Open-access Agência local e indução federal: a operação da política municipal de habitação em Recife e Curitiba

Local agency and federal inducement: the workings of the municipal housing policy in Recife and Curitiba

RESUMO

Introdução:  O artigo explora a implementação da política nacional de construção de moradias para segmentos de baixa renda no plano local. Estudamos o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV) em Recife e em Curitiba entre 2003-2012. Apesar de ser uma política federal, há variações locais baseadas nas possibilidades de escolha das administrações municipais.

Materiais e Métodos:  Foram feitas entrevistas com gestores e informantes-chave, além de análise documental.

Resultados:  A operação da política habitacional nas duas capitais é diferente em função do processo de institucionalização e das capacidades administrativas desses municípios. Em Recife, com uma política setorial ainda pouco institucionalizada e capacidades mais limitadas, a política federal de habitação moldou a política local. O Programa foi positivamente avaliado pelos gestores municipais da área. Já em Curitiba, com uma trajetória de institucionalização mais sólida e maiores capacidades instaladas, a política federal foi adaptada à lógica de divisão de trabalho previamente existente entre os órgãos municipais. Os agentes locais, diferentemente, foram críticos em relação ao PMCMV.

Discussão:  O artigo faz um contraponto à literatura internacional sobre governança e descentralização e à literatura nacional sobre federalismo e descentralização, que destacam a ausência de autonomia decisória no plano local. Conclui-se que é preciso atentar para o caráter contingente da relação entre descentralização e autonomia decisória, já que a implementação de políticas públicas traz consigo certo grau de discricionariedade. O caso do PMCMV mostra que existe espaço para as escolhas locais mesmo no caso de políticas nacionalmente centralizadas.

Palavras-chave: Política de habitação de interesse social; Programa Minha Casa Minha Vida; agência local; indução federal; capacidades administrativas municipais

ABSTRACT

Introduction:  The article explores the implementation of the national housing construction policy for low-income people at the local level. We studied the Minha Casa Minha Vida Program (PMCMV) in Recife and Curitiba between 2003-2012. Despite being a federal policy, there are local variations based on the choice of municipal administrations.

Materials and Methods:  Interviews were conducted with local officials and key informants, in addition to document analysis.

Results:  The operation of housing policy in these capital cities is different due to the institutionalization process and the administrative capacities of both municipalities. In Recife, with its loosely institutionalized housing policy and its limited capacities, the federal housing policy has shaped local politics. The Program was positively evaluated by the local officials in the area. In Curitiba, on the other hand, with a more solid institutionalization trajectory and greater installed capacities, federal policy was adapted to the logic of division of labor previously existing among municipal agencies. Local officials, in contrast, were critical of the PMCMV.

Discussion:  The article debates with the international literature on governance and decentralization and with the national literature on federalism and decentralization, which highlight the lack of decision-making autonomy at the local level. It concludes that it is necessary to pay attention to the contingent character of the relationship between decentralization and decision-making autonomy, since the implementation of public policies brings with it a certain degree of discretion. The PMCMV case reveals that there is room for local choices even in the case of nationally centralized policies.

Keywords: Social housing policy; Minha Casa Minha Vida; Local agency; Federal induction; municipal capacities

I. Introdução1

Todas as famílias felizes são iguais. As infelizes o são cada uma à sua maneira (Liev Tolstoi, “Anna Karenina”)

Reformas orientadas a promover a descentralização foram aplicadas nas últimas duas décadas e meia na maior parte dos países do mundo, promovidas em grande parte por agências multilaterais como componente central das suas agendas de incentivo ao desenvolvimento. Abraçadas à esquerda e à direita por partidos políticos e governos nacionais - embora com concepções diferentes quanto aos propósitos almejados -, essas reformas foram reputadas pelos seus implementadores e por uma vasta bibliografia como portadoras de um conjunto diversificado de efeitos positivos. A despeito da multiplicidade de concepções sobre a “descentralização", que comportam dimensões jurídico-políticas, fiscais, decisórias e administrativas, é possível perceber pelo menos um denominador comum operando presumivelmente na produção dos seus efeitos: o incremento da agência local, quer dizer, do número de atores e modos de incidência na definição e operação de políticas no plano municipal. São esperados, explicitamente, efeitos positivos desse incremento. Ainda, assume-se implicitamente que ele é de interesse dos atores locais. Não é de causar espanto que Faguet (2014, p. 10)2, em balanço da literatura, afirme ser “uma melhor governança a maior justificativa teórica da descentralização e, na prática, a principal justificativa política puxando as reformas reais pelo mundo afora”. Firmar a conexão entre boa governança e descentralização é feição do espírito do tempo (Houtzager & Moore 2003), de orientação localista, e se vê presente não apenas na literatura de descentralização, mas também na de governança - seja multinível, democrática ou participativa.

Porém, no Brasil, considerado caso emblemático de descentralização pela literatura internacional (Melo & Rezende 2004; Rodden 2002, 2000; Shah 1997), esse conjunto de reformas não parece ter incrementado sobremaneira a agência local. Antes, tem combinado indução federal com maior responsabilidade dos municípios na prestação de serviços - não na definição dos aspectos mais gerais da política -, além de participação ampliada dos governos locais na arrecadação e distribuição de receitas (Souza 2004). Sob indução federal forte, o cenário é de convergência de políticas e redução das disparidades regionais em termos de gastos (Arretche 2013, 2012). De fato, graças aos avanços de pesquisa na agenda da descentralização e do federalismo no país, sabemos que as tendências de dispersão da autoridade associadas, em tese, à descentralização, foram contornadas. E isso ocorreu, principalmente, mediante a implementação de mecanismos de indução federal que, envolvendo transferências condicionadas à adoção de políticas específicas por parte dos municípios, asseguraram à União decisões fundamentais no desenho das políticas (Almeida 2005; Arretche 2012; Arretche et al., 2012b).

Não seria prudente assumir, todavia, que o cenário de convergência significa que os governos e burocracias municipais estão fazendo as “mesmas coisas” da “mesma forma”. Como na famosa frase de Tolstoi sobre as famílias infelizes - na epígrafe -, municípios com agência igualmente constrangida pelas diretrizes federais e seus mecanismos de indução podem operar as políticas “cada um à sua maneira”. De um lado, é certo que dentro dos marcos da distribuição de competências entre os níveis da federação, de políticas federais com forte capacidade de indução e das características gerais de determinado setor, a agência ou capacidade de escolha local é constrangida, especialmente no que diz respeito aos aspectos fundamentais de definição das políticas (Arretche 2012). De outro lado, restrições da capacidade de escolha local não limitam igualmente o modo de operação da política em diferentes municípios - o como, seus aspectos operativos ou secundários, conforme as distinções analíticas propostas por Kiser & Ostrom (1982) e por Sabatier (1988). De fato, como veremos, as capacidades e modos de operação setorial arraigados nas administrações municipais podem condicionar as escolhas sobre os aspectos secundários. Mais: essas capacidades podem condicionar, também, as preferências dos gestores locais por maior ou menor autonomia decisória e, consequentemente, por políticas mais ou menos descentralizadas.

Políticas que centralizam não apenas o desenho, mas também boa parte da operação, como o Programa Bolsa Família (PBF), reduzem consideravelmente a discricionariedade local. A política de habitação se caracteriza, precisamente, por oferecer um contraponto quanto ao grau de discricionariedade permitida em relação a políticas marcadas pelo maior peso da indução federal, por forte operação centralizada e/ou por estruturas setoriais consolidadas em forma de sistemas. Embora definida em termos de um sistema nacional, a política de habitação é consideravelmente menos estruturada e apresenta maior variação local, ceteris paribus, que setores tradicionais como a saúde, além de possuir características que, no Brasil, obstam sua operação centralizada. A criação do Ministério das Cidades (MCidades) em 2003 e a nova concepção de política habitacional que se instalou a partir de então pareciam apontar na direção de um sistema nacional, mas as diretrizes que orientaram planos e programas pelo Governo Federal, como o Programa Minha Casa Minha Vida (PMCMV)3 - desenvolvido como parte do Programa de Aceleração do Crescimento (PAC)4 -, impulsionaram uma lógica de financiamento vinculada a projetos específicos, ampliando o espaço para discricionariedade local.

O propósito deste artigo é explorar a variação da implementação da política federal de habitação no plano local, entendendo que tal variação - sujeita a iguais condições de indução federal - exprime fatores locais que incidem nas possibilidades de escolha das administrações municipais e que operam graças à discricionariedade relativa permitida pelo desenho da política. Atentar para os níveis subnacionais de operação das políticas propicia ganhos cognitivos valiosos (Bichir et al., 2017; Peres 2016) e sugere uma agenda de pesquisa orientada a complementar os diagnósticos consolidados sobre os efeitos de convergência nas políticas locais gerados pela descentralização no interior do federalismo brasileiro (Pereira et al., 2018). A indução de políticas pela União pode produzir efeitos agregados semelhantes (e.g.: redução do déficit habitacional); contudo, do ponto de vista da agência local e da perspectiva dos agentes ou gestores, pode também alterar a operação da política a depender das capacidades e das formas de operação arraigadas na administração municipal. O artigo se debruça sobre a política de habitação, mais especificamente sobre o PMCMV, nos municípios de Recife (PE) e Curitiba (PR) durante os dez primeiros anos após a criação do MCidades (2003-2012), período este que esteve sob mandato do Partido dos Trabalhadores (PT) no Executivo Federal5. Trata-se de compreender como a política de habitação, naquele período, foi posta em operação localmente, considerando a capacidade de escolha por ela permitida. Os resultados sintetizam trabalho de campo realizado nos dois municípios entre 2010 e fins de 2012, onde foram conduzidas entrevistas com informantes-chave e gestores ligados à política de habitação social.

Em princípio, as capitais foram selecionadas, no marco de um projeto de pesquisa maior6, por suas capacidades de inovação administrativa municipal. Recife possui histórico de abertura à participação social, manifesta, por exemplo, na implementação do orçamento participativo, bem como na criação e consolidação do Plano de Regularização das Zonas de Interesse Social (Prezeis). Por sua vez, Curitiba é reconhecida pela sua trajetória de administração planejada, pautada precocemente pelo Plano Diretor Municipal da década de 1960 e por uma visão urbanística mais ampla. Não obstante, a pesquisa revelou que, quando considerados os arcabouços de operação setorial da política de habitação de interesse social, existe considerável variação entre os dois municípios. Os padrões dessa variação constituem resultado da pesquisa - ou ponto de chegada - e tornaram a comparação frutífera pela sua capacidade de iluminar os fatores associados à variação local na implementação das políticas federais.

