Open-access Quem iria votar se não fosse obrigado? O papel do interesse pela política no comparecimento eleitoral no Brasil

Who would vote if they did not have to? The role of interest in politics in voter turnout in Brazil

RESUMO

Introdução:  O artigo explora os efeitos potenciais de características sociodemográficas no comparecimento eleitoral em um cenário em que o voto não fosse compulsório no Brasil. Em que pese algumas diferenças sociodemográficas, o principal fator associado à propensão a comparecer às eleições é atitudinal: o interesse por política.

Materiais e Métodos:  Utilizei dados do Estudo Eleitoral Brasileiro (ondas de 2014 e 2018) e mostro, por intermédio de regressão logística, os efeitos das variáveis sexo, cor, idade, escolaridade, interesse por política e atitude em relação à democracia sobre a disposição de votar.

Resultados:  Nos dois modelos de regressão testados, apenas um segmento demográfico aparece com propensão nitidamente maior a comparecer: pessoas com mais de 70 anos. Duas variáveis atitudinais estão fortemente associadas à probabilidade de comparecer às eleições: nível de apoio à democracia e, mais expressivamente, grau de interesse por política.

Discussão:  A pesquisa mostra que fatores atitudinais são mais relevantes do que fatores sociológicos clássicos (sempre destacados pela literatura sobre a desigualdade eleitoral) na predisposição de os eleitores comparecerem para votar.

Palavras-chave participação eleitoral; desigualdade eleitoral; voto compulsório; interesse por política; Estudo Eleitoral Brasileiro

ABSTRACT

Introduction:  The article explores the potential effects of sociodemographic characteristics on voter turnout in a scenario where voting was not compulsory in Brazil. Despite some sociodemographic differences, the main factor associated with the propensity to attend elections is attitudinal: interest in politics.

Materials and Methods:  I used data from the Brazilian Electoral Study (waves from 2014 and 2018) and show, though logistic regression, the effects of the variables gender, race, age, education, interest in politics, attitude towards democracy over willingness to vote.

Results:  In the two models tested, only one demographic segment presents a markedly greater propensity to attend voting: people over 70 years old. Two attitudinal variables are strongly related to probability in attending elections: level of democracy support, and more significantly, degree of interest in politics.

Discussion:  The research shows that attitudinal factors are more relevant than classic sociological ones (always highlighted by literature about electoral inequality) on elector’s willingness to attend voting.

Keywords voter turnout; electoral inequality; compulsory vote; interest in politics; Brazilian electoral study

I. Introdução

Existem dois achados empíricos a respeito da participação eleitoral em democracias contemporâneas. Nos países que adotam o voto compulsório a expectativa é que um número expressivo de adultos compareça para votar. Como as punições por se abster são universais, afetando todos os eleitores, o esperado é que não exista grande assimetria quando a taxa de comparecimento dos grupos demográficos é comparada. Homens e mulheres, eleitores de baixa e alta escolaridade, jovens e idosos tenderiam a comparecer em níveis semelhantes. Pesquisas a respeito do perfil dos eleitores em países que utilizam o voto obrigatório confirmam uma reduzida desigualdade na taxa de comparecimento dos diversos grupos demográficos.

Já nos países que adotam o voto facultativo haveria uma desigualdade na taxa de comparecimento dos diversos segmentos populacionais. Essa desigualdade seria explicada pelo fato de a participação política estar associada a diferentes níveis de recursos dos indivíduos (tempo livre, formação política e níveis de renda e escolaridade). Diversos estudos realizados em democracias com voto facultativo, sobretudo nos Estados Unidos, encontraram desigualdade no nível de participação eleitoral.

O principal argumento dos defensores do voto obrigatório deriva dessas duas regularidades empíricas observadas (maior desigualdade associada ao voto facultativo e menor desigualdade associada ao voto compulsório). Portanto, se um país alterar a legislação sobre a obrigatoriedade de voto, a tendência seria produzir maior ou menor desigualdade.

