Open-access Conjugalidades e afetividades evangélicas on-line: o aplicativo Amor em Cristo e o efeito religioso sobre as relações de gênero

Conjugalities and evangelical affections online: the Amor em Cristo App and the Religious Effect on Gender Relations

Resumo:

O presente trabalho tem como objeto os vínculos constituídos a partir do aplicativo de relacionamentos Amor em Cristo (AeC). Por meio da análise dos perfis dos usuários e de entrevistas, buscou-se compreender de que forma a fé contribui para a reestruturação das relações de gênero na conjugalidade hodierna. Conclui-se que, com base no status moral conferido pela religiosidade, as mulheres evangélicas modificam a lógica das interações em aplicativos de relacionamento, agenciam seus afetos e centralizam a amizade como instrumento de espera por um período maior para a constituição da intimidade.

Palavras-chave: Evangélicos; Gênero; Amor; Sites de relacionamento

Abstract:

The object of the present work is the bonds created from the matchmaker Amor em Cristo (AeC). Analyzing the profiles of users and through interviews, we sought to understand how faith contributes to the restructuring of gender relations in today’s conjugality. It is concluded that, from the moral status conferred by religiosity, evangelical women modify the logic of interactions in relationship apps, manage their affections and centralize friendship as an instrument of waiting for a longer period for the constitution of intimacy.

Keywords: Evangelicals; Gender; Love; Dating Site.

Introdução

Se forem tomados como certos os diagnósticos dados por alguns consagrados autores que trataram das afetividades e conjugalidades contemporâneas, como Anthony Giddens (1993) e Zygmunt Bauman (2002), essas relações serão vistas como estando em constante tensão. O que se convencionou chamar de modernidade tardia tem crescentemente colocado em xeque os papéis de gênero tradicionais e o ideal do amor eterno, baseado na noção de complementariedade dos papéis. Cada vez mais, os indivíduos são vistos como responsáveis pelo sucesso ou fracasso de sua vida amorosa, e suas relações são percebidas como baseadas em um pragmatismo que constantemente impõe o ponderar sobre o que se pode ganhar ou perder em certo investimento afetivo. Os arranjos dos sentimentos, sendo agora bem mais negociados do que outrora, demandariam “estar sóbrio” e com a “calculadora em mãos”; o vínculo passaria a operar na lógica de uma conexão, que pode ser desfeita facilmente sem maiores consequências e garantias para ambas as partes. O ideal de amor romântico, por meio da construção de uma biografia do casal, teria combinado o ardor do amor-paixão (desaprovado socialmente) com a viabilidade de cumprimento dos acordos sociais, ou seja, de um destino em comum. Apesar disso, nos dias de hoje, esse tipo de afetividade já estaria sendo substituído por formas mais fluídas, em que os indivíduos se engajam nas relações pelo que podem imediatamente tirar delas; tratar-se-ia dos ditos “relacionamentos puros” (Giddens 1993).1

Ao olhar para o âmbito virtual, há ainda outras nuances a respeito das relações afetivo-sexuais, que decorrem de interações via mediador. São os aplicativos conhecidos como matchmakers, cujo objetivo é facilitar encontros amorosos. Eles indagam quem somos, do que gostamos, quais características possuímos. Acessá-los demanda a criação de personas on-line. Escreve-se uma biografia sobre quem se é (personalidade e o que se procura em termos afetivos), uma identidade digital, constituída de forma reflexiva. Assim, quem nele adentra é avaliado pelos possíveis pretendentes com base nessas informações e nas imagens escolhidas para se representar. Essa “apresentação do eu” privado em uma dimensão pública é feita para uma plateia de “eus”, também privados e deslocados para aquela esfera. Ao que tudo indica, todos serão selecionados a partir do paradigma da escolha do melhor perfil, ou seja, via estrutura mercadológica (Illouz 2011), como numa espécie de cardápio digital para relações afetivas. Tais instrumentos conectam indivíduos, mas sem oferecer a segurança de que o vínculo perdurará.

Atualmente, existem diversos matchmakers voltados aos mais variados públicos, como o de homossexuais, idosos, entre outros. Diferentemente das antigas agências de casamento e anúncios de jornais, o baixo custo de acesso, a facilidade e a praticidade do uso fazem com que a adesão a esses aplicativos seja bastante elevada (Jardim & Moura 2017). Como alguns deles, no entanto, são lidos pelo grande público como intermediadores quase que exclusivos de encontros sexuais, talvez possa surpreender que existam aqueles voltados explicitamente à audiência cristã. É o caso do Amor em Cristo (AeC).2 Criado em 2003 por um grupo de evangélicos que percebeu a necessidade de um matchmaker orientado para o segmento da fé, o AeC possui mais de 3.110.000 usuários cadastrados, sendo a maioria evangélica. Ele está disponível em diversas plataformas, permitindo o acesso tanto por website quanto por aplicativos disponíveis para vários sistemas operacionais.

Esse matchmaker incorpora elementos típicos de aplicativos de encontros e, ao mesmo tempo, possui funcionalidades e recursos direcionados aos cristãos. A primeira tarefa atribuída ao usuário do AeC é o cadastro do seu perfil na plataforma. Nessa etapa, o aplicativo solicita que sejam inseridas imagens do rosto dos participantes (sugerindo que o corpo deve ser ocultado), além de estado civil, altura, peso, se possui e/ou deseja ter filhos, se tem o hábito de beber ou fumar, a formação acadêmica e a profissão.

Dado seu caráter cristão, dedica uma seção do perfil à descrição da religiosidade. Nela, é solicitado que o usuário informe sua denominação (tratando a religião católica como uma delas), seu estilo de adoração (tradicional, pentecostal ou intermediário), com qual frequência vai à igreja e o nível de importância da religião em sua vida. Também é preciso descrever o perfil das pessoas com as quais se deseja interagir, utilizando os atributos supracitados como filtro. Por fim, o usuário deve fazer uma apresentação de si, completando três frases: “Me considero uma pessoa...”, “Estou à procura de...”, “Minhas preferências são... (filmes, músicas, o que gosto de fazer)”.

Após a conclusão do cadastro, o usuário começa a receber devocionais diárias em seu e-mail, que têm como propósito oferecer conselhos e palavras de fé relacionadas ao amor e aos relacionamentos. As devocionais podem ser descritas como guias para um período dedicado a estar a sós com Deus, seja através de meditação, oração ou outro tipo de louvor. Elas parecem desempenhar um papel fundamental em assegurar o caráter sagrado e distintivo desse serviço de matchmaking.

Segundo Stolow (2014:152), a incorporação de artefatos tecnológicos no mundo religioso não é fato novo, já que “a comunicação com e sobre o sagrado foi empreendida através de diversas culturas materiais e formas de mídia”. Ele salienta que a religião sempre está “entrelaçada aos objetos, técnicas e instrumentos do mundo material no seio do qual os atores e as ações religiosas são incorporados, com base no qual ideias, experiências, práticas e modos de associação religiosos se tornam possíveis” (Stolow 2014:152). No caso brasileiro, as estratégias de visibilidade midiática levadas a cabo por inúmeras igrejas, como a IURD (conhecida por seu conglomerado comunicacional), abrem caminho para o ganho de legitimidade da presença religiosa no espaço público. A indústria midiática e comercial evangélica, que explode nos anos 1980 e 1990 (Cunha 2007), representa a consolidação de um grupo “que consome bens culturais pensados para ele próprio e organizados com o propósito máximo de se apresentar como substitutivo ao mercado secular [...], oferecendo produtos que vão ao encontro das sensibilidades evangélicas moralmente desejáveis” (Bispo 2021:27). É nesse contexto que opera a articulação entre as práticas típicas dos aplicativos matchmakers e as demandas do mercado evangélico/cristão.

