RESUMO
Introdução: A interação com a polícia pode afetar a confiança dos cidadãos na instituição. Este estudo analisa como diferentes aspectos dessa interação influenciam a confiança dos cidadãos na instituição policial.
Materiais e métodos: Foram avaliados cinco aspectos da interação: tratamento recebido dos policiais, rapidez do atendimento, atenção dada às informações prestadas pelos cidadãos, explicação sobre os próximos procedimentos a serem adotados na condução do caso e a satisfação com sua resolução. Duas hipóteses são testadas: 1) avaliações mais positivas geram maior confiança; 2) a satisfação com o tratamento tem a maior influência na confiança. Para o estudo, foram usados dados do NEV-USP com informações representativas da cidade de São Paulo coletadas em 2015, 2017 e 2018. Os dados foram analisados através de modelos de efeitos mistos.
Resultados: A pesquisa revelou que apenas o tratamento recebido pelos policiais estava positivamente associado à confiança dos cidadãos. Os demais aspectos da interação não demonstraram influência significativa na confiança.
Discussão: Em São Paulo, o modo como os policiais tratam os cidadãos é o fator mais influente na confiança destes na instituição policial, mais do que a eficácia da resolução do problema. Assim, treinamentos que enfatizem o relacionamento com os cidadãos são cruciais para fortalecer a confiança da população na polícia.
Palavras-chave segurança pública; eficácia policial; confiança na polícia; justiça procedimental; modelos de efeitos mistos
ABSTRACT
Introduction: Numerous studies have explored the relationship between citizen interactions with the police and the subsequent erosion of trust in the institution. However, while some findings suggest that the perceived quality of treatment during these encounters plays a pivotal role, other studies have argued that the effectiveness of the interaction—whether the reported issue was resolved or not—is the predominant factor influencing trust. This article seeks to unravel this puzzle by examining the impact of citizen-initiated police contacts on trust in the institution.
Materials and methods: We assessed citizen satisfaction with police interactions across five key dimensions: treatment received, service speed, attention to citizen-provided information, explanation of subsequent procedures, and case resolution satisfaction. Our study examined two hypotheses: 1) Improvements in the evaluation of these interactions correlate with increased trust, and 2) Trust is more significantly influenced by satisfaction with the treatment received compared to other interaction dimensions. To test these hypotheses, we analyzed panel data from the USP Center for the Study of Violence (NEV-USP), which provides representative data on the city of São Paulo collected in 2015, 2017, and 2018. We used mixed-effects models to derive our findings. Additionally, our use of panel data on this topic represents a pioneering effort within the Brazilian context.
Findings: Our findings revealed that trust in the police is positively correlated with good evaluations of police-citizen interactions, with particular significance attributed to satisfaction with the treatment received. Other dimensions of these interactions did not show significant associations with trust in the police.
Discussion: These findings suggest that, in the city of São Paulo, the procedural perspective, which emphasizes the quality of police-citizen interactions through the treatment provided by police officers, holds greater significance over the perspective of effectiveness, adding fresh insights to the ongoing debate on the determinants of trust in the police. From a public policy standpoint, our findings signal that Brazilian law enforcement agencies should prioritize procedural training in their interactions with citizens to prevent erosion of public trust.
Keywords citizen-police interaction; procedural justice; police effectiveness; trust in the police; public security
A confiança é fundamental para as relações polícia-sociedade. A confiança na instituição policial está vinculada à disposição a cooperar com agentes, por exemplo, relatando crimes, facilitando o trabalho policial. Compreender, portanto, os mecanismos que explicam tal confiança é essencial. O artigo analisa como as percepções sobre diversos aspectos de contatos com a polícia iniciados por cidadãos afetam a confiança na instituição, principalmente a qualidade do tratamento recebido durante a interação e sua eficácia, isto é, se os policiais solucionaram a demanda colocada.
Evidências anteriores ao estudo
Há inúmeras evidências, no contexto brasileiro e internacional, de que contatos com a polícia afetam a confiança na instituição. Contatos bem avaliados pelos indivíduos tendem a aumentá-la, enquanto aqueles mal avaliados a reduzem. Entretanto, há ainda um puzzle em vista. Enquanto pesquisas ancoradas na perspectiva da justiça procedimental apontam que percepções relativas ao tratamento recebido durante o contato são mais importantes para explicar a confiança, outros achados apontam que a percepção de eficácia da interação para a solução da demanda levada pelo cidadão é mais significativa. O primeiro grupo de estudos foi realizado majoritariamente em países como Estados Unidos e Austrália, enquanto o segundo em nações do Sul Global, como Gana e áfrica do Sul. Este artigo contribui para a solução desse puzzle a partir do caso da cidade de São Paulo.
Valor agregado do estudo
Os dados utilizados pelo estudo fazem parte de um painel representativo de oito áreas-chave da cidade de São Paulo, coletado pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-USP) nos anos de 2015, 2017 e 2018, com um total de 2.929 respostas distribuídas nas três rodadas do questionário. O artigo demonstra que apenas a justiça procedimental dos contatos, por meio da percepção da qualidade do tratamento recebido dos policiais durante a interação, é importante para explicar variações na confiança. A eficácia da interação não surtiu nenhum efeito significativo sobre a variável dependente. Para os cálculos, foram utilizados modelos de efeitos mistos que permitem verificar como alterações nas percepções do contato afetam a confiança de um mesmo indivíduo ao longo do tempo. Esse tipo de abordagem fornece achados estatisticamente mais robustos do que aqueles oriundos de surveys cross-sectional, mais comuns no cenário brasileiro.