Se seguirmos o argumento dos defensores do voto compulsório é razoável imaginar que, caso o Brasil abandonasse este modelo e adotasse o voto facultativo, provavelmente a desigualdade na participação aumentaria em diversas dimensões: ronero (mulheres compareceriam menos do que homens); social (cidadãos de escolaridade e renda baixa votariam menos dos que de escolaridade e renda alta); racial (eleitores negros compareceriam menos do que os brancos; territorial (moradores de pequenas cidades tenderiam a se abster em maior número do que os moradores de grandes cidades).

Em que pese as evidências sobre um eventual aumento da desigualdade na participação eleitoral na hipótese de o voto facultativo ser adotado no Brasil, temos poucas formas de predizer qual seria a atitude dos eleitores diante da nova regra. Uma delas é perguntar aos eleitores se eles compareceriam caso o voto não fosse obrigatório. Essa pergunta tem sido feita em pesquisas de opinião realizadas no país desde os anos 1990. Embora as respostas não sirvam como preditoras de comportamento, elas nos permitem mensurar a atitude de diversos segmentos demográficos em relação ao voto compulsório.

O objetivo deste texto é observar qual é a atitude dos eleitores em relação ao voto obrigatório. Ele é orientado pela seguinte pergunta: existem diferenças relevantes entre determinados grupos demográficos em sua disposição de comparecer às urnas em um cenário de adoção do voto facultativo? As duas ondas do Estudo Eleitoral Brasileiro (Eseb) realizadas após o primeiro turno de 2014 e 2018 fizeram uma pergunta que servirá como base de análise: “Nas eleições deste ano, se o voto NÃO fosse obrigatório o(a) senhor (a) teria ido votar?”

Além desta introdução, o artigo é composto por mais quatro seções. A seção II faz um balanço da literatura comparada que explorou a relação entre o voto compulsório/facultativo e o perfil dos eleitores que comparecem para votar, com ênfase no que chamei de hipótese de Lijphart, que sustenta que: em democracias com voto compulsório, a desigualdade do perfil dos que comparecem para votar é menor do que nas democracias com voto facultativo. A seção III discute os trabalhos empíricos que trataram da relação entre a obrigatoriedade do voto e a desigualdade eleitoral no Brasil. A seção IV apresenta as variáveis selecionadas e os resultados de dois modelos de regressão logística, os resultados das estimativas são apresentados por intermédio de gráficos. A última seção faz uma breve discussão a respeito das implicações dos achados do artigo para o debate político e para futuras pesquisas sobre o tema.

II. Voto obrigatório e desigualdade

Um dos principais argumentos em defesa do voto obrigatório foi desenvolvido por Arend Lijphart no artigo “Participação desigual: o dilema não resolvido da democracia”, publicado em 1997. O texto, inicialmente, chama a atenção para o fato de que nas democracias que utilizam o voto facultativo existiria uma desigualdade no perfil dos que participam em atividades políticas: “como os cientistas políticos sabem por longo tempo, a desigualdade de representação não é aleatoriamente distribuída, mas sistematicamente enviesada em favor dos cidadãos mais privilegiados - aqueles com maior riqueza e renda - contra os cidadãos menos privilegiados” (Lijphart, 1997, p. 1). O comparecimento eleitoral, particularmente, estaria associado a uma forte desigualdade socioeconômica. Lijphart defende, na última seção do texto, o voto compulsório como a melhor escolha, pois ele asseguraria uma alta participação eleitoral e, consequentemente, uma maior igualdade política.

A hipótese de Lijphart foi amplamente explorada em uma série de estudos empíricos. Aina Gallego (2010) analisou os efeitos das desigualdades educacionais sobre a participação eleitoral em 28 democracias. Segundo a autora, o voto compulsório estaria associado a uma menor desigualdade do perfil educacional e as suas conclusões repetem a proposição de Lijphart: “O voto obrigatório tem um efeito positivo muito forte nas taxas de participação. Essa instituição não promove desproporcionalmente a participação dos socialmente desfavorecidos, mas seu forte impacto faz com que as taxas de participação se aproximem de 100% da participação dos cidadãos. Logicamente, quando quase todos votam, existe pouco espaço para o surgimento de desigualdades; portanto, aumentar as taxas gerais de participação é uma forma eficaz de reduzir as desigualdades na participação dos eleitores” (Gallego, 2010, pp. 246).