Apesar dessa adaptação do meio religioso aos parâmetros relacionais contemporâneos, a literatura especializada aponta que, de maneira geral, as conjugalidades dos evangélicos se pautam na heteronormatividade e no moralismo. Enfatiza-se a virgindade pré-marital (e não apenas para as mulheres), condena-se a traição, suscita-se a gentilização dos homens e se evita, ao máximo, o divórcio (Cf.Duarte 2005; Machado 1996; Mafra 1998; Mariz & Machado 1996; Rosas 2018). Ainda assim, é importante mencionar que vem se observando negociações importantes por partes dos fiéis entre as prescrições religiosas e as práticas regulares. Reis (2017), por exemplo, durante etnografia em uma boutique sensual no complexo do alemão, percebeu que objetos e serviços perdem a conotação pornográfica e passam a ser ofertados como elementos sensuais promotores da saúde física das fiéis e garantidores da continuidade do matrimônio.

Em relação aos direitos reprodutivos, o emprego de métodos contraceptivos, como a utilização de pílulas anticoncepcionais e procedimentos de esterilização (tanto masculinos quanto femininos), vem se revelando significativamente mais prevalente entre os evangélicos do que entre os católicos (Machado 1995). De maneira similar, entre os pentecostais e carismáticos mais contemporâneos, observa-se um aumento na aceitação do planejamento familiar e o reconhecimento da conexão entre sexo e prazer (Mariano 1999; Rosas 2018). A ressignificação de práticas abortivas também foi algo relatado por Teixeira (2012, 2016), ao documentar a defesa do pastor Edir Macedo de uma concepção de fé racional, que entende que a chegada de filhos não planejados pode afetar adversamente a qualidade de vida da família.

Considerando, então, que o AeC sugere a junção (ou a síntese?) entre modalidades de constituição de relações mais fugazes e valores de cunho religioso (supostamente mais conservadores), este artigo se volta a investigar se, nesses espaços digitais, a adesão de fiéis promove relações afetivas mais simétricas entre homens e mulheres. Que tipo de conjugalidades e afetividades se busca? Quais são os papéis de gênero performados em um aplicativo de relacionamento cujo público é composto essencialmente por cristãos?

Notas sobre afetividades e conjugalidades evangélicas

Nos campos da Sociologia e Antropologia da religião, ao longo da década de 1990, uma série de trabalhos deslocou o debate do imbróglio da secularização para incursões etnográficas que visavam dar conta das práticas religiosas dos indivíduos. Ainda que orbitando em torno do primeiro tema - religião proporcionando inserção das mulheres na esfera pública e nas atividades congregacionais, aumento da participação dos religiosos na política e novas possibilidades de pertença religiosa que não as tradicionais -, estudos como os de Machado (1996) e Machado e Mariz (1997) chamaram a atenção para outras questões. Entre elas, a interlocução de gênero e adesão religiosa, buscando compreender em que medida as experiências das mulheres no pentecostalismo e nas Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) reforçariam ou questionariam os elementos da subjetividade feminina, até então desenhados a partir do quadro da abnegação, da submissão e da indeterminação.

Ao enxergar a religião para além de um instrumento de dominação, as autoras perceberam consequências não-intencionais produzidas pelo engajamento religioso, como atitudes e comportamentos promotores de autonomia feminina. No caso das CEBs, o estímulo à autonomia estava vinculado ao engajamento na esfera pública. As questões do universo privado, incorporadas na agenda de luta política, eram relacionadas às dificuldades materiais, deixando apagada a dimensão da opressão das mulheres.

No caso dos pentecostais, as pesquisas davam ênfase principalmente às dinâmicas de conjugalidade no lar. Desavenças entre marido e esposa, desemprego do chefe de família, depressão e outros problemas situados na vida privada refletiam no âmbito congregacional, de modo que uma estratégia utilizada pelas mulheres para a solução de alguns desses problemas, especialmente aqueles vinculados à violência doméstica, ao alcoolismo e ao uso de outras substâncias ilícitas, era estimular a conversão dos maridos e dos filhos ao seu sistema de fé (Mariz 1994; Machado 1995). Segundo as autoras: “É mais estratégico atrair os companheiros do sexo masculino para a igreja do que tentar mudar a relação de poder machista já estabelecida enquanto esses companheiros não compartilharem os mesmos ideais” (Machado & Mariz 1997).

Como se vê, o pentecostalismo ajudou a relativizar o sistema hegemônico de gênero, já que foi produtor da aproximação dos homens com o lar, a chamada “androginização das famílias populares” (Machado 1996). A identidade masculina brasileira, normalmente associada à virilidade e à agressividade, perdia, assim, força na medida em que os homens se convertiam a uma religião que apregoava que eles deveriam adotar, assim como as mulheres, atributos como docilidade, tolerância, carinho, cuidado etc., levando uma vida ascética erigida por uma moral sexual rígida. A partir da conversão, muitos homens passaram, então, a ser mais atenciosos com a família, a participar mais na educação dos filhos e a dedicar mais recursos para o lar (Machado 1996; Mariz 1994).

Esses trabalhos postularam que o dogma religioso, atualizado no contexto social, permitia a superação de situações desvantajosas para as mulheres, sem, contudo, superar a desigualdade entre os gêneros. Apresentava-se, assim, a ambivalência apontada por praticamente todos os estudos que se sucederam. Mas a interpretação de tal posicionamento não foi ponto pacífico. Para Clara Mafra (1998), por exemplo, importava ler tais preceitos como um fim em si mesmos e não como “etapa intermediária de um devir social”, afinal, os evangélicos recorreriam tanto a concepções igualitárias quanto hierárquicas nas relações de gênero, dependendo do assunto em voga.

Mafra mostrou que, no que toca à sexualidade, 89% dos evangélicos opinaram que “a moral sexual do homem e da mulher deve ser igual”. Contudo, essas noções igualitárias não andaram pari passu com o discurso da liberação dos costumes e da liberdade sexual. Nas questões sobre virgindade: 84% dos evangélicos concordaram que “A mulher deve chegar virgem ao casamento” contra 16%, o que estabelece uma continuidade com o valor tradicional da castidade feminina. Entretanto, os evangélicos, contra o valor moral tradicional da afirmação da liberdade no exercício da virilidade masculina, esperam que “O homem deve chegar virgem ao casamento”, com 69% de opinião favorável, contra 31% (Mafra 1998:229).

A despeito de certa desigualdade de expectativa sobre a virgindade masculina em comparação à feminina, fica visível o grau de conservadorismo evangélico depreendido da pesquisa.3 Certas denominações, como as históricas e batistas, foram enquadradas pela autora como “evangélicos liberais”, cuja discordância era maior em relação à ideia de ser o homem a autoridade do lar (48% discordavam). Esses mesmos religiosos, mais “igualitários” em relação aos gêneros, no entanto, concordavam em 72% que os homens deveriam chegar virgens ao casamento.

Embora com referenciais teóricos não necessariamente congruentes, é comum entre Mariz, Machado e Mafra o apontamento para a importância da adesão religiosa dos homens na promoção de uma relativa autonomia feminina. Couto (2002) apontou ainda outras similaridades entre esses trabalhos. Para ela, o fato de a maioria dos artigos ser escrito por mulheres feministas ou afins a esse ideário fez com que a interlocução com o feminismo oferecesse contornos específicos para as análises da relação gênero e religião. Na medida em que lograram desvelar o caráter público da dimensão privada, as abordagens traduziram as vivências evangélicas com base em parâmetros não necessariamente compartilhados por esses religiosos.