Implicações de todas as evidências disponíveis
Há dois tipos de implicações principais das evidências encontradas. O primeiro é de caráter teórico, fornecendo suporte para a perspectiva da justiça procedimental, em detrimento à da eficácia. Assim, o estudo valida a tese procedimental para São Paulo, que além de ser uma das maiores cidades do Sul Global, representa um contexto distinto da maior parte das pesquisas até então realizadas, que focaram em cidades de países como Estados Unidos, Reino Unido e Austrália. O segundo tem implicações para as políticas públicas da área de segurança no Brasil, demonstrando que, para melhorar a confiança dos cidadãos na instituição policial e, consequentemente, as relações polícia-sociedade, é necessário investir em treinamentos focados na qualificação do tratamento conferido por agentes durante as interações.
I. Introdução1
A confiança na polícia é necessária para o bom funcionamento da instituição. Maiores níveis de confiança aumentam a predisposição dos cidadãos a cooperar com os policiais, reportando crimes e fornecendo informações vitais para a atividade policial (Van Damme et al., 2013). A confiança também está relacionada com a legitimidade da polícia, facilitando o exercício da autoridade por parte dos agentes (Sunshine & Tyler, 2003).
Tendo em vista a importância da confiança na polícia, uma série de estudos vem tentando compreender os mecanismos que explicam sua variação. Em particular, os encontros com a polícia são percebidos como momentos formadores das atitudes do público perante a instituição, tendo importância superior a variáveis ligadas a processos de socialização e a visões de mundo das pessoas (Oliveira Junior, 2011; Jackson et al., 2020).
Assim, a maioria dos estudos recentes analisa o efeito de interações com agentes sobre a confiança e a legitimidade da instituição policial. Os resultados são variáveis, mas a hipótese predominante é a de que experiências positivas de contato com a polícia tendem a melhorar a confiança na instituição, enquanto experiências negativas terminam por minar as percepções dos cidadãos (Silva & Beato, 2013; Li et al., 2015; Van Damme, 2015).
Nessas análises, a avaliação dos contatos aparece como variável explicativa principal. Isso porque os tipos de contato são diversos. Eles podem ser iniciados pelos cidadãos ou por policiais e podem ser percebidos como positivos ou negativos, gerando associações distintas com a confiança e a legitimidade da instituição (Beato & Silva, 2013; Van Damme, 2015; Zilli & Couto, 2017). Dessa forma, o mero contato como variável explicativa adiciona pouca informação para expressar a variação da confiança, demandando que a avaliação do contato seja levada em conta (Oliveira Junior, 2011; Jackson et al., 2020; Van Damme, 2015).
As avaliações também podem estar vinculadas a distintos aspectos da interação com policiais. Ao procurar a polícia, por exemplo, um indivíduo pode ficar satisfeito com a rapidez no atendimento e com o tratamento recebido, mas insatisfeito com a resolução do problema relatado à instituição. Faz-se necessário, portanto, discriminar também o aspecto do contato em avaliação para compreender suas associações com a confiança na polícia. Nesse sentido, a hipótese predominante é a de que as avaliações da justeza procedimental da interação são mais importantes que a eficácia da atuação policial para explicar variações na confiança e na legitimidade da polícia. A justeza procedimental consiste em uma noção de justiça orientada para procedimentos em vez de para resultados. Assim, diz-se que um policial atuou de forma procedimentalmente justa em um contato quando trata o cidadão com respeito e dignidade, deixando claros seus direitos, explicando de forma clara os procedimentos adotados na interação e ouvindo, com atenção, os relatos da pessoa (Tyler, 1990).
A maior parte das evidências sugere que percepções acerca do tratamento recebido e da clareza das informações prestadas pelos policiais são mais importantes do que o resultado do contato para a formação de opiniões a respeito da polícia (Zilli & Couto, 2017). Alguns estudos, no entanto, vêm indicando que esse padrão pode variar de um contexto para outro, existindo sociedades em que a percepção de eficácia da interação, isto é, a opinião a respeito da resolução efetiva do problema relatado pelos cidadãos, pode ser mais importante do que percepções de justiça procedimental para a formação de atitudes com relação à polícia (Tankebe, 2009; Sargeant et al., 2014; Bradford, 2014).
No Brasil, ainda há uma lacuna importante nessa área. Embora existam estudos dedicados a analisar os efeitos de diferentes tipos de contato com a polícia sobre percepções da instituição (Oliveira Junior, 2011; Beato & Silva, 2013; Zilli & Couto, 2017), falta avançarmos na compreensão a respeito de como as avaliações de distintos aspectos dos contatos estão associadas à confiança na polícia. Este trabalho busca contribuir para o preenchimento dessa lacuna. Nessa direção, investigamos as associações de cinco aspectos distintos da avaliação do contato iniciado por cidadãos com a confiança na polícia: 1. satisfação com o tratamento recebido; 2. com as explicações dadas pelos policiais sobre os procedimentos a serem tomados; 3. com a atenção dada à situação relatada pelos cidadãos; 4. com a rapidez no atendimento e 5. com a resolução do problema relatado à polícia. Os três primeiros aspectos estão vinculados à percepção de justeza procedimental no contato, enquanto o quarto e o quinto, respectivamente, representam as dimensões de avaliação da eficiência e da eficácia da interação com a polícia.
Outra lacuna importante nos estudos focados no cenário nacional consiste nas metodologias empregadas. Os estudos que identificamos trabalham, em geral, com dados oriundos de surveys cross-sectional (Oliveira Junior, 2011; Beato & Silva, 2013; Zanetic, 2017; Zilli & Couto, 2017). Embora forneçam evidências importantes acerca das relações entre as variáveis analisadas, dados desse tipo são muito limitados para inferir causalidade, principalmente por conta do problema de viés de covariável omitida. Dados de painel, diferentemente, acompanham um mesmo grupo de pessoas ao longo do tempo, sendo ideais para verificar como eventos ou mudanças de opinião que ocorrem no período de estudo, como avaliações de contato com a polícia, impactam variáveis dependentes de interesse, como a confiança na instituição policial (Skogan, 2012).