Abby Córdova e Gabriela Rangel (2017) fizeram um teste semelhante com dados de 44 países, explorando eventuais diferenças na participação eleitoral de homens e mulheres. A conclusão é que a diferença de gênero (gender gap) na participação eleitoral é menor nos países que utilizam o voto compulsório, sobretudo naqueles em que as punições para os que se abstém de votar são mais severas (Córdova & Rangel, 2017). O efeito equalizador do voto compulsório também é observado em outras dimensões socioeconômicas, tais como a idade (Henn & Oldfield, 2016) e a renda dos eleitores (Singh, 2015).

Em resumo: a hipótese de Lijphart (1997) tem sido recorrentemente confirmada pela literatura. Nas democracias que utilizam o voto compulsório (sobretudo com regras mais rigorosas de punição dos eleitores faltosos), o comparecimento tende a ser alto e, consequentemente, as assimetrias na taxa de comparecimento dos diversos grupos sociais tendem a ser menores.

III. Voto obrigatório no Brasil

A prática do voto compulsório no Brasil tem sido tema de interesse crescente de estudos empíricos publicados nos últimos anos, com preocupações diferentes: variação das taxas de comparecimento eleitoral nos estados brasileiros (Power, 2009); efeitos do voto obrigatório sobre o voto aleatório (voto em um candidato, não importa quem ele seja, apenas para cumprir a lei e evitar punições) nas eleições de 2018 (Freire & Turgeon, 2020); a participação eleitoral de estudantes com idade próxima aos 18 anos nas eleições de 2010 (Leon & Rizzi, 2014, 2016); e os efeitos do voto compulsório no consumo de informação dos canais de televisão em 2013 e 2015 (Bruce & Lima, 2017).

Entre os trabalhos sobre o voto compulsório no Brasil, interessa particularmente os que exploraram a hipótese de Lijphart (Elkins, 2000; Cepaluni & Hidalgo, 2016; Aguiar & Casalecchi, 2021). Em 2000, Zachary Elkins publicou o primeiro artigo que analisou o tema da desigualdade eleitoral no Brasil. As fontes de dados foram as duas pesquisas de opinião feitas pelo Instituto Datafolha em 1994 e 1998, que fez uma pergunta sobre a disposição de os eleitores comparecerem para votar caso o voto fosse facultativo (“Se o voto fosse obrigatório, o senhor votaria?”).

O autor usa diferentes modelos estatísticos e apresentações de dados e não enfatiza seus achados empíricos na introdução nem na conclusão do artigo. Por isso, é difícil dimensionar o efeito das variáveis selecionadas nos diversos modelos. Uma tabela simples mostra o percentual dos que dizem que iriam votar caso o voto fosse facultativo (Elkins, 2000, pp. 113). Os resultados são similares para os dois anos pesquisados. Existe uma associação positiva entre as faixas de idade e a disposição de votar se o voto não fosse obrigatório; quanto maior a idade, maior a probabilidade de responder positivamente. O mesmo acontece com a renda; quanto maior a faixa de renda, maior a tendência a ir votar. Não há diferenças relevantes quando se compara a cor/raça dos respondentes, nem a região de moradia. A inclinação a votar é maior nos dois extremos da faixa escolar (os que não têm escolaridade e os com curso superior).

Um novo texto sobre a relação entre voto e desigualdade no comparecimento eleitoral no Brasil só foi publicado dezesseis anos depois, em 2016. Gabriel Cepaluni e Daniel Hidalgo (2016) tiveram, pela primeira vez, acesso a um banco com dados de 140 milhões de eleitores brasileiros inscritos para votar nas eleições municipais de 2012. Como a inscrição e o voto são facultativos para eleitores com mais de 70 anos (e para os que têm 16 e 17 anos), eles utilizaram um modelo de regressão descontínua para observar se existe diferença no comparecimento eleitoral entre os eleitores que fazem aniversário (completam 70 anos) em datas próximas ao dia das eleições. Os eleitores foram segmentados em dois grupos: os que têm pelo menos o ensino fundamental completo e os que não estudaram ou têm o ensino fundamental incompleto). Eles mostram que, para os dois segmentos de escolaridade, a participação tende a diminuir após os 70 anos (voto facultativo). Já na faixa dos que são obrigados a votar, o comparecimento é mais alto entre os mais escolarizados. A explicação para tal disparidade é que “as penalidades não monetárias por abstenção afetam principalmente os eleitores das classes média e alta e, portanto, aumentam sua participação desproporcionalmente" (Cepaluni & Hidalgo, 2016, pp. 273).