A análise desses padrões, aqui apresentada, constitui estudo de caráter exploratório, cujos resultados sugerem hipóteses acerca do papel das capacidades administrativas setoriais no município quanto à variação do modo como as políticas federais são implementadas ou, se se quer, à ampliação das possibilidades de escolha local sobre os aspectos secundários da política. Mostra-se que existem diferenças entre os municípios quanto à institucionalização e às capacidades administrativas (Cingolani 2013; Skocpol & Finegold 1982) para a execução das políticas habitacionais: em Recife, a institucionalização incipiente ocorre como resultado da própria implementação de programas habitacionais mais recentes, tais como o PMCMV e o PAC-Moradia; em Curitiba, a institucionalização é prévia a esses programas habitacionais. Onde a institucionalização era limitada e as capacidades administrativas pouco amadurecidas, a lógica de operação da política federal em projetos produziu um efeito de homologia sobre a operação municipal da política (Rodrigues & Serafim, 2014), comprometendo a precária especialização e divisão de trabalho pré-existente. Contrariamente ao pressuposto implícito na literatura de orientação localista, nesse caso, as limitações ao poder decisório dos gestores no município não são vistas por eles como um problema, antes, o PMCMV é positivamente avaliado. Onde existia institucionalização mais sólida e maiores capacidades administrativas, a lógica da política federal foi reconvertida e remanejada para se adaptar à divisão de trabalho dos órgãos locais responsáveis pela política, e, coincidentemente, aparecem maiores resistências e críticas ao Programa na avaliação dos gestores. Embora parte dos padrões encontrados tenha se revelado consoante com os pressupostos mais gerais do campo de pesquisa sobre as capacidades estatais - cabe notar, em expansão no país (Gomide & Boschi 2016; Gomide & Pires 2014) -, as hipóteses por eles sugeridas são ponto de chegada e serão exploradas nas considerações finais.

O artigo se encontra organizado em mais quatro seções. Na Seção II, tratamos das apostas feitas pela literatura no localismo e discutimos como esse diagnóstico é posto em xeque por analistas que, no debate sobre o federalismo no Brasil, têm questionado a conexão entre descentralização e suas supostas consequências para a ampliação da capacidade de decisão dos governos municipais. Também situamos o PMCMV como um programa localizado numa posição intermediária entre as políticas federais que reduzem ao mínimo o escopo decisório das administrações municipais e as que concedem ampla discricionariedade. Na Seção III explicitamos e justificamos brevemente as escolhas metodológicas e as limitações a elas inerentes. Na Seção IV começamos a exposição dos resultados de pesquisa abordando a política de habitação e o PMCMV no plano federal e, principalmente, no municipal. Na penúltima seção (V) examina-se o modo de operação da política de habitação nessas capitais e a avaliação dos atores setoriais a respeito das consequências da implementação do PMCMV sobre tais modos de operação. Por fim, à guisa de conclusão (seção VI), sumarizamos os principais achados formulando as hipóteses que eles sugerem, e destacamos o papel dos projetos como instrumento de implementação de uma política federal centralizada, apontando possíveis consequências desse instrumento para as capacidades locais ao longo do tempo.

II. Localismo, governança e descentralização

II.1 Localismo e agência

A valorização da agência local e de seus agentes - administrações municipais, provedores privados, organizações da sociedade civil, cidadãos - e o correspondente descrédito das virtudes e/ou capacidades weberianas do Estado central se tornaram uma feição do espírito do tempo ao longo do último quartel do século XX e primeira década seguinte, campeando no mundo acadêmico, na comunidade internacional de ajuda para o desenvolvimento e em numerosos governos nacionais de orientações ideológicas díspares. Nesses anos, macro processos como a crise do Welfare State, a unificação da Europa e a globalização econômica suscitaram diagnósticos iniciais sobre o suposto “esvaziamento do Estado” (hollowing out of the state) - para dizê-lo por meio de uma formulação altissonante que se tornou célebre (Jessop 2004, 1999; Rhodes 1994). Tratar-se-ia do Estado central perdendo poder a partir de “cima” para atores e processos supranacionais, mas também a partir de “baixo”, tanto para dinâmicas societárias internas que não respeitariam as fronteiras dos Estados-nação (migração ou ativismo transnacional, por ex.) quanto para atores e circunscrições subnacionais (notadamente autoridades locais e cidades). Ademais, no caso da América Latina, em particular, o mesmo período foi marcado pela revisão dos pactos políticos nacionais deflagrada pelas transições políticas, bem como pela onda de governos de esquerda e centro-esquerda eleitos para o executivo a partir da virada da década de 1990. Isso trouxe consigo não apenas reformas descentralizadoras, mas também ampliação de novas instâncias de participação local. Com esse pano de fundo e especialmente atentos aos acontecimentos no hemisfério sul, acadêmicos de diversas perspectivas adotaram uma orientação crescentemente localista. Para Evans (2002 p. 7), “em um mundo neoliberal, instituições locais e regionais têm se tornado lugares mais interessantes para a busca de fontes alternativas de agência”. Assim, prognosticou-se para o mundo que “a próxima década [anos 2010] presenciará a reconstrução da capacidade do governo local” (Warner 2010, p. 146).

Embora alguns daqueles processos históricos que animaram o localismo tenham perdido fôlego ou encerrado ciclos, o localismo consolidou-se na literatura, tornando-se feição distintiva, em especial, da literatura sobre governança. Por exemplo, na literatura de governança multinível (GM)7, a intenção analítica básica, descritiva e normativa, é atentar para a transformação do Estado central - entendido como “autoritário”, “ineficiente” e “inadequado” -, no sentido de diagnosticar e/ou prescrever uma progressiva perda de controle sobre processos decisórios e de implementação (Marks & Liesbet 2004)8. Em vez de burocracia, redes de políticas; em vez de mando, diplomacia, persuasão e negociação (Rhodes 2007). À perda de controle do Estado central corresponde, assim, uma ampliação do escopo de atores com capacidade de negociação sobre o processo decisório - atores estes que, presumivelmente, seriam favoráveis a tal ampliação.

Grosso modo, o papel analítico da agência local ganha proeminência na medida em que a atenção da literatura de governança foca na ampliação das fronteiras dos processos de “governar para além do governo” (Rhodes 1996), e mesmo onde e sobre aquilo que o governo não governa, incluindo uma gama de atores e instituições não estatais, inclusive ilegais (Feltran 2018, 2015; Le Galès 2011; Marques 2013; Plummer & Slaymaker 2007). Ela também ganha destaque na medida em que a literatura de participação vai se aproximando da primeira literatura, estimulando o debate sobre governança democrática e participativa (Cohen & Rogers 1995; Gaventa 2004; Hirst 1994).

Diagnóstico acerca do crescente papel desempenhado por governos e agentes locais também pode ser encontrado em literaturas pouco afeitas ao registro da governança democrática. No campo da geografia política e econômica, em especial da literatura que trata de territorialidade, globalização, estudos urbanos e que discute mudanças no capitalismo e no neoliberalismo (ver Brenner 2009; Peck & Tickell 2003), o reescalonamento do Estado (State Rescaling)9 aparece descrito em termos parecidos aos diagnósticos da literatura de governança - embora, por vezes, em registro normativo oposto. Tal reescalonamento remete à “divisão de escala do trabalho do Estado” (MacLeod & Goodwin 1999), ou seja, à descentralização das funções de governo e atividades regulatórias, que passam a ser desempenhadas em escalas sub e/ou supranacionais por outras entidades federadas, organismos internacionais, empresas privadas, governos de outros países ou, até mesmo, por regiões ou cidades. Trata-se, assim, de um processo de flexibilização do quadro institucional do governo (Brandão 2011; Brenner 2004). Nesse sentido, Martinez-Vazquez e Timofeev (2009) atentam para a desestatização como um dos processos identificados na literatura que definem o reescalonamento do Estado, sendo “desestatização” entendida como ganho de poder de agência (“agentification”) por parte de organismos públicos autônomos, combinado ao envolvimento crescente de atores não estatais na governança10. O ganho de poder de agência, resta implícito, favorece e interessa aos agentes “empoderados” graças ao reescalonamento.

II.2 Descentralização e agência local

As reformas de descentralização implementadas pelo mundo afora desde os anos 1980 constituem o programa mais abrangente que animou a revisão do papel da agência local no aprimoramento da governança. De perspectivas analíticas diferentes e sustentando diagnósticos discrepantes quanto às bondades de seus efeitos, a descentralização tem sido tradicionalmente associada pela literatura especializada a efeitos de dispersão do poder, quer dizer, ao incremento da autonomia dos governos locais para decidir sobre políticas públicas, arrecadação e alocação de recursos. Seja o incremento da autonomia caracterizado como empecilho à capacidade de coordenação do centro, seja como estímulo à eficiência administrativa e financeira do setor público e das cidades, esse é um pressuposto que implica, por definição, não apenas maior capacidade de decisão dos governos locais, mas a ampliação das possibilidades de incidência de agentes locais sobre as políticas. De fato, melhorar a governança da política e das políticas costuma figurar como a justificativa principal apresentada pelos governos que empreenderam reformas descentralizadoras (Faguet 2014), bem como pelas agências para a cooperação internacional que as têm fomentado, pois, acredita-se, a “descentralização pode criar instituições políticas mais transparentes, fomentar e fortalecer o apoio cidadão ao governo e aprimorar a participação cidadã” (USAID 2009, p. 24)11. Mais: há quem considere os benefícios de governança a razão teórica mais potente mobilizada em prol da descentralização (Faguet 2014), embora os fatores causais subjacentes aos benefícios presumidos na governança local nem sempre sejam explícitos (Gomes 2010).

Porém, no Brasil, a relação entre descentralização e agência local dista de se conformar às expectativas - e tal discrepância não é trivial. Trata-se de caso emblemático, pois o país é recorrentemente caracterizado como exemplo de federação altamente descentralizada (Melo & Rezende 2004), por vezes, como um dos países mais descentralizados do mundo (Rodden 2002, 2000; Shah 1997). É precisamente no exame da descentralização pós-1988, e em embate com a literatura internacional, que, no país, tem se produzido conhecimento aprimorado sobre a agência dos governos locais que contesta a caracterização exposta acima.

Ao longo dos anos 2000, sedimentou-se conhecimento, no país, a respeito do federalismo, da distribuição de prerrogativas e da própria descentralização que coloca em xeque a conexão entre municípios e o suposto incremento de sua agência, tal como sugerido pela literatura internacional de orientação localista. O diagnóstico é claro: a autonomia dos municípios é condicionada fortemente pelo arranjo institucional do sistema nacional de um dado setor de política e pelas relações intergovernamentais que, no país, foram organizadas mediante modalidades de indução federal (Arretche 2003, 2015, 2012)12. Além das disposições constitucionais, mecanismos institucionais específicos como as transferências condicionadas de recursos induziram e constrangeram o compromisso dos municípios com novas funções na provisão de serviços, e, por isso, “a descentralização/ municipalização no Brasil não implicou a transferência de capacidade decisória para as esferas subnacionais, mas, sim, na delegação de responsabilidade sobre a implementação” (Souza 2004, p. 37; ver também: Almeida 2005; Arretche 2015, 2013, 2012; Melo & Rezende 2004). Até a expansão de instâncias de governança participativa locais, como os conselhos gestores de políticas, foi resultado de políticas de indução federal (Gurza Lavalle & Barone 2015). Em suma, as lições apreendidas com a acumulação desse conhecimento são inequívocas: a convergência na adoção das políticas e no tipo de gastos realizados no plano municipal decorre em grande parte da concentração do poder decisório no plano federal (que inclui a capacidade de iniciar legislação em diversas áreas de políticas), da sua capacidade de indução e da ampliação do papel dos municípios no âmbito da implementação - não da definição da política.

À orientação localista da literatura e ao seu compromisso com a agência local são aplicáveis os mesmos reparos analíticos que Arretche (2003, p. 334) elaborou em relação aos conceitos “autonomia” e “descentralização”: são genéricos e pouco dizem a respeito da “natureza dos arranjos institucionais sob os quais a gestão local das políticas pode ocorrer”. Ainda que a noção de “agência local” seja capaz de atentar para um escopo maior de atores relevantes, ela permanece indeterminada ou ambígua quanto às características desses atores, às modalidades de sua eventual incidência ou às implicações da natureza das políticas e das capacidades de operação locais.