Este estudo, portanto, inova metodologicamente no cenário nacional por meio da utilização de três rodadas de um painel longitudinal realizado pelo Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV/USP) em 2015, 2017 e 2018, além de modelos estatísticos capazes de estimar, simultaneamente, associações entre as avaliações e confiança para um indivíduo comparado consigo mesmo ao longo do tempo e para diversas pessoas comparadas entre si. Duas hipóteses principais são testadas. A primeira, de que contatos bem avaliados estariam associados a variações positivas na confiança, enquanto contatos mal avaliados estariam vinculados a variações negativas. A segunda, de que as avaliações de aspectos vinculados à justeza procedimental do contato teriam correlações mais significativas com a confiança do que aqueles relacionados à eficiência e à eficácia do atendimento.
Os achados confirmam as hipóteses propostas. Avaliações positivas do tratamento recebido ao procurar a polícia estão associadas a incrementos de confiança na polícia. Assim, apenas a variável que melhor sintetiza a percepção de justeza procedimental do contato, a avaliação do tratamento conferido pelos policiais ao cidadão, apresentou associações significativas com a confiança. Os demais aspectos vinculados à avaliação da justiça procedimental, assim como aqueles relacionados às dimensões de eficiência e eficácia do atendimento prestado pela polícia, não apresentaram associações significativas com a variável dependente.
Este texto conta com cinco seções além desta introdução. Em Interação cidadão-polícia no Brasil, apresentamos brevemente o debate sobre a lógica de exercício da atividade policial no país. Em Contatos e atitudes com relação à polícia, fazemos uma apresentação da literatura da área, enfatizando a discussão da importância da justiça procedimental nos contatos com policiais. Em Dados e metodologia, descrevemos os dados e a metodologia empregados no estudo. Na seção de Resultados, apresentamos nossos achados, realizados com os modelos de efeitos mistos (mixed-effects models). Em Discussão e considerações finais, discutimos as implicações dos achados quando comparados à literatura disponível, bem como sugerimos caminhos possíveis para futuras pesquisas.
II. Interação cidadão-polícia no Brasil
O campo de estudos sobre a instituição policial no Brasil consiste em um dos principais da chamada “sociologia da violência”. A maior parte dos trabalhos da área conclui que às polícias brasileiras, particularmente à militar, incumbida do policiamento ostensivo, faltam treinamento e definição de normas claras de policiamento democrático (Campos & Alvarez, 2017). Poncioni (2013), por exemplo, em estudos sobre a formação dos policiais na Polícia Militar do estado do Rio de Janeiro (PM-RJ), concluiu que aos agentes faltam instruções básicas a respeito de como tratar os cidadãos de forma procedimentalmente justa. Em vez disso, a formação da PM-RJ enfatiza uma lógica do confronto e da guerra, configurando um corpo policial muito mais focado no enfrentamento ao crime violento do que à garantia de direitos da população. Trindade & Porto (2011), por sua vez, demonstram como as polícias militares brasileiras, quando comparadas à polícia militar canadense, apresentam uma escassez de normas e procedimentos de contato com o público.
Tal escassez de normas produz um cenário em que a atuação da polícia é altamente arbitrária. Uma percepção comum é a de que polícia enfrenta um dilema estruturante em sua atuação: o dilema entre a atuação democrática e a manutenção da ordem (Costa, 2004). Embora essas duas dimensões não sejam excludentes, a manutenção da ordem a partir do uso excessivo da força, comum nas polícias brasileiras, viola direitos civis básicos e preceitos fundamentais do devido processo legal. A atuação arbitrária das polícias brasileiras produz uma performance dual que reproduz desigualdades históricas do país. Assim, a polícia atua de forma procedimentalmente justa em ocorrências em regiões das classes médias e altas e com uso desmedido da força em regiões pobres, como as favelas cariocas e a periferia paulistana (Paixão, 1997). Tal atuação dual da polícia é reforçada por estereótipos a respeito do crime e do criminoso vigentes em nossa sociedade, como o processo de sujeição criminal que criminaliza, a priori, pessoas negras e pobres (Misse, 2010).
Dado o escasso treinamento das polícias brasileiras para o contato com os cidadãos, é de se esperar que a confiança na polícia seja altamente influenciada pelas avaliações de contatos com agentes. Ao procurarem a polícia, os cidadãos buscam, em geral, proteger ou ressarcir algum direito, por exemplo, relatando um crime. Assim, a qualidade do tratamento recebido e a eficácia da interação na resolução do problema tendem a ser importantes para a construção da confiança na polícia. Antes, porém, de derivarmos nossas hipóteses, é importante verificar como a literatura vem discutindo a relação entre contatos e atitudes com relação à polícia nos cenários nacional e internacional.
III. Contatos e atitudes com relação à polícia
Há diversas pesquisas empíricas dedicadas à análise dos efeitos de experiências com a autoridade policial sobre atitudes com relação à polícia. Tais trabalhos buscam compreender como eventos de contato com policiais e as avaliações desses contatos impactam em atitudes como confiança, disposição a cooperar e alinhamento normativo com relação à polícia (Brown & Benedict, 2002; Beato & Silva, 2013). A hipótese que norteia a maior parte desses estudos é a de que contatos avaliados como negativos estão associados ao decréscimo de atitudes com relação à polícia, enquanto aqueles vistos como positivos melhoram as percepções a respeito da instituição.
Para a avaliação do contato, os estudos enfatizam a percepção do tratamento dispensado pelos policiais aos sujeitos abordados. Essa opção teórica reflete o modelo tyleriano, segundo o qual as percepções de justiça procedimental na atuação dos policiais e do sistema de Justiça seriam centrais para explicar a confiança do público nessas instituições. O modelo tyleriano defende que a legitimidade e a confiança na polícia dependem das percepções do público a respeito da justeza dos processos por meio dos quais os policiais tomam decisões e exercem sua autoridade (Sunshine & Tyler, 2003).