Há dois reparos a fazer em relação ao artigo de Cepulani & Hidalgo (2016). O primeiro é que eles desconsideraram o fato de que voto também não é obrigatório para os analfabetos inscritos como eleitores. Em que medida a inclusão dos analfabetos no grupo dos eleitores com ensino fundamental incompleto não explicaria a abstenção maior desse grupo? O segundo reparo deriva do fato de eles não apresentarem estatística descritiva do banco de dados. A apresentação da taxa de comparecimento de todos os segmentos etários e níveis de escolaridade, por exemplo, poderia oferecer um quadro mais completo da participação eleitoral e mostrar eventuais diferenças de cada grupo.

Duas décadas após a publicação do artigo de Elkins (2000), Natália Aguiar & Gabriel Casalechi (2021) voltaram a analisar a atitude dos eleitores em relação ao voto obrigatório utilizando pesquisas de opinião como fonte. Os autores também se concentram em uma pergunta sobre a atitude dos eleitores em relação ao voto obrigatório: “Nas eleições desse ano, se o voto não fosse obrigatório, o senhor teria ido votar?” (vale observar que diferentemente da pergunta utilizada por Elkins (2000) essa indaga sobre a atitude em relação apenas ao pleito de 2014). Para mensurar as chances de os eleitores terem ido votar, os autores utilizaram 13 variáveis independentes, seis com características sociais dos eleitores e de sua região de residência e sete cobrindo diferentes atitudes em relação à política. No modelo de regressão logística com todas as variáveis, as características socioeconômicas associadas à disposição de votar aparecem como tendo impacto na probabilidade de comparecer: ter o curso superior (completo ou incompleto), se auto classificar como de cor branca e a idade (quanto mais velho, mais propenso a votar). Entre os fatores atitudinais, também associados de maneira positiva à propensão de votar, estariam o interesse por política, o partidarismo (ter simpatia por algum partido), a satisfação com a democracia e a avaliação positiva do governo Dilma Rousseff (Aguiar & Casalecchi, 2021, pp. 280).

IV. As variáveis e o modelo de regressão logística

A edição de 2018 do Estudo Eleitoral Brasileiro repetiu a pergunta sobre a disposição de comparecer às urnas na eventualidade de o voto não ser obrigatório feita em 2014. Minha ideia inicial era explorar os dados e compará-los com os resultados do artigo de Aguiar & Casalecchi (2021). Três fatores, porém, me estimularam a seguir outra estratégia e comparar diretamente os resultados de 2014 e 2018 em uma nova análise estatística. O primeiro é que a taxa de não resposta para a variável renda em 2018 foi muito alta (77%), o que inviabilizou o seu uso. A segunda é a opção de agregar as variáveis categóricas de maneira diferente. Por fim, acredito que modelos de regressão logística com um número muito grande de variáveis categóricas aumentam os riscos de counfounding e dificultam uma interpretação das estimativas, por exemplo, em um grupo com ensino fundamental e eleitores pardos, de idade entre 16 e 29 anos, qual é a probabilidade predita de homens e mulheres comparecerem para votar? Por isso, optei por um modelo mais conciso.

Para comparação dos resultados de 2014 e 2018 selecionei quatro variáveis que pudessem testar diretamente a hipótese da desigualdade eleitoral: sexo, idade, escolaridade e cor. Além delas, duas variáveis atitudinais que estão associadas à participação política (interesse por política e apoio à democracia) também foram incluídas. Os Anexos 1 e 2 mostram tabelas com a distribuição de frequência das variáveis.

