Open-access O que faz a espiritualidade?1

What does spirituality do?

Resumo

Desde os anos de 1980, amplia-se o reconhecimento da espiritualidade como um tópico pertinente às questões de saúde. Nesse período, pesquisadores das ciências médicas passaram a se dedicar ao tema, a OMS o incluiu em seus documentos, e políticas públicas de saúde fizeram dele uma dimensão permanente do cuidado. Cada uma dessas formulações contribui para legitimar a sentença espiritualidade é saúde. Não estaria esse processo também instituindo novas articulações entre Estado e religião? Neste texto, abordo essa questão a partir da oferta e uso do reiki em um hospital público de Porto Alegre. A partir desse contexto, apresento reflexões sobre o modo pelo qual a ideia de espiritualidade estabelece configurações singulares para a presença da religião no espaço público.

Palavras-chave espiritualidade; saúde; espaço público; religião

Abstract

Since the 80s, we can identify a progressive recognition of spirituality as a health issue. Medical scientists have engaged in that theme, the WHO included the thematic in its documents, and health policies have mentioned the spirituality as a permanent dimension of care. These formulations have legitimized the idea: “spirituality is health”. Is this process also a new way to institutionalize the relationship between state and religion? To reflect about these questions, I analyze therapeutic practices aimed at spirituality on the oncology clinic where different therapists apply reiki. This article presents reflections about the way in which the idea of ​​spirituality, in healthcare settings, have configured a special set for the religion in the public space.

Keywords spirituality; health; public space; religion


Primeira aquarela abstrata.

Em dezembro de 1911, Waissily Kandinsky publicou o texto Do espiritual na arte, um ensaio capital para os movimentos artísticos do século XX. O artista russo, pioneiro do abstracionismo no Ocidente, exorta nesse livro a capacidade singular da literatura, da música e da pintura de captar e expressar o ser espiritual das coisas. Numa de suas célebres passagens, Kandinsky escreveu: “A forma, mesmo abstrata, geométrica, possui seu próprio som interior, ela é um ser espiritual, dotado de qualidades idênticas as dessa forma. Um triângulo é um ser. Um perfume espiritual que lhe é próprio emana dele” (2000:75).

Na arte abstrata, há uma centralidade atribuída à forma. Esse privilégio da forma, no entanto, não está expresso, como no realismo, pelos traços que buscam reproduzir com perfeição a realidade visível e superficial das coisas. Pelo contrário, a qualidade da forma que interessa aos abstracionistas é aquela velada e, ao mesmo tempo, manifesta, pela superfície. É por isso que, por exemplo, Kandinsky trata do triângulo a partir de sua forma interior (ou de seu perfume espiritual) e não da geometria de sua superfície exterior (as três retas que o compõem). A obra reproduzida acima, Primeira aquarela abstrata, é uma pintura de formas interiores. Tal fidelidade à interioridade da forma também mobilizou o pintor abstrato holandês Piet Mondrian que, quatro anos depois da publicação do ensaio de Kandinsky, afirmou: “para uma abordagem espiritual na arte, é preciso usar menos realidade possível, porque a realidade é oposta ao espiritual” (Fingesten 1961:3, tradução nossa).

Não foram poucos os autores que sublinharam a importância da espiritualidade para as ideias e conceitos de alguns dos artistas pioneiros na arte abstrata - além de Kandinsky e Mondrian, outros pintores como Frantisek Kupta e Kazimir Malevich também foram explícitos sobre seus interesses em retratar o ser espiritual das coisas em suas obras (Fingesten 1961; Tuchman et al. 1986).

No início do século XX, o abstracionismo, um dos principais sinais da modernidade ocidental, encarnou o “espiritual” como um de seus elementos centrais. Se esse pode ser um fato inesperado para quem analisa as transformações modernas da vida na Europa do século XIX e XX nos termos weberianos da “desmistificação”, para autores como Peter van der Veer, essa é apenas mais uma das demonstrações de que a espiritualidade não é uma forma marginal de resistência à modernidade secular, mas é parte do próprio projeto moderno, sendo, a emergência do termo, um de seus índices e uma chave fundamental para compreendê-lo (Veer 2013:7).

O argumento não é trivial e, para demonstrá-lo, dependeríamos de um amplo esforço genealógico acerca da categoria espiritualidade, empreendimento que se afasta dos objetivos mais gerais deste texto. Mesmo sem a intenção de reconstituir tal genealogia - trabalho feito minuciosamente por pesquisadores como Catherine Albanese (2006) -, recorro à afirmação de Veer para sublinhar aquilo que o reconhecimento do vínculo entre essa categoria e a modernidade nos adverte: espiritualidade é um conceito historicamente situado e sua emergência é, ela mesma, o produto histórico de processos discursivos. A semelhança entre a afirmação e o que diz Talal Asad (1993:29) sobre a categoria religião não é despropositada - embora tampouco deva ser estendida além do plano metodológico. Talvez a ordem desse paralelo fique mais clara na paráfrase de outra sentença de Asad (2001:220): definir “espiritualidade” é antes de tudo um ato. Isso significa que espiritualidade, enquanto categoria, está constantemente sendo definida dentro de contextos sociais e históricos, e que as pessoas possuem razões específicas para defini-la de um modo ou de outro (Asad 2002:1 apud Giumbelli 2011)2. A perspectiva parece alçar o debate sobre espiritualidade a um novo plano analítico: distanciado dos imbróglios da filosofia clássica e da teologia sobre o tema e marcado pelos aportes de certa filosofia política foucaultiana em que o conceito e suas características são situados nos jogos de relações de poder que os configuram e os transformam historicamente.

Em alguma medida, assumir essa analítica é a condição para atender ao chamado de Peter van der Veer a atentarmos para “a política da espiritualidade” (2009). Isto é, para o modo pelo qual essa categoria produz realidades, agencia atores e mobiliza instituições. A política da espiritualidade, portanto, não diz respeito a um conceito, mas sim a uma espécie de recomendação metodológica que insiste na necessidade de compreender a categoria espiritualidade em seus usos, situacionalmente, a partir das configurações de poder e de conhecimentos com as quais ela se articula cada vez que é enunciada. Em seus trabalhos, por exemplo, Veer mostra como o termo foi central para a formação da modernidade imperial na Índia e na China. Naqueles dois países, a ideia de espiritualidade teria se estabelecido de modo distinto, embora, em ambos, sobretudo durante o período colonial, tenha funcionado como uma importante via de conexão com o Ocidente. Conectar, vale sublinhar, não é o mesmo que traduzir - no sentido de transmitir de modo passivo e simétrico dois universos semânticos diferentes. Afinal, mesmo que a categoria seja cada vez mais utilizada para descrever tradições discursivas que, após o encontro imperial, passaram a ser chamadas de Hinduísmo, Confucionismo e Daoísmo, não há nem em sânscrito e nem em mandarim um conceito equivalente ao de “espiritualidade” (Veer 2013:45). O dado, já analisado por Richards (1964), deixa ainda mais evidente o vínculo entre a modernidade, a partir dos “encontros coloniais” que ela produziu, e a categoria espiritualidade, forjada naquele momento, segundo Veer, como um conceito universal e trans-histórico.

Se, por um lado, não é da espiritualidade na Índia ou na China colonial de que me ocupo neste artigo, por outro, apresentar a categoria partindo de uma analítica que a problematiza enquanto produto de articulações entre discursos, práticas e configurações institucionais - tal como feito por Veer - introduz o leitor na chave metodológica com a qual pretendo operar. Estou interessado na espiritualidade em sua interface com os serviços de saúde no Sistema Único de Saúde (SUS), mais precisamente, na oferta de terapias alternativas/complementares3 tanto na atenção primária como em atendimentos de média e de alta complexidade.

Neste texto privilegiarei as conjugações entre saúde, espiritualidade e as chamadas Práticas Integrativas e Complementares (PICs). A oferta de PICs no SUS é resultado da Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares (PNPIC), que desde 2006 legitima e regulariza o uso de terapias como acupuntura, homeopatia, fitoterápicos, medicina antroposófica, etc., em postos de saúde e hospitais públicos brasileiros (ver Toniol 2015). No que segue tomarei como referência empírica o setor oncológico do Grupo Hospitalar Conceição (GHC), onde o reiki é empregado como um tratamento complementar à quimioterapia. A partir da etnografia desse serviço, procurarei visibilizar como os agentes envolvidos com essa prática definem, diferenciam e estabelecem as fronteiras da categoria espiritualidade com relação a uma outra, a religião. Tal proposta acompanha aquilo que Courtney Bender já havia ressaltado em sua pesquisa sobre a “cultura espiritual” nos Estados Unidos: mais interessante do que definir espiritualidade é “observar como o termo é usado e como as suas diferenciações tornam algumas práticas e engajamentos mais ou menos possíveis” (2010:5, tradução nossa).

No hospital em que fiz o trabalho de campo que deu origem às reflexões aqui apresentadas, as sessões de reiki são realizadas enquanto a medicação quimioterápica é administrada aos pacientes4. Se, num plano mais geral, o uso terapêutico do reiki é fomentado e está amparado oficialmente pelas políticas de PICs, no cotidiano hospitalar, os médicos, os enfermeiros e os pacientes têm suas próprias justificativas para a adesão a essas práticas terapêuticas. Para o médico coordenador da oncologia, por exemplo, o uso do reiki aliado à quimioterapia tem uma dupla justificativa, ambas baseadas na ideia de que a técnica incide sobre o “fator espiritual” da saúde: respalda-se nas pesquisas clínicas que certificam a espiritualidade como elemento determinante para a recuperação de pacientes com câncer; é uma tentativa de diminuir o número de usuários que abandonam o tratamento por razões religiosas por meio de uma prática que se ocupa da espiritualidade no ambiente do próprio hospital. No entanto, na contramão do argumento médico, é justamente a qualidade espiritual da prática do reiki o que faz alguns pacientes recusarem a terapia. Na segunda e terceira seções deste texto analisarei casos como esse, em que a oferta e o uso do reiki fazem precipitar e tornam visíveis entendimentos distintos acerca da relação entre religião e espiritualidade.