Dois elementos são centrais para a avaliação da justeza dos processos: a qualidade da tomada de decisão e a qualidade do tratamento dispensado aos cidadãos (Sunshine & Tyler, 2003). A qualidade da tomada de decisão refere-se à atenção dada pelos policiais às falas dos cidadãos, às explicações dos policiais a respeito dos procedimentos adotados no contato e à transparência e clareza das decisões. A qualidade do tratamento dispensado reflete percepções a respeito do tratamento conferido pelos agentes ao público, que demanda ter seus direitos respeitados nos contatos com a polícia (Tyler, 1990). Assim, no modelo tyleriano, elementos como o tom de voz dos agentes, se eles explicaram claramente os procedimentos de contato, se deixam claro para o cidadão seus direitos etc., são centrais para a formação de opiniões dos cidadãos a respeito da instituição policial.
A maioria dos trabalhos que se dedicou a testar o modelo tyleriano encontrou evidências de que a qualidade do processo decisório e a do tratamento dispensado por policiais durante contatos com o público estão associadas com atitudes em relação à polícia (Sunshine & Tyler, 2003; Li et al., 2015; Van Damme, 2015). Uma das principais variáveis dependentes analisadas por essa literatura consiste na legitimidade da instituição policial. Em geral, esses estudos descobriram que contatos marcados por um tratamento procedimentalmente justo estão vinculados a avaliações positivas das interações, o que, por sua vez, amplia a legitimidade da polícia (Sunshine & Tyler, 2003). A explicação para esses achados reside na ideia de que, se as pessoas perceberem a tomada de decisão policial como clara, objetiva e orientada por procedimentos, elas tenderão a perceber a instituição como mais legítima.
No Brasil, Zilli & Couto (2017) encontraram evidências favoráveis à perspectiva tyleriana, descobrindo que o mau tratamento fornecido por policiais durante contatos é o maior preditor da avaliação do trabalho das polícias. Com relação especificamente ao contato iniciado pelo cidadão, Oliveira Junior (2011) demonstrou que avaliações negativas de contatos com policiais reduzem a confiança dos brasileiros na polícia. Sua pesquisa, no entanto, não permite diferenciar os aspectos de interação avaliados. Outros estudos encontraram que tanto percepções sobre a justeza procedimental da polícia quanto sobre sua eficácia impactam a confiança na instituição em São Paulo. Seus achados, porém, lidam com percepções gerais sobre a atuação da polícia, e não com avaliações de contatos ocorridos (Zanetic, 2017; Oliveira & Zanetic et al., 2020).
Uma perspectiva alternativa ao modelo tyleriano enfatiza a importância de percepções de eficácia e eficiência da atuação policial para explicar atitudes como legitimidade e confiança na polícia. Tal perspectiva defende que a opinião dos cidadãos a respeito da polícia seria também fortemente influenciada pela percepção das pessoas a respeito da capacidade da instituição de solucionar satisfatoriamente as demandas colocadas pelo público (Sargeant et al., 2014).
Evidências disponíveis fornecem alguma sustentação para a perspectiva da eficácia, embora em menor escala que para a perspectiva procedimental. Em Gana, Tankebe (2009) demonstrou que os efeitos de percepções gerais da eficácia da polícia sobre a legitimidade são maiores que os de opiniões acerca da justeza procedimental da instituição. Em Minas Gerais, os achados de Beato & Silva (2013) indicaram que a percepção de eficácia da polícia no combate ao crime é um dos principais preditores da confiança. Na Austrália, Sargeant et al. (2014) descobriram que, embora a percepção de justiça procedimental seja mais importante que a de eficácia para explicar a confiança na polícia, seus efeitos se reduzem a grupos étnicos não europeus, enquanto os da eficácia aumentam. Na áfrica do Sul, Bradford et al. (2014) demonstraram que a confiança na eficácia da polícia apresenta associações maiores com a legitimidade da instituição do que a confiança em sua justeza procedimental.
Tais resultados se contrapõem aos de estudos conduzidos nos Estados Unidos e na Europa Ocidental, onde as análises empíricas frequentemente encontram suporte para o modelo tyleriano, no qual a percepção de justiça procedimental emerge como preditora principal da legitimidade, em detrimento a opiniões sobre a eficácia (Van Damme, 2015; Van Damme, 2013). Uma razão para essas diferenças pode residir nos distintos contextos sociopolíticos nos quais são realizadas as análises. Por exemplo, em países marcados por altas taxas de violência, o crime pode ser um problema mais saliente para o público, fazendo com que atitudes com relação à polícia sejam mais influenciadas por percepções a respeito da eficácia de sua atuação do que em países onde a segurança pública não é percebida como uma questão urgente (Bradford et al., 2014).
Tendo em vista a variabilidade das possibilidades de contato e seus efeitos sobre percepções da instituição, este trabalho visa a contribuir para a melhor compreensão do papel exercido por interações com a polícia iniciadas pelos cidadãos sobre a confiança na instituição. Utilizando um painel representativo de oito áreas-chave da cidade de São Paulo, verificamos como a avaliação dos contatos se associa a variações de confiança na polícia. Contatos melhor avaliados levam a uma melhora da confiança ou a avaliação não é importante? Nossa expectativa é a de que a melhoria da avaliação dos contatos estaria vinculada ao aumento da confiança. De forma análoga, contatos percebidos como pouco satisfatórios pelos indivíduos estariam associados a uma redução da confiança na instituição. Assim, nossa primeira hipótese é a de que:
H1. Contatos bem avaliados iniciados pelo cidadão ampliam a confiança na polícia, enquanto contatos mal avaliados a reduzem.
Além disso, comparamos também os efeitos das avaliações de distintos aspectos do contato iniciado pelo cidadão sobre a confiança. Nesse sentido, buscamos testar a validade da perspectiva procedimental vis-à-vis a perspectiva da eficácia para o contexto paulistano.