Couto enfatiza que, nos segmentos populares, quando o padrão de gênero pautado na reciprocidade e complementariedade é rompido, homens e mulheres buscam soluções para o reordenamento da identidade e biografia com vistas à manutenção do arranjo conjugal, já que, nessas camadas sociais, a família é a referência simbólica fundamental na constituição das identidades (Couto 2002). Para ela, o intuito do processo de conversão, antes de caminhar em direção a valores modernos de individuação, é garantir a manutenção social da família.

Segundo Couto, a conversão religiosa é uma reconfiguração dos espaços de atuação dos gêneros e a concomitante modificação das redes de relações que essa reespacialização proporciona. O valor da igualdade, especialmente acionado quando se trata do comportamento sexual, remete ao afastamento dos homens da rua e de sua inserção no lar e nas comunidades religiosas. Machado (1996) já havia sinalizado a mesma tendência, mostrando que, quando marido e esposa se convertem ao pentecostalismo, as mudanças no lar são bem mais expressivas, ao passo que a conversão apenas das mulheres leva a uma tensão no ambiente doméstico. Boyer-Araújo (1995) também apontava para o fato de a conversão masculina representar a superação da contradição do ethos esperado dos homens. Enquanto socialmente imaginava-se que os homens deveriam ocupar os espaços da rua e, ao mesmo tempo, serem responsáveis pelo sustento financeiro de suas casas, a adesão religiosa lhes permitia focar apenas no lado da responsabilidade. Apesar das diferentes leituras, interessa dar destaque à forma como a religião evangélica altera o modo de ser de homens e mulheres.

No final da década de 1990, os estudos sobre religião e gênero investigavam, em termos gerais, os ganhos e as perdas das mulheres, em relação à autonomia, à inserção na esfera pública e à autoridade moral no lar. As pesquisas, mesmo quando centradas em processos localizados nos espaços congregacionais, não se desvincularam totalmente da dimensão afetivo-conjugal dos lares, dado que as igrejas eram lidas como um ambiente intermediário entre a casa e a rua. Assim, o que se percebe nos espaços de culto é uma relação de complementariedade e dependência das dinâmicas do lar.4 Mas, no espaço da igreja, é possibilitada uma rede de sociabilidade em que é viável tornar públicas algumas questões até então referentes apenas à esfera da intimidade.

É possível acrescentar, nesse sentido, que Teixeira (2012), ao analisar algumas das práticas da Igreja Universal (IURD), identificou uma série de dispositivos por meio dos quais a congregação estrutura as conjugalidades. O programa Terapia do Amor, por exemplo, cujo objetivo é interiorizar uma série de disposições para que os casais se tornem prósperos e libertos dos “males do mundo”, visa inscrever nos indivíduos, especialmente nas mulheres, competências que as habilitem a ser prósperas no mercado matrimonial. Busca-se evitar possessões demoníacas que seriam decorrentes de formas de relacionamento diferentes do casamento, tais como “ficar”, namorar e noivar, tendo relações sexuais. Suplente a esse programa, há ainda, na mesma igreja, o The Love School, em que diversos fiéis dão “testemunho” sobre questões relativas às conjugalidades e que, em um modelo de escola, cursam “disciplinas” por meio das quais aprendem a se comportar da “forma correta”. O Sisterhood, também da Igreja Universal, prepara mulheres para o casamento, estimulando-as a adotar características de docilidade e feminilidade e a assumir tarefas domésticas.

Sobre as formas de intervenção das congregações sobre os corpos, Rosas (2018) também demonstra como a moralidade religiosa estrutura a dimensão da sexualidade, na medida em que um conjunto de orientações específicas sobre sexo desenha limites do possível e do impossível, do permitido e do proibido na esfera privada. Observando eventos destinados às mulheres, criados pela pastora Ana Paula Valadão, a autora elenca uma série de recomendações observadas sobre a sexualidade, que acabavam por implicar o controle dos corpos. Entre elas, cabe citar que o sexo, reconhecido como uma fonte legítima de prazer, deveria ocorrer apenas no casamento, pois, caso contrário, poderia acarretar fortes consequências negativas. O matrimônio deveria se estruturar como uma relação monogâmica, perdurando a vida inteira, e a mulher deveria restringir a sensualidade a essa esfera.

Os homens, por sua vez, não deveriam respeitar demais as normas de controle da sexualidade, já que supostamente seriam imbuídos e movidos pela natureza do instinto masculino. Acatar totalmente as recomendações poderia ser, portanto, indício de homossexualidade, drasticamente rechaçada. Sobre as mulheres recaía o dever de saciar os desejos “naturais” dos maridos (sob o risco de provocar atribulações na união conjugal) e a responsabilidade pela adoção dos métodos contraceptivos. Se o marido insistisse em realizar atividades tidas como impuras na esfera conjugal (prática de sexo oral, anal, entre outras), a esposa era orientada a buscar aconselhamento espiritual e terapia de casal religiosa nas congregações (Rosas 2018). Reis (2017) também apontou que, apesar de o conservadorismo sexual ser bastante enfatizado entre os evangélicos, já é possível ver fraturas nessa moralidade, como a ressignificação de produtos sensuais antes tidos como profanos e desprezados. O “erotismo gospel”, ainda que restrito ao casamento, atenua as normas tradicionais, aumentando as possibilidades de vivência sexual dentro do processo de disciplinamento e regulação dos corpos, feito pela religião.

Tendo percorrido de forma breve alguns dos trabalhos que contribuíram para o entendimento da relação entre religião e gênero, percebe-se que a maioria deles identifica uma relação complexa de continuidade, complementariedade e dependência entre as relações conjugais na esfera privada (lar e casamento) e a vida congregacional, caracterizada pela presença de múltiplos dispositivos regulatórios das condutas dos indivíduos, muitas vezes referindo-se à esfera conjugal e operando por meio dela. No entanto, também se observa que as afetividades e conjugalidades vêm se transformando, de modo que cabe continuar o escrutínio de como está se dando a revisão dos afetos entre os cristãos.

A próxima seção tem como objetivo problematizar essas dimensões, colocando em contexto o uso de um aplicativo cristão de relacionamentos.

Desenho da pesquisa

Após ampla navegação no aplicativo Amor em Cristo, a primeira etapa estruturada de exploração dos dados consistiu em desenvolver, com o suporte de um programador, uma aplicação em Java Script, cuja função era simular um usuário que acessava o site e utilizava o recurso de Busca Personalizada. A aplicação buscava usuários segmentados por idade, localização geográfica, estado civil e diversos outros atributos. Isso permitia selecionar os perfis que iriam compor o banco de dados. Ao utilizar esse recurso, a aplicação coletou os dados de usuários de todas as idades de cada um dos estados da federação e, posteriormente, organizou-os em uma tabela do Excel.

O matchmaker solicita uma série de informações que irão constituir o perfil do usuário. Utilizou-se como critério de seleção os perfis que possuíam descrições mais densas nos campos “como o usuário se descreve”, “o que o usuário busca” e “quais são os hobbies do usuário”, já que esse tipo de perfil permitiria realizar interpretações com maior grau de profundidade. Definiu-se como perfis mais densos aqueles que utilizaram o maior número de palavras no preenchimento dos campos supracitados. Foram reunidos 998 perfis. Desses, o que possuía a maior descrição contabilizava 8.794 palavras e o menor, 400. Tendo como base a formatação da ABNT, isso correspondia a aproximadamente 23 páginas no primeiro caso, e uma página no segundo.