Não é prudente, todavia, derivar das lições da literatura sobre federalismo e descentralização, nem das limitações da noção de “agência local”, que os governos municipais sejam meros executores da política em todos os seus aspectos. O modo de operação local das políticas varia, mesmo que estas sejam altamente centralizadas quanto aos seus aspectos fundamentais - o “core”, nos termos de Sabatier (1988), por oposição aos “aspectos secundários” mencionados anteriormente. Diferentes desenhos centralizados permitem diversos graus de discricionariedade na sua implementação e, nesse sentido, abrem terreno para escolhas quanto ao como, isto é, quanto à implementação ou aos aspectos de nível “operativo” - também por oposição aos níveis “constitucional” e dos “arranjos institucionais” nos termos de Kiser & Ostrom (1982). Assim, o padrão de convergência das políticas e gastos sociais no plano municipal, cabalmente mostrado pela literatura no Brasil, também é compatível com graus diversos de discricionariedade quanto ao como. Mais: conforme mostrado pelo trabalho de Bichir, Bretas & Canato (2017), a agência local importa e varia mesmo no caso de políticas nacionais altamente reguladas como a assistência social. Tal variação não equivale a um espaço de agência indeterminada sobre os aspectos secundários da política. Antes, características dos municípios e dos governos, bem como variáveis relacionadas à organização de atores sociais locais, às capacidades setoriais municipais ou às regulações subnacionais condicionam tais escolhas (Almeida et al., 2016; Bichir et al., 2017; Peres 2016).

Interessam aqui tanto as características setoriais quanto a trajetória da política e as capacidades administrativas a ela associadas no nível municipal. Se as primeiras podem apresentar maior homogeneidade no caso de setores mais estruturados, a trajetória e capacidades municipais são mais contingentes e, como será visto nos casos de Recife e Curitiba, animam configurações distintas na implantação da política federal. Diferentes trajetórias exprimem variação naquilo que a literatura institucionalista concebe como institucionalização, quer dizer, como os processos de criação de órgãos e conjuntos de regras respaldados por atribuições específicas e dotados de recursos materiais e humanos que viabilizam a execução de tais atribuições (Skocpol & Finegold 1982; Gurza Lavalle et al., 2019; Szwako & Gurza Lavalle 2019). A institucionalização é uma condição geral favorável ao desenvolvimento de capacidades estatais (Cingolani 2013), normalmente observadas pela literatura no plano nacional (Gomide & Boschi 2016; Gomide & Pires 2014), mas cuja criação e eventuais efeitos também se encontram presentes no plano municipal. Sabidamente, as capacidades que constituem os poderes do Estado são multidimensionais, mas dadas as características do PMCMV e do desenho desse artigo, interessam aqui aquelas de caráter administrativo, identificadas, precisamente, com órgãos, suas funções, regramentos e recursos vinculados.

No que diz respeito às características setoriais de interesse, trata-se de uma política em que há maior grau de discricionariedade local, envolvendo também agentes não estatais - notadamente, empresas responsáveis pela construção das moradias - e permitindo maior variação no modo de operação da política. Por exemplo, comparativamente, tanto o PBF quanto o PMCMV ocupam posições distintas no que diz respeito à discricionariedade aberta pelos aspectos secundários ou operativos dessas políticas. No caso do primeiro, existe centralização na definição da política e em parte relevante da operação, restando aos municípios o papel de cadastrar potenciais beneficiários no CadÚnico,13 que é gerido pelo governo federal (Bichir 2011; Hevia De La Jara 2011). Para os propósitos deste texto, cabe apontar que a definição e operação centralizadas do PBF geraram efeitos convergentes agregados - no caso, redução da pobreza extrema no país -, mas permitindo alguma variação no nível local restrita à possibilidade de aproveitar o Programa de modo sinérgico para o funcionamento de políticas sociais municipais (Bichir et al., 2016; Rodrigues, 2012). Por outro lado, existem políticas que estão a cargo das unidades subnacionais que, assim, exercem discricionariedade não só em relação à execução, mas também em relação à formulação da política (ex.: transporte público, coleta de lixo). No continuum entre esses dois extremos poderíamos inserir diversas outras políticas com graus intermediários de discricionariedade, como habitação de interesse social. Dadas suas características setoriais, no país, ela apenas permite a centralização da operação dos recursos financeiros e a definição das linhas mais gerais da política (como parâmetros básicos de construção e principais condicionalidades), mas depende da articulação de agentes locais para sua implementação - a qual inclui desde a delimitação da área residencial e a disponibilização do terreno até a eventual introdução de infraestrutura urbana e a construção propriamente dita dos conjuntos habitacionais.

III. Nota metodológica

Este artigo apresenta resultados inéditos que derivam de um projeto mais amplo dedicado ao estudo da operação de políticas públicas urbanas voltadas ao combate à pobreza em grandes municípios brasileiros14. Naquele projeto, cujo trabalho de campo ocorreu entre 2010 e 2013, mapearam-se os atores envolvidos na governança das políticas de assistência social, habitação, saneamento e transporte de Fortaleza (CE), Porto Alegre (RS), Recife (PE) e Curitiba (PR). O subprojeto que embasa o artigo, em particular, foca na política de Habitação de Interesse Social dos dois últimos municípios15.

Foram realizadas duas incursões de pesquisa de campo em Curitiba e três em Recife que resultaram em mais de 36 horas de gravação em áudio. O material primário foi produzido a partir de 32 entrevistas realizadas com informantes-chave mediante a utilização de roteiro semiestruturado. Adicionalmente às entrevistas, o artigo também descansa em literatura secundária, bem como em dados primários dos programas de habitação nas cidades estudadas, obtidos junto ao MCidades e à CEF, graças à Lei de Acesso à Informação - LAI16.

No que se refere especificamente aos informantes-chave17, entrevistaram-se gestores de instituições municipais de habitação, funcionários da Caixa Econômica Federal (CEF, agente financeiro federal)18, empreiteiros envolvidos na execução do Programa em tela, além de especialistas locais de universidades, instituições de pesquisa e ONGs19. O roteiro inqueria sobre os seguintes temas: i) capacidade de implementação dos programas e políticas pela prefeitura, ii) estrutura administrativa municipal da política, iii) mapeamento dos atores partícipes, iv) identificação das demandas habitacionais e das prioridades de governo para a área, v) avaliação sobre o modo de funcionamento do Programa habitacional naqueles municípios.

Entrevistas com informantes-chave, literatura secundária e fontes primárias foram articulados neste estudo de caráter exploratório, que procedeu indutivamente na identificação dos fatores locais da política setorial associados ao modo de implementação do PMCMV. Os padrões encontrados são ponto de chegada e suas implicações são analiticamente relevantes; entretanto, sua generalização empírica depende de pesquisas confirmatórias em que tais implicações sejam elaboradas como proposições dedutivas informadas pela teoria. Com o intuito de avançar nessa direção, na seção final do artigo sintetizaremos os padrões explicitando as hipóteses por eles sugeridas.

Cabe mencionar que as evidências produzidas nas incursões em campo correspondem em boa medida ao plano das percepções dos atores e, por definição, podem acusar vieses derivados das trajetórias dos entrevistados e de suas posições no momento da pesquisa. Por isso, procedeu-se na análise ao contraste de pontos de vista entre as fontes20. Também é pertinente esclarecer que, embora as literaturas de descentralização e, sobretudo, de governança, realcem o papel desempenhado por gestores, usuários e provedores privados no aprimoramento das políticas ou da própria governança, nosso foco contempla apenas as administrações municipais e seus gestores. Contudo, como mencionado, também foram entrevistados provedores de serviços, usuários e representantes da sociedade civil, e o argumento aqui apresentado se beneficia da análise desse material, que permitiu informar uma visão de conjunto, ainda que não seja diretamente reportado no texto.

IV. Política habitacional nos planos federal e municipal

IV.1. A trajetória da política federal e o Programa Minha Casa Minha Vida

O modelo de política habitacional implementado pelo Sistema Financeiro de Habitação (SFH) entre 1967 e 1986 foi operado pelo Banco Nacional de Habitação (BNH)21, e financiado com recursos do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS)22 e do Sistema Brasileiro de Poupança e Empréstimo23. A política habitacional respondia a diretrizes gerais vindas do centro, com implementação descentralizada nos estados e municípios. Apesar das fortes críticas - dentre elas, a participação minoritária de imóveis destinados às parcelas mais pobres da população e a concepção de habitação como construção de conjuntos habitacionais grandes e homogêneos -, a política então desenvolvida foi capaz de produzir portentosos 4,5 milhões de unidades.

Com a desestruturação da política pública dirigida pelo BNH e a extinção dessa instituição em 1986, nota-se, no período da transição democrática, e mesmo da pós-transição, a ausência de uma política centralmente organizada para a produção em larga escala de moradia de interesse social24. Muitas companhias habitacionais estaduais (até então agentes locais de execução da política habitacional) foram extintas por dificuldades financeiras. Ao mesmo tempo, os municípios passaram a ganhar centralidade na promoção de habitação de interesse social (Cardoso & Aragão 2013).

Durante os governos de Fernando Henrique Cardoso (FHC), por sua vez, ocorre um período de liberalização, caracterizado pela presença de modos alternativos de provisão de habitação social (tais como mutirões, lotes urbanizados e financiamento de imóveis usados), por um peso relativo maior das opções de política definidas por governos subnacionais, mas, consequentemente, também por uma heterogeneidade elevada entre regiões no que diz respeito a tal provisão (Santos 1999). Cabe mencionar, inclusive, que alguns desenvolvimentos ocorridos no período foram importantes para a transição que viria a ocorrer na política habitacional subsequente, de interesse deste texto. São exemplos: a regulamentação paulatina de parte do capítulo sobre a política urbana - incluído na Constituição Federal de 1988 -, além do reconhecimento dos municípios como atores importantes na provisão da política; a criação do Estatuto das Cidades (2001); a especialização em técnicas de barateamento e a diversificação das cartelas de serviços das empresas construtoras ocorrida entre 1994 e 2002 (Cardoso & Lago 2013; Klintowitz 2015; Shimbo 2010).

Foi ao longo da primeira metade da década de 2000, já sob mandato presidencial do Partido dos Trabalhadores (PT), que se registrou uma gradual reconstrução institucional da política de provisão de moradias em larga escala. Compõem o novo cenário vários fatores institucionais - como a criação do MCidades, em 2003, do Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social (FNHIS) e do Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social (SNHIS), ambos em 2005 -, bem como novas medidas que permitiram tanto a ampliação do crédito às classes baixas quanto segurança ao mercado imobiliário.

Assim como o Programa de Aceleração ao Crescimento (de 2007), o Programa Minha Casa Minha Vida (2009) foi concebido como uma resposta anticíclica à crise econômica da segunda metade da década, o que permitiu ressignificar a habitação como uma política estratégica de governo (Cardoso & Aragão 2013; Klintowitz 2015). Conjugado a objetivos de geração de empregos e crescimento econômico, o PMCMV permitiu o incremento exponencial da provisão de novas unidades habitacionais no país, reestabelecendo, assim, a produção em larga escala centralmente coordenada. Embora sua concepção tenha se beneficiado da experiência acumulada desde 2003 pelo MCidades - que contribuiu a seu desenho junto à Casa Civil e ao Ministério do Planejamento (estes, os principais elaboradores do programa) - o PMCMV introduziu uma descontinuidade em relação à lógica de planejamento sistêmico da política nacional de habitação de interesse social que vinha sendo gestada nos últimos anos entorno do SNHIS (Klintowitz 2016). Como será visto, essa descontinuidade foi objeto de críticas.