Para voltar ao eixo central da discussão que proponho neste artigo, retomo a pergunta que o intitula: “O que faz a espiritualidade?”. Com ela, aponto para duas direções. Primeiro, reconheço-a como uma questão latente na etnografia e nas reflexões aqui apresentadas, de modo que a utilizo como um fio condutor, ainda que nem sempre enunciado, das descrições. E, segundo, trata-se de uma pergunta endereçada não somente ao meu “objeto de pesquisa”, como também ao marco teórico com o qual dialogo. Com isso não pretendo estabelecer uma antinomia entre espiritualidade enquanto categoria analítica e enquanto objeto de análise. Pelo contrário, a proposta é justamente apostar nos ganhos de uma analítica que, suspeitando dos usos do termo, faz da reflexão sobre eles o ponto de partida para explorar novos horizontes em debates como, por exemplo, acerca dos diferentes modos de associação entre essa categoria e a de religião.

O lugar do reiki no tratamento oncológico

Seu José foi caminhoneiro durante 37 anos. Em 2009, quando estava prestes a completar 58 anos de idade, a descoberta de um câncer no esôfago acelerou os seus planos de aposentadoria. O senhor magro, alto e com os cabelos completamente brancos fala com a rouquidão de quem fumou desde o início da adolescência, hábito que, apesar de ter sido uma das razões de sua doença, é lembrado por ele com saudosismo. Morador de Triunfo, cidade que fica a 80 quilômetros de Porto Alegre, José frequenta o segundo andar do Hospital Conceição desde o início de seu tratamento contra o câncer. Nos três anos anteriores ao nosso primeiro encontro, ocorrido em novembro de 2012, a possibilidade de que se recuperasse já havia sido desacreditada duas vezes pelos médicos, mas em ambas as ocasiões o paciente surpreendera os prognósticos e revertera os quadros de agravamento da doença.

Conheci José no mesmo dia em que também encontrei Clara, outra usuária do setor oncológico do GHC. Os dois, no entanto, têm perfis bastante diferentes. Clara é uma jovem de 29 anos que, por insistência da filha, decidira investigar um nódulo no seio. A suspeita inicial do médico de que pudesse ser um tumor maligno confirmou-se e, pouco tempo depois de realizar uma mastectomia, Clara foi encaminhada para as sessões de quimioterapia. Ela resistiu inicialmente ao tratamento porque receava a queda de cabelo, mas acabou convencida a aceitá-lo pela médica que a atendia e, novamente, pela filha.

Na tarde em que os conheci, eu havia chegado um pouco depois do meio-dia na sala de quimioterapia do GHC. Aquele era o período de troca de turnos das enfermeiras, e Sandra, a terapeuta reikiana, ainda estava a caminho do hospital. Eu já estava sentado ao lado de José quando Clara foi chamada pela enfermeira e ocupou a poltrona que ficava mais próxima a nós. Instalado em um pequeno banco de madeira, fiquei entre os dois. Era a primeira sessão de quimioterapia de Clara e a quinquagésima de José, informação que ele mesmo frisou enquanto tentava acalmar a jovem dizendo que tudo ia correr bem.

Logo depois que Clara se acomodou, uma técnica de enfermagem veio até ela para medir suas funções vitais, procedimento repetido várias vezes, ao longo da aplicação dos medicamentos quimioterápicos. Na sequência, uma médica residente, já com os dados das primeiras aferições de pressão, batimentos cardíacos e temperatura de Clara em mãos, fez uma série de perguntas sobre a rotina da paciente nos últimos dias. Quando terminou, a médica reviu a medicação prescrita e autorizou a quimioterapia. Feita em duas etapas, isto é, com a manipulação de duas bolsas de medicamentos diferentes, a sessão estava programada para durar cerca de três horas.

Clara estava naquela sala fazia pouco menos de quinze minutos, e nesse período uma técnica de enfermagem, uma médica residente e duas enfermeiras já haviam realizado algum procedimento na paciente. Mesmo após o início da aplicação do quimioterápico, o fluxo de técnicos e de profissionais que a interpelavam continuava intenso. Entre tantos enfermeiros e médicos que passavam para avaliar, proceder aferições e conversar com os pacientes, Sandra, a técnica reikiana, chegou na sala em que estávamos.

Vestindo um jaleco branco igual ao de todos os outros profissionais do setor, à primeira vista, nada diferenciava Sandra dos médicos e dos enfermeiros. Com a autonomia de quem frequenta aquelas enfermarias há dois anos, Sandra percorre as três salas de quimioterapia e oferece o reiki aos pacientes, independentemente do tipo de câncer ou do tratamento que o usuário está recebendo. Tampouco é prescrito um momento específico para a aplicação do reiki durante a quimioterapia, de modo que Sandra se encontra toda a tarde, duas vezes por semana, percorrendo o setor e abordando livremente os pacientes.

Quando a reikiana se aproximou, José, que a conhecia, logo disparou: “Eu já estava achando que você não vinha”. Sorridente, Sandra cumprimentou-me e justificou a demora pela lotação das salas em que ficam os pacientes acamados, por onde havia começado as sessões daquele dia. Sem que a conversa se estendesse muito, José fechou os olhos e Sandra começou a aplicar o reiki. De pé, na frente da poltrona, a reikiana passou um óleo essencial nas mãos, esfregou-as, e as impôs sobre a cabeça de José. Sem jamais tocar no paciente, a terapeuta repetiu o gesto noutros seis pontos do corpo de José - que correspondem aos chacras -, antes de voltar suas mãos para a região do esôfago do paciente, onde permaneceu por alguns minutos fazendo pequenos gestos com os dedos, como se desenhasse no ar. Esses movimentos eram quase imperceptíveis e consistiam na reprodução do símbolo de cura do reiki na região em que estava o foco do câncer de José. Noutro momento irei deter-me nessa prática específica, mas de antemão sublinho que se trata de uma técnica de intensificação de troca energética bastante apurada, utilizada apenas pelos terapeutas que possuem os estágios mais avançados de formação em reiki.

Quando a sessão terminou, José havia adormecido. Sandra, então, passou para a poltrona de Clara e abordou a paciente perguntando se ela autorizava o reiki: “Talvez o seu médico ou algum enfermeiro já tenha avisado, eu sou terapeuta reikiana e aplico sessões de reiki aqui no setor. Essa é uma terapia integrativa e complementar, e vai ajudar no equilíbrio de seu campo energético. É opcional, você pode não querer, mas é rápido, não tem efeito colateral e não é invasivo. Onde é o seu problema?” (Sandra, em maio de 2012).

Clara pareceu indiferente à consideração de Sandra sobre o caráter opcional da oferta. Respondeu que o seu problema era um câncer de mama e, por indicação da terapeuta, fechou os olhos e tentou relaxar. Depois de pouco mais de sete minutos de imposição de mãos, Sandra terminou a sessão, agradeceu à Clara e seguiu para a poltrona ao lado onde outro paciente estava disposto a receber o reiki. A circulação de profissionais continuou e, assim que a terapeuta saiu, uma enfermeira veio até Clara para substituir a bolsa do medicamento quimioterápico que estava a ponto de terminar. Em seguida, foi a vez de sua médica, que queria visitá-la na primeira sessão do tratamento e colocá-la a par do intervalo de tempo até as próximas consultas e das sessões de quimioterapia já agendadas.

Interrompo essa sequência narrativa para sublinhar que a oferta do reiki, tal como está integrada na rotina dos procedimentos realizados na sala de quimioterapia, assume uma estética hospitalar semelhante àquela que caracteriza todas as outras ações feitas pelos médicos e enfermeiros do lugar. A terapeuta, por exemplo, vestida com jaleco branco, confunde-se com os outros profissionais que circulam no setor. Para muitos pacientes, tampouco a imposição de mãos destoa da sequência das aferições de sinais vitais feitas pelos técnicos, das anamneses procedidas pelos médicos ou das aplicações intravenosas que os enfermeiros manipulam. Não há um momento específico para as sessões de reiki, elas acontecem entre todos os outros atendimentos relacionados com o uso dos quimioterápicos. Nesse sentido, naquela enfermaria, as sessões de reiki são apenas mais uma etapa de um tratamento em que possíveis diferenças entre técnicas empregadas - o atendimento médico, a mastectomia, a quimioterapia, o reiki e etc. - são atenuadas pela autoridade do ambiente hospitalar que as abriga e, em alguma dimensão, as compatibiliza em sua estética.

Se, por um lado, a forma pela qual o reiki é utilizado no GHC resulta numa aparente continuidade entre a técnica e os outros procedimentos biomédicos realizados na sala de quimioterapia, por outro, é preciso destacar que o modo de uso do reiki naquela situação reforça o caráter complementar das PICs. Refiro-me ao estatuto de “terapia auxiliar” que caracteriza a prática do reiki quando utilizada junto à quimioterapia. Diferentemente do protagonismo que as PICs podem assumir quando empregadas no âmbito da atenção básica e, sobretudo, na prevenção, no GHC o reiki pode ser descrito como um tratamento complementar, isto é, aliado à terapia principal e, ao mesmo tempo, subordinado e não concorrente a ela.

Conforme demonstrei noutros trabalhos (Toniol 2014, 2015), há uma série de terapias alternativas/complementares sendo utilizadas em postos de saúde, ambulatórios e hospitais do SUS. Nem todas são reconhecidas pela PNPIC, embora a maior parte dos gestores públicos e dos atores envolvidos com a oferta dessas terapias reconheçam as políticas de PICs como importantes fontes de legitimidade para as suas utilizações nos serviços de saúde. Com isso, vale perguntar: diante do amplo espectro de terapias alternativas/complementares possíveis, por que especificamente o reiki é utilizado nas salas de quimioterapia do GHC? O que essa prática pode nos indicar sobre as relações entre religião, espiritualidade e PICs que se configuram nos serviços de oncologia daquele hospital? Depois de ter apresentado brevemente o modo pelo qual o reiki é ali procedido, nas próximas seções irei me deter nessas duas questões.

A recomendação do reiki e a ressalva ao religioso

Nos documentos oficiais dos órgãos gestores da saúde pública brasileira, o reiki é descrito da seguinte forma:

[…] técnica de captação, transformação e transmissão de energia feita através das mãos (“Rei” significa a Energia Cósmica, Universal, e “Ki” significa energia vital, em japonês). Promove o equilíbrio da energia vital, aplicada pela impostação de mãos do técnico (reikiano) no paciente, no qual é transmitido um padrão de ondas harmônicas resgatando o campo eletromagnético natural, propiciando equilíbrio para o corpo físico5.