A escolaridade, a idade e o sexo são as três características demográficas tradicionalmente presentes em estudos empíricos sobre a participação eleitoral. Como vimos, a literatura comparativa encontra diferenças importantes desses fatores sobre o comparecimento eleitoral em países que utilizam o voto facultativo: mulheres, eleitores jovens e de baixa escolaridade comparecem em menor grau (Dalton, 2017; Plutzer, 2017). A cor/raça é uma dimensão que recentemente passou a receber atenção nos estudos eleitorais e é central para entender as desigualdades no Brasil (Campos & Machado, 2020). O grau de interesse por política é um fator atitudinal fundamental para o entendimento do comparecimento eleitoral; afinal, cidadãos que têm interesse reduzido ou não têm qualquer interesse por política tendem a ficar em casa em dia de eleições (Aguiar & Casalecchi, 2021, pp. 270). Outra atitude dos cidadãos que se espera que tenha efeito sobre a participação é a sua visão positiva e confiança em relação à democracia; cidadãos que avaliam positivamente a democracia também tenderiam a comparecer para votar (Dalton, 2017, p. 162).

Algumas variáveis originais do Estudo Eleitoral Brasileiro de 2014 e 2018 foram recodificadas por mim para fazer a análise de regressão logística. A idade, originalmente uma variável quantitativa, foi segmentada em cinco faixas: 16 a 25 anos, 26 a 34 anos, 35 a 50 anos, 51 a 69 anos e 70 anos ou mais. Um dos objetivos é observar se os eleitores com 70 anos ou mais, para os quais o voto não é obrigatório, revelam uma propensão maior a não votar na hipótese do voto facultativo; infelizmente, o número reduzido de observações de jovens de 16 e 17 na amostra não permitiu a segmentação exclusiva para essa faixa. Em relação a autodeclaração da raça/cor dos eleitores, optei por tirar os que se classificam como indígenas e amarelos, pois eles representavam um número ínfimo da amostra (23 casos). A escolaridade foi reorganizada em quatro faixas: fundamental incompleto, fundamental completo, médio completo e superior completo.

As duas rodadas da pesquisa Eseb (2014 e 2018) fizeram uma mesma pergunta para medir o grau de interesse dos cidadãos pela política: “Quanto o(a) senhor (a) se interessa por política? O(a) senhor(a) diria que é.” As opções de resposta, lidas pelo entrevistador foram as seguintes: “muito interessado(a), interessada(a), pouco interessado(a) e nada interessado(a)”. Aguiar & Casalecchi (2021) agregaram as duas primeiras (interessado) e as duas últimas (não interessado). Eu preferi manter as quatro faixas da pesquisa original, pois a gradação de interesse (do muito ao nada interessado por política) poderia afetar a disposição de comparecimento às urnas.

A atitude em relação à democracia deriva da seguinte pergunta: “Algumas pessoas dizem que a democracia e sempre melhor que qualquer outra forma de governo. Para outros, em algumas situações e melhor uma ditadura do que uma democracia. Qual destas afirmações e mais parecida com sua forma de pensar? 1) a democracia e sempre melhor que qualquer outra forma de governo; 2) em algumas situações e melhor uma ditadura do que uma democracia; 3) tanto faz / nenhuma das duas e melhor.” Criei uma variável binária comparando aqueles que consideram a democracia sempre uma melhor opção, em contraste com os pertencentes aos outros dois grupos.

A Figura 1 mostra a proporção de respondentes das duas pesquisas que disseram que teriam ido votar mesmo se o voto não fosse obrigatório, segundo as quatro características demográficas selecionadas. Os pontos mostram a proporção estimada e as barras laterais a margem de erro. Homens mostram uma disposição maior de votar do que as mulheres em 2014 e 2018. A cor autodeclarada pelos respondentes não distingue os respondentes em nenhum dos dois anos. Dois aspectos chamam a atenção no painel da escolaridade: o alto percentual de eleitores com curso superior que se disporiam a votar, e o alto contingente de eleitores que completaram o ensino fundamental (incluídos os que têm ensino médio incompleto) que dizem que não teriam votado. A maior propensão à participação política por parte dos eleitores com curso superior é conhecida; o desafio é entender o porquê de tão poucos eleitores com ensino fundamental responderem que não teriam ido votar na hipótese de o voto não ser obrigatório.