Dos textos disponíveis nos campos, foram selecionados segmentos de dados que ao mesmo tempo os resumissem e os organizassem em categorias. Foram atribuídos nomes concisos com o objetivo de desenvolver ideias abstratas, iniciando, assim, o processo interpretativo (Charmaz 2007). A codificação foi feita do maior perfil para o menor. O software utilizado como apoio para a codificação foi o Atlas.Ti. A partir do recurso Import Survey, a tabela de Excel gerada foi importada para dentro do programa com os perfis de interesse. Cada um foi convertido em um documento, e os documentos foram nomeados automaticamente pelo software como P1, P2, P3, e assim sucessivamente.

Após a primeira etapa de codificação, foi estabelecido um diálogo com nove usuários do site, com o intuito de complementar os dados. As conversas ocorreram entre agosto e novembro de 2019. Inicialmente, foram contatas seis mulheres, às quais solicitou-se que indicassem pessoas que tivessem interesse em participar da pesquisa. Apenas desse modo foi possível estabelecer interações, em maior grau de profundidade, com três indivíduos do sexo masculino.5 As perguntas feitas aos usuários foram embasadas nos principais questionamentos estabelecidos na primeira etapa da análise. A dinâmica dos diálogos seguiu um rumo próprio, muitas vezes distanciando-se daquilo que havia sido proposto, porém, trazendo novas dimensões às categorias. O tempo médio de conversa variou muito; algumas das interações duraram semanas e seguiram o ritmo e a duração típicos de bate-papo em aplicativos. Respeitou-se o tempo dos interlocutores para respostas, engajamentos etc. As perguntas foram realizadas através de áudios no WhatsApp, e as respostas foram dadas tanto em formato de áudio quanto por mensagens de texto.

Se, por um lado, perdeu-se uma série de informações que só podem ser apreendidas a partir das interações face a face, por outro, foi possível coletar relatos de indivíduos de diversas localidades do país, estender o contato por mais tempo do que uma entrevista naturalmente permitiria, e acessar informações decorrentes de reflexões eventualmente mais prolongadas. Além disso, a comunicação mediada pela tecnologia propiciou um ambiente mais confortável para que as pessoas compartilhassem, sem tantos constrangimentos, detalhes de sua vida afetiva. Foi feita transcrição dos áudios e textos do WhatsApp para arquivos do Word, que foram importados para o Atlas.ti para finalizar o processo de codificação. Seguiu-se com a fragmentação dos textos e a identificação dos diversos temas tratados em cada um deles. Os dados foram separados em eixos temáticos, com destaque para três: atores, conjugalidades e descrições ambientais. Em cada eixo, foi desenvolvida uma série de categorias, compostas de códigos interrelacionados.

Atores

Na temática atores, foi criada a categoria atributos pessoais, a fim de reunir os trechos que continham sequências de adjetivos referentes aos indivíduos, fossem eles positivos ou negativos. Por exemplo:

Sou impetuosa, engraçada, persistente, corajosa. Super carinhosa, frágil, especial, delicada, afetuosa. Super esperta e as vezes um pouco agressiva. (P. 59, Igreja do Evangelho Quadrangular, separada ou divorciada, com superior incompleto, frequenta a igreja mais de quatro vezes por mês, 46 anos, sexo feminino).

Sou simples, sem ser vulnerável, ou simplório, e também sou tranquilo, muito amigo, direcionado por Deus, amável, cúmplice, romântico (Ah, minha cara, AINDA existem homens assim!) (P. 17, Igreja Batista, separado ou divorciado, superior completo, frequenta a igreja mais de quatro vezes por mês, 35 anos, sexo masculino).

Os atributos pessoais foram divididos em três subcategorias, com o intuito de abranger a multiplicidade de adjetivos utilizados pelos indivíduos. São elas: afetuosidade, legitimidade e resiliência. Na imagem abaixo, é possível observar os principais adjetivos utilizados pelos usuários do AeC, organizados por subcategorias.

Figura 1.
Atributos Pessoais

A resiliência diz respeito à capacidade de resistir a mudanças, superar obstáculos, suportar pressões e situações adversas. Ser responsável, sério e determinado pode ser um indicativo de que os indivíduos cumprirão com as expectativas neles depositadas. A grande recorrência desses atributos faz supor que, no contexto de suas vidas amorosas, ter essa capacidade é um valor muito relevante.

Na subcategoria legitimidade, valores como honestidade, autenticidade, sinceridade e confiabilidade são acionados nas descrições dos perfis para reduzir a ansiedade e a desconfiança em relação ao outro. Se, nas interações face a face, a comunicação é rica em pistas sociais, utilizadas pelos atores para “definir as situações” (Goffman 2001), a perda gerada pela mediação tecnológica implica que os indivíduos afirmem textualmente aquilo que, em outro contexto, poderiam demonstrar. Além disso, na modernidade tardia, a reflexividade indiscriminada coloca em xeque não apenas a validade das ideias, mas também a questão da identidade pessoal e do outro (Giddens 1991). Portanto, afirmar que as condutas estão sendo pautadas por princípios éticos relacionados à honestidade, veracidade e autenticidade pode ultrapassar a questão da modalidade virtual das interações.

Na subcategoria afetuosidade, aparecem adjetivos que representam competências como sensibilidade, romanticismo, dar carinho, agradar, ser alegre e divertido. Esses atributos ajudam a entender como os usuários compõem as imagens idealizadas de si e dos outros. Entre os diversos adjetivos utilizados, destacam-se aqueles que se opõem às características agressivas. Os indivíduos parecem querer demonstrar que saber dialogar, ouvir, ter humildade e calma é fundamental para que a relação perdure. Essa disposição está em concordância com o processo de “androginização das famílias” convertidas ao pentecostalismo, apontado por Machado (1996), no qual os homens devem demonstrar características como docilidade, calma e sensibilidade. Os adjetivos da subcategoria afetuosidade foram encontrados tanto em perfis de usuários do sexo masculino quanto do feminino, reforçando a ideia de que, no âmbito virtual, embora as exigências sociais de conservação de atributos associados à feminilidade sejam endossadas nas mulheres, se espera algo semelhante dos homens.

Conjugalidades

Os trechos em que os indivíduos se posicionavam especificamente em relação aos arranjos conjugais foram classificados como argumentos sobre conjugalidade. Foi criada a categoria valores conjugais para reunir todos os segmentos de dados em que se descrevia os atributos centrais para uma relação cristã bem-sucedida. Os valores citados pelos indivíduos indicam que as relações devem ser duradouras, levadas a sério e pautadas por investimentos emocionais simétricos entre indivíduos similares, compatíveis e complementares:

Como vou respeitá-la, espero ser respeitado, como serei fiel, espero fidelidade, como darei atenção, espero receber atenção, como estarei ao seu lado, apoiando em tudo, nas horas boas e ruins, também espero que ela esteja ao meu lado, quando eu estiver em horas boas e ruins, pois a alegria dividida, vale em dobro, e a tristeza dividida, vale pela metade!!! (P. 4, pentecostal, solteiro, escolaridade indefinida, frequenta a igreja mais de quatro vezes por mês, 47 anos, sexo masculino).

Creio que o verdadeiro Amor tem de possuir: Confiança, Respeito, Fidelidade, Amizade, Compromisso, Cumplicidade, Sinceridade (P. 550, pentecostal, solteiro, superior incompleto, frequenta a igreja mais de quatro vezes por mês, 45 anos, sexo masculino).

Uma outra categoria, chamada agendamento temporal conjugal, foi elaborada para reunir os dados que indicam o processo legítimo de constituição do casamento, geralmente iniciado com uma amizade:

Desejo me relacionar com as pessoas desse site, fazer amizade, pois fica muito difícil falar em namoro com alguém sem antes não começar por uma amizade sincera. Sendo da vontade de DEUS, a amizade pode se transformar em algo sério e quem sabe um namoro e ou casamento (P. 182, batista, solteira, pós-graduada, frequenta a igreja mais de quatro vezes por mês, 33 anos, sexo feminino).