Embora a técnica não esteja descrita na PNPIC, na versão gaúcha da política, a Política Estadual de PICs (PEPIC/RS), o reiki está explicitamente citado e ainda baseia duas diretrizes do texto. A primeira delas é uma diretriz geral, dedicada a arrolar as terapias alternativas/complementares que não haviam sido incluídas na PNPIC, mas cuja oferta é apoiada pelo estado do Rio Grande do Sul6. Já a segunda referência ao reiki na política estadual consta numa das diretrizes específicas do documento, aquelas que concentram as recomendações pontuais para cada uma das terapias descritas.

Diretriz 13 - Para implementação do Reiki

13.1 - Recomendar a inserção do Reiki e terapêuticas de imposição de mãos, sem vínculos religiosos;

13.2 - Promover cursos de Reiki, em conjunto com organizações de especialistas dirigida a profissionais já contratados e em atuação nas redes de atenção à saúde, com prioridade para a Atenção Básica (grifo nosso).

A referência à religião logo no primeiro ponto relativo ao reiki é particularmente interessante para a discussão deste texto. A formulação da primeira parte da frase estabelece que, além do reiki, outras “terapêuticas de imposição de mãos” também estão recomendadas pela política pública. Na sequência, contudo, uma ressalva sublinha que as terapias apoiadas pelo Estado serão apenas aquelas sem vínculos religiosos. O texto dessa diretriz merece algumas considerações. Para isso não vou me deter apenas numa análise dessa política específica, mas alternarei entre esse material e reflexões a partir dos dados obtidos com o trabalho de campo realizado no cotidiano do processo de elaboração da PEPIC/RS.

Entre março de 2013 e fevereiro de 2014 a comissão encarregada de escrever a política de PICs do Rio Grande do Sul (CEPIC) realizou reuniões sistemáticas na Secretaria Estadual de Saúde. Ao longo desse período, a comissão convidou técnicos e especialistas em diferentes terapias para ouvir as demandas de cada um desses grupos, bem como para apropriar-se dos princípios elementares de suas práticas. Na ocasião em que o reiki pautou o encontro, três terapeutas foram convidadas. Todas eram mestres em reiki e tinham, além de prolongada experiência com a prática, conduzido a formação de muitos outros reikianos. Conforme cada uma delas expunha suas perspectivas sobre as possibilidades de uso da técnica no SUS, a comissão percebia que havia significativas diferenças nos seus entendimentos sobre a terapia. Uma das convidadas, por exemplo, identificou-se como especialista em reiki xamânico, prática que incorpora referências indígenas e, por isso, realiza a imposição de mãos fora dos chacras, priorizando outros pontos energéticos que, segundo essa tradição, seriam mais precisos do que aqueles indicados pela técnica japonesa. A própria terapeuta, durante a mesma reunião, afirmou que poderia haver resistências, por parte dos especialistas em reiki, no reconhecimento de sua prática enquanto tal.

Por conta da constatação da amplitude da variação técnica do reiki, a comissão optou por acrescentar, na diretriz citada, a genérica recomendação de que “terapêuticas de imposição de mãos” fossem incorporadas no SUS. Com isso, as práticas de reiki menos ortodoxas também passariam a estar contempladas pela diretriz. Ao mesmo tempo, no entanto, que essa formulação solucionava o problema inicial, ela criava outro, uma vez que sua abrangência daria margem para que práticas como o passe espírita, o johrei da igreja messiânica e mesmo o benzimento do catolicismo popular - todas “terapêuticas de imposição de mãos” - também fossem incluídas na política e, por conseguinte, tivessem seu uso autorizado no SUS.

Esse impasse explica, em parte, a ressalva sobre os “vínculos religiosos” expressa na diretriz 13 da PEPIC/RS. Com ela, a Comissão pretendeu estabelecer um dispositivo de diferenciação, empregado para que práticas explicitamente associadas às religiões fossem excetuadas dos benefícios da política estadual. Nesse caso, os “vínculos religiosos” são a qualidade que habilitam ou não as terapêuticas de imposição de mãos a serem utilizadas nos serviços de saúde. Mas isso não é tudo. Como mostrarei a seguir, a formulação dessa diretriz também está dirigida ao próprio reiki.

Ainda na reunião da CEPIC em que estavam as reikianas, Celestina Gonçalvez, diretora de uma importante escola de formação em terapias alternativas/complementares do Rio Grande do Sul, utilizou boa parte de sua apresentação para defender que, no texto final da PEPIC, seria fundamental que o reiki fosse explicitamente desvinculado da religião. Segundo ela, o esforço era necessário para desfazer a associação que tanto prejudicava a legitimação da terapia para um público mais amplo.

Reiki não é religião, reiki é muito mais que isso. Essa coisa do esotérico, do místico, do religioso é o que tem nos atrapalhado. A cura se dá pelo despertar da espiritualidade e não porque a pessoa é religiosa. […] Tudo isso do místico acho que atrapalha, não é místico, é ciência. Nós não fazemos isso em nome da religião. Essa ideia precisa acabar, só assim vamos poder aproveitar o potencial do reiki no SUS e afastar os preconceitos. (Celestina Gonçalvez, diretora da Escola de Terapias Rapha-el, mestre em reiki).

Em sua fala, a terapeuta reikiana demanda explicitamente que a política estadual de PICs não somente “recomende o uso da terapêutica”, como também reconheça, e de alguma maneira oficialize, “que reiki não é religião”. Nesse caso, a ressalva da diretriz nº 13 não serviria apenas para afastar as práticas religiosas de imposição de mãos do rol das terapias reconhecidas pelo Estado, mas também para afirmar que não há nada de religioso nas PICs e tampouco, particularmente, no reiki. Há, portanto, pelo menos duas intenções na ressalva aqui comentada. Primeiro, evitar que a ampla recomendação estatal de uso de práticas de imposição de mãos compreenda técnicas identificadas com religiões específicas. E, segundo, afirmar que o reiki incorporado pelos serviços do SUS não é religioso. Esses dois sentidos da mesma diretriz estão diretamente relacionados com o uso e com a oferta do reiki e de “técnicas de imposição de mãos” nos atendimentos de saúde pública. Mas, ao mesmo tempo, a análise do modo pelo qual essa diretriz está formulada também é relevante para o entendimento de um aspecto mais geral das políticas de PICs, que ultrapassa a especificidade das terapêuticas.

A diretriz citada é a única menção, na PEPIC/RS, ao termo religião. Contrastivamente, abundam no texto referências à “espiritualidade”. E, mais do que isso, se levarmos a comparação adiante, constataremos usos distintos dos termos: enquanto a religião é citada na política apenas para ser negada, as remissões à espiritualidade são sempre feitas de forma afirmativa, servindo tanto para confirmar a relevância do assunto para os serviços de saúde, como também para indicar a pertinência de abordar a dimensão espiritual da saúde a partir das terapias alternativas/complementares. Reconhecer as diferenças no modo como cada um desses termos é tratado é um passo fundamental para compreender que, para os gestores da Secretaria Estadual de Saúde, sentenciar a distância entre o reiki e a religião não significa rejeitar a capacidade dessa terapia, e das PICs de modo geral, de se relacionar com a espiritualidade.

Tomando como referência o texto da PEPIC/RS, mas sem perder de vista que ele é apenas um dos exemplos daquilo que também está expresso, mais ou menos explicitamente, na própria PNPIC e noutras versões estaduais da política, podemos identificar que as menções à espiritualidade estão usualmente associadas ao conceito de integralidade. Já me detive nesse tópico noutro texto (Toniol 2014), assinalando como o princípio da integralidade, um dos três fundamentos do SUS, foi aproximado semanticamente, na PNPIC, da ideia de holismo, um conceito historicamente identificado com as terapias alternativas/complementares. Retomo o tema aqui para sublinhar que, na PEPIC/RS, a afirmação da perspectiva da integralidade vem acompanhada pela expressão do entendimento de que a espiritualidade é uma dimensão do ser humano. No documento, logo nas páginas de caracterização e de justificativa dos benefícios das terapias alternativas/complementares, lemos: “A integralidade como princípio, visão e prática deve ser abordada nas ações desta PEPIC/RS, na referência às dimensões do indivíduo, como ser biológico, mental, emocional, espiritual e social” (grifo nosso).

O que está em jogo nessa versão do conceito de espiritualidade é algo semelhante àquilo já notado por pesquisadores como Winnifred Sullivan, que, em suas análises sobre o uso da categoria, sublinhou a recorrência de seu entendimento enquanto “uma dimensão inerente a todos os seres humanos” (2014:39, tradução nossa). Trata-se de afirmar que a espiritualidade, ao contrário da religião, não depende do voluntarismo de uma crença para existir, mas decorre de uma disposição constituinte da pessoa. Nesse caso, espiritualidade seria, em suma, uma dimensão do indivíduo.

É certo que os enunciados presentes na PEPIC/RS, relativos à afirmação da “dimensão espiritual” como uma qualidade invariável do ser humano, têm aqui o alcance restrito de uma política pública, a qual, por sua vez, é marginal na estrutura da Secretaria de Saúde. Minha sugestão, contudo, é que a fórmula que considera a espiritualidade como uma parte invariante da humanidade e a religião como fruto de escolhas particulares repercute com certa constância em diversas instâncias e organismos de gestão em saúde. A seguir, demonstro a pertinência desse argumento recorrendo àquele que é considerado o primeiro debate sobre a relação entre espiritualidade e saúde realizado numa reunião da OMS.

Espiritualidade além da religião

Em maio de 1983, durante a 37ª Assembleia Mundial de Saúde, uma decisão histórica foi tomada: a “dimensão espiritual” foi integrada ao programa de estratégia da saúde dos Estados membros da OMS.

Quatorze anos mais tarde, o grupo especial do comitê executivo da entidade, destacado para revisar sua constituição, propôs que o preâmbulo do documento, onde se define o que é saúde, fosse alterado para: saúde é um estado dinâmico de completo bem-estar físico, mental, espiritual e social, e não apenas a ausência de doenças ou enfermidades.

Em janeiro de 1998, os membros do comitê executivo endossaram a proposta e a resolução foi adotada pela OMS (Khayat 1998:não paginado, grifo nosso, tradução nossa).

A sumarização desses três fatos sugerem a abrangência temporal e política que os debates sobre “espiritualidade” assumiram na OMS. A incorporação do termo como um eixo norteador para os programas de estratégia da saúde dos Estados membros da Organização foi o primeiro movimento oficial de legitimação do vínculo entre espiritualidade e saúde no âmbito daquela agência. Com isso, o debate, antes marginal, foi redimensionado e, nos quinze anos seguintes, as tentativas de ampliação da legitimidade do fator espiritual resultou na alteração do próprio conceito de saúde no preâmbulo do principal documento da Organização.

