciar os sabores, cores, alegria e doçura dessas entidades.

Quando trazemos as comidas e bebidas que circulam nas giras para o centro da análise sobre esses rituais, expandimos a percepção sensória dessas entidades, para além do transe; ou seja, como podemos perceber essas entidades em nossos corpos mesmos sem sermos por elas incorporados. O cheiro de charuto, a visão embaçada em um salão fumigado, os assobios que parecem vocalizar aves; nos permitem farejar, ver e ouvir os caboclos. Numa gira de exus e pombagiras, o cheiro de álcool e de fumo, o som de gargalhadas, o tilintar das pulseiras, conformam um ambiente onde podemos sentir as entidades.

Faz-se, então, necessário pensar que corpos são esses nos quais elas se ancoram. Miriam Rabelo (2011) propõe uma abordagem que compreenda o corpo nas práticas religiosas não como uma entidade delimitada, mas espalhada por espaços e objetos. Para a autora,

Superar a dicotomia entre sujeito e objeto envolve conduzir a análise não só em direção a uma redefinição do subjetivo pela mediação do corpo, mas também rumo a uma reflexão que recupere os nexos entre corpos, lugares e coisas na dinâmica da experiência social. Isso envolve colocar seriamente a pergunta: o que é mesmo o corpo de que estamos falando? [...] o corpo não é uma entidade fechada ou separada do seu entorno por contornos bem definidos. Estende-se para fora, abre-se aos lugares e sintoniza-se às coisas e pessoas que constantemente o solicitam. Incorpora objetos e, não raro, é incorporado a séries de objetos. Seu alcance e suas fronteiras são móveis - não preexistem à ação ou ao movimento, mas definem-se nele. (ibid. 2011:26)

Nas giras de ibejada, os corpos se estendem pelo salão e demais espaços do centro e em roupas, acessórios, tecidos, brinquedos, objetos, doces. Em outras palavras, Csordas (2008) também ressalta que a atenção ao corpo exige também um olhar (e sentir) ao mundo que este corpo está.

Porque a atenção implica tanto um envolvimento sensorial como um objeto, devemos salientar que a nossa definição se refere tanto à assistência “com” como à assistência “ao” corpo. Em certa medida, devem ser ambos. Atentar a uma sensação corporal não é atentar ao corpo como um objeto isolado, mas sim atentar à situação do corpo no mundo. A sensação envolve algo no mundo, porque o corpo “já está sempre no mundo”. (Csordas 2002:244)27

Os corpos - assim como as roupas, brinquedos, doces - não são apenas objetos nas giras, mas são eles próprios sujeitos nesses rituais, onde e a partir dos quais as Crianças se apresentam. O mundo da gira, no qual estão os corpos dos médiuns e consulentes, é composto por coisas e entidades, sons e cheiros que também envolvem os corpos e são por eles sentidos - e estar atento aos corpos e coisas da gira significa considerar que meu corpo também está, em situação de trabalho de campo, sentindo essas entidades, esse ritual.

Ao nos permitirmos um acesso sinestésico a essas entidades, percebemos como, nessa experiência, os sentidos se fundem (Sutton 2010). Mas as giras de ibejada têm uma particularidade. Nos doces, funde-se o sabor à qualidade, o substantivo e o adjetivo; as Crianças são doces, assim como suas comidas. Nas giras, a doçura não é apenas uma qualidade dessas entidades, mas também um gosto que sensibiliza a língua e suas papilas gustativas; um grude das mãos meladas, uma bandeja de guloseimas que nos é ofertada, um aroma, que também tem formas e cores. A doçura das ibejadas tem cheiro, gosto, sons, cores, melam nossas mãos, invadem nossas narinas e boca; e sentir toda essa doçura é sentir as Crianças.