Para realizar a comparação proposta, verificamos quais dimensões da avaliação do contato apresentam maiores associações com a confiança na polícia: aquelas vinculadas à percepção de justiça procedimental ou as relacionadas à percepção de eficácia da atuação policial. Tendo em vista que a maior parte da literatura disponível encontrou evidências a favor da perspectiva procedimental, acreditamos que os aspectos ligados à avaliação da justiça procedimental do contato terão efeitos maiores que aqueles ligados à eficácia (resolução do problema que motivou o contato) e à eficiência (rapidez do atendimento). Dessa forma:
H2. As avaliações da justiça procedimental do contato iniciado pelo cidadão apresentam associações maiores com a confiança na polícia do que as avaliações da eficácia e da eficiência.
V. Dados e metodologia
Este texto analisa três ondas do painel com moradores da cidade de São Paulo, desenvolvido pelo Núcleo de Estudos da Violência da USP (NEV-USP). O survey é representativo de oito áreas-chave da capital paulista. As áreas-chave são agregações de bairros com características urbanísticas semelhantes, como taxas de homicídio e renda média dos habitantes, que foram selecionadas de modo a representar a variabilidade socioeconômica e demográfica do município de São Paulo2.
Para cada área-chave, foram aplicados processos de amostragem em duas etapas. Primeiro, foram sorteados setores censitários. Em seguida, respondentes em cada setor censitário foram selecionados de modo a preencher cotas sociodemográficas por gênero, raça e escolaridade previamente definidas. A primeira onda foi coletada em 2015 e teve 1.200 respondentes, com 150 em cada área-chave. A segunda onda, que foi a campo em 2017, contou com 928 respondentes da amostra original. Por fim, a terceira rodada, coletada em 2018, contou com 801 entrevistados dos 1.200 inicialmente pesquisados em 2015. Assim, o painel dispõe de um total de 2.929 respostas e uma taxa de atrito menor que 25% entre cada rodada, o que é considerado um patamar esperado e aceitável (Oliveira, 2022; Nery et al., 2019). Todas as entrevistas foram conduzidas face-a-face. O questionário é formado majoritariamente por questões relativas a experiências e percepções sobre a polícia e o Judiciário, além de perguntas sociodemográficas.
Para este estudo, optamos por manter na análise apenas os indivíduos que responderam às três ondas do survey, visto que estamos interessados na variação temporal dos efeitos de procurar a polícia nas percepções sobre a instituição. As ondas foram coletadas em 2015, 2017 e 2018, com 753 indivíduos respondendo a todas as três, totalizando 2.259 observações.
O survey mensurou cinco aspectos da avaliação do contato dos indivíduos que procuraram a polícia. As pessoas foram perguntadas a respeito de sua avaliação da rapidez do atendimento, do tratamento recebido, da atenção dada pelos policiais às informações fornecidas, da explicação sobre as providências a serem tomadas pela polícia e da resolução do problema relatado pelo cidadão. As opções de resposta eram “Muito satisfeito(a)”, “Satisfeito(a)”, “Pouco satisfeito(a)”, e “Nada satisfeito(a)”. As perguntas utilizadas para as variáveis explicativas e para a dependente podem ser vistas na Tabela 1.
Um quantitativo significativo de indivíduos procurou a polícia ao longo das três ondas do painel, conforme pode ser visto na Tabela 2. Na primeira rodada do survey, 31,9% da amostra declarou ter procurado a polícia. Nas ondas subsequentes, esse valor se reduz para 26,4% e 23,4%. Os valores de nossa variável dependente, confiança na polícia, se mantêm estáveis nas três ondas do painel, variando em torno de 2. Trata-se de um valor médio, visto que a escala de confiança vai de 1 (nenhuma confiança) a 4 (muita confiança).
A Tabela 3 mostra que, entre as 820 observações que procuraram a polícia, 42,4% foram direto à delegacia, 40,2% acionaram agentes por telefone, 7,9% procuraram policiais na rua e 6,9% pela internet.
No que tange ao perfil sociodemográfico dos 820 casos que procuraram a polícia, a Tabela 4 mostra que 54,4% eram mulheres. Com relação à cor ou à raça, entre as observações que procuraram a polícia, 38,1% se declararam não brancos. Aqueles que iniciaram interações com a polícia eram, além disso, um pouco mais pobres, em média, do que o total da amostra (conforme Critério Brasil3) e relativamente mais jovens.
Nas análises realizadas a seguir, apenas indivíduos que procuraram a polícia foram mantidos na amostra, totalizando 820 observações. A Tabela 5 indica que o aspecto de contato mais mal avaliado por quem procurou a polícia foi a resolução do problema relatado, seguido pela rapidez do atendimento. O primeiro aspecto é vinculado à dimensão da eficácia policial e o segundo, à da eficiência, enquanto o tratamento, a atenção e a explicação são mais próximas à dimensão de justiça procedimental. A melhor avaliação foi relativa ao tratamento recebido pelos cidadãos, com 15,9% de muito satisfeitos e 41,2% de satisfeitos.
A Tabela 6 mostra os níveis médios de confiança por grau de satisfação com o contato com a polícia para os cinco aspectos avaliados. A princípio, esses dados nos fornecem indícios a favor da ideia de que melhores avaliações estão associadas a maiores níveis de confiança na polícia. Há uma associação positiva entre satisfação com a interação com a polícia e confiança na instituição, com médias maiores desta conforme subimos na escala de satisfação. No caso da satisfação com o tratamento recebido durante o contato, por exemplo, os respondentes nada satisfeitos apresentaram uma média de confiança posterior ao contato de 1,6, em relação a 2,6 entre os muito satisfeitos. Na seção de resultados, verificaremos se esses achados se mantêm após controlarmos por covariáveis importantes.