O novo modelo de política habitacional instituiu uma clara divisão de tarefas. O governo central arrecada e redistribui os recursos25 sob a condição de determinar os parâmetros básicos da política. Define-se, assim, sua capacidade de indução do comportamento dos atores subnacionais tanto no que diz respeito a como o programa deve ser implementado - por exemplo: valores máximos de venda dos imóveis, critérios para definição das faixas de renda do programa, especificações arquitetônicas e de engenharia mínimas das unidades -, quanto no que diz respeito a quais capacidades administrativas as municipalidades devem apresentar para fazer jus aos recursos - por exemplo: cadastro de requerentes26. No plano local, às construtoras e incorporadoras cabem a proposição e a execução dos projetos arquitetônicos e de engenharia. À Caixa cabe a contratação e a verificação das exigências associadas às suas cláusulas. Por sua vez, os governos municipais são os principais responsáveis locais pela política urbana e pelo ordenamento das cidades. A eles corresponde papel relevante na implementação da política: para a faixa de renda compreendida entre 0 e 3 salários mínimos, chamada de faixa 1, os municípios podem disponibilizar terrenos ao Programa, dar isenção tributária, facilitar processos de licenciamento, flexibilizar normas urbanísticas e, ainda, cadastrar as famílias selecionadas no CadÚnico (BRASIL 2009; Cardoso & Aragão 2013). É no plano local - que inclui as prefeituras, a iniciativa privada e CEF -, portanto, que se definem as áreas passíveis de desapropriação, a localização das áreas de construção, o número de unidades por conjunto habitacional, o formato arquitetônico dos conjuntos e outros aspectos da implementação.

As características do PMCMV subordinam a política de habitação de interesse social à ativação do mercado, deslocando progressivamente o poder decisório do MCidades para o âmbito da Casa Civil, do Ministério do Planejamento e da própria CEF (Klintowitz 2015). Rompeu-se, assim, com a lógica de planejamento própria do SNHIS e emblematicamente a alocação dos recursos do Programa passou a ser realizada por fora da estrutura institucional do sistema. Por isso, PMCMV não deixou de receber críticas severas, em especial relacionadas à desconexão com o déficit habitacional, à segregação no espaço (Marques & Rodrigues 2013), à falta de articulação com a política urbana, à ausência de incentivos para lidar com a questão fundiária e com a baixa qualidade arquitetônica dos empreendimentos, à existência de desigualdade entre os municípios em termos de capacidades administrativas, assim como à inexistência de um papel específico para os estados (Cardoso & Aragão 2013).

IV.2. Perfil de Recife e Curitiba e acesso a recursos do PMCMV

A prefeitura de Recife foi governada pelo Partido dos Trabalhadores (PT) entre 2001 e 2012, quando então foi eleito o candidato do Partido Socialista Brasileiro (PSB) - também reeleito no pleito subsequente. Este último partido também esteve no governo do estado entre 2007 e 2014. Recife é reconhecido como um município com importante histórico de inovação institucional, inclusive naquela destinada a fomentar a participação social. O Plano de Regularização das Zonas Especiais de Interesse Social (Prezeis), por exemplo, é um instrumento de referência com amplo reconhecimento27. No mesmo sentido, o Programa Prefeitura nos Bairros, implantado em 1985, foi pioneiro em permitir a participação da população na alocação de recursos, em termos muito semelhantes ao (posterior) Orçamento Participativo (Cardoso & Valle 2000).

Considerando o mesmo período, a prefeitura de Curitiba foi governada pelos partidos DEM, PSDB e PSB. Contudo, a despeito das mudanças de sigla, diversos entrevistados ressaltaram à época a reiterada influência exercida por um mesmo núcleo político, o chamado “grupo de Jaime Lerner”, que remontava à década de 197028. Esse grupo político-administrativo primeiramente se institucionalizou como Assessoria de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (Appuc), no início dos anos 1960, e, em 1965, consolidou o Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (Ippuc) - uma importante inovação administrativa na época e, como será visto, bastante atuante até hoje. Esse instituto ajustou o Plano Preliminar de Urbanismo ao longo dos anos 1960 para ser implementado em 1970, criando um modelo de referência para o planejamento urbano no Brasil.

Seria plausível esperar, a respeito da configuração político-partidária, que o alinhamento partidário entre os níveis municipal e federal poderia, em princípio, exercer papel relevante na facilidade ou dificuldade com que as prefeituras de cada cidade acessaram os recursos da política federal de habitação. Se assim fosse, a operação da nova política setorial concebida e gerida pelo PT seria favorável a Recife na aprovação de projetos e destinação de verbas devido ao alinhamento político das últimas gestões municipais, enquanto seria menos favorável a Curitiba, governada por partidos posicionados à direita do PT no espectro político e/ou de oposição no plano federal. Não obstante, as evidências apresentadas a seguir não suportam tal conjectura. Quando comparadas as duas cidades emerge, na verdade, um contraste no que diz respeito não apenas às condições de moradia, mas a suas capacidades de acessar os recursos setoriais alocáveis via o PMCMV. Mesmo possuindo menores déficit de domicílios e de incidência de assentamentos precários, Curitiba tinha sido capaz, até 2013, de captar cinco vezes mais recursos do PMCMV e de contratar cinco vezes mais projetos (estes, cabe mencionar, com sete vezes mais unidades) do que Recife.

Grosso modo, e para além das semelhanças no histórico de inovação, ambas as cidades contam com uma população relativamente equivalente, ocupando a 8ª e a 9ª posições no elenco das maiores capitais do país, apesar de Curitiba ser mais rica e menos desigual, conforme mostrado na Tabela 1.

Tabela 1
Perfil Socioeconômico de Recife e Curitiba

No que diz respeito, então, à caracterização mais geral do contexto habitacional, em Recife, a proporção de domicílios com déficit habitacional sobre o total de domicílios em 2012, para a região metropolitana, era de 8,2% (IPEA 2013), e o percentual de domicílios em assentamentos precários, de 17,64% em 2000 (Marques et al., 2008). Já em Curitiba, o déficit da região metropolitana relativo ao número total de domicílios, em 2012, era de 6,5% (IPEA 2013), e o percentual de domicílios em assentamentos precários, em 2000, de 12,13% (Marques et al., 2008).

Ao observarmos, por sua vez, os contratos firmados via PMCMV nos dois municípios (Tabela 2) é possível constatar que Recife enfrentou maior dificuldade de implementação da política federal, malgrado o alinhamento partidário presuntivamente favorável, e do déficit habitacional maior. A tabela indica que Recife só começa a contratar para a população na faixa 1 a partir de 2012, enquanto Curitiba o faz desde 2009. Relacionado a este fato, temos um menor número de unidades habitacionais e empreendimentos contratados e ainda em fase de obras em Recife, enquanto Curitiba já apresenta estágios mais avançados na implementação do programa. O modo de operação dos programas nos dois municípios apresentado na próxima seção explicita alguns motivos dessa diferença.

Tabela 2
Dados sobre conjuntos habitacionais contratados no PMCMV para faixa 1 (até 2013)

V. Modo de operação do PMCMV: projetos vs planejamento

V.1. Órgãos, funções e recursos

No que diz respeito aos órgãos e recursos materiais e humanos dedicados à provisão de moradia social, são três as principais instituições envolvidas na política setorial em Recife29. No Executivo municipal, a Secretaria de Habitação (SH), recriada em 2005, tem por atribuição promover habitação para a população de baixa renda. Sua recriação vincula-se à execução de projetos habitacionais que contavam com recursos do governo federal e BID30. A instituição foi marcada por uma alta rotatividade dos secretários de habitação, motivo ao qual alguns entrevistados da sociedade civil atribuíram a incapacidade do município de elaborar seu Plano Municipal de Habitação no prazo conferido (2012) pelas diretrizes federais após a criação dos MCidades31. A segunda instituição relevante aos propósitos de análise é a Empresa de Urbanização do Recife (URB, hoje denominada Autarquia de Urbanização do Recife), de 1973. Quando da realização das entrevistas, a URB, como empresa de administração indireta da prefeitura, era responsável por promover estudos e projetos de urbanização, incluindo obras viárias e recapeamento de canais, além de efetuar o remanejamento urbano de áreas deterioradas32. A URB respondia a demandas da prefeitura, dos vereadores, do Orçamento Participativo municipal (OP) e do Prezeis. Por fim, a terceira instituição, denominada Autarquia de Saneamento de Recife (Sanear), de 2005, responde diretamente ao Gabinete do Prefeito e com nível administrativo semelhante à das demais diretorias municipais33. Por operar seguindo o modelo de Saneamento Integrado34, as atribuições da Sanear incluem a construção de moradias e a regularização fundiária (no momento da pesquisa com base em prioridades definidas no OP). Essa autarquia foi criada seguindo proposição da 1ª Conferência Municipal da Cidade do Recife, ocorrida em abril de 2002, cuja intenção era aventar alternativas contra iniciativas de privatização do setor de saneamento35. A Sanear foi comandada, entre 2002 a 2012, pela base do governo municipal, composta pelo próprio PT, e também PCdoB e PR.

Em linhas gerais, a divisão de trabalho entre as três instituições ocorre da seguinte maneira: a SH atua especificamente na política habitacional, construindo moradias principalmente para atender a populações que dependem do Auxílio Moradia36; a Sanear faz intervenções urbanísticas de acordo com as obras de saneamento básico que executa; e a URB constrói habitações para a população que é remanejada pelas obras de urbanização.

Na prática, todavia, existem algumas intervenções em que há maior dificuldade de se identificar a priori qual a instituição responsável: todas constroem moradias populares, com diferenças no tipo de enfoque, mas com poucas diferenças em relação ao tipo de recurso que acessam. Igualmente, todas constroem moradias a partir de intervenções urbanísticas no município - especialmente construção de vias e implementação de infraestrutura - que impõem a necessidade de se fazer regularização fundiária ou remoção de moradias. Assim, a operação das três instituições envolvidas na construção de moradia social em Recife se mostrou mais vinculada a essas intervenções e a ações emergenciais para população em áreas de risco (notadamente moradores de palafitas) do que propriamente voltada a responder o déficit habitacional no município37.

Para se entender a operação da política habitacional de cunho social em Curitiba, por sua vez, é preciso levar em conta o papel desempenhado por duas instituições principais, assim como a relação existente entre elas. A primeira, o Ippuc, com mais de cinquenta anos de operação, é uma autarquia municipal da administração indireta, embora todo o seu quadro, em 2012, fosse de funcionários de carreira. O instituto é responsável pelo planejamento urbano do município e pela realização de pesquisa para a sua instrumentalização. É diretamente ligado ao Prefeito e, por anos, tem sido ocupado por um corpo de diretores muito próximos da elite política municipal (e mesmo da estadual em diversos períodos). Essa relação político-partidária o torna especialmente importante na definição da política pública municipal, inclusive no setor de habitação. A segunda, a Companhia de Habitação Popular de Curitiba (Cohab-CT), é uma sociedade anônima de economia mista e possui como acionista majoritária a Prefeitura Municipal, estando vinculada ao Sistema Financeiro de Habitação. Por objetivo possui o planejamento, execução e comercialização de unidades habitacionais para famílias de baixa renda. Em seus quase 50 anos de existência, serviu de agente financeiro do BNH, trabalhou com programas próprios e parcerias privadas para a produção habitacional na década de 1990 e, recentemente, promoveu construção de novas moradias no contexto do PMCMV38.