Portanto, independente de qual seja a intenção das pessoas inscritas neste site, prevalece a minha intenção. E a minha intenção é encontrar/conhecer uma mulher que pense ou se posicione no sentido de um relacionamento consolidado, respeitoso, comprometido que vise à formação familiar. Estou muito ciente de todas as etapas que se levam ao topo da pirâmide conjugal... (P. 461, denominação não especificada, separado ou divorciado, pós-graduado, frequenta a igreja mais de quatro vezes por mês, 33 anos, sexo masculino).

Segundo Chaves (2003), no Brasil, tradicionalmente, a vida amorosa estava estruturada na sequência de flerte, namoro, noivado e casamento. Atualmente, esse processo não é mais tão rígido, e os indivíduos negociam a forma como irão constituir seus arranjos conjugais. A complexificação das sociedades na modernidade tardia faz com que a ação dos indivíduos seja pautada menos por direcionamentos tradicionais e mais pela adesão a estilos de vida plurais. Nesse contexto, as pessoas são responsáveis pela construção de suas trajetórias amorosas e, muitas vezes, o que tiram desses modelos afetivos não está relacionado a um projeto para o futuro, mas a prazeres imediatos (Chaves 2003).6 Dessa forma, a vinculação da constituição conjugal ao plano divino ajuda a reduzir as incertezas e ambivalências típicas dos tempos hodiernos.

Chamada de tarefas conjugais, a próxima categoria reúne segmentos de dados nos quais os indivíduos explicitavam suas expectativas sobre os papéis desempenhados por cada um dos cônjuges, com trechos codificados similares aos seguintes:

Sei lavar, passar, cozinhar, arrumar uma casa, pois esse dever não deve ser só responsabilidade da esposa, pois o marido também é um auxiliador da mesma. Não sou machista. O marido também tem que fazer a sua parte, tanto na criação dos filhos, dividindo as tarefas cotidianas, pois as mulheres merecem o devido respeito, pois foi às mulheres a quem Deus incumbiu e deu o dom de perpetuarem a espécie humana (P. 5, Assembleia de Deus, solteiro, primeiro grau completo, frequenta a igreja mais de quatro vezes por mês, 53 anos, sexo masculino)

Creio que a mulher tem que saber tomar decisões próprias, mas tem que ter a sabedoria de respeitar as decisões de seu cônjuge. Afinal, a mulher foi criada não pra ser a cabeça ou a calda, mas sim para ser uma auxiliadora (P. 559, Sara Nossa Terra, separada ou divorciada, segundo grau completo, frequenta a igreja mais de quatro vezes por semana, 29 anos, sexo feminino).

Na categoria tarefas conjugais, embora diversos indivíduos afirmem que os homens devem ajudar nas atividades domésticas, muitos também sustentam que o homem é o “cabeça do lar”, enquanto à mulher cabe o papel de auxiliadora, ajudadora e edificadora da casa. Os homens, na maioria das vezes, mencionam que as mulheres merecem ser respeitadas e bem-tratadas, pois Deus as colocou em suas vidas para serem amadas e cuidadas, e, assim, a eles caberia o papel de protetores e tomadores de decisão. Alguns usuários sugerem que os homens têm o dever de prover para o lar, no entanto, muitos declaram estar em busca de mulheres independentes. No entanto, várias mulheres citam a estabilidade financeira como um fator decisivo na escolha dos parceiros, o que sugere que, no papel de submissas, muitas esperam não arcar com as responsabilidades financeiras. Nesse ponto, é possível perceber uma confluência entre a relativização da autoridade dos homens e da autonomia feminina e a reafirmação dos valores hegemônicos de gênero, que favorecem a masculinidade. Não é possível, portanto, afirmar que houve uma atualização completa das representações da divisão social do trabalho entre homens e mulheres religiosos.

Descrições ambientais

Na área temática descrições ambientais, foram selecionados segmentos de dados nos quais os usuários construíam narrativas relativas ao site AeC. Muitos relataram experiências desagradáveis, enquanto outros demonstraram esperança em encontrar parceiros. Também foram incluídos excertos que sugeriam que os usuários tratavam o AeC como uma comunidade de fé. Na categoria comunidade de fé, foram agrupadas falas nas quais os usuários diziam que o AeC é um espaço abençoado. De modo geral, o conteúdo era direcionado a uma audiência plural, tomando a forma de testemunhos de vida, com trechos bíblicos, além de pedidos e ofertas de orações. Essa categoria ajudou a pensar sobre como os indivíduos também se apropriam dos recursos tecnológicos de um matchmaker para outros fins, além de encontrar um parceiro amoroso. A partir de suas vivências religiosas, transformam o matchmaker em um espaço congregacional.

Contudo, diversos relatos apontavam que vários indivíduos expressavam comportamentos reprováveis no contexto do aplicativo. Eles faziam referência a um tipo de diversão, aventura e passatempo prontamente rejeitados, especialmente pelas pessoas do sexo feminino. Os usuários, no entanto, nunca imputavam tal comportamento a si mesmos. O código In vivo7diversão afetiva foi empregado para descrever esse conjunto de atitudes que os indivíduos consideravam necessário abandonar para seguir os propósitos de um relacionamento cristão. Vejamos exemplos:

Percebo que algumas pessoas apenas estão aqui pra brincadeiras, passar o tempo entre outras coisas que não é o intuito do site.... Então se for uma dessas, respeito a sua conduta, o seu modo de pensar, mas não serve pra mim. (P. 700, Assembleia de Deus, separada ou divorciada, segundo grau completo, frequenta a igreja mais de quatro vezes por semana, 40 anos, sexo feminino).

Com tanto site secular disponível, é impressionante a quantidade de lobos em pele de ovelha aqui neste site. Homens se fazem de cristãos para conseguirem nosso telefone e depois dizem coisas absurdas como o Sr. XXXXX. Perguntou se eu era “esse tipo de crente” que não faz “xxx” antes do casamento e se não posso ir a motel (P.175, denominação não especificada, separada ou divorciada, mestrado, frequenta a igreja mais de quatro vezes por mês, 54 anos, sexo feminino).

Segundo os relatos, no AeC, muitos indivíduos não são o que aparentam, não cumprem os compromissos honrados, brincam com os sentimentos das pessoas e buscam apenas aventuras. Isso corrobora o que a literatura diz sobre os relacionamentos afetivos em aplicativos (Sousa, Nunes & Machado 2012; Figueiredo 2016). Nos matchmakers, as relações são muitas vezes pautadas pela cultura do hook up, ou pelo “ficar”, em que os encontros não necessariamente devem perdurar. Esse tipo de afetividade, caracterizada por beijos e troca de carícias, possui uma pluralidade de modelos, podendo durar horas, dias ou semanas, sendo um fim em si mesma, de forma que a satisfação física e emocional está atrelada à prática em si e não a um objetivo futuro.

Além disso, uma série de aplicativos utilizados no dia a dia se valem de cliques no touch screen e do movimento de “deslizar” para esquerda ou direita, padrão de uso batizado de lógica swipe, que afeta como se olham as fotos, o extrato bancário e se navega nas redes sociais. É possível que, ao incorporar tal gesto no cotidiano, as pessoas não se deem conta de sua influência em outros comportamentos adotados nas redes sociais, inclusive nos sites de relacionamento. A banalidade do swipe, incorporada nos matchmakers, pode ter impactado a forma como os parceiros são selecionados. Diversos aplicativos são projetados com um design por meio do qual a seleção é feita com base nessa lógica, algo muito parecido com um jogo. Na busca por relacionamentos, predomina uma sensação de possibilidades infinitas de romance, o que banaliza a seleção dos parceiros e torna as pessoas conscientes de que ninguém é insubstituível (Baldi & Rodrigues 2016).