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  • 1
    Verbete “doce” do dicionário Michaelis on-line, disponível em: https://michaelis.uol.com.br/moderno-portugues/busca/portugues-brasileiro/doce/.
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    Para destacar expressões próprias ao universo pesquisado e conceitos propostos por autores e autoras que são referência neste artigo, utilizo o itálico.
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    Segundo Goldman (2009:106), as religiões afro-brasileiras são “um conjunto algo heteróclito, mas certamente articulado, de práticas e concepções religiosas cujas bases foram trazidas pelos escravos africanos e que, ao longo da sua história, incorporaram em maior ou menor grau elementos das cosmologias e práticas indígenas, assim como do catolicismo popular e do espiritismo de origem europeia. Evidentemente, esses elementos transformam-se à medida que são combinados, e vice-versa”. Essa denominação, em vez de “religiões de matriz africana” parece-me mais apropriada se desejamos pensar menos nas possíveis origens no continente africano do que nos movimentos de assimilação, recriação e reinvenção que caracterizam essas religiões, seus panteões e seus cultos em terras brasileiras.
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    O universo do divino infantil é povoado por ibejadas, erês, Cosme e Damião, Doum e Ibeji. Esses são orixás, dois irmãos gêmeos, que nos mitos aparecem como crianças que gostam de brincar - e de tanto que troçam, até com a morte eles brincam (Prandi 2001). Cosme e Damião são outros irmãos gêmeos cultuados, santos católicos cuja hagiografia nos conta a história de dois médicos que, ao confessarem sua crença cristã foram condenados a diversas torturas. Aqui no Brasil, o culto aos santos mártires parece nunca ter sido unicamente associado ao ofício da medicina e, como afirmam diversos autores, o culto católico aos santos sempre foi, em território brasileiro, fortemente influenciado pelo culto africano aos orixás gêmeos e, talvez por isso mesmo, mais associado às crianças e à gemelaridade do que às artes da cura. Em ambas as narrativas, dos orixás iorubá e dos santos católicos, os gêmeos têm outros irmãos, mas é sobre os irmãos dos Ibeji que sabemos um pouco mais. Nos conta Augras (1994) que o nascimento de gêmeos pode ser uma bênção, mas também pode trazer maus augúrios e, quando ocorre um parto duplo, uma nova ordem (ou desordem) se instaura. O nascimento que sucede o parto duplo é necessário para restabelecer a ordem “normal”. E é com esse poder que nasce Idoú, o terceiro, que aqui no Brasil é mais conhecido como Doum. Esse terceiro irmão é por alguns considerado índice da associação entre os cultos aos santos e aos orixás, uma terceira narrativa que funde outras duas já existentes, a mediação entre as tradições iorubá e católica, a figura que não pertence aos espaços e narrativas oficiais, mas que é reverenciada nos altares domésticos. Nas imagens dos santos católicos, Doum é o terceiro que, posto entre os dois irmãos, confere ambivalência à imagem, que passa a ser representação de santos e orixás, tendo lugar em altares e congás. Esse repertório sobre Crianças vai se conformando em um processo em que distintas personagens e doutrinas são postas em relação de mútua influência. Os espíritos infantis da umbanda são nomeados em referência aos orixás, celebrados no dia dos santos gêmeos - que tiveram sua iconografia transformada pela aproximação com os gêmeos iorubá -; iguais e diferentes aos erês, que, como veremos, não são nem santos nem orixás. Há, portanto, um intenso movimento combinatório entre essas personagens em que todas as partes parecem sofrer influência uma das outras e que, nos cultos, ora se aproximam ora se distanciam, em movimentos que não são necessariamente conflituosos. Ainda sobre Crianças e as aproximações e distinções entre santos, orixás, estados de transe, guias e crianças, ver: Campelo 1991; Capone 2011; Freitas 2021; Lühning 1993.