Note-se que, do ponto de vista da institucionalização, os órgãos e correspondentes recursos humanos das políticas de habitação nos dois municípios foram criados em diferentes períodos e acusam variação importante quanto aos seus graus de consolidação. Vale lembrar que, em Curitiba, tanto o Ippuc quanto a Cohab-CT são órgãos da década de 1960. Nascidos no mesmo contexto político e econômico, trabalham juntos há décadas. Ainda que em Recife exista também uma instituição mais antiga relacionada à política habitacional a partir dos anos 1970 (URB), a composição do trio é mais recente: a SH, extinta no final dos 1990, foi recriada só uma década e meia depois, no mesmo ano em que foi instituída a Sanear. Assim, a antiguidade e consolidação da estrutura de Curitiba contrasta com baixa institucionalização (novidade e instabilidade) do arcabouço da política setorial em Recife que, como será visto, padece de maior desarticulação. O padrão empírico encontrado no que diz respeito à institucionalização dos órgãos diretamente implicados na operação local do PMCMV é, inclusive, consoante com um padrão setorial geral, evidenciado pelas diferenças entre os municípios quanto a recursos humanos na administração pública e à existência de instrumentos de política urbana - conforme mostrado na Tabela 3. As evidências são semelhantes quando consideradas outras dimensões da política urbana, tais como articulações interinstitucionais e programas ou ações na área de habitação. Percebe-se, assim, que Curitiba concentra não só um maior número de funcionários da administração municipal em geral, como, também, mais programas, ações, instrumentos de política urbana, e articulações interinstitucionais na área de habitação.

Tabela 3
Número absoluto geral de funcionários da administração municipal; existência (sim/não), na área de habitação, de programas ou ações, de instrumentos de política urbana, e de articulações interinstitucionais em Curitiba e Recife nos anos de 2011 ou 2012(*)

Devido às diferenças na institucionalização e capacidades administrativas, os programas setoriais do governo federal foram incorporados de modo diverso pelos agentes dessa estrutura setorial nos dois municípios. Em Recife as políticas relacionadas à construção de moradia para população de baixa renda eram articuladas pela Secretaria Especial de Gestão e Planejamento (Segesp)39 e distribuídas entre as três instituições que atuam na política de habitação do município. Entretanto, a estreita vinculação da política municipal de habitação às operações de urbanização, além do caráter recente de suas instituições (à exceção da URB), dificulta o planejamento. A fala de uma gestora dessa secretaria ilustra esse cenário em que as três instituições confluem à construção de moradia popular, sendo duas delas explicitamente condicionadas à operação casada de infraestrutura:

Agora a gente não tem uma política habitacional que ataque muito claramente essas pessoas que estão no auxílio [Moradia]. (...) A gente tem mais função associada à urbanização de uma área. (...) Por exemplo, saneamento. (...) tem muitos habitacionais que estão sendo construídos, mas a maioria desses são pessoas que viviam ou em área onde a gente vai passar uma avenida, [...] áreas de beira de rio ou de mangue, que está desocupando áreas de canais, então está tirando essa população e construindo esses [conjuntos] habitacionais [...]. Então para urbanizar todo aquele território [PAC Beberibe], botar pavimentação, água, drenagem, esgoto e tudo, é necessário que a gente realoque essa população para poder fazer essas obras. Então, são exatamente ações casadas de urbanização com reassentamento. () A URB não faz habitacional só habitacional, geralmente ela está associada a alguma obra de infraestrutura que ela precisa fazer na cidade. Também a questão do saneamento geralmente está associada a uma atividade de saneamento [Sanear]. A única que faz só habitacional é a Secretaria de Habitação [SH], ela faz só habitacional [itálico acrescido].

A entrevistada descreve, em especial, as ações de urbanização realizadas tanto pela Sanear, quanto pela URB e a SH. Entretanto, apenas a última teria condições de construir habitação social sem estar condicionada a algum outro tipo específico de intervenção. A distribuição das obras para cada uma das instituições, pela Segesp, parece emblemático da acomodação entre, de um lado, as características da indução federal mediante financiamento e, de outro, as capacidades de operação setorial em Recife.

É muito também em função de projetos, é quem às vezes têm os projetos. Porque como é que acontece? Abre uma linha de financiamento do governo federal, [...] aí o que for mais característico para saneamento do que para habitação a gente manda os projetos da área de saneamento. Ou outros... aí depende [...] do projeto que a gente tenha e depende do edital que é lançado, é muito em função disso [...]. Onde apareceu recursos, onde a gente tem projeto, certo? Hoje está funcionando assim, o ideal era que a gente tivesse uma política em que fôssemos priorizando quais eram as áreas que a gente tinha maior necessidade de resolver e ir apresentando, considerando a lógica do planejamento, né? Do ponto de vista de habitação. Mas não funciona assim na prática. A gente termina apresentando o que a gente tem. O que tem de estoque de projeto a gente apresenta [itálicos acrescidos].

A entrevistada da Segesp deixa claro, na passagem acima, o diagnóstico mais geral emanado da pesquisa de campo, a saber, que a política habitacional em Recife, em especial para população de baixa renda, era então praticada sem planejamento de longo prazo e a partir das oportunidades de recursos, especialmente federais, disponíveis para as obras na forma de projetos (Rodrigues & Serafim 2014). Segundo os achados de pesquisa, se, por um lado, é possível interpretar que a recente institucionalização da política de habitação no município também foi fomentada mediante os incentivos das políticas nacionais, por outro lado, essa estrutura é acionada de modo variável de acordo com projetos e à procura da disponibilidade de recursos financeiros federais. Assim, a indução federal no setor opera como mecanismo com efeito duplo: fomento à criação de capacidades administrativas, e estímulo à homologia organizacional, fazendo com que as instituições funcionem sob a lógica do projeto. Como consequência, carece-se de incentivos para o desenvolvimento de uma política voltada especificamente para o atendimento das necessidades locais e baseada em planejamento a longo prazo.

As três instituições - URB, Sanear, e SH - dependem do acesso a recursos das mesmas fontes, como o PMCMV, e interferem paralelamente no planejamento urbano, sendo igualmente dependentes do sucesso na aprovação de projetos. Nessas circunstâncias, a coordenação entre elas, mesmo com a atuação da Segesp, é praticamente inexistente40. Assim, revela-se o caráter fragmentado e pontual da política habitacional, mesmo com - e por causa dos - incentivos à criação institucional das condições necessárias para receber financiamento via programas federais. De fato, a divisão de trabalho segue, em grande parte, a lógica de projeto, na qual não há uma divisão de competências para a construção da política, e onde cada instituição realiza seus próprios projetos integralmente, disputando recursos nos mesmos programas federais e assumindo a execução dos mesmos.

Em Curitiba, por sua vez, as entrevistas revelaram compreensão comum quanto à divisão básica de trabalho entre as instituições da política setorial, permeada por disputas quanto às fronteiras dessa divisão; disputas que, no entanto, apontam para uma superposição reduzida entre as atribuições do Ippuc e da Cohab. Grosso modo, o Ippuc planeja, delimita e concede os direitos de uso do espaço urbano - uma espécie de “direcionador da política”41 municipal -, enquanto a Cohab implementa a política de habitação social, inclusive mediante o desenvolvimento de projetos, parcerias com a iniciativa privada e buscando fontes de renda e/ou terrenos para a construção dos conjuntos habitacionais. Dadas tais atribuições, a centralização de programas federais como o PMCMV tende a afetar mais sensivelmente o escopo de atuação do Ippuc, pois reduz sua capacidade de planejar a política, especialmente quando considerado que houve um período de autonomia e experimentação grande por parte das duas instituições. Ao longo dos anos 1990, especialmente devido ao fim do BNH, a ausência de recursos federais de grande monta fez com que a Cohab buscasse novas formas de viabilizar a habitação de interesse social. De fato, são citadas pelas gestoras municipais experiências em que a iniciativa privada provia o terreno, o Ippuc flexibilizava as exigências legais municipais (ex: permitir construções menores, portanto, mais lucrativas) e a Cohab ganhava o direito de viabilizar 20% das moradias para a sua fila de inscritos. Alguns instrumentos foram criados localmente, antes de ganharem repercussão nacional com a aprovação do Estatuto da Cidade, e contribuíram inclusive para o fortalecimento institucional da Cohab.

Porém, conforme apontado, tal descrição da divisão de tarefas encerra uma hierarquia reiteradamente nuançada - contestada até - pelos atores desse campo nas entrevistas, advertindo de modos diversos que seria redutor dizer que o Ippuc “planeja” e que a Cohab simplesmente “executa” a política de habitação. Isso ocorre não apenas porque programas como PMCMV são desenhados pela União, mas, sobretudo, porque a divergência é alimentada por aqueles que ocupam uma posição subordinada nessa divisão (Cohab). Uma gestora da Cohab de alto escalão é clara a esse respeito, argumentando que a ação da Cohab é mais ampla que a mera execução:

[...] a Cohab, ela não é só uma executora. Ela também define prioridades. Ela define política. [...] Agora, a gente tem uma relação maior, mais específica [com o Ippuc], quando vai tratar de algum projeto de expansão urbana ou de alguma área que a gente tem que discutir [a] forma de ocupar. Ou alguma questão mais específica de sistema viário, de localização de equipamentos... Isso tudo passa pelo Ippuc. A gente não tem autonomia de aprovação dos nossos projetos. [...] Então é ouvido o Ippuc, as Secretarias todas.

Não é de espantar, por outro lado, que para parte dos atores do Ippuc a delimitação clara entre planejamento e execução seja pacífica e, mais, gere efeitos positivos para a política municipal de habitação: “a divisão de papéis entre a Cohab e Ippuc [...] pode contribuir no resultado da política de habitação na cidade”42. Dentro do Ippuc, por certo, é possível encontrar posições mais cautelosas, como a gestora que, embora também se refira à Cohab como “executora da política”, reconhece que tal classificação é um pouco imprecisa na medida em que o Ippuc deixa de atuar de forma mais efetiva na proposição das novas áreas para construção, assim como nos projetos de urbanização de favelas. Ainda assim, a entrevistada deixa bem marcadas as diferenças existentes entre as duas instituições quando se dá a necessidade de negociação entre elas:

[...] a gente tem que avaliar e pesar qual a consequência disso, de abrirmos [uma nova área para a implantação de conjuntos habitacionais] [...]. Temos que ver os custos disso, de levar uma população de baixa renda para aquele local sem uma infraestrutura adequada. Quanto isso vai custar para o município? Porque o município tem por tradição prover essa infraestrutura, só que a Cohab só vai prover os lotes, os apartamentos ou as casinhas. Os outros elementos vão ficar a cargo do município. Porque a Cohab é uma companhia, ela não faz parte da estrutura das Secretarias do município.... E como toda companhia, ela tem uma aplicação de recursos e tem que ter um retorno desses recursos também. Então, ela não vai investir em escola, em creche [...].