Tendo isso em vista, enquanto nas transações modernas do afeto a expectativa era a constituição do casamento, atualmente os relacionamentos seguem uma lógica similar à de empresas como a Uber, que oferecem um serviço que, além de dispensar o compromisso e a responsabilidade de possuir um veículo, torna simples o consumo dos transportes. Com apenas alguns cliques, tem-se acesso a um motorista particular que irá atender a uma necessidade instantânea. O prestador de serviços da Uber não possui vínculo trabalhista com a empresa, podendo largar a atuação quando quiser. O vínculo passa a operar na lógica de uma conexão, que pode ser desfeita facilmente sem maiores consequências e garantias para ambas as partes. Da mesma forma, a busca por afetos se assemelha a um trabalho precário no qual as mulheres devem arcar com os custos de aprender a desempenhar o script do amor, investir em maquiagem, no corpo e no controle das emoções, sem que exista uma promessa de estabilidade (Weigel 2017).

A expectativa observada nos usuários do AeC é que, em um site cristão, as conjugalidades estejam estruturadas de forma diferente.8 Brincar com os sentimentos, desperdiçar tempo e buscar aventuras diz respeito ao não cumprimento de etapas do desenvolvimento conjugal, que deveria progredir até o casamento. Durante as entrevistas, boa parte das interlocutoras, logo no começo das interações, foi taxativa sobre a tensão entre o caráter divino do site e a ambientação permeada por diversão afetiva:

Parece que as pessoas são descartáveis, igual no mundo, igual num relacionamento aí fora... Por exemplo, já conversei com várias pessoas que começaram conversando bem e do nada desaparecem. Não tem nem a hombridade de falar: “poxa, olha, eu gostei de ter conversado com você, mas não é o perfil que eu busco, inicialmente eu achei, mas não houve uma compatibilidade entre nós.” Mas, desaparecem, somem, sei lá, se arrumaram outra pessoa melhor, não sei, não houve uma explicação, então, não tem como eu adivinhar, entende? Eu acho que está tudo muito superficial e as pessoas estão levando muito pro lado pessoal, onde que eles se importam apenas com eles próprios. Não se importam que, do outro lado da tela, ainda que virtual, tenha outra pessoa (Entrevistada 2, Comunidade Evangélica Luz e Vida, divorciada, frequenta a igreja mais de quatro vezes por semana, superior incompleto, 36 anos, sexo feminino).

Percebi que o fato de ser um app de relacionamento denominado cristão pouco se diferencia dos demais app de caráter secular. Os participantes, às vezes, se inscrevem em todos os apps, saem atirando e, de cristão mesmo, se tira poucos. Os interesses diferem pouco, os que de fato se dizem cristãos procuram uma mulher idealizada, melhor dizendo, submissa. A grande maioria procura é se dar bem (Entrevistada 3, batista, solteira, frequenta a igreja ocasionalmente, pós-graduação, 37 anos, sexo feminino).

As pessoas que conheci não eram evangélicos. E a gente fica naquela ilusão de que não tem problemas, mas tem problema sim. Teve um que me deu um fora porque eu fui a uma festa na igreja e não saí com ele. E o outro disse que não queria se casar na igreja. Eu não abro mão de Deus por ninguém (Entrevistada 5, Assembleia de Deus, divorciada, não revelou a escolaridade, 58 anos, sexo feminino).

Uma das interlocutoras buscou diagnosticar o motivo do AeC estar parecido com os demais sites seculares. Segundo ela, o fato de os indivíduos se declararem evangélicos não é mais o suficiente para gerar um status moral diferenciado. A religião, para ela, está perdendo seu poder mobilizador:

Antigamente as pessoas falavam: “ah, eu sou crente, eu sou evangélico, eu creio em Jesus Cristo”, e acabava que as outras pessoas tinham até um certo respeito. Mas, hoje em dia, as pessoas da igreja que se dizem, se autorrotulam como crentes, como evangélicos, tem se tornado tão próximo das pessoas que não tem uma fé, um título, uma religião, que acaba com que as pessoas tenham até um certo distanciamento desse tipo de pessoas, porque não há mais uma credibilidade (Entrevistada 2, Comunidade Evangélica Luz e Vida, divorciada, frequenta a igreja mais de quatro vezes por semana, superior incompleto, 36 anos, sexo feminino).

A incorporação das práticas afetivas dos matchmakers pelos agentes segue, aparentemente, uma dinâmica distinta no AeC. Ao mesmo tempo em que há um rol de pessoas disponíveis e prontas para serem acessadas, com diversas possibilidades de investimento afetivo, a prática de desfrutar dessa diversidade é vista com maus olhos pelos usuários. No caso de indivíduos do sexo masculino, conforme o argumento de Salem (2006), que evidencia uma segmentação da esfera sexual da ordem moral abrangente, é provável que atuar em aplicativos de relacionamento seguindo os ditames cristãos exija mais disciplina e autovigilância. Cria-se, então, um tensionamento entre as diversas práticas afetivas possíveis em um matchmaker e os preceitos cristãos que rechaçam determinadas possibilidades. A partir dos relatos, ficou evidente uma relação de conflito entre as categorias comunidade de fé e diversão afetiva.

Figura 2.
Argumentos sobre o Ambiente

A centralidade da amizade

As entrevistas ainda evidenciaram o debate sobre o agendamento temporal das conjugalidades. Os indivíduos rechaçam não apenas encontros sexuais episódicos, mas também vínculos afetivos apressados. A fragilidade das relações, que surge nos discursos que vimos anteriormente, é combatida por meio de uma reestruturação dos relacionamentos conjugais constituídos via internet. Nesse contexto, a etapa da amizade ganha proeminência, pois é a partir dela que os indivíduos podem estabelecer um vínculo emocional ancorado em situações normais da vida, que deve ser submetido a testes práticos do cotidiano:

Você está ali num primeiro passo, bater um papo lógico, você vai trocar contatos, mas você vai levar aquilo pra sua vida pessoal primeiro, óbvio, como uma amizade, e como uma amizade no dia a dia é que nasce um relacionamento. Esse é o meu ponto de vista. E como eu senti que as pessoas, quando você leva pro real, quando você conhece ali de trocar um contato e de ter um contato físico com as pessoas, elas não estão pensando na amizade, elas estão direcionando pra um compromisso, sem mesmo sem se conhecerem. Isso pra mim, eu achei assim, muito. Eu não consigo já pensar dessa forma, eu penso diferente. Por esse motivo, talvez, das pessoas que eu tive contato pelo aplicativo e que a gente conseguiu trazer pra uma vida real, por enquanto é uma amizade. Eu penso que você tem que acompanhar a pessoa no dia a dia, nas situações cotidianas normais (Entrevistada 1, Congregação Cristã, não frequenta mais a igreja, pós-graduação, 39 anos, solteira, sexo feminino). Procuro pessoas que tenham as mesmas ideias, gostem das mesmas coisas ou similares. Eu puxo conversa, e pergunto se está a fim de amizade, e deixo claro... amizade. Amor é construção, é o dia a dia. O amor a gente vai construindo aos poucos, adequando nossos defeitos e qualidades às mesmas do outro. Amor é isso. (Entrevistada 4, denominação não especificada, divorciada, não frequenta a igreja, 45 anos, sexo feminino)

A amizade, no entanto, não é importante apenas como etapa no processo conjugal, mas também pode ser compensadora por si só. Questionada sobre a natureza das amizades ali constituídas, uma das interlocutoras relatou:

Por exemplo, tem um rapaz que até mora aqui na Zona Leste de Sampa. E a gente, conversando no bate papo do site, ele trabalha com bitcoin. Então, tipo, é um assunto que me desperta muito interesse, que eu sempre tive vontade de saber a respeito, lia um pouquinho sobre moeda digital, blockchain. Aí, quando eu fiquei sabendo, comecei a perguntar, nananam, chamei ele pra tomar um café, falar, debater um pouco do assunto, essas coisas. E a gente tem amizade, a gente se fala frequentemente, e nesse caso, nosso assunto é bitcoin, moeda digital, mercado financeiro, investimento, entendeu?! (Entrevistada 1, Congregação Cristã, não frequenta mais a igreja, pós-graduação, 39 anos, solteira, sexo feminino).