Para verificar como variações na confiança de um indivíduo estão associadas a mudanças em sua avaliação do contato, precisamos estimar um tipo de efeito específico, conhecido na literatura metodológica como within-effect (Bell et al., 2018). No contexto deste estudo, os within-effects se referem aos efeitos da avaliação do contato com a polícia, em seus distintos aspectos, sobre a confiança na instituição de um mesmo indivíduo ao longo do tempo. Em outras palavras, trata-se de medir como a avaliação se associa a alterações da confiança na instituição de um indivíduo comparado consigo mesmo entre as ondas do painel. O cálculo dos within-effects é apenas possível neste estudo porque dispomos de dados em formato de painel, nos quais as mesmas pessoas foram entrevistadas em três momentos distintos.
Um outro tipo de estimativa também nos interessa. Além de buscarmos compreender como alterações na avaliação se associam, em média, à confiança dos indivíduos quando comparados a si mesmos ao longo do tempo, também julgamos interessante analisar a correlação da avaliação com a confiança quando pessoas distintas são comparadas entre si. Nesse caso, estimaremos os between-effects (Bell et al., 2018), ou efeitos entre unidades, nos quais compararemos as associações das avaliações com variações da confiança entre os indivíduos da amostra.
Com os within-effects, portanto, comparamos as pessoas consigo mesmas ao longo do tempo, enquanto com os between-effects comparamos pessoas diferentes entre si. Para estimarmos os dois tipos de efeitos simultaneamente, recorremos a uma categoria de modelos estatísticos conhecida como mixed-effects models ou modelos de efeitos mistos. Os modelos de efeitos mistos possibilitam o cálculo simultâneo de efeitos within e between a partir da decomposição das variáveis explicativas em duas partes: uma que varia entre os períodos para uma mesma pessoa (within) e outra que varia apenas por pessoa, mas não entre os períodos (between) (Bell & Jones, 2015). Ambas as partes da variável são incluídas separadamente como preditoras na regressão. Temos, então, um total de dez variáveis explicativas, com uma versão within e uma between para as avaliações da rapidez do atendimento, do tratamento dispensado pelos policiais, da atenção prestada às informações dadas pelos cidadãos, da explicação dada pelos policiais sobre os procedimentos a serem tomados e da resolução dada ao caso. Formalmente, temos:
onde Confiançait se refere à variável dependente, confiança na polícia; rapiWit e rapiBi se referem às variáveis de avaliação da rapidez within e between; trataWit e trataBi, à avaliação do tratamento within e between; atenWit e atenBi, à avaliação da atenção within e between; expliWit e expliBi, à opinião sobre a explicação fornecida pelos policiais within e between; resWit e resBi, à avaliação sobre a resolução do problema levado pelo cidadão durante o contato within e between. ZWit, por sua vez, se refere a um vetor de controles within e ZBi às versões between desses controles. ϑit é o componente aleatório do modelo, indicando a inclusão de efeitos aleatórios no intercepto da regressão, e εit consiste no termo de erro da equação. Os subscritos i e t se referem a indivíduo e tempo, respectivamente, indicando os preditores que variam apenas por pessoa ou simultaneamente por pessoa e período.
Os controles adicionados foram confiança interpessoal, percepção de violência no bairro onde mora, a opinião a respeito da proteção fornecida pela polícia no bairro, vitimização direta ou vicária no último ano e se foi abordado por policiais nos 12 meses antes da entrevista. Apenas controles que variam no tempo foram utilizados, visto que modelos de efeitos mistos controlam automaticamente características individuais que não variam entre os períodos disponíveis na amostra, como sexo e cor ou raça (Bell et al., 2018).
V. Resultados
Para o cálculo dos efeitos da avaliação do contato sobre a confiança na polícia, aplicamos um modelo ordinal de efeitos mistos, tendo em vista que a variável dependente é uma variável categórica com quatro níveis hierarquizados, indo do valor 1 (nenhuma confiança) a 4 (confiança alta). Como teste de robustez, computamos também os resultados utilizando modelos lineares de efeitos mistos. Os resultados podem ser vistos na Tabela 7.
Os coeficientes encontrados indicam que apenas uma dimensão da avaliação do contato apresenta efeitos significativos sobre a confiança: a opinião do cidadão sobre o tratamento recebido. Tomando como base o modelo mais completo, o modelo 4, a avaliação do tratamento recebido within apresenta associações positivas em relação à confiança na polícia. A interpretação substantiva desse achado é que uma variação positiva de um ponto na escala de avaliação entre as ondas do painel para um mesmo indivíduo está vinculada a um acréscimo de 95% nas chances de essa pessoa apresentar um valor mais alto de confiança. De forma análoga, reduções de um ponto na avaliação entre as ondas estão associadas a um decréscimo de 95% nas chances de ter uma confiança mais elevada.
Como nossa preocupação principal é compreender mudanças na confiança a partir de alterações na avaliação do contato, nosso efeito de maior interesse é o within. Ainda assim, é importante mencionar que o efeito between da avaliação do tratamento não foi significativo. Isso significa que, embora essa avaliação seja importante para explicar alterações na confiança de uma mesma pessoa ao longo do tempo, ela não ajuda na compreensão das diferenças entre pessoas.
Analisando em conjunto as associações within e between, concluímos que apenas um aspecto da avaliação do contato ajuda a explicar a confiança na polícia: a avaliação do tratamento recebido. Ademais, a associação encontrada foi em sua dimensão within, significando que a satisfação com o tratamento ajuda a explicar mudanças da confiança na polícia quando comparamos um indivíduo consigo mesmo ao longo do tempo, mas não diferenças entre indivíduos.
As demais dimensões da avaliação não apresentaram correlações significativas com a confiança na polícia, indicando que são irrelevantes para a formação dessa atitude a respeito da instituição. Tanto as variáveis remanescentes de percepção da justiça procedimental no contato, atenção e explicação, quanto as de eficácia e eficiência, resolução e rapidez, respectivamente, não apresentaram associações significativas com a confiança na polícia, tanto em sua versão within quanto between. Isso significa que esses aspectos da avaliação não estão associados à confiança em nenhum cenário: nem quando comparamos os indivíduos consigo mesmos ao longo do tempo, nem quando os comparamos entre si.