Em sentido diferente ao dos atores diretamente envolvidos nessa divisão de trabalho, é possível reconhecê-la, mas considerá-la indesejável por seus efeitos para a política de habitação. Repare-se como, no seguinte diagnóstico de uma arquiteta e urbanista, consultora na área de planejamento urbano e partícipe do Conselho Municipal de habitação (Concitiba), a separação de funções entre as duas instituições é assumida como um fato, mas acusa-se a falta de planejamento na habitação como uma de suas consequências deletérias. Tal distribuição de tarefas cindiria planejamento urbano e habitação, animando um entendimento da última como mera construção de novos empreendimentos imobiliários43. Assim, a Cohab pode se vincular ao PMCMV na captação de recursos e como executora de obras orientadas por diretrizes federais, conforme a análise dessa entrevistada:

O Ippuc trata do planejamento urbano em determinados temas. Habitação vai para a Cohab. Então é como se o planejamento urbano não considerasse o tema habitação. [...] [a Cohab] trabalha cadastrando pessoas que querem casa e tentando conseguir dinheiro para casa. Mas a Cohab não chega e fala que precisamos utilizar um instrumento para evitar que aquela terra seja retida, permaneça vazia para especulação. Ou queremos um instrumento para incentivar a produção nessa área. Ou seja, [ela] não trabalha nesse campo da estratégia dos instrumentos, trabalha com a operação de política. Tem dinheiro para o Minha Casa Minha Vida? [...] Então vamos estruturar para receber o recurso, fazer as parcerias e tocar a obra aí. [...] Claro que a aprovação de investimentos passa pelo Ippuc. Vai ser discutido pelo Ippuc onde está na cidade e tal.

Em suma, PMCMV levou ao aumento da provisão de moradia de interesse social em Recife e Curitiba - embora em volume consideravelmente maior no segundo município -, mas o modo de operação da política foi distinto. Em Recife, o Programa foi apropriado pelas instituições de acordo com intervenções urbanísticas na cidade e as obras foram executadas conforme a atuação de cada uma das três instituições, por projetos geridos de modo exclusivo e integral de princípio a fim, sem coordenação interinstitucional nem subordinação a prioridades de planejamento urbano, especificamente na área de habitação de interesse social. Em Curitiba, onde o planejamento urbano e a política habitacional ocupam posição relevante na administração municipal de longa data, o Programa foi operado mediante coordenação entre as duas instituições principais do setor, seguindo uma divisão especializada de funções, o que enseja tentativas de adequar a lógica baseada em projetos do Programa a prioridades de planejamento urbano municipal. Esse modo de operação é consoante com as avaliações do PMCMV por parte dos gestores.

V.2 O PMCMV na avaliação dos agentes locais

No que tange à avaliação feita pelos gestores acerca da incidência do PMCMV na operação da política nos dois municípios, a pesquisa também revelou padrão divergente. Note-se que o alinhamento político partidário entre os ocupantes do governo federal e governos municipais poderia influenciar essa avaliação (vide caso de Recife). No entanto, os argumentos levantados (explorados abaixo) não são de caráter programático, mas baseados nas atuações institucionais dos atores.

Grosso modo, enquanto em Recife são apreciados os ganhos do programa relativos à institucionalização da política municipal de habitação, no caso de Curitiba, acusam-se os efeitos de limitação da agência dos atores. Assim, a questão da perda de poder de decisão das instituições municipais em decorrência do regramento federal aparece bem tematizada pelas entrevistadas em Curitiba, mas parece não suscitar ressalvas dos atores setoriais em Recife - onde reiteradamente são valorizadas as oportunidades de atendimento habitacional célere e de parceria com o mercado da construção civil abertas com o programa. Se as gestoras do Ippuc, e inclusive da Cohab, criticam o pequeno escopo para as decisões locais em relação ao projeto habitacional, colocando suas instituições como dependentes de uma política federal impositiva, em Recife, por sua vez, não foi acusado um trade-off no que diz respeito à perda de poder decisório da gestão municipal - lá, os programas federais parecem ser recebidos com entusiasmo pelos gestores e as críticas são de atores externos à burocracia municipal. Vejamos.

Em Recife, muitas entrevistadas demonstraram simpatia, ou mesmo entusiasmo, com diversas novidades implementadas por ocasião dos novos programas federais (pós-2003), tais como o incentivo a desenvolvimentos administrativo e burocrático e, ainda, à padronização de procedimentos. Ou seja, para eles, os programas federais teriam criado e/ou incentivado o desenvolvimento de instrumentos de gestão importantes - como, por exemplo, a obrigação de vincular a titularidade das unidades habitacionais ao nome das mulheres no PMCMV, e a implementação do CadÚnico. Gestora pública da Segesp deixa clara a dimensão da mudança percebida na operação da política municipal:

Então isso é uma mudança de paradigma na minha visão. Porque você [a prefeitura] antes vinha, pegava o recurso, tinha que contratar, fazer toda a contratação da obra, gerenciar, entendeu? Agora não, você tem outra forma de se relacionar e fazer e executar essas unidades habitacionais, né? Você agora entra como um parceiro, como mais um parceiro. Tem um agente financeiro que é a Caixa, tem o privado e tem o poder público. [...] acredito que [antes] era mais lento, está entendendo? Porque a gente [a prefeitura] tem que fazer uma licitação [...]. Então, tudo para o poder púbico é mais amarrado do que o privado, né? Depois que ele se habilitou, que ele pega o dinheiro, ele constrói, como constrói pro mercado privado, está entendendo? Então eu tenho uma expectativa que isso vai realmente mudar a agilidade e se a gente pega normalmente esse procedimento vai mudar a forma de construir, vai ser mais ágil na minha opinião [...].

Curiosamente, a opinião de que a rigidez de planejamento e orçamento do Programa se converteria em dificuldade adicional para a política de habitação local se faz ouvir uma única vez em Recife, precisamente vocalizada pela representante da construtora responsável pela construção do primeiro conjunto habitacional do PMCMV no município. Para ela, as obras deveriam cumprir prazos e orçamentos pré-determinados, mas com alguma flexibilização que abarcasse o reajustamento do projeto original em função de problemas e atrasos imprevistos. Caso contrário, isso poderia impedir que as empresas concluíssem as obras, aumentando, assim, o custo da política com rescisões contratuais e abandonos. Também questionou o uso padronizado da tabela do Sistema Nacional de Pesquisa de Custos e Índices da Construção Civil (Sinap) para o fim de cálculo dos custos das obras pelo fato de estar “totalmente defasada”. Contudo, o questionamento principal remete à falta de diálogo e transparência na forma como os custos são calculados pela CEF. É claro que, por se tratar de uma empreiteira, agente do mercado imobiliário, suas preocupações são distintas e escapam às questões de caráter propriamente institucional enfrentadas por aqueles incumbidos de elaborar as políticas setoriais - para os quais a rigidez das diretrizes federais traz consigo efeitos positivos para o desenvolvimento de capacidades administrativas.

De fato, os gestores de Recife têm uma recepção mais positiva em relação às políticas habitacionais federais não apenas devido a tal benefício, mas, também, devido à parceria estabelecida com o mercado na execução da política e seu decorrente ganho de agilidade. Tal valoração das parcerias com o mercado pode ser eventualmente informada por posições a respeito do papel do Estado e do próprio mercado na provisão de habitação social, mas, de fato, é consoante com a menor institucionalização e capacidade administrativa local para a produção e implementação de política habitacional naquele município.

Em Curitiba, diferentemente, os recursos federais são frequentemente interpretados como encetando um trade off. De um lado, os programas federais representam a possibilidade de constituição de uma política habitacional em grande escala dado o expressivo aporte de recursos - isto é mencionado, entre outros, pela gestora do Ippuc, pela gestora da Cohab, por dois membros de entidades civis que também são conselheiras de habitação na esfera municipal e estadual, e por uma representante do setor de construção/incorporação. De outro lado, contudo, preservar a capacidade de decisão local é considerado valioso e os mesmos programas são, por vezes, vistos como imposição de um tipo de formatação de projetos que deixaria uma margem muito pequena para a interferência dos atores da política setorial no município. Assim, para a gestora do Ippuc, os projetos do PMCMV seriam muito engessados, deixando o Instituto apenas com o poder de interferir na isenção de impostos, na delimitação da área e no planejamento dos equipamentos públicos, negligenciando as capacidades e experiência acumulada quanto à operação e ao conhecimento das especificidades do município ao longo de uma trajetória de atuação institucional:

Ah, eu acho que eles são pouco flexíveis esses programas federais [de habitação]. Eu acho que eles não levam muito em conta as características dos municípios e o que o município já trabalhou e já fez ao longo de todo um... de vários anos.

A relação entre maiores capacidades administrativas e maiores custos de subordinação aos ditames da política federal é abordada explicitamente pela representante de entidade civil no Conselho Municipal de Habitação (Concitiba), que também presta serviços na área de planejamento urbano para diversos municípios no Estado do Paraná. A entrevistada se refere ao modo como os planos diretores e os planos locais de habitação de interesse social estão melhor ou pior constituídos nos municípios que resolvem aderir à produção habitacional via PMCMV.

Depende muito de quanto cada município está institucionalmente preparado para a política habitacional. (...) porque esse plano não vem, esse escoamento para habitação não vem para [se] enquadrar aos planos locais. O Ministério não chega na cidade e [diz] assim, ‘como é que está o seu plano?’. ‘Você tem duzentas áreas para regularizar?’. [...] ‘Então eu vou por dinheiro para regularização’.[...] [ou] ‘O teu caso é regularização do mangue’. [ou] ‘O teu caso é produzir casas entre esses vazios aí para a cidade funcionar melhor’. [Mas] Isso não aconteceu. Por isso [o Programa] dificulta. Porque daí o município tem que acatar algumas situações que é o seguinte: ‘ou é assim ou não é’. ‘Se você não enquadrar o que eu estou trazendo para você, você não vai receber’. ‘Se você colocar empecilho para esse terreno, não vai vir para outro terreno’.

Em princípio, gestores da Cohab-CT poderiam alimentar uma avaliação discrepante, pois, na sua posição de “construtora”, a companhia teria acesso a recursos obtidos e geridos mediante projetos específicos de construção, financiados com recursos federais. Não obstante, as especificações do PMCMV sobre as faixas de renda e custo da terra acabaram por elevar o último, reduzindo o escopo decisório da prefeitura para determinar as condições de uso do solo, conforme evidencia com certa ironia a posição da gestora da própria Cohab:

Eu acho que é muito fácil dizer que o município detém a política, [que ele] pode estabelecer todas as condições de uso do solo [...] O Estatuto das Cidades criou uma série de instrumentos, o município não põe em prática. Não põe em prática porque muitos deles são inexequíveis [...] E mais que isso. O controle do custo da terra não está na governabilidade do poder público municipal. É uma questão que a própria produção que o Minha Casa Minha Vida trouxe, incrementou os custos do preço da terra. Então o que é que acontece hoje? O que mais a gente escuta dos empresários, de buscar parcerias, é que não é viável mais produzir habitação na faixa de zero a três salários (...) [Pois] Eles têm como atuar em outras faixas com um retorno maior [itálicos acrescidos].

Adicionalmente, a pesquisa mostrou que os operadores da política habitacional em Curitiba contrastam dois momentos da política habitacional nacional e sua repercussão local, considerando principalmente a década de 1990 e as mudanças ocorridas no setor após a criação do MCidades, em 2003. O que marca a diferença entre esses dois momentos para as gestoras locais é justamente um primeiro período sem a existência de recursos federais e programas habitacionais federais de grande fôlego e, posteriormente, os esforços de centralização, concepção de um programa nacional orientando o setor, e recursos disponíveis - esforços estes consubstanciados e consolidados no PMCMV. A experiência local no período anterior é considerada de grande inventividade em contexto de recursos escassos, tanto na busca por parcerias e fontes de financiamento, quanto nas possibilidades de inovar nas ofertas habitacionais.