A 37ª Assembleia Geral da Organização Mundial de Saúde, ocorrida em 1983, é considerada por alguns pesquisadores (ver Khayat 1998) como o evento fundador dos debates sobre espiritualidade no âmbito da instituição7. Durante aquele evento, representantes de 22 países encaminharam uma proposta de resolução à Assembleia, solicitando a “consideração do fator espiritualidade como elemento determinante para a saúde humana” (Khayat 1998:não paginado, tradução nossa). O encaminhamento não foi acolhido sem resistências. O médico M. Savel’ev, delegado da União Soviética, e eleito para esse debate como porta voz dos países “em que a igreja está separada do Estado”, embora não tenha se contraposto ao reconhecimento da importância que a dimensão espiritual tem na saúde das pessoas em alguns dos Estados membros da OMS, tampouco subscreveu a resolução e ainda destacou “que o diretor geral [da OMS] encontrará dificuldades em considerar aspectos religiosos na elaboração e no desenvolvimento de programas de atenção primária” (Khayat 1998:não paginado, tradução nossa).

O problema colocado pelo delegado soviético dava indícios daquilo que era a condição para o estabelecimento da espiritualidade como uma categoria legítima em sua interface com a saúde, a saber: demarcar sua diferença em relação à religião. Os propositores da resolução pareciam estar conscientes da necessidade de fixar esse marco de diferenciação, tal como se pode depreender de outro relato publicado pela OMS sobre a sequência daqueles debates:

Apesar dos progressos que fazíamos em direção a alguma forma de consenso, havia uma grande dificuldade semântica no tratamento do termo e isso ameaçava o debate. As crenças religiosas eram cada vez mais mencionadas por alguns delegados e o significado da “dimensão espiritual” parecia estar perdendo a clareza. Não houve ambiguidades por parte dos propositores da resolução, mas o Dr. Al-Saif tomou novamente a palavra para afirmar que o projeto não estava baseado em qualquer crença religiosa específica. ‘Quem pensa que o projeto de resolução tem implicações religiosas ou dogmáticas está equivocado. O que estamos tentando mencionar não é nada mais e nada menos do que o lado espiritual das pessoas e não as religiões ou as doutrinas que elas seguem’ (Khayat 1998:não paginado, tradução nossa).

Essa espécie de economia da diferença acionada para tratar das relações entre religião e espiritualidade está sintetizada, portanto, no relato sobre a Assembleia da OMS transcrito acima: enquanto a espiritualidade é um lado da pessoa, a religião é uma doutrina que pode, ou não, ser seguida. O coletivo religioso que se forma pela via da adesão contrasta com o fundamento espiritual da pessoa, forjado, ao fim e ao cabo, na natureza humana. Ao final da assembleia, conforme relata a crônica de Khayat, a resolução foi recebida e aceita pela diretoria da OMS8. Quatro meses depois, em maio de 1984, foi publicado o texto final do documento WHA 37.13, relativo a essa demanda, que afirma ser “necessário o reconhecimento da espiritualidade como uma dimensão humana”9. Além desse documento, aquela Assembleia também aprovou, por 80 votos a favor, 33 contra e 12 abstenções, o incentivo da OMS a pesquisas científicas que investissem no desenvolvimento de técnicas de monitoramento e de avaliação da espiritualidade das pessoas.

A partir dessa narrativa sobre o processo de institucionalização da espiritualidade no âmbito da OMS é possível distinguir dois conjuntos de enunciados acerca da relação entre espiritualidade e religião. O primeiro, usualmente acionado por agentes contrários ao reconhecimento do impacto do “fator espiritual” na saúde, afirma que religião e espiritualidade são categorias que se sobrepõem. O segundo, mobilizado como parte da retórica favorável à ideia do vínculo entre espiritualidade e saúde, insiste em diferenciar as categorias.

Diante desse breve relato, é possível identificarmos pelo menos dois planos de convergência entre os argumentos apresentados no debate sobre espiritualidade na OMS e aqueles expressos na Política Estadual de Práticas Integrativas e Complementares do Rio Grande do Sul. Primeiro, em ambas as instâncias, a necessidade de diferenciar religião e espiritualidade é preeminente. Segundo, nos dois casos, a diferença entre as categorias está fundada no mesmo princípio de entendimento: a espiritualidade é parte da natureza da pessoa, enquanto a religião é a expressão de escolhas individuais. Conforme já afirmei, no entanto, definir espiritualidade é um ato e, nesse sentido, os marcos que a diferenciam da religião tampouco podem ser encarados como absolutos ou como desinteressados. Assim, se na PEPIC/RS, a diretriz dedicada ao reiki situa a religião fora do campo da terapêutica e, ao mesmo tempo, afirma a pertinência da atenção à espiritualidade, no cotidiano de oferta e de uso do reiki no Hospital Conceição, a relação entre essas categorias assume outras configurações. No que segue, continuarei delineando a existência de diferentes configurações da relação espiritualidade/religião no campo da saúde, mas passarei do âmbito prescritivo das proposições oficiais para a experiência do uso do reiki na sala de quimioterapia no GHC.

Razões clínicas, políticas e pragmáticas

Em 2008, a diretoria do setor oncológico do GHC introduziu, nas salas de quimioterapia do hospital, o serviço de reiki a partir do trabalho voluntário de duas terapeutas. Naquele período a PNPIC já estava lançada, e o Ministério da Saúde estimulava os hospitais e ambulatórios a aderirem à política por meio da distribuição de informativos e mesmo pela realização de seminários descentralizados em que as PICs eram apresentadas aos gestores do SUS. O pioneirismo do GHC em implementar o uso de uma Prática Integrativa e Complementar em um de seus serviços de alta complexidade, no entanto, deu-se a despeito da PNPIC ou de qualquer movimento das Secretarias e do Ministério da Saúde.

Lisandra, a terapeuta idealizadora da oferta de reiki no hospital e articuladora da implementação do serviço, tem sua própria narrativa sobre o início da oferta:

Eu sempre tive o dom da cura. Minha avó teve câncer e se tratou nesse hospital. Num dia, um dos médicos disse que ela não poderia sobreviver. Eu, sem curso de reiki e nem nada, fiz uma imposição de mãos nela e em 48 horas ela saiu do estágio que estava. Dali eu fui me aprofundar nas terapias. Como eu fiquei muito nesse hospital, vendo como os profissionais daqui sofriam de estresse e até depressão por causa do trabalho, um dia veio assim na minha cabeça “eu vou usar o reiki para aliviar essa tensão deles. E vou fazer isso às claras, dentro do hospital”. Aí em 2001 eu procurei o curso [de reiki]. Quase não se falava de reiki em Porto Alegre, era um mistério, diziam que era bruxaria ou religião, mas não tinha nada a ver com isso. Em 2002, eu já estava formada e elaborei o projeto. Aí comecei a me submeter, a conversar com os funcionários do lado de fora do hospital. Nisso eu descobri que eles faziam um momento de recreação no galpão dos funcionários. Em 2003 eu fui no setor administrativo, falei do projeto e fui autorizada a oferecer o reiki durante a recreação deles. Comecei na sala de estar dos funcionários, depois isso foi crescendo a ponto de que agora nós temos um horário fixo nos atendimentos aos funcionários dos 4 hospitais do GHC. Por enquanto é tudo voluntário, mas isso pode mudar, né? Com toda essa movimentação da política [PNPIC] (entrevista com Lisandra Alves, 06/2013).

O médico diretor da oncologia do GHC, Pedro Marcello, assim como muitos outros profissionais do hospital, conheceu o reiki por conta dessa oferta voluntária da terapia aos funcionários. Inicialmente, como relatou o médico, ele foi cético quanto ao valor clínico da prática, embora reconhecesse que, em alguns casos, ela pudesse oferecer, em suas próprias palavras, “um importante conforto para os pacientes”. Lisandra, que tinha um interesse especial em poder introduzir o reiki no setor oncológico do hospital, insistia com o médico sobre essa possibilidade, mas Pedro respondia ao pedido com o receio de quem achava pouco provável que a diretoria da instituição aceitasse a proposta:

A grande preocupação era o que a comunidade científica acharia ‘Ah! Estão fazendo terapias malucas no Conceição’. O Conceição já tem uma imagem de reserva da comunidade científica. Aqui, durante muito tempo, foi um hospital não ligado a nenhuma universidade, era um hospital privado, depois se tornou público, então o hospital tinha uma imagem meio ruim. E isso vem mudando, claro, à medida que vai se renovando e bons serviços vão aparecendo. Mas tem uma coisa, assim, meio discriminatória. Então eu, e toda a diretoria, tínhamos medo de que a gente caísse no descrédito (entrevista com Pedro Marcello, 08/2012).

A mudança de posicionamento do médico e de disposição da diretoria sobre o uso da terapia deu-se depois de um evento ocorrido no próprio setor oncológico do hospital.

O que aconteceu foi que uma mulher começou a vir aqui no corredor abordando as pessoas e dizendo, ‘não faz esse tratamento, não. Vem comigo’. Ela vinha aqui, ia no hospital da PUC, no Santa Rita… e ela era de uma igreja [evangélica]. Ela sabia onde era a quimioterapia de toda a cidade. ‘A tua cura tá na religião, vem comigo’. Tu pega a pessoa no desespero. Alguém que tem uma neoplasia, que o médico disse que não tem perspectiva, abandona o tratamento e vai. Então nós achamos que se o hospital pudesse oferecer isso, ao invés de deixar o paciente procurar por si, seria a melhor coisa. Porque ele pode ir para uma igreja que desvirtua o tratamento ou alguém pode mandar ele ir tomar um chá da Amazônia que ninguém conhece os efeitos… E a gente aqui conseguiria oferecer até de forma mais séria, com mais qualidade. E o paciente pode escolher, não é impositivo. Eu andei o mundo inteiro, conheci um centro [de tratamento contra o câncer] importante em Houston, onde eles têm uma pós-graduação só para a espiritualidade. Então vimos que o reiki poderia ser uma abordagem espiritual séria, não invasiva, o que é importante, e que dialogaria com todas essas pesquisas que falam da parte espiritual na saúde. Então isso agora é feito no âmbito institucional. De certa forma a instituição respalda, aí isso entra num programa de assistência integral ao paciente e, como descobrimos depois, ainda seguimos a recomendação da política [PNPIC] do Ministério da Saúde (entrevista com Pedro Marcello, 08/2012).