VI. Discussão e considerações finais
Neste trabalho, investigamos como as avaliações de diversos aspectos do contato com a polícia iniciado pelo cidadão estão associadas à confiança na instituição. Nossa primeira hipótese, ancorada nos achados anteriores da literatura, era a de que contatos bem avaliados estariam vinculados a aumentos na confiança na instituição, enquanto contatos mal avaliados estariam vinculados a decréscimos. A segunda hipótese era a de que a correlação das variáveis que mediam percepções da justeza procedimental do contato com a confiança seria maior do que as que mensuravam aspectos de eficiência e eficácia da resposta da polícia.
Utilizando dados de um painel realizado em 2015, 2017 e 2018 pelo NEV/USP, representativo de oito áreas-chave da cidade de São Paulo, e um conjunto de modelos capazes de calcular associações within, para um indivíduo comparado consigo mesmo ao longo do tempo, e between, para diversas pessoas comparadas entre si, nossos achados confirmaram essas hipóteses. Primeiro, apenas um aspecto da avaliação da justeza procedimental, o julgamento do tratamento recebido, apresentou associações significativas com a confiança. Tal associação apareceu na direção esperada, com elevações da avaliação para um mesmo indivíduo entre as ondas do painel vinculadas a acréscimos na confiança. Analogamente, reduções da satisfação com o contato estão associadas a decréscimos na variável dependente.
Por outro lado, a justiça procedimental tem dois componentes principais: a qualidade da tomada de decisão e a qualidade do tratamento dado ao cidadão (Sunshine & Tyler, 2003). Em nossos achados, apenas o aspecto da avaliação vinculado à qualidade do tratamento apresentou associações significativas com a confiança. A percepção da qualidade da tomada de decisão foi medida por meio da avaliação das explicações fornecidas pelos policiais durante o contato e da atenção prestada por eles às informações trazidas pelos cidadãos. Nenhum desses dois aspectos avaliados apresentou correlações significativas within ou between com a confiança na polícia.
Nossa investigação contribui para o avanço do debate a respeito da formação de atitudes com relação à polícia em duas frentes principais. Primeiro, ao demonstrar que a confiança é suscetível de alteração a partir de experiências vividas com policiais. Tal achado vai contra avaliações de que as atitudes com relação à polícia seriam tão resilientes a ponto de não serem alteradas por experiências pessoais (Skogan, 2012). Demonstramos, assim, que o contato é capaz de produzir melhoras (e pioras) na confiança.
Segundo, contribui ao detalhar quais aspectos da avaliação estão, de fato, associados com mudanças na confiança. Nesse sentido, mostramos que apenas a percepção da justeza procedimental no tratamento oferecido aos cidadãos pela polícia apresentou correlações significativas com variações na confiança. Esse achado demonstra que, ao menos no contexto da cidade de São Paulo, avaliações da justiça procedimental dos policiais são mais importantes para explicar oscilações da confiança na instituição do que as dimensões de eficácia e eficiência do contato. Tais resultados são ainda mais notáveis considerando que o tipo de contato analisado é aquele iniciado pelo cidadão, sobre o qual existe a expectativa de que a eficácia da interação seria central, pois o intuito ao procurar a polícia é, geralmente, tentar proteger um direito (Brown & Benedict, 2002).
Além disso, esses resultados contribuem para o debate internacional a respeito das associações entre interações com a polícia, confiança e legitimidade da instituição policial ao demonstrarem a validade da perspectiva tyleriana para um país estruturalmente bastante distinto das nações da Europa Ocidental e da América do Norte, onde a maior parte dos estudos na área foi realizada. A maioria das análises anteriores conduzidas em países do sul global encontrou associações maiores das percepções de eficácia do que das de justeza procedimental, em detrimento à perspectiva tyleriana, que enfatiza a justeza dos procedimentos de contato como o principal fator explicativo da confiança na polícia (Tankebe, 2009; Bradford, 2014).
Ainda que existam diferenças culturais e socioeconômicas importantes entre os países, assim como diferentes formas de construção de amostras e coleta de dados, algumas comparações com estudos internacionais são interessantes para a melhor compreensão de nossos achados. Principalmente, apesar de o Brasil ser um dos países mais violentos do mundo, assim como a áfrica do Sul, os dados analisados referem-se à cidade de São Paulo, que apresenta a especificidade de ser a capital com menor taxa de homicídios no Brasil há alguns anos. Em 2018, por exemplo, a taxa de mortes violentas na capital paulista foi de 4,4 por 100.000 habitantes4, valor próximo à taxa americana no mesmo ano de 4,9 mortes a cada 100.000 habitantes. A título de comparação, em 2018, a taxa na áfrica do Sul foi de 64,1 assassinatos para cada 100.000 pessoas5. Se uma das razões para a importância da avaliação da eficácia encontrada em países como a áfrica do Sul for realmente a saliência do problema do crime (Bradford, 2014), a menor taxa de homicídios registrada em São Paulo seria uma das explicações para a importância reduzida da perspectiva da eficácia no contexto paulistano.
No cenário nacional, nossos resultados adicionam informações importantes ao debate sobre contatos iniciados pelos cidadãos e a confiança na polícia. Estudos anteriores encontraram evidências mistas na relação entre procurar a polícia e atitudes. Alguns encontraram efeitos positivos ou negativos sobre a confiança, dependendo da finalidade da procura (Beato & Silva, 2013). Outros encontraram efeitos negativos de avaliações ruins, considerando o conjunto da interação, sem diferenciar os aspectos avaliados (Oliveira Junior, 2011). Assim, nosso texto avança ao demonstrar que os efeitos dos contatos podem variar dependendo do aspecto avaliado da interação. Mostra que o aspecto da avaliação mais importante se refere ao tratamento recebido, corroborando a tese que defende que a percepção de justiça procedimental é um preditor mais importante de atitudes com relação à polícia do que a avaliação da eficácia da instituição.