As falas dos homens trazem uma outra perspectiva sobre a dinâmica dos relacionamentos do Amor em Cristo; porém, eles também abordam a questão do agendamento temporal das conjugalidades:

Os dois sites, as mulheres são muito exigentes, no quesito namoro e casamento. Muitas são mãe solteiras. Não querem se relacionar sem ter segurança. No meu caso, quando falo sobre meu perfil de homem. Todas só querem ser amiga. Amizade as mulheres são confusas ao escolher, aquele que poderá ser seu namorado ou marido, porque pecam em ver detalhes. Se o homem estuda ou já é formado, está trabalhando ou não, tem casa ou não, mora com a família ou não, tem carro ou não. Os sites aproximam as pessoas, e as pessoas se distanciam pelo que tem de material. Como eu não tenho o que elas querem, então fica na amizade. Vou me candidatar a prefeito de São Paulo, já tenho muitas amizades (risos). O primeiro encontro já define se é amizade ou se vai dar namoro. Se ela te chama pra ir em um lugar, e você está sem dinheiro, então virou amizade, se for o contrário, você tem dinheiro e vai em lugares que ela quer ir, aí vai dar namoro (Entrevistado 8, católico, superior completo, frequenta a igreja uma vez por semana, 33 anos, solteiro).

Conheci algumas pessoas! Foi interessante... mas ocupa bastante tempo também, sabia? Mas não consegui se firmar com nenhuma delas... infelizmente. Mas mantenho contato com algumas! Estou deixando esse assunto nas mãos divinas, que resolva no tempo certo (Entrevistado 9, denominação não especificada, ensino médio completo, frequenta a igreja uma vez por semana, 39 anos, divorciado)

A amizade, na fala desses entrevistados, é vista como uma marca do fracasso em estabelecer um relacionamento amoroso. Um deles expressa desconfiança em relação a esse tipo de laço, considerando-o uma inabilidade feminina em reconhecer os homens de real valor. O segundo, embora não tenha manifestado uma insatisfação clara com suas amizades, acredita que, no momento certo, Deus irá providenciar uma união conjugal.

Uma lógica que não necessariamente a da igreja

A expectativa dos usuários ao se inscreverem no AeC é de que esse espaço, devido ao seu caráter supostamente mais espiritual, esteja imune a riscos e perigos associados às transformações nas dimensões afetivas da modernidade tardia. Em seus perfis, as pessoas descrevem as passagens bíblicas que retratam as uniões conjugais pretendidas, solicitam que Deus abençoe e traga sorte para que as uniões sejam bem-sucedidas e acreditam que a espera pelo parceiro ideal trará frutos. Os indivíduos, no geral, buscam relacionamentos nos moldes cristãos. A conjugalidade idealizada pelos usuários tem como característica a noção de parceria e companheirismo, caracterizada pela soma de esforços, divisão de tarefas, compartilhamento de experiências, reciprocidade afetiva, diálogo e respeito mútuo. Surge, assim, o caráter “divino” do site.

No que tange às relações de gênero, os homens consideram simétricas aquelas em que as tarefas domésticas sejam divididas, porém, muitas vezes silenciam-se sobre outras responsabilidades conjugais, como as tomadas de decisão no lar. Outros, no entanto, pensam que as iniciativas devem ser de responsabilidade masculina, com o homem sendo visto como o cabeça do lar, enquanto às mulheres caberia o papel de auxiliadoras e ajudadoras. Nesse sentido, a presente análise se aproxima mais das elucidações de Couto (2002) do que das de Machado (1996) e Mariz e Machado (1996), pois reconhece certa relativização da hierarquia entre os gêneros, embora mostre que a autonomia das mulheres evangélicas possui limites.

Se, nas igrejas, os indivíduos contam com a intervenção e o controle sobre suas condutas, mediadas pelos pastores e pelos pares, em um site de relacionamentos, ou seja, em um ambiente de interações privadas e virtuais, parece que Deus não encontra canais efetivos para constranger os comportamentos desviantes, assim como também não são constrangidas as mulheres que recorrem aos brinquedos eróticos (Cf.Reis 2017). Mesmo que alguns dos indivíduos denunciem o que é tido como incorreto no ato dos outros, o Amor em Cristo carece de meios efetivos para punir e vigiar os que estão interessados em atuar fora dos ditames cristãos. Ter um pertencimento ou aderir a uma religiosidade, portanto, não necessariamente culmina em uma obediência a regras doutrinárias e pastorais fora do âmbito da igreja. Ao praticarem diversão afetiva, por exemplo, os homens, apesar de se identificarem como religiosos, nem sempre demonstram disposições éticas e comportamentais compatíveis com o que a maioria das doutrinas religiosas propõe.

Uma hipótese é que isso ocorre devido aos aparatos reguladores de conduta das diversas denominações serem direcionados de forma mais incisiva ao controle dos corpos das mulheres. Nesse sentido, o treinamento e a disciplina para o matrimônio, como mostrados por Rosas (2018) e Teixeira (2012), se encontram, no ambiente virtual, nuançados, quando não ausentes, revelando desigualdades de expectativas e práticas, de acordo com os gêneros. Isso aponta para mecanismos pelos quais a religião modifica a dinâmica entre homens e mulheres nas relações conjugais, mas também ressalta os limites de seu alcance.

Como a solenidade da constituição conjugal não encontra meios para se atualizar de forma satisfatória nos aplicativos de relacionamento, novas regras do jogo se apresentam. Não basta que as pessoas se autointitulem cristãs, tementes, obedientes, fiéis, sérias e determinadas. Tais características devem ser comprovadas no dia a dia, durante as situações reais da vida, já que não são chanceladas pelos aparatos de controle congregacionais (ainda que estes também possam falhar em alguma medida). Por isso, antes de experimentarem um envolvimento afetivo-amoroso, os indivíduos entendem que devem se tornar amigos no aplicativo. A amizade é tida como o remédio contra a imediatez - a promissória que assegura os frutos das uniões. Portanto, aderir ao agendamento temporal conjugal, isto é, cultivar uma amizade que depois vire namoro e um futuro noivado e casamento, se torna uma tarefa imprescindível. Durante o preenchimento do perfil, as pessoas podem tentar se mostrar competentes a cumprir tal desafio. Resiliência e legitimidade são os atributos que acionam no AeC e que esperam, por sua vez, encontrar em seus parceiros. Nesse sentido, o amor é narrado como uma construção.