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    Mas não é indispensável, já que muitas ibejadas não têm sobrenome. Há também ibejadas homônimas, sendo possível, por exemplo, que em um mesmo centro tenham dois Pedrinho da Cachoeira e três Mariazinha da Praia. Na relação entre pessoa e entidade ambos se constituem e, por isso, mesmo que a entidade seja aparentemente a mesma, ao se apresentar em dois corpos diferentes, elas se distinguem. Não há, portanto, duas ibejadas iguais, e cada pessoa tem uma ibejada que lhe é particular.
  • 6
    Em diversos momentos e para diferentes pessoas perguntei o porquê dessa presença mais pontual e menos frequente das Crianças, e nunca recebi uma resposta que realmente elucidasse a questão, mas com base na etnografia e nas referências bibliográficas, podemos elaborar uma hipótese. Nos demais rituais a que assistimos nos centros percebemos que as crianças não estão muito presentes, que as comidas oferecidas às entidades e às pessoas são salgadas, e em algumas vezes acompanhadas de bebidas alcóolicas. As giras dedicadas às ibejadas são radicalmente distintas, marcadas por doces, refrigerantes e brincadeiras, com um forte protagonismo infantil, de Crianças e crianças. Em um universo onde tudo é trabalho (Maggie 2001), a brincadeira é exceção; assim como os doces, que muitas vezes nem são considerados comida e nas giras de ibejada tornam-se prato principal. As Crianças e seus cultos parecem, assim, instaurar uma outra ordem nos rituais e talvez por isso não possam ser tão frequentes. Sobre ordens e desordens dos rituais dedicados às entidades infantis, ver: Landes (2002), Ribeiro (1957), Bastide (2001) e Serra (1978).
  • 7
    A chamada umbanda tradicional, para alguns considerada a matriz que deu origem às demais doutrinas, caracteriza-se pela aproximação com o espiritismo kardecista, sendo a caridade e o princípio evolutivo noções muito caras (Cavalcanti 1983). Ainda que haja muita margem para variações doutrinárias, com o surgimento de diversas linhas, cujos rituais e doutrinas sofrem influências de várias outras práticas religiosas (Birman 1985; Magnani 1986); há também aqueles que se apresentam ou se definem como sendo tradicionais, que procuram manter doutrinas hierarquia e práticas que associam aos tempos primordiais da religião. Nesses casos, há sempre a referência ao mito fundador, cujo personagem principal foi Zélio de Morais, o pioneiro da umbanda, uma religião assentada nos valores da caridade e da fraternidade e cujos pilares são os caboclos, os pretos-velhos e as ibejadas (Giumbelli 2002).
  • 8
    A UEUB, que se identifica como casa mater da umbanda, remonta à Federação Espírita de Umbanda, criada em 1939, durante o Estado Novo, com o objetivo de ser uma instituição mediadora entre os diversos templos e tendas de umbanda, o Estado e a sociedade. Muito ativa na primeira metade do século XX, a UEUB passou por períodos de abandono, e entre a década de 1990 até início dos anos 2000, a instituição não teve uma administração, e sua sede, no bairro de Todos os Santos, estava praticamente abandonada. No início dos anos 2000, a instituição foi revitalizada e retomou suas atividades.
  • 9
    Trabalho é uma categoria amplamente utilizada e tem diversos sentidos. Maggie (2001:153), no glossário que encerra sua obra, nos aponta alguns, como: “TRABALHAR- Atuar (o médium) em estado de possessão, no terreiro ou fora dele. [...] TRABALHAR NA MACUMBA- Praticar a religião na qualidade de médium. TRABALHAR NA UMBANDA- Trabalhar na macumba. TRABALHO - a) Oferenda; feitiço. b) Ato praticado pelos médiuns em estado de possessão. Pode ser usado para definir as sessões propriamente ditas. TRABALHO FEITO - Feitiço” (Maggie 2001:153).
  • 10
    Em outras ocasiões, analisei as sessões de consulta e falei mais sobre os trabalhos das Crianças (Freitas 2019, 2021).
  • 11
    “I coin the term gustemology for such approaches that organize their understanding of a wide spectrum of cultural issues around taste and other sensory aspects of food” (Sutton 2010:215).
  • 12
    “Synesthesia is a reminder of why food and the senses should be considered together: tastes are not separable from the objects being tasted. [...] synesthesia is not a faculty, but rather a socially cultivated skill, developed in particular practices and linguistic devices. And food is often a vehicle for such synesthetic practices” (Sutton 2010:218).
  • 13