[...] teve uma equipe na Prefeitura que ficou pensando que vai acabar o recurso do BNH para habitação [quando este Programa foi fechado]. ‘O que é que a gente faz? Vamos tentar recurso local’. E desenvolveram o instrumento, que já estavam debatidos inicialmente, depois foram incorporados ao Estatuto. Tinha um debate nacional. Que é o Solo Criado, a venda de potencial construtivo e tal44. Vamos adotar a venda de potencial para dinheiro para habitação. Isso instituiu o solo criado em Curitiba, naquela época. Acho que 1992, 1990. E veio muito recurso da venda de potencial construtivo. Ou seja, o empresário ia construir, comprava o potencial, esse dinheiro ia para o Fundo. A Cohab se estruturou muito com esse dinheiro. Era pouco? Era. Mas já é algum recurso que antes não se pensava em utilizar. Alguns técnicos se reuniram, pensaram, adotaram o instrumento, aprovaram com a Prefeitura e tocaram algumas obras habitacionais com dinheiro próprio; dinheiro gerado aqui em Curitiba.

Nessa fala, a representante de entidade civil do Concitiba apresenta como o setor de habitação em Curitiba buscou alternativas que, inclusive, fortaleceram a Cohab. As entrevistas mostram isso: como o período anterior deixava margem para maior experimentação e poder decisório no plano municipal, dada a ausência de uma política federal mais estruturante para o setor.

Assim, a indução federal associada ao PMCMV foi recebida com entusiasmo em Recife, pois avaliada como positiva para o desenvolvimento de capacidades administrativas locais. Em Curitiba, contrastou com existência de uma organização da divisão de trabalho - esta, responsável por permitir a apropriação com mais sucesso dos recursos do Programa. Aí, os atores avaliaram a indução como negativa devido aos seus efeitos de limitação sobre a capacidade decisória local.

VI. À guisa de conclusão: capacidade locais, mecanismos e projeto

As reformas de descentralização, implementadas pelo mundo afora ao longo das últimas décadas, compartilharam a orientação localista da literatura internacional nos campos da governança, da descentralização e dos estudos do desenvolvimento. Assumem-se, nesses campos, expectativas positivas quanto aos efeitos produzidos pela ampliação do papel dos agentes locais na operação das políticas públicas. Tais expectativas operam antes como um pressuposto do que como uma indagação empírica. Por sua vez, a acumulação sistemática de conhecimento sobre o federalismo brasileiro e sobre os seus processos de descentralização - justamente um caso considerado ímpar pela literatura internacional -, desafiou tais expectativas, desvelando os mecanismos que, nas relações intergovernamentais, tornaram possível descentralizar a implementação e concentrar o poder decisório sobre a definição da política. As implicações são claras: no plano teórico, resta contestada a relação necessária entre descentralização e agência local ou autonomia decisória; no plano empírico, diagnostica-se a ausência de poder decisório local.

Porém, se, de um lado, atenta-se corretamente para o caráter contingente dessa relação, porque dependente da existência ou não de mecanismos de coordenação capazes de organizar as relações intergovernamentais de modo subordinado ao poder federal, de outro, a implementação das políticas traz consigo certo escopo decisório que, dado o diagnóstico de ausência de autonomia decisória local, tende a escapar das lentes analíticas ou a merecer pouca atenção. Compreender como os municípios se diferenciam no processo de implementação de políticas centralmente definidas, cuja adesão voluntária - induzida por mecanismos como a transferência de recursos - supõe a aceitação das feições básicas de tais políticas, constitui uma agenda de pesquisa com potencial para complementar o conhecimento acumulado pela literatura de descentralização e federalismo no Brasil. Os padrões encontrados no estudo exploratório que embasa este artigo permitem avançar nessa agenda e sugerem fatores locais que aumentam ou restringem o escopo decisório das administrações municipais.

Exploramos como diferentes modos de operação de uma política no plano local são compatíveis com - e afetados distintamente por - diretrizes de uma política setorial desenhada centralmente e munida de mecanismos eficientes de indução. Examinou-se a política de habitação e, mais especificamente, o PMCMV em Recife e Curitiba durante os dez primeiros anos após a criação do MCidades, que coincidem com mandato exclusivo do PT no Executivo Federal. Trata-se de programa definido pela União, cuja adesão no nível municipal foi induzida principalmente mediante transferência de recursos para a construção de habitação de interesse social. A despeito da definição centralizada dos aspectos fundamentais da política, a implementação demanda capacidades administrativas locais - variáveis entre municípios -, bem como o envolvimento de diversos atores e instituições locais - que também variam em função da trajetória institucional da política nos municípios.

Grosso modo, os resultados analisados indicam que uma política centralmente desenhada, como o PMCMV, pode ser operada localmente de modo distinto, abrindo espaço para a possibilidade de escolha local sobre aspectos secundários da política. Assim, embora os municípios adiram à mesma política, não a implementam de igual modo nem com igual sucesso, haja visto que Recife acessou a um quinto dos recursos alocados pelo programa em Curitiba. Se ao Governo Central é garantida a prerrogativa de definir aspectos cruciais das políticas, aos municípios nem sempre resta o papel de mero “executor” - mesmo porque a “execução” envolve, em algum grau, escolhas. Diferentes fatores devem afetar como a política é implementada. Aqui receberam atenção a trajetória da política setorial e as capacidades administrativas associadas a ela.

De modo mais preciso, e em relação a esses fatores, encontramos que trajetórias estáveis e longevas de institucionalização da política estão associadas à presença de uma maior diversidade de órgãos com funções claramente definidas em relação à implementação de programas de habitação de interesse social. Funções essas exercidas graças à disposição de capacidades administrativas e à presença de quadros administrativos com preferências endógenas ou próprias em relação à política a ser implementada. Esse é o caso de Curitiba: a política foi operada mediante coordenação entre as duas principais instituições do setor e reconduzida à lógica da divisão de trabalho presente entre elas, permitindo ensejar a conciliação entre prioridades de planejamento e a lógica de projetos própria do Programa. As capacidades administrativas locais tornaram a prefeitura bem sucedida na atração de um maior volume de recursos e na implementação de um maior número de projetos de construção de moradias de interesse social. Tais capacidades também estão associadas à preferência dos formuladores locais da política por maior autonomia, alimentando avaliações negativas em relação ao PMCMV.

Assim, a associação dos fatores elencados sugere conjecturas: a combinação de institucionalização e capacidades administrativas locais incrementa o escopo das decisões possíveis para os atores incumbidos de implementar a política federal, fomentando, também, uma recepção potencialmente crítica da política federal por parte dos gestores locais. Complementarmente, o caso de Recife sugere hipóteses inversas: a combinação de institucionalização errática ou precária com sérias deficiências nas capacidades locais não apenas compromete a possibilidade de aproveitar as oportunidades oferecidas pela política setorial e reduz o escopo de decisões ao alcance da administração municipal, como estimula a aceitação da política federal entre implementadores locais e um modo de operação aqui denominado mimetismo organizacional.

Por fim, o mimetismo organizacional merece consideração adicional, pois aponta para possíveis efeitos da política federal sobre as capacidades administrativas locais, especificamente no caso de políticas cuja implementação local é operada mediante à elaboração de projetos. Em Recife - com menores capacidades locais - a implementação da política se viu convertida à lógica de projetos, homóloga ao PMCMV, e sem especialização funcional clara entre as instituições responsáveis. Note-se: esse caso mostra elementos consoantes com as críticas gerais formuladas ao Programa pelos seus efeitos adversos à racionalização e planejamento da construção de habitação de interesse social. A eventual generalização empírica do efeito de mimetismo organizacional depende de pesquisa confirmatória adicional, mas, no plano analítico, alerta para possíveis efeitos deletérios dos projetos como instrumento de operacionalização da política federal no plano local, na medida em que parecem desestimular a institucionalização e o correspondente desenvolvimento de capacidades locais estáveis.

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  • Sabatier, P.A., 1988. An advocacy coalition framework of policy change and the role of policy-oriented learning therein. Policy Sciences, 21(2-3), pp. 129-168. DOI: 10.1007/bf00136406
    » https://doi.org/10.1007/bf00136406
  • Santos, C.H.M., 1999. Políticas federais de habitação no Brasil: 1964-1998 Brasília: IPEA.
  • Shah, A., 1997. Fiscal Decentralization and Macroeconomic Governance. Policy Research Working Paper Washington: World Bank.
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Outras fontes

  • BRASIL, 2009. Dispõe sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida - PMCMV e a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas; altera o Decreto-Lei no 3.365, de 21 de junho de 1941, as Leis nos 4.380, de 21 de agosto de 1964, 6.015, de 31 de dezembro de 1973, 8.036, de 11 de maio de 1990, e 10.257, de 10 de julho de 2001, e a Medida Provisória no 2.197-43, de 24 de agosto de 2001; e dá outras providências