No movimento de transformação da lógica das relações fugazes dos matchmakers, é possível observar a religião operando modificações nas relações de gênero, em espaços distintos daqueles comumente descritos nos relatos etnográficos de antropólogas e sociólogas da religião. Na literatura, brevemente discutida na primeira seção deste artigo, observa-se que muitas mulheres, ao incentivarem a conversão dos filhos e maridos, possibilitam transformações na biografia dos indivíduos, imbuindo-os de uma nova visão de mundo e, portanto, um novo repertório de ações (Machado 1996; Machado & Mariz 1997). Tal transformação é sustentada pelos dispositivos reguladores dos corpos, operados nas congregações, que interiorizam novas disposições para ações ordenadas segundo os ditames cristãos, especialmente para as mulheres (Rosas 2018; Teixeira 2012). Dessa forma, a manutenção da conjugalidade no lar possui uma relação simbiótica com a vida congregacional, que estrutura seu formato e chancela a sua perpetuação no tempo.

No contexto dos aplicativos de relacionamento, por sua vez, a religião surge como recurso potencial que pode ou não ser mobilizado pelos indivíduos para diversos ganhos. Se, nos aplicativos matchmakers seculares, as mulheres ingressam no mercado afetivo fazendo investimentos sem garantias e em uma posição subalterna, no AeC, a religião é utilizada de forma tática, por meio de reinvindicações de cunho moral, para constituir laços mais satisfatórios. Assim, a religião é uma forma de essas mulheres reivindicarem posições mais vantajosas em suas vidas, não apenas em relação a parceiros amorosos mais qualificados, mas também na constituição de amizades.

Segundo o arcabouço teórico oferecido por Linda Woodhead (2007), é possível dizer que se trata de um uso tático da religião. Para a autora, religião e gênero são linhas de poder que se entrecruzam de diversas formas. Nessa perspectiva, a religiosidade pode reforçar ou contestar o sistema de gênero prevalente. O uso tático é aquele em que a religião não visa destruir a ordem hierárquica dos gêneros, mas possibilita uma melhor situação de vida, nesse caso, para as mulheres. As entrevistadas relataram que, apesar de terem ingressado no site com o intuito de constituir relações amorosas, perceberam que criar amizades era mais vantajoso. Interessante que todas iniciaram amizades apenas com indivíduos do sexo oposto. É possível que esses laços ofereçam a chance de uma seleção mais vantajosa de parceiros, a partir da comprovação de seus atributos no dia a dia, mas também possibilitem a construção de redes de relações vantajosas por si só, que resultem em ganhos de capital social e de solidariedade. Já para os homens, aparentemente, as amizades não são tão interessantes. Trata-se de uma marca que representa o fracasso na conquista da parceira.

Considerações finais

Nos dias de hoje, ao mesmo tempo em que há uma busca por investimentos emocionais simétricos, como supõe o modelo giddensiano de relacionamento puro (Giddens 1993), convivem com essa perspectiva ideais, como o de muitos religiosos, de que os afetos amorosos e conjugais devem perdurar, mesmo quando a relação não for mais considerada satisfatória. Contudo, se nas décadas anteriores os arranjos matrimoniais de pessoas que aderiam a uma fé eram mediados e/ou regulados, sobretudo, pelas instituições congregacionais, a partir dos anos 2000, instrumentos virtuais de aproximação de pessoas também passaram não só a influenciar o meio cristão como a ser produzidos por ele. Nesse sentido, o Amor em Cristo, com seus milhões de perfis de autodescrição, espelha a reflexividade dos sujeitos contemporâneos que precisam construir uma narrativa sobre si mesmos, capaz de comunicar os atributos necessários para a concretização de uma “boa relação”.

Funcionando como matchmaker e, ao mesmo tempo, espaço religioso, o “caráter divino” do AeC torna possível, para algumas mulheres, a ruptura parcial com a lógica da efemeridade das relações dos aplicativos, conferindo-lhes maior controle sobre suas experiências afetivas. Reivindicando a amizade como um fim em si mesma e como justificativa para o ajuste do tempo de espera rumo à intimidade e a compromissos mais duradouros, ao menos para elas, trata-se de um agenciamento do amor que prescinde da regulação das igrejas, descentrando os mecanismos institucionais, ainda que mantenha a moralidade. Um certo descompromisso afetivo, porém, pode ser praticado tanto por mulheres quanto por homens, ainda que esse seja um comportamento, no geral, discriminado. Mesmo assim, para os homens, repousa a tônica do fracasso quando não são relações amorosas o saldo das conexões.

Em suma, o resultado desta investigação demonstrou a manutenção de certo conservadorismo, sobretudo entre as mulheres, que usam a amizade como subterfúgio para verificação e atestação das intenções dos homens, ao passo que, entre estes, há uma maior fuga dos padrões tradicionais, como já evidenciado, de certa forma, pelas pesquisas precedentes. Este trabalho se soma, assim, àqueles que evidenciam que, mesmo que em menor medida, permanecem assimetrias entre os gêneros. Também se alinha aos que salientam fraturas nos padrões de conjugalidade e afetividade dos evangélicos, embora se esteja longe de afirmar que há, para a maioria, uma tendência à liberalização sexual.

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  • 1
    Um marco importante contado sobre essas transformações é a inserção das mulheres no mercado de trabalho, que teria possibilitado novos espaços de sociabilidade entre elas e os homens, resultando em uma perda de controle das instituições tradicionais, em especial da família, no que diz respeito à escolha dos parceiros (Weigel 2017). Isso quer dizer que a criação da esfera da intimidade, fundamental para construção da subjetividade dos casais, teria se deslocado para ambientes situados na esfera pública, inclusive nos meios digitais, gerando uma espécie de afrouxamento no processo de constituição das relações amorosas.
  • 2
    Fonte: https://www.amoremcristo.com.br. Acesso em 28/06/2021.
  • 3
    Trata-se de pesquisa realizada pelo Instituto de Estudos da Religião (ISER), em 1994, na região metropolitana do Rio de Janeiro, envolvendo dados de mais de 1.300 evangélicos de 53 denominações, que resultou no livro Novo Nascimento: os evangélicos em casa, na política e na igreja (Fernandes et al., 1998).
  • 4
    O texto de Machado (2005), por exemplo, faz ponderações sobre o limite da transformação das mulheres religiosas ao assumirem posições de sacerdócio. A principal estratégia de ascensão a essas posições, segundo a autora, são aquelas vinculadas aos laços matrimoniais com homens que ocupam posições iguais ou superiores às das mulheres. Além disso, a participação feminina é muitas vezes restrita a sermões em parceria com os maridos, e o trabalho religioso é visto como atribuição do casal.
  • 5
    Essa parte da pesquisa foi conduzida exclusivamente pelo primeiro autor do texto, que fez uma assinatura do plano Premium e criou um perfil com suas informações pessoais.
  • 6
    Em diversos momentos, os indivíduos descreviam as conjugalidades almejadas através de metáforas associadas a transações. A relação era descrita como uma troca, como compartilhamento de atividades, processo de soma, divisão e negociação entre as pessoas. Moira Weigel (2017) e Eva Illouz (2011) mostraram que, nos dias de hoje, a linguagem das experiências afetivas possui paralelos diversos com o vocábulo dos negócios.
  • 7
    Códigos In vivo são termos utilizados pelos nativos do ambiente transpostos diretamente para a análise pelos pesquisadores, pois capturam a experiência do grupo de forma sintética (Charmaz 2007).
  • 8
    Reconhece-se, nesse sentido, a mútua constituição de espaços sagrados e “seculares”, mas opta-se por salientar essa distinção do que se espera de um aplicativo cristão (mais próximo ao que se espera de ambientes institucionais de fé) versus o que seria esperado de aplicativos não religiosos, pois esta tensão é decorrente do discurso dos agentes em campo e não da interpretação dos autores deste texto.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Out 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    19 Maio 2023
  • Aceito
    14 Maio 2024
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