As justificativas do médico para apoiar a incorporação do reiki no setor de oncologia do hospital podem ser divididas em duas ordens: política e clínica. É política porque Pedro reconhece e sublinha a legitimidade da oferta a partir da PNPIC e do princípio de assistência integral ao paciente. Em conversas posteriores, o médico destacou que a existência da PNPIC foi um argumento central para que a diretoria técnica do hospital aprovasse a iniciativa de oferta do reiki aos pacientes. Aliado ao respaldo político, o médico também cita argumentos clínicos, relacionando as pesquisas sobre a influência da espiritualidade na saúde, os centros globais especializados no tema e, ainda, o fato de que o reiki é uma técnica não invasiva10.

Às justificativas clínica e política é sobreposta uma razão pragmática: a qualidade terapêutica do reiki em “cuidar da espiritualidade” serviria, na compreensão do médico diretor da oncologia, para evitar que os pacientes abandonassem os tratamentos hospitalares por razões religiosas. Para o médico, não se trata de estabelecer uma distinção substancial entre as categorias religião e espiritualidade, mas de diferenciar as práticas que desvirtuam o tratamento clínico daquelas que não o fazem. A formulação das diferenças entre espiritualidade e religião que interessa, nesse caso, está menos pautada pela relação do primeiro termo com a ideia de natureza humana e mais associado com o tipo de risco que as práticas religiosas ou espirituais podem oferecer às prescrições médicas. O reiki, nesse entendimento, seria, antes de tudo, um dispositivo clínico seguro, institucional e técnico de atenção à espiritualidade, capaz de constituir-se como uma alternativa à imperícia e aos riscos de recomendações religiosas e de serviços não hospitalares. É esse o contraste que parece estar em jogo quando Pedro Marcello se refere à “igreja que desvirtua o tratamento” e à “abordagem espiritual séria”.

Embora o valor terapêutico das sessões de imposição de mãos para pacientes de quimioterapia seja reconhecido pela diretoria do hospital, para o coordenador do setor oncológico, a oferta do reiki é principalmente um modo de atender, de forma segura e controlada, aquelas necessidades dos pacientes que são usualmente supridas pela religião. Longe de ser exclusivo do GHC, o entendimento da religião como potencialmente perigosa ao tratamento e da espiritualidade como associada a cuidados complementares e não concorrentes com ele é compartilhado, por exemplo, por pesquisadores como Harold Koenig, diretor do Centro para Espiritualidade, Teologia e Saúde, da Universidade de Duke. Em um de seus livros, Koenig afirma:

As crenças religiosas podem influenciar decisões médicas, entrar em conflitos com tratamentos médicos e influenciar a adesão do paciente aos tratamentos prescritos. O envolvimento do paciente em uma comunidade religiosa pode afetar o suporte e monitoramento recebido após a alta hospitalar. […] No papel de líderes na assistência médica, os médicos devem ser responsáveis por assegurar que as necessidades espirituais com probabilidade de afetar decisões médicas e desfechos de saúde sejam satisfeitas (2012:160).

Se podemos verificar certa recorrência no argumento que confere risco à religião, ao mesmo tempo que recomenda a espiritualidade, é preciso reconhecer a singularidade do modo encontrado pelo GHC para “satisfazer as necessidades espirituais” dos pacientes, a saber: por meio do reiki. Sobre isso, dois aspectos precisam ser sublinhados. Primeiro, estamos diante de um caso em que o serviço de saúde aderiu muito mais a uma terapêutica específica do que à Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares. Segundo, mesmo que haja no hospital um Fórum Inter-religioso (ver Giumbelli 2012; Giumbelli e Toniol 2017), que reúne líderes e sacerdotes dispostos a prestar assistência aos pacientes sem rivalizar com as prescrições médicas, a diretoria do setor oncológico optou pelo uso do reiki para “tratar a espiritualidade”. A seguir, desenvolverei esses dois tópicos.

Por que o reiki? Para que(m) serve a espiritualidade?

Embora as políticas públicas de apoio ao uso de PICs tenham sido fundamentais para a legitimação do reiki no GHC, ao que parece, o conjunto de terapias compreendido por essas políticas gozam de reconhecimentos desiguais por parte do médico-diretor da oncologia. Sua ênfase na qualidade não invasiva do reiki e, mais explicitamente, a menção ao risco que um “chá da Amazônia” poderia trazer ao tratamento oncológico permitem-nos suspeitar de quão mais controversa seria a demanda, por exemplo, pela introdução da fitoterapia ou de florais na rotina de atendimentos dos pacientes com câncer. Isto é, ao mesmo tempo que a PNPIC serviu como fundamento para justificar a incorporação do reiki no hospital, a diretoria do setor oncológico desconsidera as demais terapêuticas previstas pela Política e, do mesmo modo, o interesse em apoiar o uso do reiki não implica a adesão a seus princípios, objetivos e diretrizes por ela previstos.

A situação extrapola o caso específico do GHC e remete a um verdadeiro modo de funcionamento das políticas públicas de saúde relativas às PICs. Isso porque, embora todas essas políticas tenham como objetivo geral a promoção de princípios de atenção à saúde alternativos àqueles fomentados pela medicina ocidental, a “adesão” a elas passa muito mais pelo interesse em promover uma terapia específica do que pela disposição em concordar com as suas características de tratamento “não hegemônico”. A política, nesse caso, assim como toda a sua hipotética capacidade de ruptura com a medicina ocidental, parece ser secundarizada em nome do uso de uma terapêutica específica e por conta de objetivos particulares que justificam o seu emprego. No GHC, a principal razão para o emprego do reiki é pragmática e está apoiada na ideia de que a oferta de cuidados com a espiritualidade no âmbito do hospital é preferível aos riscos que a fé na religião pode oferecer para a continuidade do tratamento.

Para refletir sobre a opção do hospital pelo reiki, enquanto um serviço de atenção à espiritualidade alternativo à “religião perigosa”, é preciso levar em conta que, no mesmo hospital, pelo menos desde o início da década de 2000, serviços de atendimento religioso estão disponíveis aos pacientes e funcionários da instituição. Esses serviços são gestionados pelo Fórum Inter-religioso, uma instância que reúne representantes de diversos grupos (católicos, pentecostais, espíritas, afro-religiosos, etc.) dispostos a atender aqueles que os demandam. Os atores envolvidos com as atividades do Fórum, embora identificados com religiões específicas, também lançam mão da categoria espiritualidade e, em certa medida, parecem dialogar com o sentido a ela atribuído nos debates sobre o tema na OMS.

Um dos coordenadores do Fórum, um pastor luterano, manifesta explicitamente sua preferência pelo termo espiritualidade em detrimento da categoria religião para fazer referência aos atendimentos feitos no âmbito do hospital. Segundo ele,

[…] essa última seria específica e institucional; já a “espiritualidade” é algo genérico e que cabe a cada pessoa gerir. Mais do que isso, a “espiritualidade” é constitutiva do ser humano, de suas criações e de seus empreendimentos. É possível então falar em “inteligência espiritual” ou dizer que uma empresa é mais “espiritualizada” do que outra. Ainda de acordo com o pastor, o ser humano é composto por diversas dimensões: biológica, psicológica, social e espiritual; as doenças revelariam algum desequilíbrio entre essas dimensões. A assistência espiritual seria, portanto, importante para o cultivo dessa dimensão constitutiva do ser humano, contribuindo para o equilíbrio que caracteriza o estado de saúde (Giumbelli e Toniol 2017:155, tradução nossa).

Diante disso, vale perguntar, os serviços do Fórum Inter-religioso não poderiam ser utilizados no setor oncológico do hospital como uma forma de evitar as religiões que desvirtuam o tratamento? Embora essa certamente fosse uma opção válida e legítima para a diretoria do hospital, Pedro Marcello, em uma de nossas conversas, ressaltou a diferença entre o tipo de assistência espiritual prestada pelos serviços do Fórum e aquela dos atendimentos com o reiki: “aqui [no hospital] nós temos os religiosos, padres, pastores e tal, que até são parceiros. Eles acompanham os doentes que querem e tudo. Mas no setor nós não queríamos isso, queríamos alguém para integrar a equipe de profissionais mesmo, para fazer o serviço tecnicamente, se possível até com protocolo clínico”.

A diferença marcada pelo médico parece estar sintetizada no contraste entre o atendimento de assistência espiritual do Fórum e os cuidados de uma terapêutica dirigida à espiritualidade. O reiki, enquanto uma técnica despojada de vínculos religiosos, protocolada conforme as recomendações dos cursos de formação na terapia e, ainda, respaldada politicamente por resoluções dos órgãos de gestão da saúde e clinicamente por pesquisas das ciências médicas, parecia atender aos interesses de Pedro. Além disso, os serviços do Fórum Inter-religioso, por mais que lancem mão da ideia de espiritualidade, seguem pautados por identidades religiosas específicas, contrastando com os cuidados com a dimensão espiritual oferecidos pelo reiki que, para os gestores públicos e para os médicos da oncologia, não têm relação com o religioso.

Como mostrarei na próxima seção, o entendimento de que a prática terapêutica do reiki está completamente afastada da religião nem sempre é compartilhado pelos pacientes e, por vezes, tampouco pelos próprios profissionais de saúde.

Quando o reiki é religioso

Até aqui destaquei duas modalidades de relação entre religião e espiritualidade implicadas no uso do reiki como técnica terapêutica na rotina do Hospital Conceição. A primeira, descrita a partir das diretrizes dedicadas à terapia nas políticas de PICs, afirma o caráter não religioso do reiki empregado no SUS e, ao mesmo tempo, insiste na capacidade singular da prática em atentar para a dimensão espiritual da saúde humana. Já a segunda é relativa às justificativas apresentadas pelo diretor do setor oncológico para a realização das sessões de reiki nas salas de quimioterapia. Para o oncologista, a oferta da terapia de imposição de mãos, como um modo de atender à dimensão espiritual dos pacientes, poderia constituir-se como uma alternativa, institucionalizada e segura aos riscos que as práticas religiosas podem oferecer ao tratamento médico. Nesse caso, o reiki seria um modo de atenção paralelo, mas não necessariamente concorrente com aquele oferecido pelas religiões. A essas duas configurações quero ainda acrescentar uma terceira, que não diz respeito nem aos enunciados legais sobre o reiki e nem à posição do diretor do setor acerca do uso da terapêutica, mas que se refere, sobretudo, aos pacientes de quimioterapia que, por razões religiosas, recusam a prática de imposição de mãos.