Glossário de siglas

  • Appuc  Assessoria de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba
  • BNH  Banco Nacional de Habitação
  • CadÚnico  Cadastro Único
  • CEF  Caixa Econômica Federal
  • Cohab-CT  Companhia de Habitação Popular de Curitiba
  • COHABs  Companhias de Habitação
  • Concitiba  Conselho Municipal de habitação
  • DEM  Democratas (partido político)
  • FGTS  Fundo de Garantia do Tempo de Serviço
  • FNHIS  Fundo Nacional de Habitação de Interesse Social
  • GM  governança multinível
  • IPEA  Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
  • Ippuc  Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba
  • LAI  Lei de Acesso à Informação
  • MCidades  Ministério das Cidades
  • OP  Orçamento Participativo
  • PAC  Programa de Aceleração do Crescimento
  • PBF  Programa Bolsa Família
  • PCdoB  Partido Comunista do Brasil
  • PMCMV  Programa Minha Casa Minha Vida
  • PR  Partido da República
  • Prezeis  Plano de Regularização das Zonas de Interesse Social
  • PSB  Partido Socialista Brasileiro
  • PSDB  Partido da Social Democracia Brasileira
  • PT  Partido dos Trabalhadores
  • Sanear  Secretaria de Saneamento
  • Segesp  Secretaria Especial de Gestão e Planejamento
  • SFH  Sistema Financeiro de Habitação
  • SH  Secretaria de Habitação
  • SINAP  Sistema Nacional de Pesquisa de Custos e Índices da Construção Civil
  • SNHIS  Sistema Nacional de Habitação de Interesse Social
  • URB  Empresa de Urbanização do Recife
  • 1
    Os autores agradecem o financiamento do CEM (processo nº 2013/07616-7) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). As opiniões, hipóteses, conclusões e recomendações expressas aqui são de responsabilidade dos autores e não refletem necessariamente a visão da Fapesp. O artigo também descansa em trabalho de campo realizado originalmente no contexto do projeto Cities against poverty: brazilian experiences, uma parceria do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e do Norwegian Institute for Urban and Regional Research (NIBR), sob financiamento do Research Council of Norway – aos membros daquele projeto, e, em especial, a Gianpaolo Baiocchi e Einar Braathen, agradecemos pela colaboração. Versões preliminares foram apresentadas no Workshop Cities against poverty: brazilian experiences, em Oslo (2013); em três edições do Congresso da Latin American Studies Association (LASA) em Washington (2013), Chicago (2014) e San Juan (2015); e no Seminário Anual do CEM (2019) neste último, sob leitura atenta, como debatedor, de José Angelo Machado. Relativo a todos os eventos citados, resta deixar registrado nosso agradecimento a todos os comentários, críticas e/ou sugestões emitidas por debatedores, leitores e colaboradores de pesquisa. Também gostaríamos de mencionar a colaboração reiterada dos membros do grupo Reparlamentar na revisão deste texto, e, importantíssimo, de agradecer enormemente a todos os entrevistados que nos ajudaram a melhor compreender a política habitacional de Curitiba e Recife. Por fim, nosso obrigado aos comentários e sugestões dos pareceristas anônimos da Revista de Sociologia e Política.
  • 2
    Tradução dos autores (também no caso das outras citações).
  • 3
    Lançado em 2009, o PMCMV se propunha inicialmente “(...) a subsidiar a aquisição da casa própria para famílias com renda até R$ 1.600,00 e facilitar as condições de acesso ao imóvel para famílias com renda de até R$ 5 mil” (http://www.brasil.gov.br/noticias/infraestrutura/2014/04/entenda-como-funciona-o-minha-casa-minha-vida, em 17/09/2018).
  • 4
    Criado em 2007, o PAC “(...) promoveu a retomada do planejamento e execução de grandes obras de infraestrutura social, urbana, logística e energética do país”. “(...) Pensado como um plano estratégico de resgate do planejamento e de retomada dos investimentos em setores estruturantes” (http://www.pac.gov.br/sobre-o-pac/perguntas-respostas, em 17/09/2018).
  • 5
    O ano de 2012 também marcou o encerramento de mandatos no Executivo Municipal.
  • 6
    Mais detalhes na seção Nota Metodológica.
  • 7
    A literatura de GM cresceu fortemente associada à experiência de integração da União Europeia (Marks 1992).
  • 8
    A GM é definida pela articulação de duas tendências de dispersão vertical e horizontal da autoridade. Respectivamente: multiplicação de instâncias de autoridade supra e subnacionais e ampliação dos diferentes tipos de atores envolvidos na tomada de decisões (Bache & Flinders 2004).
  • 9
    Em português, o conceito “State Rescaling” foi traduzido como “reescalonamento estatal” (Becker 2009) ou “reescalonamento da estatalidade” (Brandão 2011). Adotamos a primeira tradução.
  • 10
    Mais precisamente, os autores identificam na literatura três processos correlacionados que compõem o reescalonamento do Estado: além de desestatização, a desnacionalização e a internacionalização (Martinez-Vazquez & Timofeev 2009, p. 85).
  • 11
    Outros “objetivos primários” seriam: maior estabilidade política e desenvolvimento econômico (USAID 2009, pp. 21, 26).
  • 12
    Cabe notar que, já nos anos 1990, a mobilização de organizações municipalistas e suas críticas à insuficiência de recursos próprios e de estrutura administrativa para execução das novas atribuições decorrentes da descentralização levaram a literatura a examinar a questão da autonomia decisória dos municípios (Melo 2001; Spink et al., 1999).
  • 13
    “O Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (Cadastro Único) é um instrumento que identifica e caracteriza as famílias de baixa renda (). Nele são registradas informações como: características da residência, identificação de cada pessoa, escolaridade, situação de trabalho e renda” (<http://mds.gov.br/assuntos/cadastro-unico/o-que-e-e-para-que-serve>).
  • 14
    Ver nota 1.
  • 15
    No tocante às capacidades administrativas municipais, o artigo explora gestões que se encerraram em 2012 e que podem ter sofrido importantes alterações nos anos seguintes (por ex.: número de unidades construídas, adaptações institucionais, etc.). De todo modo, o material coletado permite descrever a estrutura institucional da época, bem como trabalhar analiticamente a relação entre agência local e indução federal.
  • 16
    Lei nº 12.527, de 18 de novembro de 2011.
  • 17
    Por motivo de confidencialidade, os entrevistados não serão identificados. Optamos por fazer referência aos atores de forma genérica, reportando a instituição, mas não o nome do gestor ou seu cargo específico (ex.: “gestor da instituição X”). Quando pertinente, especificamos se tratar de cargos de chefia. Por igual motivo, tampouco reportamos o sexo e todos serão citados no gênero feminino.
  • 18
    No PMCMV, a CEF é a instituição que recebe os recursos do nível federal e repassa o crédito para os agentes responsáveis pela construção habitacional, mediante análise dos projetos apresentados pelas construtoras ou pelas entidades (estas, no caso da modalidade PMCMV-Entidades).
  • 19
    Vide: Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE) em Recife; Instituto Paranaense de Desenvolvimento Econômico e Social (IPARDES), Fundação de Ação Social (Faz), Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano de Curitiba (IPPUC), Universidade Federal do Paraná (UFPR), em Curitiba.
  • 20
    Os entrevistados não são tratados como “representantes” das instituições, empresas ou entidades a que pertencem, mas apenas como conhecedores desses lugares e/ou dos seus contextos de inserção. A estratégia de contrastar equivale a triangulação as informações colhidas com diferentes entrevistados.
  • 21
    O banco tinha como atribuições principais o gerenciamento dos recursos do FGTS, a normatização e fiscalização dos recursos das cadernetas de poupança, e a definição de parâmetros para o financiamento de imóveis (Santos 1999). Ademais, era promotor da indústria da construção civil e órgão de desenvolvimento urbano (saneamento e transporte).
  • 22
    Cujos recursos serviam ao propósito de construir imóveis de interesse social, sendo as Companhias de Habitação (COHABs) as principais responsáveis por tal construção.
  • 23
    Cujos recursos serviam à construção de imóveis para as faixas de renda superiores a 3 salários mínimos.
  • 24
    Tenha-se em vista que o SFH teria concedido mais de 600 mil empréstimos apenas em 1980, e somente 170 mil em todo o período 1983-2003 (Arretche et al., 2012a; ver também Santos 1999).
  • 25
    Só em 2012, “O programa alcançou a contratação de 2.863.384 unidades habitacionais no país” (<http://www.brasil.gov.br/noticias/infraestrutura/2014/04/entenda-como-funciona-o-minha-casa-minha-vida, em 25/09/2018>).
  • 26
    Arretche et al. (2012a) avaliam se a existência de capacidades administrativas nos municípios (órgão habitacional, conselho gestor, etc.) interfere na probabilidade destes fazerem uso do PMCMV. O desenvolvimento do programa nos anos seguintes deu a ver, não obstante, que tais capacidades não se constituíram como mandatórias para a contratação dos projetos, ainda que pudessem facilitá-la.
  • 27
    Antes mesmo da consolidação da CF de 1988, foi aprovada a Lei que regulamenta as Zonas Especiais de Interesse Social (Zeis), em março de 1987, com base num processo de intensa mobilização social em Recife. O Prezeis tem como competência básica discutir a urbanização e legalização das áreas Zeis junto ao Fórum do Prezeis (Barbosa & Silva 2003).
  • 28
    Alguns nomes pertencentes a esse grupo são: Cássio Taniguchi, Jorge Wilhein, Ivo Arzua, Lobomir Vincinski, Carlos Alberto Richa (Beto Richa).
  • 29
    Há também instituições de importância secundária no município, tais como o Instituto Pelópidas Silveira (IPS) e a Companhia Estadual de Habitação (Cehab). Não são abordadas neste texto: a primeira, por não atuar com o PMCMV e, a segunda, por não fazer parte da estrutura institucional do município no setor.
  • 30
    Respectivamente, são eles: o Programa Recife Sem Palafitas, convênio do município com o MCidades, e o Programa Habitar Brasil BID.
  • 31
    Entrevistados também mencionaram que alguns secretários de habitação da gestão João Paulo (PT, 2001-2009) não teriam histórico na área de habitação.
  • 32
    Quando da pesquisa de campo, a URB fazia parte da Secretaria de Planejamento Participativo, Obras e Desenvolvimento Urbano e Ambiental, além de ser uma das três instituições que compunham a Secretaria de Controle e Desenvolvimento Urbano, mas reforma posterior a inseriu na Secretaria de Infraestrutura e Habitação (SIHAB).
  • 33
    É importante sublinhar a existência da Secretaria de Saneamento, com trabalho exclusivo no setor de saneamento, sem a abordagem social presente no modelo de Saneamento Integrado operado pela Sanear. Essa secretaria foi desarticulada em 2008, mas reinstituída posteriormente. Atualmente o presidente da Sanear é também o secretário de saneamento.
  • 34
    Esse modelo define que a atuação em áreas de favela deve compreender a implantação das redes de água, esgotamento sanitário e drenagem até os lotes e não apenas na via pública. Quando o atendimento acontecer em áreas irregulares e muito adensadas, envolve remoção e realocação de moradias, que são construídas pela Sanear.
  • 35
    De acordo com a Carta de Saneamento do Recife (fonte: https://www.recife.pe.gov.br/pr/sanear/carta.php, em 07/12/2018).
  • 36
    O Auxílio Moradia é um benefício concedido a famílias que tiveram casa destruída pela ação da natureza ou demolida em virtude de risco eminente. O benefício deve ser utilizado para a locação de imóvel temporário (<www2.recife.pe.gov.br/noticias/19/02/2018/comecou-atualizacao-cadastral-das-familias-beneficiadas-pelo-auxilio-moradia-da>, 15/10/18).
  • 37
    Muitas vezes as três instituições são acionadas pela defesa civil, justamente por conta de alguma situação de calamidade, como inundações.
  • 38
    Também em Curitiba existem outras instituições de importância comparativa secundária como a Secretaria Municipal de Urbanismo (SMU) e a extinta Secretaria Municipal Extraordinária de Política Habitacional (Sepha).
  • 39
    A Segesp tem como atribuições: a elaboração do Plano Plurianual; o monitoramento de ações estratégicas; a captação de recursos com governo federal (ex: PMCMV), estadual e órgãos multilaterais; e relações internacionais. Devido a tais atribuições, ela gerenciava a divisão das obras entre os órgãos executores. Trata-se, enfim, de secretaria meio, não vinculada à área de habitação especificamente.
  • 40
    Tal diagnóstico ocorre a despeito da atuação não só da Segesp, como também do IPS. Ambos deveriam contribuir para um planejamento estratégico adequado às necessidades habitacionais do município, mas têm dificuldades para realizá-lo.
  • 41
    Entrevistada do Ippuc.
  • 42
    Entrevistado (gestor) do IPPUC.
  • 43
    Além do descolamento da questão habitacional de uma política ambiental ligada ao Plano Diretor.
  • 44
    A venda de potencial construtivo, o chamado Solo Criado, não foi propriamente uma invenção local, mas se baseou em experiências internacionais de discussão sobre “instrumentos de regulação pública sobre a iniciativa privada para atender interesses coletivos” (Polucha 2017, p. 4). Contudo, Curitiba foi um dos municípios onde esse instrumento ganhou destaque durante os anos 1980 e ainda hoje.
  • A produção desse manuscrito foi viabilizada através do patrocínio fornecido pelo Centro Universitário Internacional Uninter à Revista de Sociologia e Política.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    20 Mar 2020
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    22 Dez 2017
  • Revisado
    13 Ago 2018
  • Aceito
    25 Jan 2019
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