Figura 1
Votaria em 2014 e 2018, caso o voto não fosse obrigatório, segundo características sociodemográficas

O dado mais surpreendente da Figura 1 é encontrado no painel da idade: os eleitores na faixa etária a partir de 70 anos têm uma disposição maior de comparecer em relação às outras faixas etárias; a surpresa deriva do fato de o voto já ser facultativo para esse segmento; ou seja, são os eleitores para os quais o voto não é obrigatório os mais dispostos a comparecer na eventualidade da adoção do voto facultativo. Somente novas pesquisas sobre o comportamento dos eleitores dessa faixa poderão ajudar a compreender esse aparente paradoxo da atitude da faixa dos mais idosos em relação ao comparecimento eleitoral.

A Figura 2 mostra a disposição de comparecimento eleitoral levando em conta as duas atitudes em relação à política (interesse por política e atitude em relação à democracia). Nos dois painéis observamos uma diferença na disposição à participação eleitoral. O interesse pela política funciona de maneira perfeitamente ordinal, variando de cerca de 30% (entre os que não têm nenhum interesse por política) a em torno de 80% (entre os muito interessados). Para os eleitores democráticos (os que responderam consideram a democracia a melhor forma de governo), a disposição a comparecer também é maior dos que foram agregados como não democráticos.

Figura 2
Votaria em 2014 e 2018, caso o voto não fosse obrigatório, segundo atitudes políticas

Para dimensionar o efeito do conjunto de variáveis sobre a disposição de os eleitores terem comparecido para votar em 2014 e 2018, construí dois modelos de regressão logística, um para cada ano. As variáveis independentes são as seis já apresentadas: sexo, idade, escolaridade, cor, interesse por política e atitude em relação à democracia. As categorias de referência para comparação de cada variável são: o sexo feminino; a faixa etária de 16 a 29 anos; o ensino fundamental completo; a cor branca; o amplo desinteresse por política (nada interessado); e a atitude negativa em relação à democracia (não democrático).

A Figura 3 e a Figura 4 mostram os coeficientes dos dois modelos de regressão logística. Os resultados são apresentados como razões de chance (odds ratio) - as tabelas completas dos dois modelos são apresentadas nos Anexos 3 e 4. Nas duas figuras chama a atenção a importância dos fatores atitudinais. Comparativamente aos eleitores nada interessados por política, os outros segmentos (pouco interessados, interessados e muito interessados) têm uma chance muito maior de comparecer. O mesmo acontece com a atitude em relação à democracia: eleitores que consideram a democracia uma opção melhor têm uma propensão muito maior a participar. Em relação às características sociais, apenas a idade se destaca nos dois anos: eleitores com mais de 70 anos têm uma chance maior de votar, quando comparados aos eleitores jovens.

Figura 3
Estimativas do modelo de regressão logística em 2014
Figura 4
Estimativas do modelo de regressão logística em 2018

Na Figura 1 que apresentou a relação das variáveis sociais sobre a probabilidade de votar separadamente, observamos que alguns segmentos se diferenciaram. Os resultados das estimativas dos modelos de regressão logística mostrados nas Figuras 3 e 4 oferecem um quadro mais complexo, em que a presença de variáveis atitudinais passam a ser centrais. Ou seja, as figuras oferecem um quadro em que o que diferencia os eleitores não são suas características sociodemográficas, mas, sobretudo, sua visão em relação à política.

O interesse por política é um fator decisivo na disposição de comparecimento nas duas eleições. Por isso, vale a pena observar a probabilidade estimada de como outros fatores estariam associados a ele. Isso foi feito com os dados de 2018 utilizando as três variáveis sociais (faixa etária, sexo e escolaridade) que mostraram algum efeito sobre a participação eleitoral. Desse modo, é possível observar, por exemplo, o que acontece quando comparamos a disposição de ir votar de homens e mulheres, levando em conta o interesse por política.

A Figura 5 mostra a probabilidade de os eleitores de cada segmento terem ido votar em 2018; os dados foram calculados a partir do modelo apresentado na Figura 4. Nos três painéis que compõem a figura observamos que as diferenças entre homens e mulheres e os diversos segmentos de idade e escolaridade praticamente não varia. Já a comparação dos segmentos do interesse por política mostra uma variação, que tende a aumentar à medida que a escala segue dos que não são nada interessados para os muito interessados.