Em julho de 2013, Sandra, a terapeuta que acompanhei durante o período de trabalho de campo no GHC, terminou uma nova etapa de sua formação como reikiana. Com esse curso concluído, ela avançou para o último estágio de capacitação na terapia, a partir do qual o profissional passa a ser habilitado para iniciar outras pessoas na prática. Em cada nível de treinamento na prática do reiki, o terapeuta aprende a dominar melhor a energia transmitida ao paciente, bem como se torna apto a mobilizar um novo conjunto de símbolos da terapêutica. Embora esses símbolos também existam noutras técnicas de imposição de mãos, entre todos os terapeutas que conheci, os símbolos mais utilizados eram oriundos da tradição japonesa de reiki. Eles funcionam como dispositivos que orientam a energia captada pelo terapeuta para finalidades específicas, tais como cura, proteção e força. Cada um dos cinco “símbolos” tem funções próprias, mas também podem ser empregados de forma associada.

Neste artigo, estou pouco interessado em discriminar os seus significados ou em enquadrar seus usos a partir de referências intrínsecas ao funcionamento da terapêutica. Mais pertinente do que isso é descrever como a nova capacitação de Sandra mudou sua forma de aplicar o reiki na sala de quimioterapia do Hospital Conceição e, ainda, como essa transformação teve implicações na aceitação da terapia entre os pacientes.

Em todas as vezes que observei o reiki ser procedido nas salas de quimioterapia do GHC o recurso terapêutico dos símbolos foi utilizado. Normalmente, seu emprego era antecedido pela série de imposição de mãos nos chacras dos usuários. Após completá-la, a terapeuta dirigia suas mãos para o local em que estava o tumor do paciente e, então, fazia pequenos movimentos com um ou dois dedos, desenhando os símbolos no ar de modo quase imperceptível. Com a conclusão do terceiro nível na sua formação como reikiana, Sandra alterou sensivelmente sua forma de aplicação dos símbolos, tornando os gestos empregados para reproduzi-los muito mais amplos. A mudança na forma de uso da técnica foi logo percebida pelos pacientes e pelos outros profissionais que trabalham no setor. Na medida em que romperam com uma estética comum aos demais procedimentos dispensados aos usuários com câncer nas salas de quimioterapia, as sessões de reiki passaram a sofrer resistência de enfermeiros e de pacientes.

A reação à nova forma de emprego da terapêutica ocorreu logo na primeira vez em que Sandra atendeu no Hospital depois de ter concluído aquela etapa de sua formação. Na ocasião, tal como sempre fizera, a terapeuta foi até um paciente, apresentou-se e ofereceu a sessão de reiki sublinhando o caráter opcional da assistência. Até aquele momento da pesquisa, eu poucas vezes presenciara a recusa à oferta da terapêutica. Quando ela ocorria, por sua vez, era justificada pela indisposição física dos pacientes por conta de reações aos quimioterápicos. O primeiro usuário atendido por Sandra naquele dia foi um homem, com idade por volta de 60 anos, que ainda se submetia às sessões iniciais de quimioterapia. Ele aceitou a oferta do reiki, e Sandra procedeu à imposição de mãos de modo semelhante ao que fizera nas outras vezes que a vi trabalhando. Após finalizar a série de canalização energética nos chacras, no entanto, em vez de manter suas mãos num local específico, onde concentraria a troca energética por meio dos símbolos “desenhados” com as pontas dos dedos, a terapeuta apontou, com uma de suas mãos, para uma parte do corpo do paciente e, com a outra, fez amplos movimentos, utilizando não apenas os dedos mas todo o seu braço. A cena chamou a atenção de quem estava na sala. As conversas cessaram por um instante, as enfermeiras que preparavam medicações a serem administradas pararam o que estavam fazendo a fim de observar a terapeuta, enquanto o paciente que recebia o reiki despertara do estado de sonolência que o dominava quando Sandra apenas impunha as mãos sobre ele. Depois de repetir o amplo gesto de “desenho do símbolo” três vezes, Sandra agradeceu ao paciente pelo aceite da terapia e dirigiu-se até Marilda, a usuária que estava na poltrona ao lado, e ofereceu o reiki. A paciente, que já havia recebido sessões da terapia noutras vezes e que conhecia a terapeuta pelo nome, não hesitou. Recusou a oferta dizendo em voz alta, para que todos ouvíssemos, “Você vai me desculpar, Sandra, mas eu sou cristã e não vou aceitar isso”. Sandra, que pareceu ter sido pega de surpresa pela reação da paciente, reforçou que a sessão de reiki era opcional, mas insistiu que a razão da recusa era infundada já que, em suas próprias palavras, “o reiki é uma técnica que trata o paciente como um todo, inclusive a parte espiritual, mas não é religião”.

A recusa de Marilda foi apenas a primeira de uma série de outras tantas que passei a presenciar nas salas de quimioterapia. Comum a todas elas era o argumento de que aquele procedimento ia de encontro com crenças religiosas dos sujeitos. Noutra ocasião de recusa, em agosto de 2013, Jandira, costureira de 53 anos e paciente em tratamento no Hospital há cinco anos, também reagiu ao ver a nova forma de aplicação da terapia: “Eu sempre gostei desse tratamento [reiki] que eles fazem aqui, mas agora que eu estou entendendo que isso é uma coisa meio estranha. Ela [Sandra] me explicou que é uma coisa de energia, mas pra quem é cristão a energia é Deus”. A terapeuta, que estava próxima da paciente, ainda tentou argumentar “Dona Jandira, isso não tem nada a ver com religião. É uma terapia. A gente trabalha com a energia cósmica, isso é espiritualidade, não é religião. O pessoal confunde muito as coisas”. Agradecendo a oferta de Sandra, Jandira recusou mais uma vez o tratamento e disse que iria orar pela terapeuta. Na sequência de Jandira, outros dois usuários rejeitaram a sessão de reiki alegando incompatibilidade entre a terapia e suas crenças religiosas.

Para alguns dos pacientes que recusam o reiki, a relação entre religião e espiritualidade parece assumir uma configuração distinta daquela que o médico-diretor do setor oncológico previu. Se, para ele, “tratar o espiritual” é uma qualidade que afasta a terapêutica do campo da religião, para certos pacientes a relação opera de modo diferente.

A atenção à espiritualidade torna a aplicação da técnica próxima demais e, por isso, concorrente com a religião. A alteração no modo de proceder o reiki também chamou a atenção dos outros profissionais que trabalhavam nas enfermarias do setor oncológico. Lurdes é enfermeira no GHC desde 2003. Quando a conheci, em 2013, ela já havia tirado duas licenças médicas por conta de problemas com depressão. Em 2010, “aceitou Jesus”, como ela mesma descreve o seu processo de conversão. Desde então, dizia Lurdes sempre que podia, passou a frequentar os cultos da Igreja Universal do Reino de Deus e, em 2011, sentiu-se curada da depressão. No início do uso do reiki nas salas de quimioterapia, Lurdes apoiou a oferta da terapia. Diante da mudança na forma de manipular a técnica procedida por Sandra, no entanto, a enfermeira reagiu:

Eu até incentivava os pacientes a fazerem. Sempre entendi aquilo como um auxílio ao tratamento. Um jeito de fazer os pacientes relaxarem, saírem um pouco daquele ambiente. Mas aí ela [a terapeuta] parece que se transformou. Ela vem aqui e parece que incorpora uma coisa e fica fazendo gestos no paciente. Isso de mexer com a espiritualidade, como ela diz, não está certo. Não aqui no hospital. Eu sou contra, até porque sou da igreja. Depois ela parou de fazer um pouco, mas aí todo mundo já tinha visto. Ela mesma se desmascarou (entrevista com Lurdes, 06/2013).

Não estou interessado aqui em estabelecer as diferenças entre usuários e profissionais da saúde como um ponto de corte para a organização da etnografia e dos argumentos apresentados. Neste caso, o que importa são as modalidades de configuração das categorias religião e espiritualidade entre os atores envolvidos com a oferta e com o uso de reiki no Hospital Conceição, o que, de certa maneira, coloca em segundo plano a distinção entre pacientes e terapeutas. Trata-se aqui, de sublinhar uma terceira modalidade de configuração entre as categorias: a capacidade da terapêutica de “tratar a dimensão espiritual” faz dela uma prática concorrente e, por vezes, antagônica a certas identidades religiosas.

É preciso ressaltar que, ao menos num primeiro momento, tal configuração emerge por conta de uma mudança na forma de aplicação do reiki e não a partir de transformações nos princípios da técnica. Para a terapeuta, num plano formal e abstrato, a qualidade de “tratamento espiritual” da prática do reiki estava igualmente implicada nos procedimentos que realizou antes e depois de concluir a terceira etapa de sua formação. Para os pacientes que passaram a recusar a terapia, bem como para alguns profissionais do setor oncológico, contudo, a mudança na forma do procedimento revelou a real intenção de cuidado espiritual da terapêutica.

Atentar para a relação entre os princípios da terapia e a forma como ela é realizada permite problematizar modelos de classificação das terapias alternativas/complementares que as apreendem exclusivamente por meio de suas características normativas11. Minha sugestão, nesse sentido, é considerar o estilo da prática como sendo não simplesmente a execução de um modelo terapêutico elaborado no plano das ideias, mas a condição de existência da terapia12. Com isso, tento dar visibilidade ao estilo da prática sem subordiná-lo a um hipotético conteúdo determinante. No limite, trata-se de uma tentativa de escapar da dicotomia entre forma e substância. Aliás, não seria essa também uma potente provocação dos abstracionistas descritos no início deste texto?

Essas considerações sobre o estilo da prática interessam na medida em que permitem compreendermos como, para os usuários que recusaram a terapia, o modo de imposição de mãos (isto é, o estilo do reiki) diz algo sobre a relação da técnica com a espiritualidade/religião. A descrição desse terceiro modo de configurar as relações entre as categorias (religião e espiritualidade) parece aprofundar a pertinência de questões que estiveram latentes até aqui: a promoção de terapias que “tratam da espiritualidade” não termina por também instituir novas modalidades de presença da religião em espaços públicos? O uso do reiki enquanto recurso terapêutico legítimo, dirigido às dimensões espirituais da pessoa e oferecido como um serviço de saúde pública, não impõe um novo regime de problemas aos analistas interessados nos temas do secularismo e da secularização? Tratarei dos tópicos relativos a essas problematizações a seguir13.