O estudo também é inovador na medida em que trabalhos anteriores se apoiaram principalmente na análise de dados cross-sectional, tornando seus achados mais suscetíveis a problemas como o viés de covariável omitida (Bell et al., 2018). Ademais, o estudo do efeito de eventos específicos e suas avaliações sobre atitudes, como a satisfação com o contato com a polícia sobre a confiança na instituição, demanda dados em painel para ser realizado de forma precisa, visto que se trata de estudo dedicado a calcular o efeito de um evento ou mudança de percepção que ocorre ao longo do tempo. Dessa forma, o uso de modelos de feitos fixos ou mistos com dados em painel mostra-se como o mais adequado, permitindo controlar por níveis anteriores da variável dependente, bem como por variáveis fixas temporalmente que poderiam enviesar os resultados de modelos cross-sectional (Skogan, 2012).
Para avançar na discussão a respeito dos efeitos de contatos com a polícia e de suas avaliações sobre atitudes com relação à instituição, são necessárias pesquisas focadas em opiniões diversas com relação à polícia, realizadas em múltiplos contextos, para que conheçamos os mecanismos causais entre interações com policiais e atitudes. Nessas investigações, o cuidado com os métodos de coleta e análise de dados é essencial, visto que perguntas relacionadas ao efeito de eventos sobre atitudes demandam desenhos longitudinais ou experimentais para serem respondidas.
Outra frente de estudos em aberto consiste em compreender como diferentes formas de procurar a polícia se relacionam com atitudes com relação à instituição. é possível que acionar policiais em uma situação de emergência para pedir socorro tenha efeitos distintos de, por exemplo, dirigir-se a uma delegacia para registrar um boletim de ocorrência. Essa possibilidade torna-se ainda maior no Brasil, onde, dependendo da finalidade da procura, a polícia acionada pode ser a Civil ou a Militar.
Em termos de políticas públicas, os resultados enfatizam a importância de investir em treinamento de policiais em procedimentos de contato com os cidadãos para melhorar a opinião pública a respeito da polícia. Além disso, estudos já demonstraram que pessoas com melhores atitudes com relação à polícia se sentem mais dispostas a cooperar com o trabalho policial (Van Damme et al., 2013). Se a confiança é influenciada pelas experiências dos cidadãos com a polícia, melhorar a qualidade dessas interações tende a gerar efeitos benéficos não apenas para as opiniões da sociedade sobre a instituição, mas também a facilitar a atuação dos agentes no cotidiano.
Trust is a fundamental element shaping the relationship between the police and society. Trust in law enforcement significantly influences citizens' willingness to cooperate, report crimes, and assist police efforts. This study aims to understand the foundations of this trust by examining how citizens' self-initiated interactions with the police impact their trust in the institution. Specifically, we focus on two dimensions: the perceived quality of treatment and the effectiveness in addressing citizens' concerns.
Existing knowledge and evidence
A wealth of evidence, both within Brazil and internationally, underlines the impact of police interactions on trust in the institution. Positive evaluations of these interactions tend to bolster trust, while negative evaluations erode it. However, a significant puzzle remains. Research grounded in procedural justice emphasizes the role of the treatment received during these interactions in explaining trust, while other studies underscore the effectiveness of these interactions in resolving citizens' demands as the predominant factor. The former perspective often aligns with countries such as the United States and Australia, whereas the latter is more prevalent in Global South nations such as Ghana and South Africa. This article contributes to unraveling this puzzle by focusing on the city of São Paulo.
Added value of the study
Our study draws from a representative panel encompassing eight key areas in the city of São Paulo, compiled by the Center for the Study of Violence of the University of São Paulo (NEV-USP) in the years 2015, 2017, and 2018, totaling 2,929 responses across three questionnaire rounds. Our analysis found that only procedural justice, as perceived through the quality of interpersonal interactions with police officers, significantly explains variations in trust. Conversely, the effectiveness of these interactions had no significant impact on trust. We utilized mixed-effects models to analyze how changes in perceptions of citizen-police interactions affect an individual's trust over time. This approach provides statistically more robust findings when compared to the more commonly used cross-sectional surveys in the Brazilian context.
Research implications
Our findings hold two significant implications. First, from a theoretical perspective, our study lends support to the importance of procedural justice over effectiveness. This validates the procedural justice thesis for one of the largest cities in the Global South, São Paulo, distinguishing our research from previous studies that primarily focused on countries such as the United States, the United Kingdom, and Australia. Second, our findings have practical significance for security-related public policies in Brazil, emphasizing the importance of investing in training programs to enhance the quality of treatment offered by law enforcement officers during interactions. This is a crucial step in improving citizens' trust in the police institution and, consequently, enhancing overall police-society relations.
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Esta pesquisa foi financiada pela Fapesp no processo 2021/06639-0. Agradecemos aos pareceristas anônimos da Revista de Sociologia e Política pelos comentários e sugestões.
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Detalhes sobre a construção das áreas-chave podem ser visualizados em Nery et al. (2019).
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O Critério Brasil consiste em uma metodologia de cálculo da renda baseada na posse de bens de consumo pelas famílias. Em nossa amostra, o Critério Brasil varia de 1 a 6, de forma proporcional ao número de bens declarados pelos indivíduos.
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Segundo o Atlas da Violência.
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Segundo dados compilados pela UNODC.
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Outras fontes
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» https://dataunodc.un.org/dp-intentional-homicide-victims
Datas de Publicação
-
Publicação nesta coleção
27 Nov 2023 -
Data do Fascículo
2023
Histórico
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Recebido
21 Mar 2023 -
Revisado
21 Jul 2023 -
Aceito
03 Out 2023