Figura 5
Probabilidade de comparecer para votar em 2018, caso o voto não fosse obrigatório, segundo o sexo, idade e escolaridade

V. Implicações para o debate sobre voto compulsório no Brasil

Os estudos sobre a participação eleitoral em democracias em que o voto é facultativo mostram uma série de desigualdades no perfil dos que comparecem para votar. Homens, eleitores de renda e escolaridade mais altas tendem a comparecer proporcionalmente em maior número do que mulheres e eleitores dos estratos de menor renda e escolaridade. Esse achado empírico tem sido um dos principais argumentos utilizado pelos defensores do voto obrigatório. A obrigatoriedade de comparecer acaba produzindo uma razoável equidade no comparecimento eleitoral dos diversos segmentos sociais (Gallego, 2015).

Ainda sabemos muito pouco a respeito das eventuais desigualdades na participação eleitoral no Brasil. Trabalhos prévios, baseados em atitudes dos eleitores em relação ao fim do voto compulsório cobriram apenas três anos (1994, 1998 e 2014), usaram métodos diferentes e têm poucos achados em comum. Este artigo também se baseou em pesquisas de opinião em que cidadãos declararam sua opinião a respeito de uma eventual adoção do voto não compulsório no Brasil. E como os autores precedentes, estou consciente do cuidado que devemos ter de não extrapolar uma atitude, capturada em duas pesquisas de opinião, para um possível comportamento futuro. Como a literatura sobre comparecimento em países com voto facultativo mostra, ir votar depende uma série de fatores, desde recursos cognitivos até o nível de competitividade da disputa.

A principal contribuição deste artigo foi mostrar a importância de uma variável atitudinal (interesse pela política) como um fator decisivo para entender a disposição dos eleitores comparecerem para votar. Tanto em 2014 quanto em 2018, o interesse pela política aparece como fator decisivo para explicar a diferença entre os eleitores. Entre os atributos sociodemográficos analisados, destacam-se apenas a idade, embora num segmento não esperado: os eleitores com mais de 70 anos, justamente o segmento para o qual o voto já não é compulsório. Previamente, alguns autores já haviam inserido o interesse pela política como uma variável em seus modelos multivariados, mas sem conferir o mesmo destaque ao assinalado neste artigo.

Novos estudos sobre a participação política em geral, e participação eleitoral em particular, podem avaliar a importância desse fator para entender outras dimensões da política brasileira. Qual é a consequência para o sistema representativo do fato de um número expressivo de eleitores serem obrigados a votar, mesmo revelando um interesse tão reduzido pela política?

Alguns trabalhos recentes têm chamado a atenção sobre alguns efeitos negativos do voto compulsório, tais como a escolha aleatória de candidatos, a alta taxa de votos inválidos, e o reduzido contingente de eleitores que lembram em quem eles votaram na eleição anterior (Dassonneville et al., 2017; Kouba & Mysicka, 2019; Freire & Turgeon, 2020). No debate normativo sobre o voto obrigatório, as evidências de desigualdade na taxa de comparecimento têm tido um papel central. Os efeitos negativos da obrigatoriedade de votar também devem ser pesados. Conhecer um pouco mais a respeito da escolha dos que não querem votar e são obrigados a fazê-lo é um passo importante nessa direção.