À guisa de uma conclusão: controvérsias na atenção clínica à espiritualidade

Ao longo deste texto, apresentei algumas das justificativas que fundamentam o uso do reiki no Hospital Conceição e outras que são mobilizadas nas reações ao uso da aplicação da terapia. A incorporação da técnica no cotidiano de tratamento de pacientes com câncer, corresponde, na perspectiva médica, a uma tentativa de amenizar os riscos que a fé na religião pode trazer às decisões dos usuários acerca da continuidade do tratamento quimioterápico. Para a diretoria clínica do hospital, assim como para as políticas de PICs, o reiki seria uma forma de atender às necessidades espirituais dos pacientes sem, no entanto, concorrer com a religião. Esse não parece ser o entendimento dos usuários que, ao recusarem a oferta terapêutica, reportam incompatibilidades entre suas práticas religiosas e o modo “seguro, institucional e técnico” de atenção espiritual que o hospital provê. O uso do reiki no GHC torna visível, assim, os contínuos esforços e as operações empenhadas na produção das diferenças entre religião e espiritualidade. Ele também apresenta os limites de terapêuticas dirigidas ao espiritual permanecerem, no entendimento de todos os sujeitos com elas envolvidas, alheias à religião. Descrito nesses termos, o caso do reiki no GHC pode ser aproximado a outros que também envolvem (in)definições sobre a relação entre religião e espiritualidade em serviços de saúde.

Tendo em vista que o principal organismo de gestão global da saúde, a OMS, legitima o entendimento de que o humano é, invariavelmente, um ser espiritual e que a espiritualidade é um fator determinante para a saúde, caberia ao Estado prover cuidados com o espírito? Ou ainda, negligenciar a espiritualidade não seria, no limite, um descaso com a saúde pública? E mais, como o Estado pode operacionalizar a oferta de cuidados com a dimensão espiritual sem ferir princípios como o da laicidade e da liberdade religiosa?

Winnifred Sullivan (2014), em suas pesquisas sobre capelania nos Estados Unidos, oferece-nos algumas pistas importantes para refletir sobre essas questões. A primeira delas está associada com o entendimento da categoria espiritualidade como algo que escapa dos marcos jurídicos que incidem sobre a religião. Ao contrário dos particularismos da religião, a espiritualidade, afirma a autora, denota alguma coisa que os seres humanos têm em comum (2014:8). É essa característica de elemento universal e intrínseco à humanidade que parece fundamentar a existência, nos Estados Unidos, de uma miríade de contextos em que o governo fala de seus cidadãos como naturalmente espirituais e com necessidades de assistência nesse campo. Sullivan cita alguns exemplos:

Recentemente, as forças armadas americanas envolveram-se numa controvérsia ao anunciarem que soldados poderiam ter o seu “vigor espiritual” testado como parte de uma iniciativa cujo objetivo era garantir a saúde das forças de combate do país. Os soldados, disseram os porta-vozes do exército, precisam estar com a saúde espiritual em dia para se engajarem num eventual esforço de guerra. Outro exemplo é o fato do órgão de regulação dos hospitais estadunidenses (que está pautado por normativas locais, estaduais e federais) requerer que todos os hospitais do país provejam alguma forma de assistência espiritual. Nessa mesma direção, a administração dos hospitais de veteranos de guerra determina que todos os pacientes de suas instituições devam receber atenção espiritual desde o início do tratamento. A oferta de espiritualidade em locais de trabalho, por sua vez, é um campo em ascensão, que parece escapar das leis de proibição religiosa em ambientes de trabalho. […] Escolas de capelães têm sido reinventadas como formadoras de pessoas habilitadas a tratar uma necessidade humana universal, e não a prestar os mesmos serviços dos ministros de igrejas específicas. Esquemas de assistência à espiritualidade em casos de ataque terrorista e em desastres naturais têm sido preparados junto a capelães em diversas cidades (Sullivan 2014:11, tradução nossa).

Certamente há nuances que precisariam ser depuradas para que compreendêssemos o que são essas referidas “espiritualidades” em cada uma das situações citadas por Sullivan. Ao reproduzir o trecho da autora, pretendo sublinhar, em primeiro lugar, a extensão que o discurso que articula saúde e espiritualidade tem adquirido noutras partes do mundo e como ele tem envolvido o Estado. Em segundo lugar, menciono o parágrafo para situar o processo que Sullivan descreve amplamente no livro A ministry of presence. Nesse trabalho, a autora demonstra como o reconhecimento da espiritualidade enquanto uma questão de saúde garantiu que capelães - experts no espírito, antes limitados à assistência religiosa nos hospitais - adquirissem um novo status e fossem incorporados às equipes de tratamento médico. Esses profissionais, afirma Sullivan, “deixaram de falar em nome de alguma confissão ou identidade religiosa particular e passaram a tratar da espiritualidade enquanto um aspecto natural e universal a todos os seres humanos” (2014:3, tradução nossa).

Por um lado, a situação analisada por Sullivan contrasta com aquela aqui descrita, uma vez que o que acompanhei não foi a incorporação de agentes religiosos nos serviços de saúde, mas a oferta de cuidados espirituais a partir de uma técnica terapêutica específica. Por outro, os casos convergem na medida em que, em ambos, as controvérsias desdobradas a partir deles estão associadas com tensionamentos na relação entre religião e espiritualidade.

No caso do reiki, conforme já apresentei, as modalidades de relação dessas categorias são elementos determinantes para compreender as razões do apoio à oferta terapêutica na instituição, bem como para avaliar as justificativas de recusa à terapêutica de imposição de mãos. No hospital gaúcho, a diferença de entendimento sobre o caráter religioso ou espiritual da prática resultou em controvérsias restritas ao âmbito do hospital, ao passo que, nos Estados Unidos, segundo Sullivan, o debate sobre as fronteiras entre religião e espiritualidade adquiriu contornos de contenda jurídica.

A principal instituição de regulação e de organização dos serviços de saúde dos Estados Unidos afirma que os cuidados com a espiritualidade dos usuários de hospitais e clínicas devem estar incorporados em alguma instância do tratamento clínico (Sullivan 2014:33; Cadge 2013:39). A Freedom from Religion Foundation (FFRF), uma organização dedicada a promover o livre pensamento e a proteger o princípio de separação entre Estado e Igreja, por sua vez, questiona a constitucionalidade da assistência espiritual promovida em alguns hospitais do país (Sullivan 2014)14. Motivada por isso, em 2005, a FFRF acionou a justiça de um distrito de Wisconsin questionando a Administração dos Hospitais de Veteranos de Guerra sobre a utilização de recursos públicos para oferecer, entre outros serviços, assistência espiritual aos seus pacientes num hospital daquele estado. Naquela instituição, a atenção à espiritualidade está presente desde quando o paciente inicia seus tratamentos e é submetido a uma espécie de anamnese que avalia o “vigor espiritual” do usuário até, dependendo do diagnóstico, a prescrição de atendimentos específicos que serão conduzidos pelo especialista clínico no assunto, o capelão15. A FFRF alegou que esses tratamentos ferem o princípio da liberdade religiosa, o que é agravado pelo fato de envolverem recurso do Estado. O hospital, por sua vez, não reconhece a assistência espiritual como uma prática religiosa, mas antes como um modo de atenção a uma das dimensões universais e naturais de todos os seres humanos.

A sentença do tribunal que julgou o caso é emblemática. Na decisão, o juiz estabeleceu uma distinção entre “capelania pastoral”, vinculada aos princípios dogmáticos da religião, e “capelania clínica”, baseada num protocolo de atendimento universal e integrado àqueles utilizados pela equipe de profissionais da saúde. Para a corte que julgou o caso, a capelania do hospital em questão deixou de proceder “atendimentos espirituais” com perfil pastoral para especializar-se na oferta de cuidados clínicos:

No início, o foco primário da capelania do hospital era de natureza sacramental e envolvia cuidar de pacientes em estado terminal, conduzindo orações e administrando sacramentos. Entretanto, ao longo dos últimos dez anos a capelania da instituição tem desenvolvido um foco cada vez mais clínico […]. Atualmente a capelania clínica praticada na instituição está se valendo de aportes das ciências comportamentais e de reflexões teológicas para o entendimento da condição humana […]. E o hospital passou a entender que os cuidados com a dimensão espiritual da saúde devem ser integrados em todas as etapas do cuidado com o paciente, na pesquisa, na preparação para situações de emergência e na educação em saúde (Sullivan 2014:158, tradução nossa).

Enfatizando o treinamento profissional dos capelães para o atendimento clínico, a corte ainda sentenciou que os serviços de capelania oferecidos naquele hospital eram espirituais e não religiosos, isso porque “um capelão treinado para a clínica não menciona ou fornece instruções religiosas (a menos que isso seja um desejo do paciente). O que esse profissional faz [e é assim que se procede no hospital em questão] é abordar a espiritualidade do paciente” (Sullivan 2014:158, tradução nossa).

A controvérsia envolvendo a capelania no hospital de Wisconsin permite-nos identificar três planos de comparação com a situação analisada ao longo deste artigo. Primeiro, enquanto nos Estados Unidos os especialistas contratados para atender às demandas da dimensão espiritual dos pacientes são agentes religiosos treinados para atuar na “capelania clínica”, no Brasil, os experts em espiritualidade são terapeutas holísticos. Esse primeiro plano de diferenciação leva-nos a um outro, o dos modos de cuidado com a espiritualidade. Embora Sullivan não descreva em detalhes como atuam os capelães clínicos, ela nos dá algumas pistas ao longo do texto que, associadas com informações de outros autores (Cadge 2013), nos permitem depreender que esses atendimentos consistem, sobretudo, em conversas e aconselhamentos. Isto é, uma relação fundada na escuta dos pacientes. Já no GHC, o modo de atenção à espiritualidade é via a prática do reiki, cujo modo de aplicação é absolutamente indiferente à escuta do usuário. Na prática do reiki, tal como procedida no GHC, as únicas perguntas que a terapeuta dirige ao usuário são se ele aceita a terapia e qual é o seu tipo de câncer. Algumas vezes, conforme observei, a terapeuta consulta o prontuário do paciente e sequer o questiona sobre sua doença. O diagnóstico espiritual, o tratamento e a cura procedidos a partir do reiki, explicava-me Sandra numa ocasião, “são feitos no plano energético e por isso não precisam da interação com o paciente, ele até pode ser mudo que não faz diferença para nós”.