    Uma espécie de oferenda aos orixás, feita, muitas vezes, com o intuito de limpar o corpo e afastar alguma energia.
  • 14
    Trata-se de um ritual para alimentar a cabeça. Para tornar-se filho de um terreiro, usar um fio de contas devidamente lavado e as roupas comuns à casa, é preciso fazer um bori. Mas há também outros momentos em que o ritual é feito, segundo as necessidades e indicações dos orixás.
  • 15
    Vale lembrar que na região sul do país os doces finos e coloniais são bastante tradicionais, e foram, inclusive, registrados no Livro dos Saberes pelo Iphan sob a denominação “Tradições Doceiras da Região de Pelotas e Antiga Pelotas”, em 2017.
  • 16
    Para tornar-se médium no Cuca, é necessário fazer um curso de formação que tem duração de 12 meses, com aulas de três horas aos sábados e/ou domingos.
  • 17
    Além de denotar pureza, branco também é a cor associada aos orixás Oxalá e Iemanjá, considerados pai e mãe. A brancura, então, é associada à pureza, à maternidade e paternidade, sendo uma cor que agrada a todos os orixás e entidades.
  • 18
    No Cuca, nem bem começa setembro e já dão os anúncios, ao início de cada sessão, que os cartões para pegar doces dia 27 já estão disponíveis no caixa. Cada pessoa pode pegar até cinco cartões e cada um deles dá direito a um saquinho e no dia da distribuição cada criança só pode pegar um saquinho; ou seja, pode pegar até cinco cartões, contanto que sejam repassados a cinco crianças.
  • 19
    Um pequeno tambor com cabo e dois coquinhos presos em sua lateral.
  • 20
    Os pontos cantados conduzem os rituais, as vozes, palmas e atabaques anunciam o início da gira, louvam santos, orixás e guias; chamam as entidades para o salão, embalam suas danças e trabalhos e também anunciam o momento de partida. O ponto de Pedrinho é: “quem vem escorregando na água azul da cachoeira/ Dizendo que é peixinho e gosta de brincadeira (2x)/ É o Pedrinho, menino levadinho/ Que traz do céu a cor do seu chapeuzinho/ Ai iê iê, ai iê iê/ Ai que criança linda que mamãe Oxum me deu”.
  • 21
    Nos dias em que o centro promove atividades abertas ao público, circulam entre 100 e 300 pessoas, sendo que as giras festivas certamente têm público maior e mais flutuante. Nas sessões de consulta, costumam estar presentes entre 30 e 50 médiuns e na assistência entre 50 e 80 pessoas - tomando como base as giras de ibejadas que vi. Consulentes, médiuns e pessoas do centro com as quais falei sempre me dizem que as sessões mais cheias são as de consulta com exus, que também mobilizam maior público na gira festiva. Gregório estima que a média de atendimentos mensais do Cuca oscila entre 2.000 e 2.500 pessoas.
  • 22
    Giz de calcário, que pode ter diferentes cores, usado ritualisticamente. Com a pemba riscam-se, além dos pontos, as mãos dos médiuns ao entrar no salão, as imagens e outros objetos; assim, coisas e pessoas estão prontas para adentrar os espaços e tempos dos rituais.
  • 23
    Apesar de manterem o mesmo nome, essas orações quando entoadas nos centros espíritas, sofrem uma modificação em relação àquelas proferidas na igreja católica. Trata-se, portanto, de uma outra versão das orações.
  • 24
    Os pontos cantados nos contam da sequência ritual; temos, assim, pontos de defumação, de abertura, de chamada, descarrego, doutrinação, subida e encerramento (Borges 2006).
  • 25
    Tiazinha e tiozinho são todos aqueles que as Crianças identificam como sendo adultos.
  • 26
    Uma prática muito difundida no espiritismo e na umbanda, realizada pela imposição de mãos.
  • 27
    No original, “Because attention implies both sensory engagement and an object, we must emphasize that our working definition refers both to attending 'with' and attending 'to' the body. To a certain extent it must be both. To attend to a bodily sensation is not to attend to the body as an isolated object, but to attend to the body's situation in the world. The sensation engages something in the world because the body is 'always already in the world'”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Set 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    29 Nov 2021
  • Aceito
    20 Jun 2022
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