Referências

  • Aguiar, N. & Casalecchi, G. (2021) E se o voto fosse facultativo? Expectativas de participação eleitoral voluntária no Brasil e o papel do status socioeconômico. Opinião Pública, 27(1), pp. 261-297. DOI: 10.1590/1807-01912021271261
    » https://doi.org/10.1590/1807-01912021271261
  • Bruce, R. & Lima, R.C. (2017) Compulsory voting and TV news consumption. SSRN Electronic Journal, 138, pp. 165-179. DOI: 10.2139/ssrn.2969105.
    » https://doi.org/10.2139/ssrn.2969105.
  • Campos, L.A. & Machado, C. (2020) Raça e eleições no Brasil Porto Alegre: Editora ZOUK.
  • Cepaluni, G. & Hidalgo, F.D. (2016) Compulsory voting can increase political inequality: evidence from brazil. Political Analysis, 24(2), pp. 273-280. DOI: 10.1093/pan/mpw004.
    » https://doi.org/10.1093/pan/mpw004.
  • Córdova, A. & Rangel, G. (2017) Addressing the gender gap: the effect of compulsory voting on women’s electoral engagement. Comparative Political Studies, 50(2), pp. 264-290. DOI: 10.1177/0010414016655537.
    » https://doi.org/10.1177/0010414016655537.
  • Dalton, R.J. (2017) The participation gap social status and political inequality Oxford University Press.
  • Dassonneville, R., Hooghe, M. & Miller, P. (2017) The impact of compulsory voting on inequality and the quality of the vote. West European Politics, 40(3), pp. 621-644. DOI: 10.1080/01402382.2016.1266187.
    » https://doi.org/10.1080/01402382.2016.1266187.
  • Elkins, Z. (2000) Quem iria votar? Conhecendo as conseqüências do voto obrigatório no Brasil. Opinião Pública, 6(1), pp. 109-136. DOI: 10.1590/s0104-62762000000100005.
    » https://doi.org/10.1590/s0104-62762000000100005.
  • Freire, A. & Turgeon, M. (2020) Random votes under compulsory voting: Evidence from Brazil. Electoral Studies, 66, pp. 102-168. DOI: 10.1016/j.electstud.2020.102168.
    » https://doi.org/10.1016/j.electstud.2020.102168.
  • Gallego, A. (2010) Understanding unequal turnout: education and voting in comparative perspective. Electoral Studies, 29(2), pp. 239-248. DOI: 10.1016/j.electstud.2009.11.002.
    » https://doi.org/10.1016/j.electstud.2009.11.002.
  • Gallego, A. (2015) Unequal political participation worldwide Cambridge: Cambridge University Press. DOI: 10.1007/CBO9781139151726.
  • Henn, M. & Oldfield, B. (2016) Cajoling or coercing: would electoral engineering resolve the young citizen-state disconnect? Journal of Youth Studies, 19(9), pp. 1259-1280. DOI: 10.1080/13676261.2016.1154935.
    » https://doi.org/10.1080/13676261.2016.1154935.
  • Kouba, K. & Mysicka, S. (2019) Should and does compulsory voting reduce inequality? SAGE Open, 9(1), pp. 1-10. DOI: 10.1177/2158244018817141.
    » https://doi.org/10.1177/2158244018817141
  • de Leon, F.L.L. & Rizzi, R. (2014) A test for the rational ignorance hypothesis: evidence from a natural experiment in Brazil. American Economic Journal: Economic Policy, 6(4), pp. 380-398. DOI: 10.1257/pol.6.4.380.
    » https://doi.org/10.1257/pol.6.4.380.
  • de Leon, F.L.L. & Rizzi, R. (2016) Does forced voting result in political polarization? Public Choice, 166(1-2), pp. 143-160. DOI: 10.1007/s11127-016-0318-7.
    » https://doi.org/10.1007/s11127-016-0318-7.
  • Lijphart, A. (1997) Unequal participation: democracy’s unresolved dilemma. American Political Science Review, 91(1), pp. 1-14. DOI: https://doi.org/10.2307/2952255
  • Plutzer, E. (2017) Demographics and the social bases of voter turnout. In: M. Franklin (orgs.) The routledge handbook of elections, voting behaviorand public opinion New York: Routledge, pp. 69-82.
  • Power, T.J. (2009) Compulsory for whom? Mandatory voting and electoral participation in Brazil. Journal of Politics in Latin America, 1(1), p. 97-122.
  • Singh, S.P. (2015) Compulsory voting and the turnout decision calculus. Political Studies, 63(3), pp. 548-568. DOI: 10.1111/1467-9248.12117.
    » https://doi.org/10.1111/1467-9248.12117

Apêndice

Anexo 1
Perfil da amostra utilizada (2014)
Anexo 2
Perfil da amostra utilizada (2018)
Anexo 3
Modelo de regressão logística (2014)
Anexo 4
Modelo de regressão logística (2018)

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    03 Maio 2021
  • Aceito
    05 Ago 2021
  • Recebido
    21 Out 2021
location_on
Universidade Federal do Paraná Rua General Carneiro, 460 - sala 904, 80060-150 Curitiba PR - Brasil, Tel./Fax: (55 41) 3360-5320 - Curitiba - PR - Brazil
E-mail: editoriarsp@gmail.com
rss_feed Acompanhe os números deste periódico no seu leitor de RSS
Acessibilidade / Reportar erro