O terceiro plano de comparação entre os casos aqui apresentados sugere uma convergência entre eles. Em ambos, o tratamento espiritual é oferecido como um modo de atenção complementar. No hospital estadunidense, essa caraterística fica explícita à medida que o capelão clínico é incorporado à equipe de profissionais de saúde e alia sua prática a outras modalidades de tratamento do paciente realizadas no âmbito da instituição. No GHC, por sua vez, o reiki é complementar porque compõe, junto com a terapia principal e sem concorrer com ela, a complexa rotina de tratamento contra o câncer. Ao mesmo tempo, o princípio da complementariedade, sobretudo se compreendido como oposto à ideia das terapias alternativas, também pode servir como chave para compreendermos outras características da oferta de reiki no GHC. A partir desse jogo entre o alternativo, entendido enquanto modelo contraposto à medicina hegemônica, e o complementar, podemos sublinhar que, para o médico diretor da oncologia, a terapia reiki pode ser espiritual ou até mesmo religiosa desde que essa oferta assuma contornos complementares e não alternativos ao tratamento. Já para os usuários que recusam o reiki, o que parece estar em jogo é a compreensão de que o reiki não é complementar, mas sim alternativo à religião.

Sullivan conclui sua análise do caso do hospital em Wisconsin afirmando que, “ao menos nos Estados Unidos, embora a lei se apresente como secular, todos os cidadãos são crescentemente entendidos como universal e naturalmente religiosos - necessitando de cuidado espiritual” (2014:160, tradução nossa). A afirmação anuncia a posição da autora diante do caso: para ela, a controvérsia explicita como a religião vem sendo naturalizada e avalizada pela lei nos Estados Unidos (Giumbelli e Toniol 2017). A categoria espiritualidade seria, nessa perspectiva, um novo modo de estabelecimento da religião ou, no limite, um modo de dissimular a religião em uma formulação que permite a concordância e o apoio do Estado.

Minha posição, por sua vez, diverge da de Sullivan porque estou pouco interessado em desvelar a espiritualidade mostrando o que há de religioso nessa categoria. Meu objetivo, como tentei apresentar, foi apostar na pertinência analítica de tratar a espiritualidade como o produto histórico de processos discursivos, cujas formas de relação com a religião são contingenciais e não predeterminadas. Como afirmamos noutro texto,

Aproximar-se das rotinas e da estrutura de um hospital obriga conjugar discursos a práticas e configurações institucionais específicas, e é no encontro desses vetores que certas resultantes se definem. Salientamos que essas definições marcam sobretudo possibilidades que se colam à noção de espiritualidade. Ou seja, a resultante não corresponde a uma substância precisa ou a uma direção unívoca. Espiritualidade é uma categoria que importa porque permite alterar a forma de organizar a realidade. Com sua presença, a relação entre secular e religioso é redimensionada, sem que a distinção seja dissolvida. O secular pode acolher uma técnica que, não houvesse a possibilidade de caracterizá-la por seu vínculo com a espiritualidade, poderia ser vista como religiosa. O religioso, quando concebido em termos de assistência espiritual, pode estar presente em espaços seculares e ser acolhido como aliado no cuidado terapêutico. Mas exatamente porque as distinções entre religioso e secular não são dissolvidas, elas continuam a atuar para organizar a realidade, e podem mesmo ser reforçadas ao se combinarem com a espiritualidade. Seja como for, o que está em jogo é ainda a definição dos domínios que constituem a realidade e a sociedade, fazendo a diferenciação do religioso em relação a outras esferas passar por uma reformulação (Giumbelli e Toniol 2017:165, tradução nossa).

Trata-se, com isso, de associar-me à agenda de pesquisas sobre espiritualidade proposta por autores como Courtney Bender e Omar McRoberts (2012), cujo postulado fundamental é não tratar a religião ou a espiritualidade como categorias com núcleos, identidades ou qualidades estáveis, e tampouco assumir que espiritualidade é, necessariamente, algo que contrasta ou se opõe à religião (tal como na fórmula “espiritual, mas não religioso”). Sequer parto da presunção de que haja uma relação categórica particular entre espiritualidade e religião (Bender 2007; Taves e Bender 2012; Ammerman 2011). Viabilizar essa atenção à espiritualidade, portanto, depende da investigação pormenorizada das relações contextuais (e contingenciais) que a categoria estabelece com a religião - e com outros termos.

Conforme espero ter demonstrado, aderir a uma analítica atenta à espiritualidade foi chave para que pudesse explicitar os variados posicionamentos, de pacientes, de médicos e das próprias políticas de PICs, acerca da oferta do reiki no Hospital Conceição. Se definir espiritualidade é um ato e não há nada de aleatório no emprego da categoria, meu esforço aqui foi o de expor os múltiplos atos que pautam o cotidiano de apoios, ofertas, recusas e de aceites do reiki nas salas de quimioterapia do GHC. Mais do que um recurso teórico, essa perspectiva impôs-se, nestas reflexões, como condição para análise do modo de funcionamento daquela oferta terapêutica.

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Documentos consultados

  • BRASIL. Ministério da Saúde. (2006), Política Nacional de Práticas Integrativas e Complementares em Saúde Ministério da Saúde, Secretaria de Atenção à Saúde, Departamento de Atenção Básica. Brasília: Ministério da Saúde.
  • RIO GRANDE DO SUL. (2013), Resolução nº 695/13. Política Estadual de Práticas Integrativas e Complementares Porto Alegre: Secretaria Estadual de Saúde.
  • ______. (2014), Política Estadual de Práticas Integrativas e Complementares Porto Alegre: Secretaria Estadual de Saúde.

Entrevistas

Entrevista com Lisandra Alves, junho de 2013.

Entrevista com Lurdes, junho de 2012.

Entrevista com Pedro Marcello, agosto de 2012.

Notas

  • 1
    Agradeço aos pareceristas anônimos de Religião & Sociedade pela leitura atenta e preciosas sugestões em benefício deste texto.
  • 2
    A afirmação é similar àquela feita por Emerson Giumbelli (2011) que, num texto revisional da obra de Talal Asad, a utiliza para comentar a posição do antropólogo saudita sobre a categoria “religião”.
  • 3
    Na tentativa de marcar a tensão permanente entre diversos atores sociais pela definição do estatuto dessas terapêuticas, utilizarei, em alguns trechos deste texto, como estratégia narrativa, o termo terapias alternativas/complementares.
  • 4
    O trabalho de campo que fundamenta este texto foi realizado entre os anos de 2012 e 2014. Nesse período realizei observações regulares no centro de tratamento quimioterápico, assim como realizei entrevistas com médicos, enfermeiros e com os próprios pacientes.
  • 5
    Propositadamente, opto por não definir o que seja reiki valendo-me, em contrapartida, de uma definição oficial da prática. Assim procedo, primeiro, porque a definição e a história da prática são campos de disputas entre os profissionais que a realizam. E, segundo, porque retoricamente me parece interessante não realizar uma ampla contextualização da prática, mantendo o leitor, de alguma maneira, próximo da situação vivida pelos pacientes quanto às informações sobre o que seja a terapia por eles recebida. Fonte: Secretaria Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul. Resolução nº 695/13. Política Estadual de Práticas Integrativas e Complementares, 2013.
  • 6
    O texto da diretriz 2 da PEPIC/RS estabelece o estímulo à “implantação das terapêuticas floral, reiki, práticas corporais integrativas, terapias manuais e manipulativas (massoterapia, osteopatia e quiropraxia), terapia comunitária e dietoterapia e recomendação de outras práticas complementares”.
  • 7
    Temos acesso aos debates ocorridos durante essa Assembleia graças a dois textos. O mais antigo deles é a crônica escrita pelo delegado do Egito no evento, o médico M. H. Al-Khayat (Disponível em: http://www.medizin-ethik.ch/publik/spirituality_definition_health.htm. Acesso em: 13/11/2014). A segunda narrativa sobre o evento está no livro EMRO Partner in health in the eastern mediterranean 1949-1989, publicado pela própria Organização Mundial de Saúde em 1991 (Disponível em http://apps.who.int/bookorders/anglais/detart1.jsp?codlan=1&codcol=46&codcch=9. Acesso em: 07/12/2014). Embora esses textos tenham sidos essenciais para a obtenção das informações descritas nesta seção, eles são pouco sistemáticos e bastante sintéticos.
  • 8
    Como já afirmei, há poucos dados disponíveis sobre esse debate. Parte das informações citadas foram obtidas graças ao auxílio dos bibliotecários da University of California San Diego, a quem agradeço o apoio na pesquisa. A resolução encaminhada para a diretoria da OMS possui o seguinte registro na entidade: documento Jan. 1984 EB73/l984/REC/l, 2.
  • 9
    Há uma ambivalência nessa resolução que ora trata a espiritualidade como uma dimensão da saúde humana, ora como uma dimensão humana. Nesse documento, tais formulações parecem ser usadas de forma intercambiável.
  • 10
    O caráter não invasivo e o fato de que, para aplicar o reiki, o terapeuta não toca o paciente são aspectos constantemente destacados pelos médicos do setor oncológico quando argumentam pela segurança da prática. Essas características também são destacadas por outros profissionais do setor para defender que “se o reiki não tem efeito, ele também não faz mal”.
  • 11
    Atentar para a importância da estética das terapias alternativas/complementares para caracterizá-las e também para compreender seus usos, aceites e recusas é um recurso pouco utilizado pelos pesquisadores do tema. No Brasil, por exemplo, a tradição acadêmica majoritária nas pesquisas sobre PICs, aquela que adere ao conceito de racionalidades médicas (Luz 1996), mantém os estilos e formas de realização terapêutica como um aspecto absolutamente marginal para a caracterização das “racionalidades” que descreve.
  • 12
    Reconheço nessa perspectiva a influência de autores como Isaac Weiner (2013) e Birgit Meyer (2013) que têm debates de suma importância para problematizar as relações entre religião, materialidade e estilo de prática.
  • 13
    A essas e outras questões também me dedico no texto escrito em parceria com Emerson Giumbelli (Giumbelli e Toniol 2017).
  • 14
    As informações descritas a seguir foram retiradas do texto de Winnifred Sullivan (2014:33-50).
  • 15
    A prática de anamnese espiritual também ocorre em alguns hospitais do Brasil. Dentre eles, conforme pude apurar em trabalho de campo, destaco a pioneira experiência do Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas, em São Paulo, que faz essa avaliação desde meados dos anos 2000.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Dez 2017

Histórico

  • Recebido
    30 Maio 2016
  • Aceito
    19 Out 2017
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